A Família, Claude Lévi-Strauss

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  • 7/22/2019 A Famlia, Claude Lvi-Strauss

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    CAPTULO III

    A FAMLIA

    To clara parece a palavra, to prxima da experinciaquotidiana a realidade que ela encobre, que o que se diz sobrea famlia no deveria constituir mistrio. No entanto, os etn-bgos descobrem a complicao at nas coisas familiares.A verdade que o estudo comparado da famlia suscitou entre

    eles discusses encarniadas e que ele resultou, para a teoriaetnolgica, numa reviravolta espectacular.

    Durante a segunda metade do sculo XIX e uma parte dosculo XX, sob a influncia do evolucionismo biolgico, os

    etnlogos procuraram dispor em srie unilineas as instituiesque observavam por todo o mundo. Partindo do postuladode que as nossas eram as mais complexas e as mais evoludas,eles viam nas instituies dos povos ditos primitivos a ima-gem daquelas que teriam podido existir em perodos anterioresda histria da humanidade. E, uma vez que a famlia modernaassenta essencialmente sobre o casamento monogmico, infe-

    riam da que os povos selvagens, assimilados pelas necessidadesda causa a uma humanidade ainda na infncia, no poderi amter tido seno insti tuies de caractersticas exactamenteopostas.

    Foi ento preciso tratar e deformar os factos para que elesse vergassem s hipteses. Inventaram-se pretensos estados

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    arcaicos, como a promiscuidade primitiva e o casamentode grupo, para guarnecer uma poca em que o homem eraainda to brbaro que simplesmente no teria podido conceberessas formas requintadas e enobrecidas da vida social cujafruio pertencia unicamente ao civilizado. Arrumado nolugar previsto de antemo, devidamente etiquetado, cadacostume diferente dos nossos podia ilustrar uma das etapas

    percorridas pela humanidade desde a sua origem at aosnossos dias.

    Esta posio foi-se tornando cada vez menos sustentvel medida que a etnologia se foi enriquecendo com nov os dados.Estes demonstravam que o gnero de famlia caracterizado, nassociedades contemporneas, pelo casamento monogmico, pelaresidncia independente dos jovens esposos, pelas relaesafectivas entre pais e filhos, etc. traos por vezes difceisde destrinar no emaranhado que para ns constituem oscostumes dos po vos selvagens tambm existe nitidamentenas sociedades que permaneceram, ou que regrediram a umnvel cultural que julgamos rudimentar. Para nos limitarmosa alguns exemplos, os insulares Andaman, do Oceano Indico,os Fuegianos, da ponta meridional da Amrica do Sul, os

    Na mbikwara , do Brasil central, os Bosqumanos da frica doSul, viviam em pequenos bandos seminmadas; quase notinham organizao poltica e o seu nvel tcnico era muito

    ba ix o: alguns destes povos ignoravam ou no prat icavam atecelagem, a cermica, e no construam habitaes permanentes. Entre eles, contudo, a nica estrutura social digna dessenome era a famlia, muitas vezes mesmo monogmica. O observador no tinha qualquer trabalho em identificar os parescasados, estreitamente unidos por laos sentimentais, por umacooperao econmica de todos os instantes e por um interessecomum que prestavam aos seus filhos.

    A famlia conjugai predomina, pois, nas duas pontas daescala em que se pode ordenar as sociedades humanas em funo do seu grau de desenvolvimento tcnico e econmico.O facto foi interpretado de duas maneiras. Nas sociedades quecolocavam no fundo da escala, alguns viram os ltimos testemunhos de uma espcie de idade de ouro, que teria reinado antes de os homens terem sofrido os rigores e sido expos-

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    tos s perverses de uma vida mais civilizada. Neste estdioarcaico, pretendeu-se, a humanidade conheceu os benefciosda famlia monogmica, para em seguida os esquecer, at ocristianismo os ter voltado a descobrir. Mas, se exceptuarmosa Escola de Viena, da qual tenho estado a referir a posio, atendncia geral mais a de admitir que a vida de famlia existeno conjunto das sociedades humanas, mesmo naquelas ondeos costumes sexuais e educativos parecem os mais afastadosdos nossos. Assim, depois de terem afirmado, durante pertode um sculo, que a famlia, tal como se observa nas sociedades modernas, um fenmeno de apario relativamente

    recente, produto de uma longa e lenta evoluo, os etnlogosinclinam-se hoje para uma opinio oposta: a famlia, baseadana unio mais ou menos duradoura, mas socialmente aprovada,de dois indivduos de sexos diferentes que fundam um lar,

    procriam e educam os seus filhos, aparece como um fenmenoprat icamente universal, presente em todos os tipos de sociedades.

    Estas posies extremas pecam pelo simplismo. Conhecem-se casos, raros, verdade, em que os laos de famlia talcomo ns os concebemos parecem no existir. Entre os Nayar,importante populao da ndia da costa do Malabar, os homens,absorvidos pela guerra, no podiam fundar uma famlia. Cerimnia puramente simblica, o casamento no criava laos permanentes entre os cnjuges: a mulher casada tinha tantosamantes quantos quisesse e as crianas pertenciam linhamaterna. A autoridade familiar, os direitos sobre a terra, noeram exercidos pelo marido, personagem apagada, mas simpelos irmos das esposas. E como uma casta inferior ao servio dos Nayar aliviava estes dos trabalhos agrcolas, os irmosde uma mulher podiam consagrar-se ao ofcio das armas tolivremente como o seu insignificante marido.

    Desprezam-se muitas vezes estas instituies bizarras,vendo-se nelas um vestgio de uma organizao social muito

    arcaca, outrora comum maior parte das sociedades. Altamente especializada, esta dos Nayar o produto de umalonga evoluo histrica e no pode ensinar-nos seja o que forsobre as etapas antigas da vida da humanidade. Em contra-

    part ida, no se pode p r em dvida que os Nayar fornecem

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    uma imagem ampliada de uma tendncia mais freqente nassociedades humanas do que geralmente se cr.

    Sem irem to longe quanto os Nayar, numerosas sociedades restringem o papel da famlia conjugai: reconhecem-na,mas como uma frmula entre outras. o caso, em frica,dos Masai e dos Chagga, entre os quais os homens da classeadulta mais jovem, destinados s ocupaes guerreiras, viviamem formaes militares a estabeleciam relaes sentimentaise sexuais muito livres com as raparigas adultas da classe correspondente sua. Era somente quando saam deste perodo

    activo que se podiam casar e fundar uma famlia. Dentro deum sistema destes, a famlia conjugai acompanha portantouma promiscuidade institucionalizada.

    Embora por razes diferentes, o mesmo duplo regime existia entre os Bororo e outras tribos do Brasil central, entre osMria e outras tribos da ndia e do Assame. Poder-se-ia arrumar todos os exemplos conhecidos numa ordem em que os

    Nayar representariam o caso mais coerente, mais sistemticoe levado at s suas ltimas conseqncias. Mas a tendnciaque ele ilustra manifesta-se tambm noutros locais e vemo-lareaparecer sob uma forma embrionria mesmo nas nossas

    sociedades modernas.Foi o caso da Alemanha nazi, onde a clula familiar secomeou a cindir: de um lado os homens, entregues aos tra

    balhos polticos e militares e gozando de um prestgio socialque lhes valia uma grande liberdade de conduta; do outro,as mulheres, a quem os trs K resumiam toda a vocao:

    Kche, Kirche, Kinder, a cozinha, a igreja, os filhos. Esta separao das funes masculinas e das funes femininas, prolongada durante sculos ao mesmo tempo que aumentava adesigualdade dos estatutos respectivos, teria podido vir adesembocar num tipo de organizao social sem clula familiar reconhecida, como entre os Nayar.

    Os etnlogos j tiveram muito trabalho para demonstrarque mesmo entre os povos que praticam o emprstimo demulheres (aquando de festas religiosas, ou, de maneira maisregular, entre os membros de alianas privadas que comportam tais direitos recprocos), estes costumes no constituemsobrevivncias do casamento por grupo: eles coexistem com

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    a famlia conjugai e implicam-na. verdade que, para poderemprestar a sua mulher, preciso primeiro ter uma. No entanto,diversas tribos australianas, como os Wunambal, no Noroestedo continente, julgam muito avarento um homem que serecuse a emprestar a sua mulher a outros maridos potenciaisno decurso de cerimoniais: ele procura guardar para si pr

    prio um privilgio que, aos olhos do gr up o, po de ser reivindicado por todos aqueles que, por muito numerosos que

    possam ser, lhe tm igualmente acesso. Como esta at itude acompanhada por uma denegao oficial da paternidade fisiolgica, a um duplo ttulo que estas populaes no reconhecem os laos entre o marido de uma mulher e os filhos desta.A famlia no mais do que uma associao econmica emque o homem contribui com os produtos da caa, a mulhercom os da colecta e da apanha. Quando se afirma que umatal clula social, fundada em prestaes de servios recprocos,prova que a famlia existe em toda a parte, no se est a defender uma tese mais convincente do que aquela segundo a quala famlia assim definida no tem absolutamente mais nadaem comum com a famlia, tomada na acepo corrente dotermo, do que o nome.

    conveniente ser tambm prudente no que respeita

    famlia polgama, isto , aquela em que prevalece tanto a poli-ginia unio de um homem com diversas mulheres , comoa poliandria unio de uma mulher com diversos h omens,listas definies sumrias devem ser graduadas. Por vezes, afamlia polgama consiste em vrias famlias mongamas justapostas: o mesmo homem o esposo de um certo nmerode mulheres, cada uma delas instalada, com os seus filhos,numa morada em separado. Isto observa-se com freqnciaem frica. Pelo contrrio, entre os Tupi-Kawahib do Brasilcentral, o chefe desposa, simultaneamente ou em sucesso,vrias irms ou uma mulher e as suas filhas que tenham nas-cido de uma unio precedente. Estas mulheres criam em con

    jun to os seus respectivos filhos sem se preocuparem mu it o,no que parece, com o facto de a criana de que se ocupam serou no a sua. Alm disso, o chefe empresta de boa vontadeas suas mulheres a irmos mais novos, aos seus companheirosou a hspedes de passagem. Trata-se, pois, de uma combina-

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    o de poliginia e de poliandria, que os laos de parentescoentre os co-esposos vm ainda complicar. Conheci entre estesndios uma mulher e a sua filha casadas com o mesmo homem;elas cuidavam conjuntamente dos filhos, que eram ao mesmotempo enteados para as duas, netos para uma e meios-irmosou meias-irms para a outra.

    Quando poliandria propriamente dita, ele pode revestir-se de formas extremas, como entre os Toda da ndia, emque vrios homens, em geral irmos, partilhavam a mesmamulher. Quando nascia um filho, era o pai legal quem cele

    brava uma cer imnia especial e ele continuava a s-lo de todasas crianas que viessem, at que um outro marido decidissecumprir, por seu turno, os ritos da paternidade. No Tibetee no Nepal, a poliandria parece explicar-se por razes sociolgicas da mesma ordem que as j encontradas nos Nayar: parahomens submetidos vida errante de guias ou de carregadores, a poliandria oferece uma oportunidade de haver sempreum marido em casa para zelar pelos assuntos domsticos.

    Nem a poliandr ia nem a poliginia impedem que a famlia conserve a sua identidade legal, econmica, ou mesmosentimental. O que se passar nos casos em que as duas frmulas coexistem? At um certo ponto, os Tupi-Kawahib

    ilustram esta conjuntura: o chefe, como j se viu, exerce umprivilgio poligmico e empres ta as suas mulheres a diversascategorias de indivduos, membros ou no da sua tribo.O lao entre os esposos difere, mais em grau do que em natureza, de outros laos, que podem ser alinhados em ordemdecrescente: amantes regulares, semipermanentes, ocasionais ... Mas, neste caso, contudo, s o casamento verdadeirodetermina o estatuto dos filhos, a comear pela sua filiaono cl.

    A evoluo dos Toda no decurso do sculo XIX aproxi-mar-nos-ia mais daquilo a que se chamou casamento por

    grupo. Os Toda praticavam uma forma de poliandria favorecida pelo infanticdio das raparigas, que criava partidaum desequilbrio entre os sexos. Quando a administrao

    bri tnica proibiu este l timo costume, os To da continuarama praticar a poliandria, com a diferena de que, em vez de se

    part ilhar uma nica mulher, os irmos poderiam to mar vrias.

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    Como no caso dos Nayar, no se poderia interpretar um sistema to afastado da famlia conjugai como uma sobrevivncia. Ele surgiu numa poca relativamente recente, resultadoinesperado de um conflito entre os costumes locais e a vontade do colonizador.

    Seria pois errado abordar o estudo da famlia com umesprito dogmtico. A cada instante, o objecto que se pensava entender oculta-se. Dos tipos de organizao social que

    prevaleceram em etapas muito antigas da his tr ia da humanidade no conhecemos muito. Mesmo no que respeita ao paleo-

    ltico superior no considerando as obras de arte , difceisde interpretar, os restos de ossadas e utenslios lticos,velhos de uma a duas dezenas de milnios, so pouco pr

    prios para nos esclarecerem sobre a organizao social e sobreos costumes. Tambm ao percorrer o imenso reportrio dassociedades humanas, sobre as quais possumos informaesdesde Herdoto, tudo quanto se pode dizer, do ponto devista que nos interessa, que a famlia conjulgal surge nelascom muita freqncia e que, onde quer que seja que ela pareafaltar, se trata geralmente de sociedades muito evoludas eno, como se poderia esperar neste caso, de sociedades maisrudimentares e mais simples. Em contrapartida, existem tiposde famlia no conjugal (polgama ou no); s este facto bastapara convencer de que a famlia conjugai no provm de um anecessidade universal, sendo, pelo menos, concebvel que umasociedade possa existir e manter-se sem ela. Da o problema:se a universalidade da famlia no o efeito de uma lei natu-

    ral, como explicar que a encontremos por quase todo o lado?Para avanar na direco de uma soluo, tentemos defi

    nir a famlia, no de maneira indutiva, adicionando as informaes recolhidas nas sociedades mais diversas, nem noslimitando situao que prevalece na nossa, mas sim cons-

    ruindo um modelo reduzido de algumas propriedades inva-riantes que um rpido golpe de vista nos permitiu j discernir.Essas propriedades invarian tes, ou caracteres distin tivos dafamilia, so os seguintes:

    1) A famlia tem a sua origem no casamento;

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    2) Ela inclui o mar ido, a mulher, os filhos nascidos dasua unio, formando um ncleo em torno do qualoutros parentes se podem, eventualmente, agregar;

    3) Os membros da famlia esto unidos entre si po r:

    a) Laos jurdicos;

    b) Direi tos e obrigaes de natureza econmica,religiosa, ou outra;

    c) Uma rede precisa de direitos e proibies se

    xuais e um conjunto varivel e diversificadode sentimentos, como o amor, o afecto, orespeito, o medo, etc.

    Examinemos, um aps outro, estes trs aspectos.

    Diferencimos dois grandes tipos de casamento: monog-mico e poligmico, e preciso sublinhar que o primeiro, delonge o mais vulgar, -o ainda mais do que um inventriorpido deixaria pensar. Entre as sociedades ditas poligmicas,um bom nmero so-no no pleno sentido da palavra; mas,

    outras estabelecem uma diferena entr e a primeira esposagozando sozinha de todas as prerrogativas do estado matrimonial, e as esposas secundrias, que no so nunca maisdo que concubinas oficiais. Por outro lado, em todas as sociedades polgamas poucos homens podem, de facto, ter vriasmulheres. O que fcil de perceber, uma vez que, em qualquer populao, o nmero de homens e mulheres aproximadamente o mesmo, com um desnvel normal de cerca de dez

    po r cento em favor de um ou ou tro sexo. A prtica da poligamia depende, assim, de determinadas condies: quer porque se suprima voluntariamente as crianas de um dos doissexos (costume verificado em alguns casos, como o infanti-

    cdio das raparigas entre os Toda), quer porque a esperanade vida difere conforme o sexo, como, por exemplo, entreos Inuit ou em vrias tribos australianas em que os homensmorrem mais cedo do que as mulheres, devido aos perigosa que se expem na caa baleia ou ento na guerra. Tambm preciso considerar o caso de sociedades fortemente hierar-

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    quizadas, onde uma classe privilegiada devido idade, riqueza, ou por prerrogativas mgico-religiosas, se atribuiuuma fraco substancial das mulheres do grupo, em desfavordos membros mais jovens ou menos bem aquinhoados.

    Conhecem-se sociedades, sobretudo em frica, em que preciso ser-se rico para ter mui tas mulheres (devido ao casamento por compra), mas onde, ao mesmo tempo, uma pluralidade de esposas permite ao homem enriquecer ainda mais:ele dispe, desse modo, de um excedente de mo-de-obra,constitudo pelas prprias mulheres e pelos seus filhos. Noentanto, evidente que a poligamia erigida em sistema encontraria automaticamente o seu limite nas modificaes de estrutura que ela iria impor sociedade.

    A predominncia do casamento monogmico no tem,pois, nada de surpreendente. Que a monogamia no umatributo da natureza humana, basta a existncia da poligamiaem numerosas sociedades, e sob modalidades diversas, parao confirmar. Mas se a monogamia constitui a forma maisfreqente isso acontece simplesmente porque, numa situaonormal e na ausncia de uma disparidade voluntria ou involuntariamente introduzida, qualquer grupo humano com

    preende mais ou menos uma mulher para cada homem. Nas

    sociedades modernas, razes morais, religiosas e econmicasconferem ao casamento monogmico um estatuto oficial (nosem proporcionar toda a espcie de meios para contornar aregra: liberdade pr-nupcial, prostituio, adultrio .. .) . Emsociedades onde no existe qualquer tipo de preconceito contraa poligamia, ou que at mesmo lhe concedem honras, a faltade diferenciao social ou econmica pode conduzir ao mesmoresultado: cada homem no tem nem os meios nem o poderde se oferecer mais de uma mulher; assim, preciso fazer danecessidade virtude.

    Quer o casamento seja monogmico ou poligmico (e,neste ltimo caso, polignico ou polindrico , ou mesmo os

    dois ao mesmo tem po), quer se obtenha um cnjuge porlivre escolha, quer por respeito de uma regra prescritiva oupreferencial , quer ainda po r obedincia vontade dos seusascendentes, em todos os casos se impe uma distino entreo casamento, lao legal, socialmente aprovado, e as unies

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    temporrias ou permanentes resultantes da violncia ou do-consentimento. Pouco importa que a interveno do gruposeja expressa ou tcita; o que conta que cada sociedade dis

    ponha de um meio para dis tinguir as unies de facto dasunies legtimas. Isso consegue-se de vrias maneiras.

    No seu conjunto, as sociedades at ribuem um grandevalor ao estado conjugai. Onde quer que existam classes etrias, sob uma forma difusa ou institucional, tende-se a enfi-leirar numa categoria os jovens adolescentes e os adultos solteiros, numa outra os adolescentes mais velhos e os maridossem filhos, numa terceira os adultos casados na plena possedos seus direitos, regra geral aps o nascimento do primeirofilho: distino tripartida reconhecida no s p or muitos

    povos ditos primit ivos, como tambm pelas comunidades camponesas da Eu ro pa ocidental , quan to mais no fosse po r ocasio de cerimnias e banquetes, at ao princpio do sculo XX.Ainda hoje, no sul da Frana, os termos rapaz novo e solteiro so muitas vezes tomados como sinnimos (tal como,no. francs vulgar, os termos rapaz e solteiro), dandocomo resultado que a expresso corrente, mas j significativa,um solteiro, se torna a, de maneira ainda mais reveladora,em um rapaz velho (1).

    O celibato surge mesmo como repugnante e condenvel,para a maior parte das sociedades. No exagero dizer-se queos solteiros no existem nas sociedades sem escrita, pela sim

    ples razo de que eles no poderiam sobreviver. Lemb ro-mede ter reparado um dia, numa aldeia bororo do Brasil central,num homem com cerca de trinta anos, de aspecto descuidado,aparentemente mal alimentado, triste e solitrio, que comecei

    (1) Sendo difcil de traduzir com completa correco palavrascom sentidos subjacentes por vezes muito diversos dos das mesmas palavras na nossa lngua, optmos por rapaz novo parajeune homme, cujos sinnimos em portugus so rapaz, jovem,novo, moo. Para a palavra garon, os sinnimos em portugusso mais ou menos os mesmos, pelo que optmos por rapaz.Parecem-nos estes os termos mais adequados ao sentido subjectivo das

    palavras francesas, no contexto em que surgem. O mesmo quantoa un vieux jeune liomme, que optmos por traduzir por umrapaz velho. (N. do T.)

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    po r crer estar doente. Ah, no, responderam s perguntasque fiz, um solteiro. E a verdade que, numa sociedadeem que reina a diviso do trabalho entre os sexos e em ques o estado conjugai permite ao homem gozar dos produtosdo trabalho feminino incluindo-se a o catar dos piolhos eoutros cuidados a dar aos cabelos, a pintura do corpo, almda jardinagem e da cozinha (uma vez que a mulher bororcultiva o solo e faz cermicas) , um solteiro somente metadede um ser humano.

    O que verdadeiro para um solteiro -o tambm, num

    menor grau, para o casal sem filhos. No h dvida que osesposos poderiam levar uma vida normal e prover s suasnecessidades, mas muitas sociedades recusam-lhes um lugarintegral, no somente no seio do grupo, como tambm paraalm do grupo na sociedade dos antepassados, to importante,seno mais, que a dos vivos; porque ningum pode esperarascender ao lugar de antepassado se no houver descendentesque lhe rendam culto. Por fim, o rfo partilha muitas vezes0 lugar do solteiro. Algumas lnguas fazem das duas pala-vras os mais graves insultos; equiparam-se por vezes os sol-teiros e os rfos aos doentes e aos feiticeiros, como se estascondies resultassem de uma mesma maldio sobrenatural.

    Pode acontecer que a sociedade exprima de maneirasolene o interesse que atribui ao casamento dos seus mem-

    bros. Assim acontece entre ns, em que os futuros esposos,tiverem a idade estabelecida pela lei, devem publicar os

    banhos e depois garanti r os servios de um representanteautorizado do grupo para celebrar a sua unio. A nossa socie-

    dade no certamente a nica que subordina o acordo dosseus indivduos ao da autoridade pblica, mas o mais freqente

    o casamento interessar no tanto a pessoas privadas, por umlado, e a sociedade global, por outro, mas antes as comunida-des mais ou menos inclusivas de que cada particular uma

    parcela: famlias, linhagens, cls; e entre estes grupos , no

    entre as pessoas, que o casamento cria um lao. H vriasrazes para tal.

    Mesmo sociedades de nvel tcnico e econmico muitobaixo atr ibuem uma to grande impor tncia ao casamento

    que o pais preocupam-se desde muito cedo com encon-

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    trar um cnjuge para os seus filhos; assim, estes ficam prometidos a partir da infncia. Alm disso, e por um paradoxosobre o qual nos ser necessrio vir a debruar-nos, se cadacasamento d lugar ao nascimento de uma nova famlia, afamlia, ou melhor, so antes as famlias que produzem o casamento, principal meio socialmente aprovado de que dispem

    para se aliarem umas s out ras. Como se cos tuma dizer naNov a Guin, o casamento tem menos po r objectivo a procurade uma esposa do que o de obter cunhados. Desde que foireconhecido que o casamento une mais os grupos que os

    indivduos, muitos costumes ficaram esclarecidos. Compreende-se porque razo, em diversas regies da frica que traama descendncia em linha paterna, o casamento no se tornadefinitivo seno quando a mulher d luz um filho: s comesta condio que o casamento cumpriu a sua funo, que perpetuar a linhagem do marido. O levirato e o sororatodependem dos mesmos principios: se o casamento cria umlao entre os grupos, estes podem ser, logicamente, obrigadosa substituir o cnjuge em falta, que tinham fornecido antes,

    po r um irmo ou uma irm. Po r mo rt e do marido, o leviratoconsiste num direito preferencial, dos seus irmos solteirossobre a viva (ou, expresso por outras palavras, um dever,

    part ilhado pelos irmos sobrevivos, de tomar conta da vivae dos seus filhos). De igual modo, o sororato constitui umdireito preferencial sobre as irms da mulher se o casamentofor poligmico, ou, em caso de monogamia, permite ao maridoque exija uma irm em lugar da sua mulher se esta for estril,se a sua conduta justificar o divrcio, ou se ela morrer. Mas,seja qual for a maneira como a sociedade se declare parteinteressada no casamento dos seus membros pelo canal dosgrupos particulares aos quais estes pertenam, ou, mais direc-tamente pela interveno do poder pblico , continua a serverdade que o casamento no , jamais foi, nem pode vir a

    ser um assunto privado.

    preciso recorrer a casos to extremos como o dos Nayarpara encontar sociedades em que no existe, nem que seja temporariamente, uma unio de facto entre o marido, a mulher

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    e os filhos. Mas no esqueamos que se este ncleo constitui,entre ns, a famlia legal, muitas sociedades decidiram de outromodo. Quer por instinto, quer por tradio ancestral, a mecuida dos seus filhos e feliz por faz-lo. provvel quedisposies psicolgicas expliquem tambm que um homem,vivendo em intimidade com uma mulher, sinta afecto pelascrianas que esta d luz e das quais ele segue de perto ocrescimento fsico e o desenvolvimento mental, mesmo queas crenas oficiais lhe neguem qualquer papel na sua procria-o. Algumas sociedades procuram unificar estes sentimentosatravs de costumes como o da cuvada: que o pai partilhesimbolicamente as indisposies (naturais ou impostas pelo

    uso) da mulher grvida ou em trabalho de parto foi muitasvezes explicado pela necessidade de consolidar tendncias eatitudes que, tomadas por si ss, talvez no ofeream umagrande homogeneidade.

    No en tanto, a maior parte das sociedades no do muitaateno famlia elementar, to importante para algumas deentre elas, incluindo a nossa. Regra geral, como vimos, so osgrupos que contam e no as unies particulares entre indiv-duos. Alm disso, muitas sociedades insistem em determinaro parentesco das crianas quer pelo grupo do pai, quer peloda me e conseguem-no com a ntida separao dos dois tipos

    de laos, reconhecendo um em excluso do outro, ou entoatribuindo-lhes campos de aplicao distintos. Por vezes, osdireitos sobre a terra so herdados de uma linha, os privilgiosreligiosos e as obrigaes de outra; outras vezes, o estatutosocial e o saber mgico so igualmente repartidos. Poderamos citar inmeros exemplos de todas as frmulas, proveniente da frica, da sia, da Amrica ou da Oceania. Para citarapenas um, os ndios Hopi, do Arizona, dividem cuidadosa-mente diferentes tipos de direitos jurdicos e religiosos entreas tinhas paterna e materna; mas, ao mesmo tempo, a frequn-cia dos divrcios tornava a famlia to instvel que muitospais no viviam sob o mesmo tecto que os seus filhos, pois

    as casas pertenciam s mulheres e as crianas seguiam, emdireito, a linha materna.

    A fragilidade da famlia conjugai parece ser muito vul-gar nas sociedades estudadas pelos etnlogos, o quenoimpede

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    que nelas se atribua valor fidelidade entre os esposos e aoslaos afectivos entre pais e filhos. Mas estes ideais morais situam--se num registo diferente das regras de direito, as quais, comgrande freqncia, traam o parentesco exclusivamente emlinha paterna ou em linha materna, ou ento distinguem osdireitos e as obrigaes respectivamente afectadas a cadalinha. Conhecem-se casos-limite, como o dos merillons,

    pequena tr ibo da Guiana Francesa, a qual, h uns tr inta anos,no excedia os cinqenta membros. Nesta poca, o casamentoera to precrio que cada indivduo, durante a sua existncia,

    poderia desposar, em sucesso, todos os do ou tro sexo: tambm se con ta que a lngua tinha nomes especiais para distinguir de qual das, pelo menos, oito unies consecutivas tinhamsado as crianas. Trata-se neste caso, provavelmente, de fenmenos recentes, explicveis pelo muito pequeno nmero de

    pessoas do grup o e pelas condies de existncia, gravementealteradas desde h um ou dois sculos atrs. Mas, p or exem

    plos como este, evidente que existem casos em que a famliaconjugai se torna praticamente inatingvel.

    Em contrapartida, outras sociedades do uma base maisampla e mais firme instituio familiar. Assim, por vezesat ao sculo XIX, havia vrias regies europias em que a

    famlia, unidade-base da sociedade, era de um tipo a que sepo de chamar mais domstico do que conjugai. O mais velhodos ascendentes ainda vivo, ou uma comunidade de irmossados de um mesmo ascendente j falecido, detinha o con

    junto dos direitos de fundirios, exercia a sua autoridade sobreo grupo familiar e dirigia a explorao agrcola. O bratsvorusso, a zadruga dos Eslavos do Sul, a maisnie francesa, eramgrandes famlias constitudas em torno de um velho pelosseus irmos, pelos filhos, sobrinhos e netos e suas esposas,as filhas, sobrinhas e netas solteiras, e assim sucessivamente,at aos bisnetos. Em ingls, chama-sejoints families, em francs famlias extensas, a tais formaes, que incluem atvrias dezenas de pessoas que vivem e trabalham sob umaautoridade comum: termos cmodos, mas enganadores, poislevam a acreditar que essas enormes unidades se compem,desde o incio, de diversas pequenas famlias conjugais associadas. Ora, mesmo entre ns, a famlia conjugai no obteve um

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    reconhecimento legal seno ao cabo de uma evoluo histrica muito complexa, s em parte atribuvel a uma progressivatomada de conscincia do seu fundamento natural; porqueesta evoluo consistiu em dissolver a famlia extensa, paradela no deixar subsistir seno um ncleo, no qual, a pouco e

    pouco, se concentrou um estatuto jurdico que anteriormenteregia conjuntos muito mais vastos. Neste sentido, no cairemos em erro se rejeitarmos termos como estes de joint family;ou de famlia extensa: a famlia conjugai que convmdenominar, de preferncia, de famlia restrita.

    Vimos que quando a famlia tem um fraco papel funcio

    nal tende a descer abaixo do prprio nvel conjugai. No casoinverso, ela actualiza-se por cima. Tal como existe nas nossassociedades, a famlia conjugai no , pois, a expresso de umanecessidade universal nem est to-pouco inscrita no magoda natureza humana: ela representa uma soluo intermdia,um certo estado de equilbrio entre frmulas que se opema ela e que outras sociedades efectivamente preferiram.

    Para completar o quadro, necessrio, enfim, consideraros casos em que a famlia conjugai existe, mas sob formas quecertamente no seramos os nicos a julgar incompatveiscom os fins que os humanos se propem quando fundam umlar. Os Tchuktchec da Sibria oriental no viam inconveniente

    no casamento de uma rapariga de vinte e tal anos com um petizde dois ou trs anos. A jovem mulher, muitas vezes j me,se tivesse amantes, criava ao mesmo tempo o seu filho e oseu pequenino marido. Na Amrica do Norte, os Mojaveobservavam a prtica inversa: um homem adulto desposavauma rapariguinha de tenra idade e tomava conta dela at estarcm condies de cumprir os seus deveres conjugais. Considerava-se que tais casamentos eram muito slidos: a recordao dos cuidados paternais prodigalizados pelo marido pequena esposa reforava, acreditavam, o afecto natural ent reos esposos. Conhecem-se casos anlogos nas regies andinas enas regies tropicais da Amrica do Sul e tambm naMelansia.

    Por muito bizarros que nos possam parecer, estes tiposde casamento ainda tm em conta a diferena dos sexos, condiro essencial a nossos olhos para a fundao de uma famlia

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    (embora as reivindicaes dos homossexuais comecem a abrir-filies fendas). Mas, em frica, mulheres de alta posio tinhammuitas vezes o direito de desposar outras mulheres, que amantes autorizados engravidavam. A mulher nobre tornava-se opai legal das crianas e, segundo a regra patrilinear em vigor,transmitiam-lhes o seu nome, a sua posio e os seus bens.Em outros casos, a famlia conjugai servia para procriar ascrianas, mas no para as criar, pois as famlias rivalizavamentre si para adoptar os seus respectivos filhos (se possvel,de uma posio mais alta); assim, acontecia por vezes que uma

    famlia retinha o filho de uma outra mesmo antes de ele nascer.Costume era freqente na Polinsia e numa parte da Amricado Sul. Podemos aproximar-lhe o hbito de confiar os rapazesa um tio materno, testemunhado entre os povos da costanoroeste da Amrica do Norte at uma poca recente e entrea nobreza europia da Idade Mdia.

    Durante sculos, a moral crist teve o comrcio sexualpo r um pecado, se no se produzisse dentro do casamento ecom a finalidade de fundar uma famlia. Conhecem-se outrassociedades, aqui e ali, que limitam da mesma forma a sexua

    lidade lcita, mas so raras. Na maior parte dos casos, o casamento nada tem que ver com o prazer dos sentidos, poisexiste toda a espcie de possibilidades a este respeito, forado casamento e por vezes em oposio a ele. Na ndia central,os Muria, de Bastar, metem os rapazes e as raparigas pberesem casas comuns, onde gozam de uma completa liberdadesexual; mas quando chega o tempo do casamento proibem-naentre aqueles e aquelas que anteriormente eram amantes, demodo que no seio da comunidade alde todos os homensdesposam mulheres que eles sabem terem sido amantes do seuou dos seus vizinhos.

    Regra geral, as preocupaes de ordem sexual intervm

    assim pouco nos projectos matrimoniais. Pelo contrrio, soas de ordem econmica que desempenham um papel de primeiro plano, pois sobretudo a diviso do trabalho entre ossexos que torna o casamento indispensvel. Ora isto tantoacontece com a diviso sexual do trabalho, como com a fam-

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    lia: esta tambm assenta mais sobre um fundamento socialdo que sobre um fundamento natural. evidente que, emtodos os agrupamentos humanos, so as mulheres que trazemas crianas ao mundo, que as alimentam e as criam, enquantoque os homens encarregam-se da caa e da guerra. No entanto,mesmo esta diviso aparentemente natural das tarefas nemsempre foi ntida: os homens no do luz, mas, nas sociedades em que se pratica a cuvada, eles devem conduzir-se comose o fizessem. E h uma grande diferena entre um pai Nam-

    bikwara que vela ternamente o seu beb, que o limpa quandoele se suja, e o nobre europeu, a quem, no h muito tempo,levavam cerimoniosamente os filhos, sados por alguns instantes dos aposentos das mulheres onde ficavam confinadosat estarem em idade de aprender a equitao e a esgrima.Em contrapartida, as jovens concubinas do chefe Nambikwaradesdenham os trabalhos domsticos e preferem acompanhar0 esposo nas suas expedies aventurosas. Talvez um costumedo mesmo gnero, assinalado em outras tribos sul-americanas,onde uma categoria especial de mulheres, semicortess, semi--servas, ficavam solteiras e seguiam os homens para a guerra,

    tenha estado na origem da lenda das Amazonas.Quando se considera ocupaes que se opem de maneiramenos marcada do que os cuidados para com as crianas e aguerra, torna-se ainda mais difcil de compreender regrasgerais que rejam a diviso do trabalho entre os sexos. As mulheres Bororo cultivam a terra, mas entre os Zuni so os homens;conforme a tribo considerada, a construo das casas ou dosabrigos, a cermina, a tecelagem, a cestaria competem a umou ao outro sexo. ento preciso distinguir ofado da divisodo trabalho, praticamente universal, e as modalidades segundons quais, aqui e alm, as tarefas so repartidas entre os sexos.Essas modalidades dependem, tambm elas, de factores cul-

    turais; elas no so menos artificiais do que as formas daprpria famlia.

    Uma vez mais, por conseqncia, nos vemos confrontadoscom o mesmo problema. Se as razes naturais, que poderiamexplicar a diviso sexual do trabalho, no parecem decisivasa partir do momento em que nos afastamos do terreno slidodas diferenas biolgicas, se as modalidades da diviso do

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    trabalho variam de uma sociedade para outra, por que razoexiste? J nos pusemos a mesma questo a propsito da famlia: o facto da famlia universal, as formas sob as quais ela semanifesta no tm qualquer pertinncia, pelo menos no que res

    peita necessidade natural. Mas, aps termos encarado o pr oblema sob vrios aspectos , talvez estejamos em melhor situaopara nos apercebermos o que eles tm em comum e de discerniralguns traos gerais que fornecem um princpio de resposta.

    No domnio da organizao social, a famlia surgiu como umarealidade positiva (h mesmo quem diga a nica) e, por estefacto, ns somos levados a defini-la exclusivamente por meiode caracteres positivos. Mas, de cada vez que tentamos demons

    trar o que a famlia, devamos, ao mesmo tempo, dar a perceber o que ela no , e talvez esses aspectos negativos tenhamtanta importncia como os outros. O mesmo para a divisodo trabalho: verificar que um sexo est encarregado de determinadas tarefas eqivale a verificar que elas esto proibidasao outro sexo. Vista nesta perspectiva, a diviso do trabalhoinstitui um estado de dependncia recproca entre os sexos.

    Este carcter de reciprocidade tambm pertence, evidentemente, famlia encarada sob o ngulo das relaes sexuais.

    Ns proibimo-nos de o reduzir a este aspecto, pois, como seviu, a maior parte das sociedades no estabelecem entre famlia e sexualidade esta ligao ntima que se afirmou na nossa.

    Mas, como se acaba de fazer para a diviso do trabalho, tambm pode definir-se a famlia po r uma funo negativa: desdesempre e em toda a parte, a existncia da famlia implica proi

    bies , to rn an do impossveis , ou, pelo menos, condenveis,certas unies.

    Essas restries liberdade de escolha variam consideravelmente de uma sociedade para outra. Na antiga Rssia,existia um costume, chamado snokatchesvo, que concedia ao

    pai direitos sexuais sobre a jovem esposa do seu filho. Emoutras, o filho da irm exercia um direito simtrico sobre aesposa do seu tio materno. Ns prprios j no levantamos

    objeces a um novo casamento de um homem com a irmda sua mulher, prtica incestuosa na ptica do direito inglsainda em vigor em pleno sculo XIX. E bom no esquecerque qualquer sociedade conhecida, antiga ou actual, afirma

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    que se a relao entre cnjuges (e, eventualmente, quaisqueroutros, como acabmos de ver) implica direitos sexuais rec

    procos , outros laos de parentesco t ambm eles funo daestrutura familiar tornam as relaes sexuais imorais, passveis de sanes legais, ou simplesmente inconcebveis. A proi

    bio universal do incesto proclama que os indiv duos, nasrelaes de pais e filhos ou de irmos e irms, no podem terrelaes sexuais e ainda menos casar-se. Algumas sociedades

    o antigo Eg ip to , o Peru pr-colombiano, diversos reinosafricanos, polinsios e do Sueste asitico definiam o incesto

    de maneira menos rgida e permitiam-no (ou mesmo prescreviam-no), sob certas formas, famlia reinante (no antigoEgi pto talvez fosse mais alargado), mas no sem lhe fixarlimites: com a meia-irm, ficando excluda a irm germana,ou ento, em caso de casamento com a irm germana, era amais velha, ficando excluda a mais nova ...

    Depois de este texto ter sido escrito e publicado, hpe rto de vinte anos, diversos autores, especialistas de etnologiaanimal, quiseram ver na proibio do incesto um fundamentonatural. Parece, com efeito, que diversas espcies de animaissociais evitam as unies sexuais entre indivduos estreitamenteaparentados (estas unies ou no se produzem, ou produzem-se

    muito raramente), mesmo que seja apenas porque os maisvelhos do grupo expulsam os jovens logo que estes atingema idade adulta.

    Supondo que estes factos, ignorados ou incompletamentepublicados h um quar to de sculo, tenham sido correctamenteinterpretados pelos observadores, menosprezou-se, ao extra

    pol-los, a diferena essencial que separa as condutas animaisdas instituies humanas: s estas pem sistematicamente em

    prtica regras negativas para criar laos sociais. O que dissemos acerca da diviso sexual do trabalho pode ajudar-nos acompreender: do mesmo modo que o princpio da diviso dotrabalho estabelece uma dependncia mtua entre os sexos,obrigando-os assim a colaborar no seio de um casal, tambma proibio do incesto institui uma dependncia mtua entreas famlias biolgicas e fora-as a engendrar novas famlias,

    por cujos ofcios, somente, o grupo social conseguir per petuar-se.

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    Teramos apreendido melhor o paralelismo entre as duasiniciativas se, para as designarmos, no tivssemos recorrido atermos to dissemelhantes como diviso, por um lado, eproibio, por outro. Se ns tivssemos chamado diviso do trabalho proibio das tarefas o seu aspecto negativo teriasido igualmente o nico apercebido. Inversamente, poramosem evidncia o aspecto positivo da proibio do incesto se adefinssemos como diviso de direitos de casamento entrefamlias. Porque a proibio do incesto estabelece apenas queas famlias (qualquer que seja a concepo que cada sociedadedela tenha) no podem aliar-se seno umas com as outras eno cada uma delas por sua prpria conta, consigo mesma.

    Nada seria, pois, mais falso do que reduzir a famlia sua base natural. Nem o instinto de procriao, nem o instintomaternal, nem os laos afectivos entre marido e mulher e entre

    pai e filhos, nem a combinao de todos estes factores o explicam. Por muito importantes que eles sejam, estes elementosno poderiam, por si ss, dar nascimento a uma famlia, eisto por uma razo muito simples: em todas as sociedadeshumanas, a criao de uma nova famlia tem como condioabsoluta a existncia prvia de duas famlias, prontas a fornecer, uma, um homem, outra uma mulher, de cujo casamentonascer uma terceira famlia, e assim indefinidamente. Poroutras palavras, o que diferencia o homem do animal que,

    entre os humanos, uma famlia no poderia existir se primeirono houvesse uma sociedade pluralidade de famlias quereconhecem a existncia de laos alm dos da consaguini-dade e que o processo natural da filiao no pode seguiro seu curso seno integrado no processo social da aliana.

    Como que os homens chegaram ao reconhecimentodesta dependncia social da ordem natural coisa que, provavelmente ignoraremos para sempre. Nada h que permitasupor que a humanidade, quando emergiu da sua condioanimal, no estivesse dotada logo partida de uma forma deorganizao social que, nas suas linhas fundamentais, em

    nada diferia daquelas que viria a conhecer mais tarde. Na verdade, haveria dificuldade em conceber o que poderia ser umaorganizao social elementar sem lhe dar por alicerce a proi

    bio do incesto. Porque esta procede sozinha a uma refor-

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    mulao das condies biolgicas do acasalamento e da pr o-criao. Ela no permite s famlias que se perpetuem senoencerradas numa rede artificial de proibies e de obrigaes. apenas a que se pode situar a passagem da natureza para acultura, da condio animal para a condio humana e apenas por a que se pode compreender a sua articulao.

    Conforme Tylor o tinha j compreendido h um sculo, aexplicao final encontra-se provavelmente no facto de ohomem ter sabido desde muito cedo que lhe era necessrio

    escolher entreeither marrying-out or being killed-out: o melhor,seno o nico, meio para as famlias biolgicas no seremempurradas para o extermnio recproco unirem-se entre si

    po r laos de sangue. Famlias biolgicas que pretendessemviver isoladas, justapostas umas s outras, formariam cadauma delas um grupo fechado, perpetuando-se por si prprio,inevitavelmente em direco ignorncia, ao medo e ao dio.Ao opor-se s tendncias separatistas da consanginidade, a

    proibio do incesto consegue tecer redes de afinidade que dos sociedades a armao sem a qual nenhuma delas se manteria.

    No sabemos ainda com exactido o que a famlia, maspor aquilo que precede, ent revimos j quais so as suas condies de existncia e quais podem ser as leis que comandam asua reproduo. Par assegurar esta interdependncia socialdas famlias biolgicas, os povos ditos primitivos aplicam,no que lhes diz respeito, regras, simples ou complexas massempre engenhosas, que por vezes nos so difceis de compreender com os nossos hbitos de pensar adaptados a sociedadesincomparavelmente mais densas e mais fluidas que as deles.

    Para nos assegurarmos de que as famlias biolgicas nose fecharo sobre si mesmas e no constituiro outras tantas

    clulas isoladas, basta-nos proibir o casamento entre parentesmuito prximos. As grandes sociedades oferecem a cada indivduo a ocasio de contactos mltiplos fora da sua famliarestrita, garantia suficiente de que as centenas de milhar oude milhes de famlias que constituem uma sociedade modernano viro a correr o risco de estagnarem. A liberdade deescolha do cnjuge (salvo no seio da famlia restrita) mantm

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    aberto o fluxo das trocas entre famlias; produz-se uma misturacontnua e desse movimento de vaivm resulta um tecidosocial suficientemente homogneo nas suas graduaes e nasua composio.

    Condies muito diferentes prevalecem nas sociedadesditas primitivas. O efectivo demogrfico pode variar de algumas dezenas a vrios milhares de pessoas, mas continua a ser

    pequeno em relao ao nosso. Po r ou tr o lado, uma menorfluidez social impede cada indivduo de a encontrar muitosoutros fora da povoao ou dos terrenos de caa. Numerosassociedades tentaram multiplicar as ocasies de contacto aquandodas festas ou das cerimnias tribais. Mas estes encontros ficam,regra geral, circunscritos ao crculo tribal, onde a maior partedos povos sem escrita vem uma espcie de famlia extensa,em cujos limites se detm as relaes sociais. mesmo freqente que esse povos vo at ao ponto de negarem a dignidadehumana aos seus vizinhos. Existem sem dvida, na Amricado Sul e na Melansia, sociedades que prescrevem o casamentocom tribos estrangeiras e, por vezes, inimigas; nesse caso,explicam os indigenas da Nova Guin, no se procura umaesposa seno entre aqueles com quem se est em guerra. Masa rede de trocas assim alargada permanece presa num molde

    tradicional e, mesmo que inclua diversas tribos em lugar deuma s, as suas fronteiras, traadas de uma forma rgida,raramente so ultrapassadas.

    Sob um regime destes, pode ainda conseguir-se que asfamlias biolgicas se fundam numa sociedade homogneamediante procedimentos anlogos aos nossos, ou seja, proibindo simplesmente o casamento entre parentes prximos esem recorrer a regras positivas. No entanto, em sociedadesmuito pequenas, este mtodo no ser eficaz se no se compensar a fraca dimenso do grupo e a falta de mobil idade socialpo r um alargamento dos impedimentos ao casamento. Para

    um homem, estes estender-se-o para alm da me, da irm eda filha, at incluir todas as mulheres com as quais, por muitolongnquo que seja, lhe possam estabelecer um lao de parentesco. Pequenos grupos caracterizados por um nvel culturalrudimentar e por uma organizao social e poltica mal esbo-

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    cada (como certas populaes das regies semidesrticas dasduas Amricas) oferecem exemplos desta soluo.

    A grande maioria dos povos ditos primitivos adoptou umoutro mtodo. Em lugar de se remeterem ao jogo das proba-lidades para que impedimentos ao casamento suficientementenumerosos assegurassem automaticamente as trocas entrefamlias biolgicas, preferiram estabelecer regras positivas,obrigatrias para os indivduos e para as famlias, a fim deque entre estas ou aqueles se fizessem alianas de um determinado tipo.

    Neste caso, o campo inteiro do parentesco torna-se numaespcie de tabuleiro de xadrez, no qual se desenrola um jogocomplexo. Uma terminologia adequada distribui os membrosdo grupo por categorias, em virtude de princpios segundoos quais a ou as dos pais determinam directa ou indirectamenteas dos seus filhos e, em conformidade com as suas categoriasrespectivas, os membros do grupo podero ou no casar-seentre si. Povos na aparncia ignorantes e selvagens inventaramassim cdigos que teramos muita dificuldade em decifrarsem a ajuda dos nossos melhores lgicos e matemticos. Noentraremos nos pormenores destes clculos, por vezes to longos que o recurso s mquinas da informtica se impe, elimitar-nos-emos a alguns casos simples, a comear pelo do

    casamento entre primos cruzados.Este sistema reparte os colaterais em duas categorias:colaterais paralelos, se o seu parentesco ascende a germanosdo mesmo sexo: dois irmos ou duas irms; e colaterais cruzados se ela ascende a germanos de sexos opostos. O tiopaterno e a tia materna so, em relao a mim, parentes paralelos; o tio materno e a tia paterna, parentes cruzados. Osprimos sados, respectivamente, de dois irmos ou de duasirms so paralelos entre si e os que saram, respectivamente,de um irmo e de uma irm so cruzados. Na gerao seguinte,os filhos da irm para um homem e os do irmo parauma mulher so sobrinhos cruzados; sero sobrinhos para

    lelos se para um homem nascerem do seu irmo e parauma mulher da sua irm.

    Quase todas as sociedades que aplicam esta distinoassimilam os parentes paralelos aos parentes mais prximos na

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    mesma gerao: o irmo do meu pai um pai, a irm daminha me uma me; chamo aos meus primos paralelosirmos ou irms e designo os meus sobrinhos paraleloscomo meus prprios filhos. Com qualquer parente paralelo, ocasamento seria incestuoso e, por conseqncia, proibido.Em contrapartida, os parentes cruzados recebem designaesdiferentes e entre eles que obrigatoriamente ou, de preferncia a no-parentes, se escolhe o seu cnjuge. Por outro lado, freqente no existir seno uma nica palavra para designara prima cruzada e a esposa, o primo cruzado e o esposo.

    Algumas sociedades levam a distino ainda mais longe.Umas, probem o casamento entre primos cruzados e impem--no ou autorizam-no somente entre os seus filhos: primoscruzados, tambm, mas em segundo grau. Outras, requintama noo de primo cruzado e subdividem esses parentes emduas categorias que compreendem, uma, cnjuges permitidosou prescritos, a outra cnjuges proibidos. Ainda que a filhado tio materno e a da tia paterna sejam do mesmo modo primas cruzadas, encontram-se, estabelecidas por vezes lado alado, tribos que probem ou prescrevem quer uma, quer outra.Algumas tribos da ndia consideram a morte prefervel aocrime que constituiria, segundo elas, um casamento conforme

    regra da sua vizinha.Dificilmente explicveis por razes de ordem biolgica

    ou psicolgica, estas distines, e outras que lhes poderamosacrescentar, parecem privadas de sentido. Elas tornam-seclaras, no entanto, luz das nossas consideraes precedentese se nos lembrarmos de que os impedimentos ao casamentotm essencialmente por objectivo estabelecer uma dependnciamtua entre as famlias biolgicas. Expressas em termos maisfortes, essas regras traduzem a recusa, por parte da sociedade,de reconhecer famlia uma realidade exclusiva. Porque todosestes sistemas complicados de distines terminolgicas, deinterdies, de prescries ou de preferncias nada mais so

    do que processos destinados a repartir as famlias por camposrivais ou aliados, entre os quais poder e dever desenrolar-seo grande jogo do casamento.

    Consideremos brevemente as regras deste jogo. Todas associedades aspiram acima de tudo reproduzir-se; assim, elas

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    devem possuir uma regra que permita estabelecer a posiodos filhos na estrutura social em funo da (ou das) dos pais,A regra da descendncia dita unilinear , neste aspecto, a maissimples: ela torna as crianas membros da mesma subdivisoda sociedade global (famlia, linhagem ou cl) que a do pai eos seus ascendentes masculinos (descendncia patrilinear), oua da me e os seus ascendentes femininos (descendncia matri-linear). Tambm se pode ter em conta, simultaneamente, duas

    pertenas, ou combin-las para definir uma terceira, na qual

    se ir colocar os filhos. Por exemplo, com um pai da subdivisoA e uma me da subdiviso B, os filhos sero da subdiviso C;sero da D no caso inverso. Indivduos C e D podero casar-see tanto procriaro filhos A como B, em funo das suas pertenas respectivas. Podemos ocupar os nossos cios a imaginarregras deste gnero e ser de surpreender no se encontrar aomenos uma sociedade que nos oferea delas um exemplo nasua prtica.

    Depois de ter sido determinada a regra da descendncia,pe-se uma outra ques to: quantas formaes exgamas compreende a sociedade considerada? Estando o casamento interdito, por definio, no seio do grupo exgamo, dever haver,pelo menos, um ou tro, ao qual os membros do primeiro sedirigiro para conseguir um cnjuge. Cada famlia restrita danossa sociedade constitui um grupo exgamo; o nmerodesses grupos to elevado que se pode esperar que cada umdos seus membros ter uma oportunidade de encontrar ondese casar. Nas sociedades ditas primitivas, esse nmero muitomais pequeno, por um lado devido s reduzidas dimensesdas prprias sociedades e, por outro lado, tambm porque oslaos de parentesco se estendem muito mais longe do que o caso entre ns.

    Vejamos, primeiro, o caso de uma sociedade de descen-

    dncia unilinear e que compreenda apenas dois grupos exga-mos, A e B. nica soluo possvel: os homens A casam commulheres B, as mulheres A casam com homens B. Podemos,

    pois, imaginar dois homens, respectivamente A e B, trocandoentre si as suas irms, que se tornaro, cada uma delas, a esposado outro. Se o leitor quiser fazer o favor de se munir de umafolha de papel e de um lpis para estabelecer a genealogia

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    terica resultante de uma tal combinao, verificar que, sejaqual for a regra patrilinear ou matrilinear de descendncia,os germanos e os primos paralelos cairo num dos dois gru

    pos exgamos e os primos cruzados no ou tro. po r isso ques os primos cruzados (se o jogo for feito entre dois ou quatro grupos), ou os filhos de primos cruzados (num jogo entreoito grupos; o jogo entre seis constitui um caso intermdio)satisfaro a condio inicial, segundo a qual os cnjuges devem

    per tencer a grupos diferentes.At aqui, limitmo-nos aos casos de grupos exgamos em

    nmero par: dois, quatro, seis, oito, e opostos dois a dois.

    Que aconteceria se a sociedade fosse composta por um nmeroimpar de grupos? Com as regras precedentes, um grupo permaneceria, se assim se pode dizer, em branco, sem parceirocom quem pudesse trocar. Assim, preciso introduzir outrasregras, susceptveis de funcionarem com no importa quenmero, par ou mpar, de partes obrigadas s trocas matrimoniais.

    Estas regras podem tomar duas formas. Ou as trocas continuaro simultneas, tornando-se ao mesmo tempo indirec-tas, ou permanecero directas, mas com a condio de se escalonarem no tempo. Primeiro caso: um grupo A d as suasfilhas ou as suas irms em casamento a um grupo B, B a C,

    C a D, D a n e, finalmente, n a A. Quando o ciclo se fecha,cada grupo deu e recebeu uma mulher, embora o grupo a quese d no seja o mesmo que aquele de que se recebeu. Umesquema fcil de traar mostra que, com esta frmula, os primos paralelos recaem, como anteriormente, no grupo em queesto os irmos e as irms; em virtude da regra da exogamia,eles no se podem casar. Mas e est a o facto essencial os primos cruzados subdividem-se em duas categorias, segundo

    proven ham do lado da me ou do lado do pai. Deste mo do,a prima cruzada matrlateral, ou seja, a filha do tio materno,encontra-se sempre no grupo que d as mulheres: A se eu

    for B, B se eu for C, etc; e, inversamente, a prima cruzadapatrilateral , filha da irm do pai, est sempre no outro grup oa que o meu grupo d mulheres, mas do qual elas no sorecebidas: B, se eu for A, C, se eu for B, etc. Com um sistema destes, por conseqncia, normal que se despose uma

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    prima cruzada do primeiro tipo, mas contrrio regra quese despose uma prima cruzada do segundo.

    A outra frmula conserva o carcter directo da troca,mas este actua ento entre geraes consecutivas: o grupo Arecebe uma mulher do grupo B; na gerao seguinte, ele da B a filha nascida do casamento anterior. Se se continuar adispor os grupos na ordem convencional, A, B, C, D, ...,n, o sistema funcionar como se segue: a um nivel de gerao,o grupo C (tomado como exemplo) d uma mulher a D erecebe uma de B; na gerao seguinte, C compensa B, porassim dizer, e recebe a sua prpria compensao de D. Ainda

    aqui, o leitor armado de um pouco de pacincia verificarque os primos cruzados se subdividem em duas categorias,mas que, ao contrrio do caso precedente, a filha da tia paterna o cnjuge permitido ou prescrito, enquanto que a filha dotio materno o cnjuge proibido.

    A par destes casos relativamente claros, existem umpouco po r to do o mun do sistemas de parentesco e regras decasamento sobre cujas naturezas se continua a especular: soos casos de Ambrym, nas Novas Hbridas, dos Murngin, ou

    Miwuyt, no Noroeste da Austrlia; e do vasto conjunto formado pelos sistemas, principalmente americanos e africanos,a que se chama Crow-Omaha, o nome das populaes em queeles foram primeiramente observados. Mas, para se decifrarestes e outros cdigos, ser necessrio proceder como temosvindo a fazer, considerando que a anlise das nomenclaturasde parentesco, dos graus permitidos, prescritos ou proibidosdesvenda os segredos de um jogo muito particular, que consiste, para os membros de uma famlia biolgica, ou supostas-lo, em trocar mulheres com outras famlias, dissociando asj consti tudas para ir formar outras , as quais, chegado omomento, sero dissociadas para os mesmos fins.

    Este trabalho incessante de destruio e reconstruo noimplica que a descendncia seja unilinear, tal como havamos

    postulado ao princpio para facilitar a exposio. suficienteque, em virtude de um princpio qualquer, que pode ser a descendncia unilinear, mas tambm, de maneira mais vaga, os

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    laos de sangue ou outros, concebidos de qualquer outramaneira, um grupo cessionrio de uma mulher sobre a qual

    pensa ter autoridade, se considere credor de uma mulher quesubstitua aquela, quer esta provenha do mesmo grupo aoqual foi cedida uma filha ou uma irm, ou de um terceiro grupo;ou ainda, em termos ainda mais gerais, contanto que a regrasocial seja a de que todo o indivduo possa, em princpio,obter um cnjuge para alm dos graus proibidos, por formaa que entre todas as famlias biolgicas se instaurem e per

    petuem relaes de permuta que, no total e no campo dasociedade global, se encontrem aproximadamente equilibradas.

    Que as leitoras alarmadas por se verem reduzidas aopapel de objectos de troca entre parceiros masculinos se tr an qilizem: as regras do jogo seriam as mesmas se se tivesseadoptado a conveno inversa, fazendo dos homens objectosde troca entre parceiros femininos. Algumas raras sociedadesde um tipo matrilinear muito desenvolvido formularam ascoisas, em certa medida, dessa maneira. E os dois sexos podemacomodar-se a uma descrio do jogo um pouco mais com

    plicada, a qual consistiria em dizer que grupos , cada um delesformados por homens e por mulheres, trocam entre si relaes de parentesco.

    Mas seja qual for a formulao por que se opte, a mesma

    concluso se impe: a famlia restrita no o elemento debase da sociedade e ne m to-pouco o seu pr od ut o. Seriamais justo dizer que a sociedade no pode existir seno opondo-se famlia, embora respeitando as suas imposies: sociedade alguma se manteria no tempo se as mulheres no dessem luz crianas e se no beneficiassem de uma proteco masculina durante a gravidez e enquanto amamentam e criam isua progenitura; enfim, se no existissem regras precisas parareproduzir os contornos da estrutura social, gerao apsgerao.

    Em relao famlia, no entanto, a sociedade no temcomo cuidado primeiro o de a proteger e perpetuar. Tudo

    demonstra, pelo contrrio, que a sociedade desconfia da fatialia e que lhe contesta o direito de existir como uma entidadeseparada. A sociedade no permite s famlias restritas quedurem seno por um determinado espao de tempo, mais

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    curto ou mais longo segundo os casos, mas com a condioimperativa de que os seus membros, quer dizer, os indivduos que as compem, sejam, sem trguas, deslocados, emprestados, apropriados, cedidos ou devolvidos, por forma a quecom os bocados das famlias desmanteladas outras possamser construdas antes de, por seu turno, carem em pedaos.A relao das famlias restritas com a sociedade global no esttica, como a dos tijolos com a casa cuja construo elesajudaram a fazer; esta relao dinmica, rene em si tenses e oposies que se equilibram de maneira sempre precria. O ponto em que se estabelece este equilbrio, as possibili

    dades que ele tem de durar, variam at ao infinito, conformeas pocas e os lugares. Mas, em todos os casos, as palavras dasEscrituras: Deixars o teu pai e a tua me, fornecem a regrade ouro (ou, se se preferir, a sua dura lex) ao estado desociedade.

    Se a sociedade depende da cultura, a famlia , no seioda sociedade, a emanao de exigncias naturais com as quais absolutamente necessrio compor; seno, sociedade alguma,nem a prpria humanidade, poderia existir. No se vencea natureza, ensinou Bacon, seno submetendo-se s suas leis.Tambm a sociedade tem de reconhecer a famlia e no de

    surpreender que, como os gegrafos demonstraram para aUtilizao dos recursos naturais, a maior deferncia para coma natureza se manifeste nos dois extremos da escala em que seBode alinhar as culturas, em funo do seu grau de desenvol-vimento tcnico e econmico. As que esto no ponto mais

    baixo no possuem os meios para pagar o preo que serianecessrio para se libertarem da ordem natural; as outras,ensinadas pelos seus erros passados (pelo menos, o que selhes deseja), sabem que a melhor poltica ainda aquela quepermite ter em conta a natureza e as suas leis. Assim se explicaque a pequena famlia monogmica, relativamente estvel,ocupe, nas sociedades julgadas muito primitivas e nas soce-

    dades modernas, um lugar muito maior do que no caso dosnveis:, a que, por comodida de, se pode chamar intermdios.Todavia, estes deslocamentos do ponto de equilbrio no

    afectam o quadro de conjunto. Quando se viaja lentamente ecom dificuldade, necessrio fazer paragens freqentes e pro-

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    longadas; e se se for capaz de viajar muito e depressa, dever--se- igualmente faz-lo, embora por razes diferentes, muitasvezes para ganhar flego. tambm verdade que quantasmais estradas h, mais numerosas so as probabilidades deelas se cruzarem. A sociedade impe aos seus membros individuais, e aos grupos aos quais o seu nascimento os liga, contnuas contradanas. Considerada sob este ngulo, a vida defamlia no corresponde a nada mais que necessidade deretardar a marcha nas encruzilhadas e ter nelas um pouco derepouso. Mas a recomendao de prosseguir a marcha e a

    sociedade no consiste em famlias, tanto quanto a viagemno se resume s paragens que momentaneamente interrompem o seu percurso. Famlias na sociedade, po de dizer-se,como pausas na viagem, que so ao mesmo tempo a sua condio e a sua negao.

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