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É incontestável a contribuição de Nelson Rodrigues para o teatro e para a cultura brasileira. Escritor, jornalista e dramaturgo, nos deixou uma obra rica, e suas peças são a parte mais popular de seu legado. Na dramaturgia, Nelson narrou o que pode ser chamado de tragédias cotidianas, com diálogos realistas e personagens retratados de maneira crua, extremamente humana. “A Falecida”, de 1953, narra os últimos dias de vida da protagonista Zulmira que, tão obcecada com a ideia da própria morte, planeja para si um grandioso funeral. A fragilidade e a miséria (espiritual e financeira) de Zulmira ficam expostas do início ao fim da peça. A protagonista é casada com Toninho, fanático por futebol e torcedor apaixonado, que no momento está desempregado e, apesar disso, não perde a chance de afirmar que apostaria tudo o que tem na vitória de seu time do coração. Zulmira e Toninho são um casal do subúrbio carioca que não vive o mais feliz dos casamentos – apesar de estarem lado a lado, é perceptível a distância afetiva que mantém os dois em mundos particulares, cada um com sua obsessão, cada um com suas preocupações individuais. A história se desenvolve através das ações de Zulmira, direcionadas para o dia de seu funeral, e envolve outros personagens na trama: familiares da protagonista, vizinhas, uma cartomante, amigos de Toninho, funcionários da funerária responsável pelo enterro de 36 mil cruzeiros, Pimentel (que mais tarde se revela amante da Falecida) e Glorinha. Glorinha merece atenção especial: ela é prima de Zulmira e causa profunda inquietação na mesma. O recalque de Zulmira em relação à Glorinha é tão absurdo e desmedido que, ao descobrir que a prima teve câncer de mama e perdeu um seio, a protagonista comemora com alegria tão intensa que chega ao nível de euforia. Percebe-se que Zulmira vive vinculada à opinião de Glorinha, assim como de suas outras vizinhas, e limita suas ações e opiniões àquilo que parece apropriado e passível de aprovação das mesmas, tentando o tempo todo se sobressair e auto- afirmar perante os outros, mesmo que isto custe o próprio prazer, filosofia ou religião. Esta importância exacerbada que Zulmira dá à opinião alheia é medíocre e expõe sua própria miséria. Seu enterro luxuoso é a última tentativa de sustentar a imagem do que deseja ser, mas apesar dos esforços, é sua vida pequena e mesquinha que se sobressai. Na montagem dirigida por NOME DIRETOR, a história é contada em um cenário que reproduz um campo de futebol e, encenando apenas no gramado, os atores levam o público a outros ambientes, como a casa de Zulmira, a rua, a casa da cartomante, a funerária, um consultório médico e a casa de Pimentel. Também compõe o cenário uma grande tela branca (ao fundo) onde imagens são projetadas com a intenção de ambientar as situações vividas pelos personagens. É compreensível a utilização deste cenário absolutamente focado no futebol: é esta a paixão de Toninho e de muitos cariocas de Nelson, e é o futebol que, ao fim da história, mostra-se mais importante que a própria morte da protagonista. As intenções de Zulmira são atropeladas

A Falecida - Nelson Rodrigues

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Page 1: A Falecida - Nelson Rodrigues

É incontestável a contribuição de Nelson Rodrigues para o teatro e para a cultura brasileira. Escritor, jornalista e dramaturgo, nos deixou uma obra rica, e suas peças são a parte mais popular de seu legado.

Na dramaturgia, Nelson narrou o que pode ser chamado de tragédias cotidianas, com diálogos realistas e personagens retratados de maneira crua, extremamente humana.

“A Falecida”, de 1953, narra os últimos dias de vida da protagonista Zulmira que, tão obcecada com a ideia da própria morte, planeja para si um grandioso funeral. A fragilidade e a miséria (espiritual e financeira) de Zulmira ficam expostas do início ao fim da peça. A protagonista é casada com Toninho, fanático por futebol e torcedor apaixonado, que no momento está desempregado e, apesar disso, não perde a chance de afirmar que apostaria tudo o que tem na vitória de seu time do coração.

Zulmira e Toninho são um casal do subúrbio carioca que não vive o mais feliz dos casamentos – apesar de estarem lado a lado, é perceptível a distância afetiva que mantém os dois em mundos particulares, cada um com sua obsessão, cada um com suas preocupações individuais.

A história se desenvolve através das ações de Zulmira, direcionadas para o dia de seu funeral, e envolve outros personagens na trama: familiares da protagonista, vizinhas, uma cartomante, amigos de Toninho, funcionários da funerária responsável pelo enterro de 36 mil cruzeiros, Pimentel (que mais tarde se revela amante da Falecida) e Glorinha.

Glorinha merece atenção especial: ela é prima de Zulmira e causa profunda inquietação na mesma. O recalque de Zulmira em relação à Glorinha é tão absurdo e desmedido que, ao descobrir que a prima teve câncer de mama e perdeu um seio, a protagonista comemora com alegria tão intensa que chega ao nível de euforia. Percebe-se que Zulmira vive vinculada à opinião de Glorinha, assim como de suas outras vizinhas, e limita suas ações e opiniões àquilo que parece apropriado e passível de aprovação das mesmas, tentando o tempo todo se sobressair e auto-afirmar perante os outros, mesmo que isto custe o próprio prazer, filosofia ou religião. Esta importância exacerbada que Zulmira dá à opinião alheia é medíocre e expõe sua própria miséria. Seu enterro luxuoso é a última tentativa de sustentar a imagem do que deseja ser, mas apesar dos esforços, é sua vida pequena e mesquinha que se sobressai.

Na montagem dirigida por NOME DIRETOR, a história é contada em um cenário que reproduz um campo de futebol e, encenando apenas no gramado, os atores levam o público a outros ambientes, como a casa de Zulmira, a rua, a casa da cartomante, a funerária, um consultório médico e a casa de Pimentel. Também compõe o cenário uma grande tela branca (ao fundo) onde imagens são projetadas com a intenção de ambientar as situações vividas pelos personagens.

É compreensível a utilização deste cenário absolutamente focado no futebol: é esta a paixão de Toninho e de muitos cariocas de Nelson, e é o futebol que, ao fim da história, mostra-se mais importante que a própria morte da protagonista. As intenções de Zulmira são atropeladas e anuladas por um evento futebolístico. Este fato expõe, sem dúvida, a já citada miséria pessoal da Falecida, mas ele acontece apenas no final da peça. Durante o desenrolar da história, o cenário impecável e a iluminação linear não exploram a variação de sensações experimentadas pelos personagens, não deixam transparecer a “pequeneza” de suas almas e o amargo de suas vidas. Além disso, as imagens projetadas eram de baixíssima qualidade e se mostraram um recurso desnecessário, que poderia ser descartado facilmente.

O figurino segue a temática do cenário e a grande maioria dos personagens veste uniformes, chuteiras, fantasias com bandeiras do Vasco, Fluminense e Brasil (sendo esta última não apenas de referência futebolística, mas absorvida pelo contexto). Esta proposta trouxe um tom de fantasia para a peça que, infelizmente, ofuscou mais uma vez a realidade dura dos personagens, principalmente para espectadores que desconheciam a história.

Há um narrador que pode ser identificado como o próprio Nelson Rodrigues, sentado à máquina de escrever, datilografando enquanto as cenas acontecem. Se bem utilizada, a narração é um recurso interessante, mas no referido espetáculo há diversos momentos de incoerência entre o que o narrador diz que está acontecendo

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e o que realmente está acontecendo. Estes momentos de incoerência quebram o envolvimento do público com a cena, fazem com que o espectador comece a prestar mais atenção nos pequenos erros recorrentes e menos atenção na história.

Em contrapartida, o elenco se mostra afiado e entrosado. O trabalho corporal dos atores deixa aparecer a sintonia do grupo, a movimentação é orgânica e precisa. Até mesmo as entradas e saídas do palco têm ritmo; o que é possível observar graças às araras que ficam visíveis dos dois lados do palco, com os figurinos e objetos utilizados em cena.

Por fim, é preciso mencionar a comoção causada por uma determinada cena. No terceiro ato, após a morte de Zulmira, Toninho vai até a casa de Pimentel pois, segundo a Falecida, este último haveria de pagar as despesas de seu enterro. Durante a conversa dos dois, Pimentel confidencia a Toninho (que havia se apresentado como primo de Zulmira) que foi amante de sua esposa. Esta confidência é feita com riqueza de detalhes, inclusive sexuais (há cenas de “flashback” da memória de Pimentel), e atinge Toninho com uma força surpreendente.

O público sofre a dor de Toninho porque a reconhece; talvez porque vivenciou uma dor parecida, talvez porque conheça alguém que vivenciou. Aí está a beleza da tragédia de Nelson: por mais intenso ou banal que possam parecer, as dores dos personagens são dores humanas, demasiadamente humanas. São palpáveis. Isto faz com que o público não se identifique apenas com a imagem, mas com o sentimento; e que ao vê-lo encenado, sinta-o também.

Resenha da Peça “A Falecida”, de Nelson RodriguesDireção de NOME DIRETOR

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Carolina Gimenes DelphimM1D20 de setembro de 2012