39
A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS* José Luís Lopes da Mota Procurador-Geral Adjunto SUMÁRIO:1. Inserção histórica e sistemática da reforma de 1987. O Código de Processo Penal de 1929 e sua evolução. As fases preliminares no regime anterior. 2 . As incidências da reforma nas fases preliminares do processo. O inquérito. 3. A estrutura acusatória do processo. Simplificação do processo e reforço da protecção dos direitos fundamentais. 4.O estatuto do Ministério Público. O modelo português. A autonomia do Ministério Público. 5. Posição e estatuto do Ministério Público e das polícias no inquérito. A abertura do inquérito e sua obrigatoriedade. As funções dos órgãos de polícia criminal no inquérito. 6. As medidas cautelares e de polícia. Actos de iniciativa própria. Actividade delegada.7. O juiz de instrução. Posição e funções do juiz de instrução no inquérito. 8. O arguido. O estatuto de arguido. Direitos e deveres processuais. O defensor. 9. A prova no inquérito. Meios de prova e meios de obtenção de prova. Liberdade de prova e proibições de prova. 10. O encerramento do * O presente trabalho tem por base o texto de uma comunicação apresentada pelo signatário, na qualidade de docente do Centro de Estudos Judiciários (Lisboa), na École Nationale de la Magistrature, em 15 de março de 1994, no âmbito da acção de formação contínua de magistrados subordinada ao tema “A fase preparatória do processo penal - visão de direito comparado” (Paris, 14 a 18 de Março de 1994), ampliado, revisto e actualizado, tendo em conta, nomeadamente, as alterações decorrentes da revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.° 59/98, de 25 de agosto. 219 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

  • Upload
    buitram

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS*

José Luís Lopes da MotaProcurador-Geral Adjunto

SUMÁRIO:1. Inserção histórica esistemática da reforma de 1987. OCódigo de Processo Penal de 1929 esua evolução. As fases preliminares noregime anterior. 2 . As incidências dareforma nas fases preliminares doprocesso. O inquérito. 3. A estruturaacusatória do processo. Simplificaçãodo processo e reforço da protecção dosdireitos fundamentais. 4.O estatuto doMinistério Público. O modeloportuguês. A autonomia do MinistérioPúblico. 5. Posição e estatuto doMinistério Público e das polícias noinquérito. A abertura do inquérito e suaobrigatoriedade. As funções dos órgãosde polícia criminal no inquérito. 6. Asmedidas cautelares e de polícia. Actosde iniciativa própria. Actividadedelegada.7. O juiz de instrução. Posiçãoe funções do juiz de instrução noinquérito. 8. O arguido. O estatuto dearguido. Direitos e deveres processuais.O defensor. 9. A prova no inquérito.Meios de prova e meios de obtenção deprova. Liberdade de prova e proibiçõesde prova. 10. O encerramento do

* O presente trabalho tem por base o texto de uma comunicação apresentada pelo signatário, naqualidade de docente do Centro de Estudos Judiciários (Lisboa), na École Nationale de la Magistrature,em 15 de março de 1994, no âmbito da acção de formação contínua de magistrados subordinada aotema “A fase preparatória do processo penal - visão de direito comparado” (Paris, 14 a 18 de Marçode 1994), ampliado, revisto e actualizado, tendo em conta, nomeadamente, as alterações decorrentesda revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.° 59/98, de 25 de agosto.

219Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 2: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

220

inquérito. Prazos do inquérito. Decisõesde arquivamento e de acusação.11. Oencerramento do inquérito (cont.). Asinovações do Código de Processo Penalde 1987. Soluções informais et deconsenso. Arquivamento em caso dedispensa de pena. Suspensão provisóriado processo. Processo sumaríssimo.Fixação do limite da pena em cinco anosem casos abstractamente puníveis compena superior. 12. O processo abreviadoe a aceleração das fases preliminaresdo processo. 13. A instrução. Ocontraditório nas fases preliminares. Odebate instrutório Encerramento dainstrução. Despacho de pronúncia.Despacho de não-pronúncia. 14. Aexperiência de aplicação do Código deProcesso Penal de 1987. Alguns dados.

1. O novo Código de Processo Penal português, aprovado peloDecreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, no uso de autorização legislativaconcedida pela Lei n.º 43/86, de 26 de setembro, em vigor desde 1° de janeirode 1988, introduziu profundas alterações estruturais no processo penal portuguêse consagrou um modelo reconhecidamente situado na vanguarda do movimentode reforma do processo penal na Europa. 1

1Como se pode verificar, o Código de Processo Penal consagrou soluções que têm vindo a inspirar omovimento de reforma dos processos penais na Europa, de acordo com as tendências e as orientaçõesexpressas em diversos fora e organismos internacionais (cfr., nomeadamente, as recomendações doConselho da Europa nesta matéria). Idênticas soluções estão presentes no embrião da proposta doprocesso penal europeu (incluído no denominado Corpus Juris), elaborado por um grupo de peritossob a direcção de M. DELMAS-MARTY. Sobre o assunto cfr., nomeadamente, M. DELMAS-MARTYe J.A.E. VERVAELE, The Implementation of the Corpus Juris in the Member States, Intersentia,Antwerpen-Groningen-Oxford, 2000. Cfr. ainda CUNHA RODRIGUES, Direito Processual Penal– Tendências de reforma na Europa continental – o caso português, Separata do vol. LXIV (1988)do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990, e ALMEIDACOSTA, Alguns princípios para um direito e processo penais europeus, Revista Portuguesa deCiência Criminal, Ano 4, n.º 2 (1994), p. 199.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 3: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

221

Os resultados da sua aplicação, não obstante as dificuldades evidenciadas,que a revisão de 1998 visou, entretanto, a superar em nível normativo2, vieramconfirmar os prognósticos e as expectativas da reforma, nitidamente detectáveisnas fases preliminares, em que sobressai um claro reforço da celeridade, daeficiência e do estatuto do arguido. A leitura desses resultados não pode, todavia,deixar de levar em conta o contexto da sua aplicação, caracterizado, por umlado, pela alteração das características da criminalidade, de que relevam,nomeadamente, novas formas de criminalidade económica e financeira, comelevados níveis de organização e de sofisticação, e a subida dos índices decriminalidade registada pelas polícias e pelo Ministério Público (cerca de 100%,nos últimos 12 anos)3, e, por outro, por conhecidas insuficiências de estrutura,de organização e de métodos de intervenção determinados pelas novas regrasprocessuais e pela nova realidade criminológica.4

2Sobre a revisão de 1998 cfr. a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (altera o Códigode Processo Penal), Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 27, de 29 de janeiro de 1988,p. 481-517. Ver ainda a Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8, n.º 2, abril-junho de 1998(número temático sobre a revisão do Código de Processo Penal) e O Código de Processo Penal (4vols.), edição da Assembleia da República, 1998, contendo os trabalhos preparatórios da revisão etextos de um colóquio parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, que teve lugar emmaio de 1998.

3Cfr., nomeadamente, os relatórios anuais dos serviços do Ministério Público publicados pelaProcuradoria-Geral da República, contendo dados de muito interesse para se caracterizar a situação,bem como as estatísticas da Justiça publicadas pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministérioda Justiça, como órgão delegado do Instituto Nacional de Estatística, que, nos últimos anos, passarama incluir dados integrados sobre a criminalidade registada pelas polícias, de fundamental importânciapara se compreender a estrutura e a evolução da criminalidade em Portugal. Sobre conteúdo, estruturae caracterização das estatísticas da criminalidade e do processo cfr. Relatório dos Serviços do MinistérioPúblico do ano de 1992 dados relativos ao sistema de justiça penal, Revista Portuguesa de CiênciaCriminal, Ano 3, n.° 2-4, (abril-dezembro de 1993), p. 585.

4O reforço da eficácia da investigação da criminalidade econômica e financeira determinou a publicaçãodo Decreto-Lei n.° 299/94, de 13 de dezembro, que estabeleceu a estrutura orgânica da DirecçãoCentral para o Combate à Corrupção, Fraudes e Infracções Económico-Financeiras, da Polícia Judiciária,cuja lei orgânica foi aprovada pelo Decreto-Lei n.° 295-A/90, de 21 de setembro. No que se refere aoMinistério Público, só em 1998 se procedeu à revisão da respectiva Lei Orgânica, por meio da Lein.º 60/98, de 20 de agosto (aprova o Estatuto do Ministério Público), para responder às necessidadese às exigências de organização e de funcionamento decorrentes do novo Código de Processo Penal.De notar que o art.° 6º da Lei n.º 43/86, de 26 de setembro, impunha ao Governo a adopção dasprovidências necessárias e adequadas para que a entrada em vigor do Código de Processo Penal fosseprecedida da publicação da respectiva legislação complementar, mediante lei da Assembleia da Repúblicaou decreto-lei do Governo, conforme o caso, nomeadamente da legislação sobre o quadro próprio defuncionários do Ministério Público e “demais meios necessários à efectivação das respectivascompetências” (n.º 1, alínea a). Os DIAP (Departamentos de Investigação e Acção Penal), quetiveram de ser constituídos como estruturas informais em 1988, no âmbito das possibilidades deauto-organização interna, só vieram a ser “legalizados” com a publicação do Estatuto de 1998.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 4: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

222

Substituindo o Código de Processo Penal de 1929 (CPP29) e a legislaçãoque o complementou e alterou a partir de 1945, influenciado pela lição do direitocomparado europeu (nomeadamente de Espanha, França, Itália e Alemanha),pelas aquisições da moderna criminologia, pela elaboração da ciência jurídicaprocessual penal identificada com os princípios do Estado de Direito democrático,pela acção do Conselho da Europa e pela tradição e praxis processuaisanteriores, o novo Código introduziu profundas mudanças na fase preparatóriado processo.5

O CPP29, que assumia o propósito de acentuação da verdade materialcomo fim do processo, havia optado, no modelo inicial, por um tipo de processode estrutura inquisitória, atribuindo ao juiz a direcção quer do chamado “corpode delito” (instrução preparatória) quer da instrução contraditória, mas reservarapara o Ministério Público um papel passivo, de mero acusatório formal,subordinado ao juiz, que podia, inclusive, dar-lhe ordens de acusação.6

Em 1945, por meio do Decreto-Lei n.º 35007, de 15 de outubro, empleno contexto de consolidação da autoridade do “Estado Novo”, o CPP29sofreu a sua primeira grande alteração ao nível das fases preliminares do processo.

Essa alteração, por um lado, reforçou o papel do Ministério Público, queentão se organizava na dependência hierárquica do Ministro da Justiça,atribuindo-lhe a direcção da instrução preparatória e a titularidade da acçãopenal. Por outro lado, consagrou legalmente a estrutura acusatória do processo,associada ao princípio de investigação, como dever do tribunal, e reorganizou ainstrução contraditória sob a direcção do juiz, obrigatória nos crimes mais graves,

5Sobre a reforma do processo penal de 1987, seu sentido, profundidade e alcance, podem consultar-seos trabalhos publicados em O Novo Código de Processo Penal - Jornadas de Direito ProcessualPenal, Centro de Estudos judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1991; e ainda FIGUEIREDODIAS, O Novo Código de Processo Penal, Separata do Boletim do Ministério da Justiça n.º 369, eCódigo de Processo Penal e outra Legislação Processual Penal, Aequitas-Editorial Notícias, 1992.Cfr. ainda o Preâmbulo do Código de Processo Penal e a Lei n.º 43/86, de 26 de setembro (lei deautorização legislativa).

6Cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Primeiro volume, reimpressão, Coimbra Editora,1984; CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra, 1968; eCAVALEIRO DE FERREIRA - Curso de Processo Penal (2 vols.), Editora Danúbio, Lisboa, 1986.Cfr. artigo 346.º do Código de Processo Penal de 1929.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 5: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

223

da competência do tribunal colectivo, a que correspondia processo de querela(crimes puníveis com pena de prisão superior a dois anos).

O sistema veio a merecer fortes críticas pelas limitações decorrentes dafalta de autonomia do Ministério Público, pela sua subordinação funcional aopoder político, que dispunha da faculdade de intervir no exercício da acçãopenal, e pela protecção que concedia aos agentes do Estado, por meio dasrestrições ao exercício da acção penal contra estes, dependente de autorizaçãodo Governo (sistema de garantia administrativa).7

Após o de 25 de abril de 1974, com a estruturação do Estadodemocrático, conaturais alterações de fundo foram introduzidas no processopenal, no sentido da sua democratização, por sucessivos diplomas avulsos, que,no entanto, fragmentaram o processo, quebraram a sua anterior lógica interna ecriaram inevitáveis desarmonias, produto de concepções políticas genéticasdiversas e dificilmente conciliáveis.

O Decreto-Lei n.° 605/75, de 3 de novembro, constituiu, então, a primeiraalteração normativa de vulto, em realização do Programa do MFA e do Planode Acção do Governo Provisório.

Para além das alterações na fase de julgamento, esse diploma introduziumodificações profundas nas fases preparatórias do processo. Protagonizandoanunciadas intenções de simplificação e celeridade processual, dispensou arealização de instrução preparatória nos crimes menos graves – puníveis comprisão até ao limite de dois anos, mais tarde (1982) elevado para três anos – ecriou uma nova figura processual – o inquérito policial, que, a partir de 1977, sepassou a denominar inquérito preliminar (Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 desetembro) –, da competência das polícias, para investigação célere e simplificadadestes tipos de crime.

7Cfr., nomeadamente, o artigo 3.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de outubro de 1945, quedispunha: “O exercício da acção penal depende: (...) 3.º - De autorização do Ministro do Interior,quando sejam arguidas autoridades ou agentes da autoridade que gozem de garantia administrativa, nostermos da lei.”

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 6: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

224

O sistema veio a sofrer ajustamentos após a aprovação da Constituiçãode 1976 e da revisão constitucional de 1982 (Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 desetembro, e Decreto-Lei n.º 402/82, de 23 de setembro), essencialmente com ointuito de reforço da protecção dos direitos fundamentais, em conformidadecom o novo quadro axiológico e normativo a que o Estado passou a estarvinculado.

De acordo com o regime em vigor à data de edição do Código de ProcessoPenal de 1987, as fases do processo anteriores ao julgamento estruturavam-seesquematicamente pela seguinte forma:

a) Os crimes puníveis com pena de prisão até três anos eram investigadosem inquérito preliminar, pelos diversos órgãos de polícia, agindo, em regra, deforma autônoma, sem regras de vinculação judiciária e, nalguns casos, dispensadasde comunicar ao Ministério Público a própria abertura do inquérito;

b) O inquérito preliminar deveria estar concluído no prazo de trinta dias(muito difícil e raramente cumprido), findos os quais deveria ser remetido aoMinistério Público para decisão final de acusação ou não-acusação;

c) O Ministério Público podia avocar o inquérito, concluí-lo sob a suadirecção ou devolvê-lo às polícias para realização de actos em falta;

d) No caso de ao crime corresponder pena de prisão superior a trêsanos, o Ministério Público deveria requerer a abertura de instrução preparatória,que passava a decorrer sob a presidência do juiz de instrução que, em grandeparte dos casos, para além de interrogar o arguido (acto obrigatório de instrução),limitava a sua intervenção à ratificação dos actos de inquérito, encerrava a instruçãoe remetia o processo ao Ministério Público para dedução ou não de acusação;

e) Os crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos eraminvestigados em instrução preparatória, sob a direcção do juiz de instrução que,assumindo, em regra, uma atitude passiva, tendia a reduzir a sua intervenção auma acção de mediação entre o impulso do Ministério Público (que promovia asdiligências convenientes à instrução) e a execução dos actos pelas polícias e à

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 7: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

225

verificação do cumprimento dos actos que lhes haviam sido ordenados, comconsideráveis perdas de racionalidade e de eficácia;

f) Concluída a instrução, o processo era apresentado ao Ministério Públicopara acusação (inexistindo fundamento para acusação, entendia a jurisprudênciadominante que não cabia ao Ministério Público decidir do destino do processo– decisão de arquivamento ou no sentido de ficar a aguardar a produção demelhor prova –, por ser acto considerado da competência do juiz, negando-se,assim, à intervenção do Ministério Público a natureza de acto decisório dainstrução, ou seja, relativo ao exercício da acção penal);

g) À instrução preparatória podia seguir-se uma fase de instruçãocontraditória, destinada a completar a prova recolhida na instrução preparatóriae a possibilitar o exercício do contraditório, a requerimento do Ministério Público,do assistente ou do arguido, obrigatória, no entanto, relativamente a processospor crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos;

h) Havendo indícios suficientes da prática do crime e sendo admissível oprocedimento, as fases preliminares do processo encerravam-se por despachodo juiz do julgamento, que, apreciando os indícios resultantes do processo,recebia ou rejeitava o requerimento para julgamento no termo do inquérito ouproferia despacho de pronúncia ou de não-pronúncia no termo da instrução;8

i) Do despacho de abstenção do Ministério Público era admissívelreclamação para o imediato superior hierárquico, no prazo de trinta dias, o qualpodia confirmar a decisão, ordenar novas diligências ou ordenar a dedução deacusação.

8O sistema gerou forte controvérsia a propósito da questão da sua conformidade com a Constituiçãoe com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Cfr., nomeadamente, o acórdão do TribunalConstitucional n.º 219/89, proferido no Proc.° n.º 14/1993/409/488 (pedido n.º 15651/89 - caso Saraivade Carvalho c. Portugal), de 22.4.94, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, bem como aanotação, a esta decisão, de HENRIQUES GASPAR, In Revista Portuguesa de Ciência Criminal,Ano 4.º, n.º 3 (julho-setembro de 1994), p.405-417.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 8: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

226

2. O Código de Processo Penal de 1987 veio a eliminar essa diversidadede procedimentos e transformou o inquérito, sob a titularidade do MinistérioPúblico – agora com estatuto e poderes de verdadeira magistratura, pressupostoessencial em que se assenta a formulação do novo modelo processual 9–, nafase normal de investigação e de preparação da decisão de acusação,independentemente do tipo de crime e da moldura da pena correspondente.

Conferiu-se, desta forma, unidade e racionalidade ao processo,clarificaram-se os estatutos e os papéis das autoridades judiciárias – MinistérioPúblico e juiz de instrução – e dos órgãos de polícia criminal e reforçou-se aeficácia do sistema e a tutela dos direitos fundamentais ao nível das fasespreliminares.

Para uma exacta compreensão do sentido e da dimensão das mudanças,justifica-se uma breve abordagem dos vectores fundamentais da reforma de1987.

Sinteticamente podem identificar-se os seguintes vectores, com expressãonas fases preliminares:

a) Construção do modelo no respeito e em desenvolvimento do quadroaxiológico consagrado na Constituição e em convenções internacionais comrelevância na matéria, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem(Conselho da Europa)10 e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos(ONU)11, visando à conciliação, de forma eficiente, das finalidades do processo(a segurança, a liberdade e a protecção dos direitos fundamentais);

b) Estruturação em conformidade com um sistema essencial decoordenadas de distinção entre pequena criminalidade e criminalidade grave,entre soluções de consenso e de conflito, com a correspondente diversidade detratamento processual;

9Sobre a posição e o estatuto do Ministério Público no processo penal podem ver-se FIGUEIREDO

DIAS, Sobre os sujeitos processuais; e LABORINHO LÚCIO, Sujeitos do processo penal, Jornadasde Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, cit.. Cfr. ainda CUNHA RODRIGUES, MinistérioPúblico, Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. V, 1993, p. 502 e segs..

10Aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro.

11Aprovado, para ratificação, pela Lei n.° 29/78, de 12 de junho.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 9: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

227

c) Participação de um programa político-criminal recolhendo soluções dediversão (desjudiciarização, informalidade da reacção), participação,oportunidade e consenso, relativamente a crimes de pequena gravidade, casosda suspensão provisória do processo (art.º 281.º), do arquivamento do processoem casos de verificação dos pressupostos para a dispensa de pena (art.° 280.º),do processo sumaríssimo (art.º 392.º) e da homologação pelo Ministério Públicoda desistência de queixa aceite pelo arguido com o consequente arquivamentodo processo (art.º 5.°);

d) Reforço das ideias de simplificação e aceleração processual (comcriação de um incidente próprio para aceleração de processo atrasado, a decidirpelo Procurador-Geral da República ou pelo Conselho Superior de Magistratura,conforme os casos).

3. A aproximação da análise a aspectos particulares do novo modelopermite detectar, ao nível das fases preparatórias, alguns aspectos a merecerevidência. 12

No que respeita aos sujeitos processuais, identifica-se uma clara estruturaacusatória, integrada por um princípio de investigação13, com delimitação nítidade funções entre o Ministério Público, o juiz de instrução e o juiz de julgamento,e assiste-se a uma nítida melhoria da posição processual do arguido, agora dotadode estatuto próprio com clara enunciação dos seus direitos e deveres processuais,a uma definição expressa do estatuto e das atribuições processuais das políciascriminais e à redefinição do estatuto processual do lesado (parte civil).

Na regulamentação dos actos processuais, o Código distancia-se daregulamentação excessivamente detalhada, criando um quadro dedesburocratização, simplificação e desformalização da aplicação da justiça penal.

12Sobre a fase preliminar do processo, em geral, cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Do ProcessoPenal Preliminar, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito daUniversidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1990. Ver ainda TERESA BELEZA, Apontamentos deDireito Processual Penal (aulas teóricas dadas ao 5.º ano, 1991/92), Associação Académica daFaculdade de Direito de Lisboa.

13Sobre os princípios fundamentais do processo cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal,primeiro volume, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, p. 115-229.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 10: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

228

Em matéria de prova, reforça-se o princípio da legalidade, regulamentam-seas consequências da sua violação (por via das proibições de prova),consagra-se o princípio da livre apreciação, regulam-se expressamente ascompetências do juiz de instrução, do Ministério Público e das polícias econfere-se relevo processual às medidas cautelares e de polícia.

No âmbito das medidas de coacção e de garantia patrimonial extraem-seas necessárias consequências da relevância da presunção de inocência do arguido,pela clarificação e reforço de princípios da legalidade, tipicidade, adequação,proporcionalidade, subsidariedade e precariedade, e extingue-se o regime deincaucionabilidade que, no anterior regime, impedia, em regra, a substituição daprisão preventiva por medida de liberdade provisória relativamente a um elencode crimes graves tipicamente previstos.14

A opção por uma estrutura de processo tipicamente acusatóriaassocia-se, de forma intrínseca, ao estatuto do Ministério Público, definitivamenteerigido em magistratura autónoma.

A natureza essencial dessa questão justifica uma aproximação maisdetalhada ao modelo português de Ministério Público que, no contexto dos paísesde referências sistémicas e culturais próximas, apresenta traços deespecificidade.15

4. Integrado na lógica de separação e de interdependência de poderesque a Constituição de 1976 adopta, o Ministério Público constitui um órgão doEstado com consagração constitucional, encarregado de representar o Estado,exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses postospor lei a seu cargo.16

14Cfr. Decreto-Lei n.º 477/82, de 22 de dezembro.

15Cfr. supra, nota 8.

16Nomeadamente, e no essencial, a representação judiciária do Estado em processo civil, a defesa dosinteresses dos menores, dos trabalhadores, do ambiente, dos consumidores e do património cultural(cfr. art.º 3.º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 60/98, de 20 de agosto).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 11: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

229

Órgão integrado nos tribunais, com atribuições não materialmentejurisdicionais – no sentido de definição do direito aplicável ao caso concretocom força de caso julgado –, nem limitadas aos tribunais – dadas as atribuiçõesde órgão de consulta do Govemo17 – e dotado de autonomia e estatuto próprio,constitucionalmente reconhecidos18, o Ministério Público assume a natureza deórgão do poder judicial ou de órgão de justiça. Esta concepção reflecte-se,nomeadamente, nas normas de organização, estatuto e funcionamento, sujeitosa princípios típicos da magistratura, na prossecução de fins e atribuições deiniciativa processual condicionadores da intervenção judicial e na função deauto-limitação do poder judicial.19

A autonomia do Ministério Público representa a característica maisrelevante do seu estatuto.

Referida legalmente com relação aos demais órgãos do poder central,regional e local, a autonomia caracteriza-se pela vinculação a critérios delegalidade, objectividade e isenção e exclusiva sujeição dos magistrados e agentesdo Ministério Público às directivas, às ordens e às instruções emitidas pelosórgãos e magistrados de nível hierárquico superior, de acordo com a lei.20

Na sua definição legal, a autonomia do Ministério Público assume sentidosbem definidos:21

17Por meio do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (cfr. art.º 36.º e segs. doEstatuto do Ministério Público).

18Cfr. art.º 219.º da Constituição.

19Cfr. CUNHA RODRIGUES, Ministério Público, loc. cit.

20A projecção desses critérios na concepção hierárquica do Ministério Público e a conciliação dosprincípios e regras próprias da hierarquia com a natureza do Ministério Público como magistraturapermitem identificar uma hierarquia sui generis, que se distingue claramente da hierarquiaadministrativa. Enquanto as regras da hierarquia administrativa só legitimam a não obediência aordens ilegais nas situações em que estas conduzem à prática de crime, no caso do Ministério Públicoexiste, desde logo, o dever de não cumprimento de ordens ilegais (cfr. art.º 76.º e 79.º do Estatuto doMinistério Público). Para além disso, o funcionamento da hierarquia, em processo penal, deveharmonizar-se com as regras de competência previstas no Código (art.º 264.º a 266.º) e de representaçãodo Ministério Público nos tribunais (art.º 4.º do Estatuto do Ministério Público). Cfr. JOSÉ MANUELMEIRIM, Recusa de cumprimento de directivas, ordens e instruções com fundamento em graveviolação da consciência jurídica, Revista do Ministério Público, Ano 13, n.º 51 (julho-setembro de1992), p. 51-61.

21Cfr. art.º 2.º, 15.º, 27.º, 75.º e 80.º do Estatuto do Ministério Público.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 12: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

230

a) De não ingerência do poder político, maxime do Ministro da Justiça,no exercício das suas atribuições, designadamente no exercício da acção penal;

b) De concepção e estruturação como magistratura própria, orientadapor um princípio de separação e de paralelismo em relação à magistratura judicial,com estatuto idêntico;

c) De adopção de um órgão de governo próprio, o Conselho Superior doMinistério Público, presidido pelo Procurador-Geral da República, compostopor membros eleitos pelos magistrados e membros designados pela Assembleiada República e pelo Governo, e com competências de gestão, disciplina eapreciação do mérito dos magistrados.

Esse estatuto projecta-se, de forma estruturante, no Código, pela definiçãode regras precisas na caracterização da posição do Ministério Público no âmbitodo processo penal, ao reafirmar o princípio da objectividade da intervenção(art.º 53.º), ao determinar a aplicação aos magistrados do Ministério Públicodas disposições relativas a impedimentos, recusas e escusas do juiz (art.º 54.º),ao estabelecer a obrigação do Ministério Público de investigar “à charge” e “àdécharge” (art.º 262.º) e ao atribuir legitimidade ao Ministério Público pararecorrer no exclusivo interesse da defesa (art.º 401.º).

Constituindo uma magistratura independente da magistratura judicial ediferente desta, hierarquicamente organizada e tendo por órgão superior aProcuradoria-Geral da República, presidida pelo Procurador-Geral daRepública, o Ministério Público tem como agentes:22

a) O Procurador-Geral da República, que preside ao Ministério Público,ao Conselho Superior do Ministério Público e ao Conselho Consultivo daProcuradoria-Geral da República e representa o Ministério Público no SupremoTribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativono Tribunal de Contas;

22Cfr. art.º 8.º do Estatuto do Ministério Público.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 13: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

231

b) O Vice-Procurador-Geral da República, que coadjuva e substitui oProcurador-Geral da República;

c) Os procuradores-gerais-adjuntos, que representam o Procurador-Geralda República nos Tribunais Supremos, exercem funções de consulta jurídica noGoverno (auditores jurídicos), integram o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (órgão de consulta do Governo e do Procurador-Geral daRepública) e representam o Ministério Público nos tribunais de 2ª instância;

d) Os procuradores da República, que coordenam os magistrados doMinistério Público na 1ª instância e, em regra, representam o Ministério Públiconos tribunais colectivos e nos tribunais administrativos e fiscais de 1ª instância; e

e) Os procuradores-adjuntos23 que representam o Ministério Público nageneralidade dos tribunais de 1ª instância.

Os princípios da oficialidade e do acusatório conferem ao MinistérioPúblico atribuições de quase monopólio da acção penal, apenas dependentesda intervenção do ofendido na qualidade de assistente relativamente a crimesem que é necessária acusação particular, embora numa posição de subordinaçãoprocessual. 24

A posição do Ministério Público no processo penal insere-se num contexto,mais global, de necessidade de reforço da acção do Estado na repressão dacriminalidade, dadas as suas novas formas de organização, e de enfraquecimentodo controlo informal – controlo social, pela família, pelos grupos e instituições –,que têm conduzido à crise os modelos do juiz de instrução (casos de Itália eAlemanha), e decorre das cada vez mais sentidas exigências de coordenação docombate à criminalidade por meio do sistema de justiça e do reforço do estatuto

23Até à aprovação do Estatuto de 1998, os procuradores-adjuntos tinham a designação de delegados doprocurador da República (cfr. art.º 44.º da Lei Orgânica do Ministério Público Lei n.º 47/86, de 15 deoutubro).

24Sobre o assistente, que constitui uma figura típica do sistema processual penal português, cfr. art.º 68.ºe segs. do Código de Processo Penal.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 14: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

232

de imparcialidade do juiz, no quadro dos valores e princípios do Estado dedireito democráticos.25

5 . Essa concepção motiva uma dupla consequência estruturante de todoo processo na fase de inquérito: a atribuição da direcção do inquérito ao MinistérioPúblico, com natureza e poderes de autoridade judiciária, e atribuição de funçõesde polícia criminal às polícias em geral, com o estatuto processual de auxiliaresdo Ministério Público, sob a sua orientação e na sua dependência funcional(art.º 56.ºe 263.º CPP).26

Reforça-se, por esta via, a importância das polícias no controlo dacriminalidade (na dupla vertente de prevenção e repressão) e na tutela dos direitose garantias fundamentais. A realização da investigação sob controlo de autoridadejudiciária emerge como corolário da necessidade de reforço da isenção eobjectividade das polícias (atributos tradicionalmente associados, de forma maisexpressiva, ao estatuto das magistraturas), em conformidade com as orientaçõesdas instâncias internacionais (da ONU e do Conselho da Europa).

A atribuição dos poderes de direcção do inquérito ao Ministério Públiconão significa que deva ser o Ministério Público a realizar a investigação, o queconstitui tarefa própria das polícias.

25A este propósito pode ver-se o recente debate travado em França, pátria do juiz de instrução, acercado projecto de lei relativo à acção pública em matéria penal e modificando o Código de ProcessoPenal (Projecto de lei n.º 350, adoptado pela Assembleia Nacional em 29.06.1999, nomeadamenteo respectivo Capítulo III relativo ao reforço do controlo da autoridade judicial sobre a políciajudiciária). Pode ler-se na respectiva exposição de motivos: “A cette fin, le présent projet de loi sepropose tout d’abord de modifier l’article 14 du code de procédure pénale afin qu’il précise désormaisque la police judiciaire s’exerce dans le cadre des orientations données par le procureur de la République.I1 est ainsi clairement exprimé que l’activité de police judiciaire a vocation à s’exercer dans le cadredéfini par les autorités judiciaires. Un certain nombre de dispositions, introduites à l’article 41 età l’article 152-1 du code de procédure pénale, ont ensuite pour but de foumir au procureur de laRépublique et au juge d’instruction des outils nouveaux leur permettant de contrôler réellement lesactivités des services de police judiciaire afin d’améliorer 1’efficacité de la lutte contre la délinquance.Il sera ainsi dorénavant précisé que le procureur de la République contrôle non seulement les mesuresde garde à vue mais également le déroulement: des enquêtes”.

26Sobre o conceito, o estatuto e as funções dos órgãos de polícia criminal no processo cfr. FIGUEIREDODIAS, Polícia no processo criminal, Revista de Investigação Criminal, n.º 21, 1986, p. 23; e CUNHARODRIGUES, A posição institucional e as atribuições do Ministério Público e das polícias nainvestigação criminal, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 337, p. 15. Ver ainda DAMIÃO DACUNHA, O Ministério e os órgãos de polícia criminal, Universitas Catholica Lusitana, Porto, 1993.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 15: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

233

Como se salienta no despacho27 do Procurador-Geral da República de21 de dezembro de 1987, os poderes jurídicos do Ministério Públicocaracterizam-se como poderes de emitir directivas, ordens e instruções sobreactos e diligências de inquérito, de delegar ou solicitar a realização de diligências,de presidir ou assistir a actos ou autorizar a sua realização, de acompanhar efiscalizar a realização de actos, de avocação e devolução do inquérito. Porém,sem prejuízo desses poderes, há que, em cuidadosa articulação de papéis eponderação do caso concreto, considerar o respeito pelas leges artis dacriminalística e das polícias, devendo ser realizadas por estas as tarefas deinvestigação que exigem técnicas, estratégias e meios logísticos e operacionaispróprios das polícias.

Representando uma vertente particularmente sensível do sistema, em faceda ausência de tradição de vinculação judiciária da actividade das polícias, eque apela, com particular ênfase, a regras e práticas de colaboração e confiançarecíprocas, a dependência funcional das polícias no inquérito – correspondendoa uma posição intermédia entre a total autonomia e a total dependência, funcionale hierárquica – exige a distinção de dois planos: o organizacional e o processual.

No plano organizacional há de levar em conta o disposto nas leis orgânicasdas várias polícias28, definidoras de organização, competência e regras defuncionamento interno. Estão envolvidos, nesse plano, aspectos técnicos,estratégicos, operacionais e logísticos, em que deve ser preservado o conteúdoessencial da autonomia das polícias. Levando em conta esses aspectos, adependência funcional deverá desenvolver-se num quadro de coordenação,confiança, desburocratização, simplificação e cooperação, essenciais aofuncionamento do sistema.

27Transmitido pela Circular n.º 8/87 da Procuradoria-Geral da República, relativa à aplicação do novoCódigo de Processo Penal.

28Cfr., nomeadamente, as leis orgânicas da Polícia Judiciária (Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 desetembro), Polícia de Segurança Pública (Lei n.º 5/99, de 27 de janeiro), Guarda Nacional Republicana(e suas Brigada Fiscal e Brigada de Trânsito – Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de junho), InspecçãoGeral das Actividades Econômicas (Decreto-Lei n.º 14/93, de 18 de janeiro). Serviço de Estrangeirose Fronteiras (Decreto-Lei n.º 440/86, de 31 de dezembro) e de outros organismos da Administraçãocom competências em matérias criminais específicas (como, por exemplo, a Inspecção-Geral doAmbiente, com competência para a investigação de crimes contra o ambiente – crf. Decreto-Lein.º 549,/99, de 14 de dezembro).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 16: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

234

No plano processual, importa ter presentes as regras impostas pelo direitogeral de polícia29 e, acima de tudo, pelo Código de Processo Penal.

O estatuto e a competência das polícias no inquérito e a sua articulaçãocom o Ministério Público definem um modelo articulado e coerente, que se podecaracterizar pela enunciação sintética de algumas regras essenciais.

Obtida a notícia de um crime, por conhecimento próprio ou denúncia, aspolícias adquirem o estatuto processual de órgão de polícia criminal. O momentoda aquisição da notícia tem efeito processual de especial relevo na medida emque assinala a passagem da actividade (preventiva) de polícia administrativa àactividade (repressiva) de “polícia judiciária”, auxiliar do Ministério Público, apartir de então vinculada a idênticas regras de procedimento processual penal(art.º 247.º e 262.º, n.º 2).

Reunidos os pressupostos processuais de legitimidade do MinistérioPúblico quanto a crimes dependentes de queixa do ofendido, e não sendo casode detenção em flagrante delito que conduza a procedimento acelerado, comjulgamento imediato ou no prazo máximo de 48 horas (processo sumário), anotícia de um crime dá sempre lugar a inquérito, a realizar-se sob a direcção doMinistério Público.

O inquérito compreende o conjunto das diligências necessárias àdescoberta do crime, dos seus autores e da sua responsabilidade e à descobertae conservação de provas, constituam elas tarefas materiais de investigação strictosensu ou de documentação e registo da prova, o que significa a inadmissibilidadede desenvolvimento de actividades de investigação criminal fora do âmbito doprocesso (art.º 262.°).

No inquérito, as polícias actuam na dependência funcional do MinistérioPúblico, praticando actos por delegação, que pode ser expressa, tácita oupresumida (como sucede com a Polícia Judiciária, relativamente a crimes de

29Moldado pelos princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade e tipicidade dasmedidas de polícia (cfr. art.º 266.º e 272.º da Constituição).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 17: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

235

especial gravidade ou exigindo meios mais sofisticados de investigaçãocientífica)30, em concreto ou por acto genérico31, ou assistindo ao MinistérioPúblico na realização de actos não-delegados.

O Código de Processo Penal adopta um conceito amplo de órgão depolícia criminal (art.º 1.º, n.º 1, alínea c), que abrange todo e qualquer corpodotado de autoridade policial, chamado à prática de qualquer acto com reflexona lei penal, bastando, como se referiu, a aquisição da notícia do crime paraobtenção daquela qualidade.

Em regra, as polícias podem realizar, por delegação, todos e quaisqueractos de inquérito, salvo os reservados estritamente para as autoridadesjudiciárias.

Por iniciativa própria, as polícias devem:

a) Adquirir a notícia do crime e transmiti-la ao Ministério Público no maiscurto prazo (actividade de informação);

b) Impedir as suas consequências (actividade preventiva, como recuperarobjectos furtados ou libertar uma pessoa sequestrada);

c) Levar a efeito as medidas cautelares e urgentes relativas a meios deprova, com poderes mais alargados tratando-se de terrorismo, criminalidadeviolenta ou altamente organizada, para evitar perigo na demora;

d) Proceder a detenções em flagrante delito por qualquer crime a quecorresponda pena de prisão e fora de flagrante delito, mediante mandado, porcrimes puníveis com pena de prisão superior a três anos;

e) Levar a efeito as diligências materiais de investigação necessárias àdescoberta do crime e dos seus agentes e a assegurar os meios de prova.

30Cfr. art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90 cit.

31Cfr. o art.º 270.º, n.º 4, que, com a revisão do Código de Processo Penal de 1998, veio a esclarecerexpressamente a possibilidade de delegação por acto genérico.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 18: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

236

A actividade de iniciativa da polícia tem natureza e característicasprocessuais claras.

É obrigatória, pois representa um dever para as polícias (art.º 55.º CPP)praticar todos os actos que, se omitidos, determinariam a perda ou o perigo dedispersão de elementos de prova ou vestígios do crime. O que significa que aspolícias não devem aguardar instruções para agir.

É preliminar (art.º 241.º a 245.º, 248.º a 253.º e 254.º a 261.º CPP), namedida em que é preordenada a fornecer ao Ministério Público o input dainvestigação, porém, a partir do momento em que o Ministério Público assume adirecção do inquérito, a polícia deve mover-se no âmbito das directivas, ordense instruções traçadas, salvo no que se refere à actividade destinada a assegurarnovos elementos obtidos após aquela intervenção (art.° 249, n.º 3) por razõesde urgência.

É temporária (art.º 249.º), pois deve ser imediatamente ou no mais curtoprazo comunicada ao Ministério Público e está condicionada pela efectivaintervenção do Ministério Público.

É auxiliar (art.° 56.º e 263.º), porque realizada na dependência e sobdirecta orientação e direcção do Ministério Público que assiste e coadjuva.

6. Visando à definição de um quadro de eficiência e dando relevoprocessual à actividade de polícia, o Código estabelece, de forma inovadora,regulamentação própria das medidas cautelares e de polícia, da iniciativa dosórgãos de polícia criminal, nomeadamente em contexto de urgência e de perigona demora da intervenção da autoridade judiciária.

Assim, para assegurar os meios de prova, o Código reconheceexpressamente aos órgãos de polícia criminal competência para (art.º 249.º a252.º):

a) Proceder a exames dos vestígios do crime, providenciando por evitar,tanto quanto possível, que os seus vestígios se apaguem ou alterem (conservaçãodo estado dos lugares e das coisas);

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 19: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

237

b) Colher informações das pessoas (potenciais testemunhas) que facilitema descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;

c) Colher informações dos suspeitos e de outras pessoas sobre factosrelativos a um crime e à descoberta de meios de prova susceptíveis de seperderem antes da intervenção da autoridade judiciária;

d) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em casode urgência ou de perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelaresnecessárias à conservação ou à manutenção dos objectos apreendidos32;

e) Proceder à identificação de pessoas encontradas em lugares públicos,abertos ao público ou sujeitos à vigilância policial, sempre que sobre elas recaiamfundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradiçãoou de expulsão, de que tenham penetrado ou permaneçam irregularmente emterritório nacional ou de haver contra si mandado de detenção, nos termosreferidos nos nºs de 2 a 5 e 9 do art.º 250.º 33;

f) Conduzir suspeitos incapazes de se identificar ou que se recusem afazê-lo ao posto policial mais próximo e compeli-los a permanecer ali pelo temponecessário à identificação, não superior a 6 horas, realizando, em caso denecessidade, provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga econvidando o identificando a indicar residência onde possa ser encontrado ereceber comunicações;

g) Proceder a revistas de suspeitos em caso de fuga iminente ou dedetenção e a buscas no lugar em que se encontrem (salvo tratando-se de buscadomiciliária, dependente de autorização da autoridade judiciária), em casos deterrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, no caso de a pessoavisada dar o seu consentimento e em situações de detenção em flagrante delito;

32O regime legal das apreensões sofreu alterações significativas com a revisão de 1998 do Código deProcesso Penal (cfr. igualmente o art.º 178.º).

33A nova redacção do artigo 250.º levou em conta o disposto na Lei n.º 5/95, de 21 de fevereiro, e visoua resolver os problemas de harmonização de procedimentos que a entrada em vigor deste diplomatinha suscitado em face da anterior redacção daquele preceito.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 20: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

238

h) Ordenar a suspensão, por tempo não superior a 48 horas, da remessade qualquer correspondência nas estações dos correios e telecomunicações,com vistas na sua apreensão.

Num plano diverso incluem-se os actos praticados pelas polícias pordelegação do Ministério Público, de acordo com a regra de que este pode conferira órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências einvestigações relativas ao inquérito, com excepção dos actos da competênciaexclusiva do juiz de instrução e dos actos da competência exclusiva do MinistérioPúblico.

A actividade delegada consiste, como a denominação indica, na prática,pela polícia, de actos originariamente da competência do Ministério Público.

Não fixando a lei regras rígidas relativas à forma de delegação, estadependerá das circunstâncias concretas: por escrito ou oralmente, em caso deurgência, com posterior redução a escrito, de conteúdo mais ou menos amplo,mas sempre com respeito pelas regras processuais dos actos que vinculam oMinistério Público, nomeadamente quanto a garantias de defesa e a documentaçãodos actos.

A Lei Orgânica da Polícia Judiciária34, a polícia de investigação porexcelência, estabelece, em relação a um conjunto de crimes, de maior gravidadeou investigação complexa, uma presunção legal de delegação exclusiva decompetência para investigação.

Assim, presume-se deferida na Polícia Judiciária, sem prejuízo dadependência funcional do Ministério Público, a competência para a averiguaçãode crimes:

a) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos,valores equiparados e respectiva passagem;

34Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro. Este diploma foi, entretanto, revogado peloDecreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, que aprovou a nova lei orgânica da Polícia Judiciária,a qual manteve, no essencial, as competências definidas anteriormente.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 21: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

239

b) De fraude e desvio na obtenção de subsídio, subvenção ou crédito, decorrupção;

c) Contra a segurança do Estado;

d) De perturbação de serviços de transporte por ar, água e caminho deferro;

e) Contra a paz e a humanidade;

f) De sequestro, escravidão e rapto;

g) De roubos em instituições de crédito ou repartições de fazenda pública;

h) Executados com bombas, granadas, matérias ou engenhos explosivos,armas de fogo proibidas e objectos armadilhados;

i) De homicídio voluntário desde que o agente não seja conhecido;

j) De furto de coisa móvel que tenha valor científico, artístico ou históricoe que se encontre em colecções públicas ou acessíveis ao público;

l) De furto de coisa que possua elevada significação no desenvolvimentotecnológico ou econômico ou que, pela sua natureza, seja substância altamenteperigosa;

m) De associações criminosas;

n) De incêndio, explosão, exposição de pessoas a substâncias radioactivase libertação de gases tóxicos ou asfixiantes;

o) De tráfico de veículos furtados e viciação dos respectivos elementosidentificadores;

p) De falsificação de cartas de condução, livretes e títulos de propriedadede veículos automóveis, de certificados de habilitações literárias, de passaportese de bilhetes de identidade; e

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 22: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

240

q) De tráfico de estupefacientes.

A lei prevê ainda que o Procurador-Geral da República possa delegar,genericamente ou caso a caso, competência à Polícia Judiciária para o inquéritorelativamente a crimes concretos ou a determinadas categorias de crimes, puníveiscom pena de prisão superior a 3 anos, por razões de complexidade ou tecnicidadeda investigação.

O despacho de Procurador-Geral da República de 21 de dezembro de1987, relativo à aplicação do Código de Processo Penal35, estabeleceu umconjunto de normas de articulação de competências entre o Ministério Público,a Polícia Judiciária e outros órgãos de polícia relativas a actos de inquérito,delegando genericamente às polícias competência para o inquérito e fixando oquadro geral a que devem obedecer os actos de delegação dos magistrados doMinistério Público.

Assim, foram delegadas competências à Polícia Judiciária nas comarcasde Lisboa, Porto e Coimbra, em que têm sede os seus departamentos de maiordimensão, para proceder a inquérito relativamente:

a) Aos crimes denunciados directamente à Polícia Judiciária ou de queesta tenha conhecimento;

b) Aos crimes denunciados a outros órgãos de polícia criminal, a que sejaaplicável pena de prisão de máximo superior a 3 anos ou em que deva aplicar-se medida de coacção; e

c) Aos crimes denunciados directamente ao Ministério Público cujainvestigação seja delegada na Polícia Judiciária, excepto os resultantes deacidente de viação cuja investigação deverá, consoante os casos, ser delegada àPSP ou à GNR.

Fora das comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra, onde funcionam serviçosda Polícia Judiciária, o Ministério Público pode ainda delegar na Polícia Judiciáriacompetência para investigar crimes a que corresponda pena de prisão de máximosuperior a 3 anos.

35Transmitido pela Circular n.º 8/87 da PGR, citada supra.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 23: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

241

Quanto a outros tipos de crime, nas restantes comarcas, o MinistérioPúblico pode delegar específica ou genericamente a competência para ainvestigação nos órgãos de polícia criminal quando os funcionários privativos doMinistério Público a não possam realizar directamente, salvo tratando-se decrimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos ou houverlugar a aplicação de medidas de coacção.

Sem prejuízo da competência da Polícia Judiciária – por delegaçãopresumida ou por acto do Procurador-Geral da República – o Ministério Públicodeve realizar o inquérito com a assistência de funcionários privativos quando ocrime for punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos ou houverlugar a aplicação de medida de coacção (excluído o termo de identidade eresidência). Neste caso pode ser delegada ou solicitada a qualquer órgão depolícia criminal, de acordo com as suas atribuições, a realização de certos actosou diligências36.

Outras polícias têm competência delegada para proceder a inquéritorelativamente a categorias de crimes específicas. É o caso da Brigada Fiscal daGuarda Nacional Republicana quanto a crimes fiscais e a crimes fiscais aduaneirose da Inspecção-Geral das Actividades Económicas quanto a infracçõesantieconómicas e contra a saúde pública ou da Inspecção-Geral do Ambienterelativamente a crimes ambientais37.

7. Consagrando uma alteração de relevo relativamente ao regime anterior,o Código atribui ao juiz de instrução, na fase de inquérito, uma função passiva,de garantia de direitos fundamentais. Não lhe cabe a iniciativa de actosprocessuais visando à realização das finalidades do inquérito, ou seja, investigara existência do crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles edescobrir e recolher provas (art.º 262.º).

36A Lei atribui aos funcionários de justiça da carreira dos serviços do Ministério Público competênciaspara desempenhar, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal– cfr. Mapa anexo ao Decreto-lei n.º 343/99, de 26 de agosto, que aprova o Estatuto dos Funcionáriosde Justiça.

37Este sistema irá sofrer ajustamentos em resultado da já anunciada lei da organização da investigaçãocriminal constante de proposta de lei apresentada pelo Governo à Assembleia da República.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 24: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

242

A lei reserva, porém, ao juiz de instrução determinados actos, quandoestejam em causa direitos fundamentais que possam ser restringidos oucomprimidos, distinguindo entre actos que devem ser praticados pelo juiz e actosque o juiz deve ordenar ou autorizar.

Assim, durante o inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução,a requerimento do Ministério Público, de autoridade de polícia criminal38 emcaso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente, praticaros seguintes actos (art.º 268.º):

a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido (no prazomáximo de 48 horas após a detenção, em regra por iniciativa do MinistérioPúblico, a quem o arguido deve ser apresentado pela polícia, após a detenção– art.º 141.º e 143.º);

b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantiapatrimonial (caução, obrigação de apresentação periódica à autoridade judiciáriaou ao órgão de polícia criminal, suspensão do exercício de funções, de profissãoou de direitos, proibição de permanência, de ausência e de contactos, obrigaçãode permanência na habitação e prisão preventiva – art.º 196.º a 202.º), àexcepção do termo de identidade e residência, que pode ser aplicada peloMinistério Público ou pelos órgãos de polícia criminal;39

c) Proceder a buscas e a apreensões em escritório de advogado,consultório médico ou estabelecimento bancário;

38 Sobre o conceito de autoridade de polícia criminal (cfr. art.º 1.º, nº 1, al. d), do Código de Processo

Penal.39

O alargamento da competência aos órgãos de polícia criminal resultou da revisão de 1998. O regimedo TIR (Termo de Identidade e Residência) sofreu alterações significativas em 1998, passando aassumir importância decisiva relativamente às modificações do regime da contumácia (cfr. art.º 335º,n.º 1– a contumácia ficou reduzida aos casos em que não foi prestado TIR) e do regime de julgamentona ausência do arguido (cfr. art.º 334º, n.º 3 – de notar que a prestação do TIR e a violação dos deveresinerentes pode, agora, legitimar o julgamento na ausência do arguido). Essas alterações, cuidadosamenteponderadas em função dos direitos da defesa, assumiram importância fulcral na revisão do Código deProcesso Penal de 1998 e visaram a atacar a possibilidade de sucessivos adiamentos da audiência dejulgamento, que só muito excepcionalmente podia realizar-se na ausência do arguido, geralmenteconsiderada como a principal causa de desprestígio da justiça penal.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 25: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

243

d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo dacorrespondência apreendida;

e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando oMinistério Público proceder ao arquivamento do inquérito.40

Também durante o inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ouautorizar buscas domiciliárias, apreensões de correspondência e intercepçõesou gravações de conversações ou comunicações telefônicas (art.º 269.º).

Ao Ministério Público está reservada a prática de actos de inquérito quenão podem ser delegados nos órgãos de polícia criminal (art.º 270.º, n.º 2):

a) Receber depoimentos ajuramentados;

b) Ordenar a efectivação das perícias;

c) Assistir a exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas;

d) Ordenar ou autorizar revistas e buscas, salvo as domiciliárias.

8. O arguido adquire, no actual regime, o estatuto de verdadeiro sujeitoprocessual, inspirado no respeito da sua dignidade pessoal e no princípio deigualdade de armas41 que, estruturando o processo, opera a conciliação danatureza inquisitória da fase preparatória com as exigências decorrentes desteprincípio, em conformidade com o sentido da Convenção Europeia dos Direitosdo Homem.42

40 Inovação da revisão de 1998.

41 Sobre o sentido e alcance deste princípio, cfr. CUNHA RODRIGUES, Sobre o princípio de igualdade

de armas, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, n.º 1, p.83.42

Cfr. CABRAL BARRETO, Notas para um processo equitativo – análise do artigo 6.º da ConvençãoEuropeia dos Direitos do Homem, Documentação e Direito Comparado, n.º 49/50, p. 69-133; eSOUTO DE MOURA, Direito e processo penal actuais e consagração dos direitos do homem,Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, n.º 4, p. 567.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 26: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

244

Na definição do estatuto do arguido sobressai o cuidado com que serodeia a sua constituição formal, definindo-se com rigor o momento e o modode obtenção do estatuto, com carácter irreversível e concomitante estatuição daobrigatoriedade para as autoridades judiciárias e para as polícias de explicitaremos direitos e os deveres inerentes a essa qualidade.43

O Código consagra a regra geral de que assume a qualidade de arguidotoda a pessoa contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução numprocesso penal, conservando-se tal qualidade durante todo o processo(art.º 57.º).

Sem prejuízo dessa regra geral, é obrigatória a constituição de arguido44

logo que, correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declaraçõesperante autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal; logo que tenha de seraplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial;logo que um suspeito for detido; ou logo que for levantado auto de notícia quedê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado(art.º 58.º).

É igualmente obrigatória a constituição de arguido sempre que, durante ainquirição de uma pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de ela tercometido um crime (o que determina a suspensão do acto e a formalização doestatuto de arguido) e no caso de se efectuarem diligências destinadas acomprovar a suspeita de um crime que pessoalmente afectem uma pessoa sobrequem recaírem as suspeitas de o ter cometido (neste caso, a lei reconheceexpressamente a essa pessoa o direito de pedir a sua constituição como arguido).

A constituição de arguido opera-se por meio da comunicação, oral oupor escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou por um órgão depolícia criminal, que, a partir desse momento, deve considerar-se arguido num

43A constituição de arguido, que implica a prestação de termo de identidade e residência, com todas asconsequências daí decorrentes (supra n.º 39), implica a entrega, sempre que possível, no próprio acto,de documento do qual constem a identidade do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, eos direitos e os deveres processuais referidos no art.º 61.º, nomeadamente a possibilidade e as condiçõesde julgamento na ausência.

44Com a revisão de 1998, o interrogatório do arguido passou igualmente a ser obrigatório (cfr. art.º272.º).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 27: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

245

processo penal e da indicação e, se necessário, explicitação dos direitos e dosdeveres que essa qualidade lhe atribui.

A omissão ou a violação dessas formalidades implica que as declaraçõesprestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela(art.º 58.º).

A aquisição da qualidade de arguido determina a atribuição de um conjuntocomplexo de direitos e de deveres expressamente reconhecidos e enumeradosna lei (art.º 61.º), sem prejuízo da aplicação das medidas de coacção e garantiapatrimonial consideradas necessárias e adequadas e da efectivação das diligênciasde prova que pessoalmente o possam afectar.

Consagram-se os direitos de presença em actos processuais, de ser ouvidopelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que deva ser tomada decisão queo afecte, de silêncio sobre imputação de factos, de escolher ou de solicitar anomeação de defensor, de assistência de defensor, de intervenção no inquérito ena instrução oferecendo provas e requerendo diligências, de informação e derecurso.

Estabelecem-se deveres de comparência perante autoridades judiciáriase órgãos de polícia criminal, de responder com verdade sobre a identidade eantecedentes criminais e de sujeição a diligências de prova e medidas de coacçãoe garantia patrimonial.

O direito a defensor, essencial à integração de um dos componentes dobinómio acusação-defesa em que se analisa o sistema processual, de estruturaacusatória, é objecto de particular atenção.

O arguido tem direito a constituir advogado em qualquer altura de processo,que prevalece sempre sobre a nomeação de defensor, de preferência advogado,efectuada pelo tribunal nos casos em que é obrigatório.45

45A revisão do Código de 1998 veio reforçar a defesa técnica, por advogado (cfr. art.º 62.º).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 28: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

246

O defensor exerce legalmente os direitos que a lei reconhece ao arguido,salvo os que pessoalmente lhe forem reservados, podendo o arguido retirareficácia ao acto realizado em seu nome mediante declaração expressa anterior àdecisão sobre o acto.

O estatuto processual da defesa determina a obrigatoriedade de assistênciado defensor (art.º 61.º) nas fases preliminares do processo, no primeirointerrogatório judicial de arguido detido, no debate instrutório, em qualquer actoprocessual sempre que o arguido for surdo, mudo, analfabeto, desconhecedorda língua portuguesa, menor de 21 anos ou sempre que se suscitarem questõessobre a sua imputabilidade e ainda quando se proceder à produção antecipadade prova (declarações de testemunha para memória futura em caso de previsívelimpedimento por doença grave ou ausência no estrangeiro), podendo o tribunal,fora destes casos, nomear defensor em caso de necessidade ou de conveniênciade o arguido ser assistido.

9. Em matéria de provas, o Código estabelece um regime de conciliaçãoparticularmente exigente das finalidades do processo (e do inquérito em particular).Se, por um lado, se visa à máxima eficiência da investigação, por outro define-seum regime rigoroso de protecção de direitos fundamentais.46

O princípio da liberdade de prova sofre restrições típicas relativas aosmétodos de prova que se concretizam na definição dos regimes processuais dosmeios de prova e dos meios de obtenção de prova.

A lei processual estabelece uma regra geral de nulidade relativamente aprovas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridadefísica (art.º 126.º).

Consagrando um núcleo essencial relativamente ao qual não se admite apossibilidade de auto-restrição de direitos fundamentais, considera ofensivas daintegridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o

46Sobre o tema, cfr. COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, CoimbraEditora, 1992; e Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas, Revista Portuguesa deCiência Criminal, Ano 1, n.º 3, p.369.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 29: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

247

consentimento destas, mediante: perturbação da liberdade de vontade ou dedecisão por meio de maus-tratos, ofensas corporais, administração de meios dequalquer natureza, hipnose, ou utilização de meios cruéis ou enganosos;perturbação da capacidade de memória ou de avaliação; ameaça com medidalegalmente inadmissível ou com denegação ou consentimento da obtenção debenefício legalmente previsto; ou promessa de vantagem legalmente inadmissível.

São igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vidaprivada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, sem oconsentimento do respectivo titular.

Em conformidade com esses princípios, o Código estabelece regras elimites claros quanto a meios de obtenção de prova, tipificando procedimentos aobservar pelas polícias e pelas autoridades judiciárias sempre que a actividadede investigação revela possibilidade de restringir ou comprimir direitosfundamentais.

Esta preocupação é patente no que se refere a exames susceptíveis deofender o pudor das pessoas (art.º 172.º), que devem respeitar a dignidade e opudor e ser presididos pelo Ministério Público (art.º 172.º); a revistas e buscas,nomeadamente buscas em habitação, em escritório de advogado, em consultóriomédico ou em estabelecimento de saúde, dependentes, em regra, de autorização,ordem ou presença das autoridades judiciárias (art.º 174.º a 177.º); a apreensõesde objectos, de correspondência, em escritório de advogado, em consultóriomédico ou em estabelecimento bancário, dependentes de idênticos procedimento(art.º 178.º a 186.º); e a escutas telefônicas e intercepção das comunicações,sujeitas ao princípio da tipicidade – crimes puníveis com pena de prisão superiora 3 anos, relativos a tráfico de estupefacientes, a armas, a engenhos e matériasexplosivas e contrabando e a crimes de injúrias, ameaças, coacção ou intromissãoda vida privada, cometidos por meio de telefone –, e dependentes de ordem ouautorização do juiz de instrução (art.º 187.º).

10. Feita a abordagem sintética da estrutura do inquérito, do estatuto dossujeitos processuais, do conteúdo do inquérito e do regime relativo à produção

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 30: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

248

de prova, é tempo de centrar alguma atenção na fase de encerramento doinquérito, em que se evidenciam soluções de concepção inovatória que respeitaao tratamento processual da pequena criminalidade.

A ideia de celeridade processual47, erigida constitucionalmente em direitofundamental48, determinou a fixação de prazos para conclusão do inquérito quese pretendem realistas e que, portanto, devem ser cumpridos, em conciliaçãoeficaz das necessidades de exaustão de investigação e dos direitos da pessoaarguida, comprimidos pelo seu estatuto.49

Estabelece-se, assim, um regime de prazos máximos, em regra de 6 ou 8meses, conforme haja ou não arguidos presos ou sob obrigação de permanênciana habitação, a contar desde o momento em que o inquérito começa a corrercontra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido,cujo excesso motiva um incidente de aceleração processual a decidir peloProcurador-Geral da República, com adopção das medidas necessárias àconclusão urgente do inquérito e, eventualmente, das medidas correctivas degestão, de organização e de procedimentos que o caso impuser e, se for casodisso, de natureza disciplinar (art.º 109.º e 276.º).

Concluído o inquérito, compete ao Ministério Público, no exercício depoderes decisórios sobre a acção penal, vinculado a critérios estritos de legalidadee objectividade, proferir despacho de encerramento, arquivando o processo oudeduzindo acusação, ou, então, optando por soluções de tratamento informal,se reunidos os respectivos pressupostos legais.

O arquivamento do inquérito (art.º 277.º) e a formulação de acusação(art.º 283.°) correspondem às soluções formais tradicionais do sistema processual.

47Cfr. ANABELA NIMANDA RODRIGUES, La célérité de Ia Procédure Pénale au Portugal e sonexpénence, Revue Intemationale de Droit Penal - La Célérité de Ia Procédure Pénale, Syracuse(Italie), 11-14 septembre 1995 -, 66.e année, 3.e et 4.e trimestres 1995, Editions Érès, Toulouse,1996 - editada pela Associação Internacional de Direito Penal, p. 623-640.

48Cfr. art.º 32.º, n.º 2, da Constituição.

49Sobre a natureza ordenadora e disciplinar dos prazos de inquérito e consequências da sua não-observância, cfr. J. L. LOPES DA MOTA, Natureza e excesso dos prazos de inquérito, Revista doMinistério Público, Ano 120, n.º 48, outubro-dezembro de 1991, p. 169.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 31: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

249

O processo é arquivado se tiver sido recolhida prova de inexistência decrime, de o arguido o não ter praticado ou de não ser legalmente inadmissível oprocedimento (ilegitimidade do Ministério Público quanto a crimes cujoprocedimento depende de queixa ou de acusação particular, amnistia, morte doarguido ou prescrição).

O processo é igualmente arquivado se não tiver sido possível recolherindícios suficientes da verificação do crime e da identidade dos seus agentes.

O processo arquivado pode ser reaberto se surgirem novos elementos deprova que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento do MinistérioPúblico.

Se, porém, resultarem do inquérito indícios suficientes da prática do crimee dos seus agentes, ou seja, se da prova recolhida em inquérito resultar umamaior probabilidade de condenação que de absolvição (art.º 283.º, n.° 2), oMinistério Público deve deduzir acusação contra o arguido, fixando, deste modo,o objecto do processo50, isto é, os factos que o tribunal é chamado a decidir eque, salva a excepcional possibilidade de alteração em termos muito rigorosos elimitados51, definem os limites dos poderes de cognição do tribunal.

11.Como já se adiantou, o Código introduziu soluções inovadoras quepermitem decisões diversas, maximizando a conformação do processo ao espíritode reintegração que inspira o tratamento da pequena criminalidade. São elas:

a) A possibilidade de arquivamento do processo em caso de dispensa depena(art.º 280.º);

b) A suspensão provisória do processo (ou suspensão mediante injunçõese regras de conduta - art.º 281.º);

c) O processo sumaríssimo (art.ºs 392.º e segs.); e

50Sem prejuízo de, havendo lugar a instrução, os factos consignados no respectivo requerimentopassarem a integrar o objecto do processo.

51Cfr. o regime de alteração substancial dos factos (art.º 1.º, n.º 1, al. f, 358.º e 359.º).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 32: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

250

d) A faculdade de fixação, na acusação, do limite da pena em 5 anos, noscasos a que corresponde pena abstracta de limite superior (art.º 16.º, n.º 3).52

O Ministério Público pode ordenar o arquivamento do processo, com aconcordância do juiz de instrução, se estiverem presentes os pressupostos dedispensa de pena (art.º 280.º), ou seja, quando ao crime corresponder pena deprisão não superior a 6 meses e se a culpa do agente for diminuta, o dano tiversido reparado e à aplicação da medida não se opuserem exigências darecuperação do delinquente e de prevenção geral (art.º 74.º do Código Penal).

Essa faculdade é conferida igualmente ao juiz de instrução, com aconcordância do Ministério Público e do arguido, se já tiver sido deduzidaacusação.

Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos53 ou comsanção diferente da prisão, o Ministério Público, com a concordância do juiz deinstrução, pode decidir suspender o processo (art.º 281.º), pelo prazo máximode 2 anos, mediante a imposição de injunções e regras de conduta se houverconcordância do arguido e do assistente, se o arguido não tiver antecedentescriminais, se não houver lugar a medida de segurança de internamento, se aculpa for de carácter diminuto e se for de prever que o cumprimento das injunçõese regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção queno caso se façam sentir.

A lei prevê que possam ser oponíveis ao arguido as seguintes injunções eregras de conduta: indemnizar o lesado; dar ao lesado satisfação moral adequada;entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantiaem dinheiro; não exercer determinadas profissões; não frequentar certos meiose lugares, não residir em certos lugares ou regiões; não acompanhar, alojar oureceber certas pessoas; não ter em seu poder determinados objectos capazesde facilitar a prática do crime; qualquer outro comportamento exigido para ocaso, que não ofenda a dignidade do arguido.

52Este limite era de 3 anos, na versão originária do Código, tendo sido elevado para 5 anos com arevisão de 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 de agosto). Essa possibilidade foi alargada ao processo sumário,em 1998 (cfr. Art. 381.º, n.º 2).

53Antes da revisão de 1998 este limite era também de 3 anos.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 33: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

251

Para fiscalização e acompanhamento do cumprimento das injunções eregras de conduta, o juiz de instrução e o Ministério Público podem recorrer aosserviços de reinserção social, aos órgãos de polícia criminal e às autoridadesadministrativas.54

Se o arguido cumprir as injunções e as regras de conduta, o MinistérioPúblico arquiva o processo, no termo do prazo de suspensão, não podendo serreaberto; se as não cumprir, o processo prossegue, não podendo ser repetidasas prestações feitas.

Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 3 anos ou sócom pena de multa, o Ministério Público pode requerer a aplicação da pena poracordo com o arguido, em processo sumaríssimo (art.º 392.º)55, quando entenderque ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurançanão-privativas da liberdade.

Para conclusão do tema do encerramento do inquérito, resta uma referênciaaos casos em que, decidindo pela acusação, o Ministério Público tem a faculdadede intervir na fixação do limite máximo da pena aplicável ao caso concreto (art.º16.º, n.º 3).

54Até a revisão operada pela Lei n.º 59/98 previa-se apenas o recurso a serviços de reinserção social.

55O processo sumaríssimo foi objecto de profundas alterações por meio da Lei n.º 50/98, de 25 deagosto, que visaram a maximizar o consenso, de modo a poder criarem-se condições para dar expressãoa uma forma de processo que praticamente não vinha a ter aplicação e que poderá desempenhar umpapel muito importante no controlo das chamadas bagatelas penais. Alargou-se de 6 meses para 3anos a moldura abstracta da pena de prisão correspondente ao crime objecto do processo e alterou-seprofundamente o regime processual. Eliminou-se a audiência e criou-se um procedimento de notificaçãodo requerimento do Ministério Público ao arguido, sujeito à exigente regulamentação para efectivagarantia do direito de defesa, de modo a possibilitar um esclarecido exercício do direito de oposição àsanção proposta. Salvaguardou-se a jurisdicionalização da aplicação da sanção e maximizou-se oconsenso entre os sujeitos processuais, permitindo-se que, mesmo nos casos de consenso entre oMinistério Público e o arguido, o juiz, se discordar da sanção proposta, nomeadamente por a considerarinjusta ou desproporcionada, possa fixar sanção diversa da proposta pelo Ministério Público, com aconcordância deste. Devidamente salvaguardado está também o direito que o arguido tem de lhe nãoser “roubado o conflito”, já que, se este se opuser, o processo segue a forma comum. Neste caso, porrazões de racionalidade e aproveitamento dos actos, revertendo a favor da celeridade, o requerimentodo Ministério Público funciona como acusação (artigo 398.º).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 34: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

252

Trata-se de situações em que, em consideração às circunstâncias concretasrelativas ao facto e ao agente e por recurso aos critérios de direito substantivode determinação da pena, é possível fundadamente situar a pena em medida nãosuperior a 5 anos de prisão, embora a moldura penal, abstractamenteconsiderada, preveja um limite máximo superior.

Assim, a propósito da regulamentação da competência do tribunal singular,limitada em regra ao julgamento dos crimes puníveis com pena de prisão igual ouinferior a 5 anos, o Código prevê que o Ministério Público, uma vez verificado ocircunstancialismo descrito, possa fixar competência no tribunal singular parajulgamento de crimes que, tendo em atenção o limite abstracto máximo da pena,se incluiriam na competência do tribunal colectivo.

12. Referência especial merece a criação, em 199856, de uma novaforma de processo especial – o processo abreviado (artigo 391.º-A e segs.).

Limita-se a sua aplicação aos casos de crime punível com pena de prisãonão superior a 5 anos ou de crime punível com pena de multa, da competênciado tribunal singular, com o objectivo de uma rápida submissão do caso ajulgamento.

Trata-se de um procedimento caracterizado por uma substancial aceleraçãonas fases preliminares, mas em que se garante o formalismo próprio do julgamentoem processo comum, com ligeiras alterações de natureza formal justificadas pelapequena gravidade do crime e pelos pressupostos que o fundamentam.

O processo abreviado depende da verificação dos seguintes pressupostos:

a) Por um lado, da existência de provas simples e evidentes de que resultemindícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente– como sucede, por exemplo, nos casos de flagrante delito não julgados emprocesso sumário (crimes puníveis com pena superior a 3 anos de prisão e inferior

56Pela Lei nº 59/98, de 25 de agosto.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 35: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

253

a 5, que, em vez de darem lugar a inquérito, passarão, de imediato, à fase dejulgamento), de prova documental (v.g. crimes de emissão de cheque sem provisãoou de abuso de liberdade de imprensa) ou de confissão relevante (confissãoassociada a outros meios de prova); e

b) Por outro, da frescura da prova, traduzida na proximidade do factorelativamente à decisão de acusação (90 dias).

Na sua essência, esses pressupostos estavam já presentes no processosumário, característico do nosso sistema, justificando a imediata submissão docaso a julgamento, a partir da notícia do crime adquirida pela entidade policialem flagrante delito.

Trata-se, em síntese, de casos que passam imediatamente para a esferade decisão do juiz, concentrando-se, desta forma, o essencial do processo nasua fase crucial, que é o julgamento.

O procedimento é, porém, envolvido de particulares cautelas no que serefere às formalidades preliminares, em homenagem ao direito de defesa e aoprincípio de igualdade de armas na fase preparatória.57

Ainda com o objectivo de simplificação, permite-se que o MinistérioPúblico formule a acusação com remissão parcial, em matéria de identificaçãodo arguido e de narração dos factos, para o auto de notícia ou para a denúncia,sem, no entanto, estabelecer concessões no que se refere ao rigor da fixação doobjecto do processo.58

57 Estabelece-se, assim, a possibilidade de o arguido submeter o caso à comprovação judicial antes dojulgamento e de, em debate instrutório (com eventual realização de actos de instrução), contrariara decisão de acusação do Ministério Público. Neste caso, caberá ao juiz de instrução apreciar aexistência de indícios suficientes em ordem a submeter o caso a julgamento – o que está em causanão é, nesta fase, a averiguação da “simplicidade” ou da “evidência” das provas, mas a suficiênciade indícios, ou seja, o fundamento da acusação –, num critério de exigência aferido em função daprobabilidade de ao arguido poder ser aplicada uma pena.

58 Sem tocar os direitos da defesa, esta forma de processo possui potencialidades para imprimir umaconsiderável aceleração do processamento da criminalidade menos grave, que, de acordo com osdados estatísticos disponíveis, representa cerca de 85% dos casos submetidos a julgamento.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 36: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

254

13. Sendo o inquérito inquisitório e secreto, resta abordar a questão desaber por que forma pode ser exercido o contraditório nas fases preliminares59,isto é, como controlar e discutir processualmente, nesta fase, os fundamentos dadecisão do Ministério Público de acusação ou de arquivamento.

O actual modelo processual resolve a questão introduzindo no processouma fase facultativa, entre a fase de inquérito e a fase de julgamento – a instrução –,que visa à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivaro inquérito em ordem a submeter ou não o caso a julgamento (art.º 286.º CPP).

Não sendo requerida instrução, o Código prevê ainda o funcionamentode procedimentos de controlo interno do Ministério Público, estabelecendo queo imediato superior hierárquico do magistrado que proferiu a decisão,reapreciando os fundamentos do arquivamento, pode determinar que sejaformulada acusação ou que as indicações prossigam, indicando, neste caso, asdiligências a efectuar e o prazo para a sua realização (art.º 278.º CPP).

Na estrutura do Código, a instrução constitui o momento processualpróprio para submeter a decisão final do Ministério Público a controlo judicial.

A instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos objectode acusação contra si deduzida, ou pelo assistente, quando o Ministério Públiconão acuse.

É dirigida pelo juiz de instrução, assistido pelos órgãos de polícia criminalagindo na sua dependência funcional, e constituída, obrigatoriamente, no mínimo,por um debate instrutório, que visa a permitir uma discussão oral e contraditóriaperante o juiz sobre se, no decurso do inquérito e da instrução, resultam indíciossuficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.

Vigorando, também aqui, o princípio da investigação, o juiz deve ordenara realização dos actos que entender por convenientes e levando em conta asindicações dos actos que constem do requerimento para abertura da instrução.

59De notar que apenas o debate instrutório tem natureza contraditória (cfr. art.º 289.º e 302.º do CPP).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 37: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

255

São admitidas todas as provas não proibidas por lei, não devendo, emregra, serem repetidos os actos de inquérito, salvo se não tiverem sido observadasas formalidades legais ou quando a repetição se revelar indispensável à realizaçãodas finalidades da instrução.

A instrução deve ser encerrada, em regra, no prazo máximo de 2 meses,se houver arguidos presos, ou de 4 meses, se os não houver. Tal como sucedena fase de inquérito, o excesso do prazo é fundamento para dedução do incidentede aceleração processual, a decidir pelo Conselho Superior de Magistratura,que pode ordenar as medidas convenientes para a rápida conclusão da instrução.

Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia oude não-pronúncia, que deve ser lido imediatamente ou no prazo máximo de 5dias, atenta à complexidade da causa.

Proferido despacho de pronúncia, o processo é remetido ao tribunalcompetente para o julgamento.

Não tendo havido instrução, o processo com acusação do MinistérioPúblico é igualmente remetido ao tribunal competente para julgamento, mas,neste caso, o juiz presidente do tribunal pode ainda rejeitar a acusação, se aconsiderar manifestamente infundada.

E, com esses actos, se encerram as denominadas fases preliminares doprocesso, para se passar à fase seguinte – a do julgamento.

De notar que, em obediência aos princípios da acusação e daimparcialidade do juiz, não cabe ao juiz do julgamento, em caso algum, apreciardos indícios recolhidos nas fases preliminares, ou seja, dos fundamentos dadecisão de acusar.60

60Este aspecto foi objecto de particular atenção na revisão operada pela Lei n.º 59/98, eliminando-seas dúvidas que pudessem subsistir a este propósito (cfr., designadamente, a nova redacção do artigo311.º). Essa alteração determinou, nomeadamente, a caducidade do acórdão do STJ de 17.02.93, parafixação de jurisprudência, do seguinte teor: “A alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de ProcessoPenal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária” (Boletim doMinistério da Justiça n.º 424, 1993, p. 73).

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 38: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

256

14.Concluindo, é altura de apresentar alguns dados ilustrativos da aplicaçãodo novo Código de Processo Penal (CPP).

A entrada em vigor de um diploma com a extensão, a complexidade ecaracterísticas de novidade do novo CPP gerou, inevitavelmente, naturaisdificuldades de assimilação, penetração e adaptação de estruturas, organização,métodos e procedimentos das entidades encarregadas da sua aplicação.

Em geral, e exceptuados casos isolados de menor compreensão das novasregras, pode dizer-se que não se revelaram dificuldades significativas dearticulação dos órgãos encarregados da investigação e, quando detectadas, foipossível a sua superação em clima de cooperação, confiança e respeito pelosdiversos papéis processuais.

O acompanhamento da experiência de aplicação do Código permitiuintroduzir os afinamentos e alterações necessárias à realização das expectativase finalidades da reforma de 1987. Esse objectivo foi particularmente prosseguidopor meio da revisão de 1998, levada a efeito pela Lei n.º 59/98, de 25 deagosto, sendo os resultados da sua aplicação, em pouco mais de 1 ano de vigência,nitidamente favoráveis.61

Os dados estatísticos recolhidos evidenciam algumas realidades sugestivas.

Tomando por base os dados mais recentes62, surpreende-se um elevadograu de conformação com os resultados do inquérito, sendo reduzidos os casosde abertura de instrução (cerca de 4% do total dos inquéritos findos).

Ao requerimento do arguido, os valores relativos de frequência da instruçãocorrespondem a cerca de 17% dos casos em que o Ministério Público deduziuacusação. Nestes casos, a decisão do Ministério Público foi judicialmenteconfirmada na sua maioria (60%).

61Como se pode verificar, pela análise dos dados provisórios disponíveis relativos a 1999, a linhaascendente e constante de pendências, que parecia irreversivelmente consolidada ao longo das últimasduas décadas (o número de processos findos em cada ano era sempre inferior ao número de entrados),sofreu uma quebra evidente, em 1999, confirmando-se a realidade registada em 1998 e invertendo-seaquela tendência. Apesar de o número de entradas ter sido superior ao de 1998 (+7511 processos;entradas em 1998: 402.667 processos) o número de pendências em 31 de dezembro de 1999 sofreuuma diminuição significativa, de 11% (havia 228.875 processos pendentes em 31.12.98, número quedesceu para 204.834 em 31.12.99).

62Cfr. Relatório Anual dos Serviços do Ministério Público, edição da Procuradoria-Geral da República,maio de 2000.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.

Page 39: A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL …eficiência e do estatuto do arguido ... Direito Processual Penal, Primeiro volume ... conaturais alterações de fundo foram introduzidas

257

Os valores da instrução requerida pelo assistente representaram, por seulado, percentagens insignificantes do número dos processos em que o MinistérioPúblico proferiu despacho de arquivamento (aproximadamente 1,2%). Cercade 40% desses casos vieram a ser objecto de despacho de pronúncia, suprindo-sea insuficiência da prova do inquérito para acusar.

O uso pelo Ministério Público da faculdade de requerer o julgamento portribunal singular de crimes abstractamente puníveis com pena superior a 5 anos,originariamente da competência do tribunal colectivo, tem obtido algumaexpressão na administração do sistema. Representando cerca de 6% do númerode acusações, esta medida possibilitou uma redução de cerca de 20% dos casossubmetidos a julgamento pelo tribunal colectivo e um acréscimo de apenas 6%dos processos do tribunal singular.

Os processos em que o Ministério Público usou desta faculdaderespeitaram, na sua maioria, a crimes de furto qualificado63 e levaram em contaos pequenos valores do furto e as circunstâncias de relevo relativas ao agente.

A suspensão provisória do processo tem constituído autêntico laboratóriodas soluções do novo Código relativas ao tratamento consensual da pequenacriminalidade.

A experiência demonstra tratar-se de uma solução em expansão, embora,por enquanto, de reduzida expressão estatística (representando cerca de 1,5%dos processos acusados pelo Ministério Público), mas com resultados concretosde sucesso no controlo de fenômenos localizados de pequena criminalidadeassociada sobretudo a furtos, ao consumo de estupefacientes e a crimes deofensas corporais voluntárias sem gravidade.

Entre as injunções e as regras de conduta impostas ao arguido, por prazosque se têm, em média, situado em 6 meses, destacam-se a entrega de quantiasem dinheiro a instituições de solidariedade social e ao Estado e a indemnizaçãoe a reparação moral da vítima, associadas à obrigação de se abster dedeterminadas condutas.

63Punidos com penas de prisão de 2 a 8 anos, após a revisão do Código Penal de 1995 - cfr. art.º 204.ºdeste diploma.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.