a fábula dos feijões cinzentos

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Em tempos que j l vo, existiu um reino chamado Jardim--beira-mar-plantado. Este reino era retangular, pequenino e muito bonito. To lindo, to lindo que o mar, verde-azulado, no fazia outra coisa seno dar-lhe, dia e noite, beijinhos na cara e no pescoo. O reino que esta histria conta no era habitado por reis, bruxas, rainhas, cavaleiros, princesas, fadas e bobos, no, aqui s moravam feijes! Neste reino, todos se conheciam pelos seus nomes e chamavam-se: o Catarino, o Frade, o Branco, o Canrio, o Moleiro, o Verde, o Manteiga, o Vermelho, o Rasteiro, o Galego, o Preto, o Rajado e o Carrapato. Ah, preciso no esquecer que, com os feijes, viviam as suas mulheres, as Feijocas, que eram gordinhas e muito leguminosas.

Desde que o mundo era mundo, os feijes sempre viveram em paz e sossego uns com os outros, cada um com a sua cor, cada qual com o seu feitio. Mas, h muito, muito tempo em que os meninos moravam nas sementes dos seus bisavs, aconteceu uma desgraa no reino do Jardim--Beira-Mar-Plantado. Tudo aconteceu porque o feijo Carrapato tomou conta do Sol, o feijo Fidalgo desviou a gua para o seu stio e o feijo Frade tomou conta de todo o Ar que havia.

Diziam os velhos livros do reino que o Sol era a liberdade de criar; a gua, a obrigao de distribuir o que havia e o Ar, o direito a pensar e a ter ideias diferentes. Um dia, ao lavarem a cara nas gotas de orvalho, os feijes deram um grito de aflio: - Ooooohhhh! Estamos sem cor, deslavados e cinzentos! Vendo-se doentes e estragados, os feijes no refilaram muito porque parecia mal e, para alm disso, naquele reino andavam sempre entretidos com um bocado de couro redondo, cheio de vento. Tristes e coitados, a maioria dos feijes viveram assim quarenta e oito anos. O tempo ia passando sem que nada se fizesse para mudar a cor do reino do Jardim--Beira-Mar-Plantado.

At que o feijo Vermelho, que lia a vida com olhos deslumbrados e para alm disso era o mais refilo de todos, comeou a falar baixinho aos ouvidos dos outros, no silncio da noite: - Camaradas, no h direito que uns poucos tenham o Sol, a gua e o Ar com fartura e ns eu somos a maioria, andemos secos e cheios de coisa nenhuma! Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Justia, Democracia e muitas outras irms, eram as palavras que estavam aprisionadas na casa dos pensamentos sem janela. O feijo Catarino, que usava palavras com olhos abertos, ousou escrever nas folhas de couve, que eram os jornais do reino: - Ao povo do reino falta o Sol, a gua e o Ar!

O feijo Galego, vendo-se aflito com falta de ar nos bolsos no fim de cada dia escreveu, com carvo das minas, nas paredes do reino: - Socorro, que eu abafo e morro com fome e sede de tudo! O feijo Moleiro, j sem foras para acarretar farinha para o seu moinho, desesperado com a sua situao, veio gritar no silncio da aldeia: - Abaixo o Carrapato e quem o apoiar! O feijo Preto, a quem tinham ocupado a terra dos seus avs, veio para os cantos e esquinas do mundo berrar: - Saiam da nossa terra! As Feijocas, gordinhas e leguminosas, que at aquele momento s tratavam da lavagem e da comida dos bebs-feijes, ganharam coragem e vieram para a rua cantar em coro: - Queremos ter direitos iguais aos dos feijes!

O feijo Frade, que tinha uma voz de flauta celestial, veio para a porta da sua oficina encantar as Feijocas e dar uma ajudinha aos feijes Fidalgo e Carrapato: - Minhas irms, estai quietas e caladas porque para melhor ningum vai! Se a Providncia Divina quer as coisas como esto, porque assim que est bem! Ao ouvir isto, o feijo Manteiga, que tinha espinha de caracol, falou, cheio de medo, para a mulher: - mulher, melhor a gente no se meter em confuses. Se o feijo Frade diz, porque ! Ele sabe muito e, depois e depois s quero olhar pela minha vida, percebes? Mas as orelhas dos habitantes deveriam estar com saudades das palavras e das ideias novas porque, quanto mais as queriam aprisionar, mais elas entravam nos ouvidos dos feijes cinzentos. Quando o feijo Carrapato, o feijo Fidalgo e o feijo Frade souberam que os outros andavam a critic-los e a exigirem mais Sol, mais gua e mais Ar, chamaram o feijo Rajado e o feijo Verde e disseram-lhes:

- Precisamos de vocs, porque a ptria est em perigo! - Estejam ao nosso lado e dar-vos-emos um raio de sol em vez de uma golfada de ar quando o rei fizer anos! - Para isso, tereis que defender as nossas costas, ouvir o que se diz a nosso respeito e vir contar-nos tudo. Quem for por ns, viver bem. Quem for do contra, tratamos-lhe da sade com porrada e tudo mais. Deram ao feijo Rajado uma farda e um pau e ao feijo Verde umas orelhas muito grandes para ouvir as falas daqueles que discordavam dos mandachuvas do reino do Jardim--Beira-Mar-Plantado. O feijo soldado-policia e o feijo informador, julgando que estavam a prestar um bom servio pela ptria, aceitaram trabalhar para os trs mandes. As vozes dos que discordavam comearam a engrossar e as razes que sustentavam o feijo Carrapato, o feijo Fidalgo e o feijo Frade, aos poucos, iam ficando fraquinhas, amarelas e moles.

As coisas comeavam a ficar pretas para os feijes que diziam: - Eu posso, quero e mando! Os trs, vendo-se j muito aflitos, mandaram pr um olho em cada esquina e um ouvido em cada parede para descobrirem os do contra, os feijes que queriam mais Sol, mais gua e mais Ar. Ainda no contentes com isso, o feijo Carrapato inventou um lpis com os dentes afiados e azuis para comer as palavras que ele no gostava de ouvir nem de ler. O lpis, mal foi solto no meio do reino, abocanhou logo as palavras e as ideias que moravam nos livros, nas msicas e nos jornais e levouas amarradas de ps e mos para a priso das palavras luminosas.

Mas no adiantava nada porque os feijes cinzentos no se calavam e exigiam dar a sua opinio sobre os assuntos do reino. Ainda por cima, na terra do av do feijo Preto, os primos deste levantaram a voz contra os que mandavam no reino do Jardim-Beira-Mar-Plantado e berraram, muito zangados: - Ide-vos embora, queremos ser ns a mandar na nossa terra! O feijo Carrapato no gostou nada disse e mandou, para As terras de alm do mar, muito Feijes Brancos e Rajados para combater os primos dos feijes Pretos.

Muitos feijes Brancos, Rajados e Pretos morreram nessa guerra. Foi durante essa triste guerra que alguns feijes Rajados descobriram que as coisas no estavam certas e decidiram deixar de trabalhar para os ladres do Sol, da gua e do Ar. Os feijes Rajados reuniram-se nas noites sem lua e, como as razes que prendiam ao cho o feijo Carrapato, o feijo Frade e o feijo Fidalgo estavam cada vez mais podres, deram-lhes um empurro to grande, que eles Caram por terra e nunca mais se levantaram.

A partir desse momento, ningum mais roubou o Sol e o Ar aos outros, e a gua comeou a ser repartida por todos. Quando isso aconteceu, os feijes cinzentos voltaram a ter as cores antigas e no reino vegetal foi Primavera. Os cravos vieram morar para as ruas e para as praas e, no calendrio dos homens portugueses, a Histria ps uma rodinha onde marcava: 25 de abril de 1974 Dia da Liberdade.