A Felicidade Conjugal Tolstoi

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trs novelas

LEO TOISTOI

A MORTE DE IV ILITCH SONATA A KREUTZER A FELICIDADE CONJUGAL

Traduo do russo prefcio de

Boris SchnaidermanIlustraes de HERBERT HORN

Pea este livro pelo nmero 1204

EDIES DE OURO

PrefcioJ se afirmou mais de uma vez que a obra tolstoiana em grande parte autobiogrfica, e que os seus personagens so frequentemente projeo da personalidade do autor. Tal assero parece, primeira vista, arbitrria, mas, examinando-se mais detidamente o problema, pode-se comprovar-lhe a justeza. Com exceo das obras puramente autobiogrficas e de argumentao pessoal, essa projeo a personalidade do autor no se faz com um carter direto e imediato, a transposio e elaborao esttica imprimem a esses personagens uma grande variedade, mas

eles so sempre os representantes de determinadas concepes que preocupavam Tolsti, chegando muitas vezes a verdadeira obsesso. Neste sentido, o vasto mundo tolstoiano constitui, numa escala maior que no caso de outros escritores, um reflexo aos seus profundos dramas morais, e a complexidade da resultante o produto de uma elaborao artstica,, a partir de um ncleo de ideias bastante singelo. Isto evidencia-se particularmente nas suas novelas. No conto curto, muitas vezes, a necessidade de expor didticamen-te uma ideia, em forma de relato, liem como a apresentao alegrica, diminuem o impacto da preocupao moral. No romance, uma fabulao mais complexa, a apresentao de vastos panoramas, o emaranhado da trama, a riqueza de elementos acessrios admiravelmente elaborados, chegam tambm a afastar o autor da exposio dramtica de um caso de conscincia. Por conseguinte, nas novelas que essa caracterstica da obra tolstoiana, o remoer contnuo de casos de conscincia, apresenta-se em sua forma pura e candente, e encontra a sua mxima realizao esttica. Trs novelas de Tolsti foram, reunidas no presente volume. Poderia-mos ter escolhido outras, sem deixar de apresentar a mesma caracterstica. Neste sentido, so numerosas as combinaes possveis. A primeira, A Felicidade Conjugal, foi escrita em 1859, as outras em 1884-86 e 1887-89, respectivamente. E, no caso, a cronologia marca o desenvolvimento de uma crise. A primeira novela bem anterior ao Aprofundo drama de conscincia sofrido por Tolsti, aps o qual formularia, o seu sistema tico-filosfico-religioso. Ela precedeu at o perodo da. sua intensssima preocupao com os problemas pedaggicos. muitas vezes considerada tpica de uma viso idlica da vida, de uma exaltao da assistncia simples, da felicidade familiar. Mas. ser plenamente idlica esta viso? Os problemas que a aparecem, os dramas interiores esboados, embora ainda longe das profundas tragdias ne Tolsti expressaria mais tarde, illfii-iiltam. um pouco a sua definio como obra apenas buclica. E verdade que o prprio autor referiu-se a esta novela, pouco aps a sua impresso, como uma baixeza vergonhosa-, mas ela pode ser alinhada ao lado de outras obras suas do mesmo perodo. Algumas revelam maior preocupao com determinados problemas sociais e filosficos. No entanto, o acento peculiar de A Felicidade Conjugal, e que lhe imprime um carter especifico, o contraste entre uma apresentao potica da vida, no campo russo, da existncia cotidiana de uma famlia da nobreza rural, e o que havia de dramtico na situao social. O fato de que esta situao aparea apenas esboada no diminui o alcance literrio da novela. Outras apresentaram o problema de modo mais drstico e numa exposio mais didtica. E esta novela talvez seja uma das partes da obra tolstoiana que mais se aproximam daquilo que o prprio autor definiria em suas patticas confisses como um ideal de simplesmente viver bem com a respectiva famlia, e que ele se censuraria atrozmente. Mas, no estar nessa definio um dos exemplos extremados da. tpica auto-flagelao tolstoiana? Mesmo nas suas obras em que a preocupao moral e moralizante menos aparente, ela subsiste, constituindo muitas vezes o prprio ncleo inicial. Quanto t A Morte de Iv Ilitch, como seu carter de meditao profunda sobre a morte, com o seu contraste entre a hipocrisia do meio em que vivia o personagem e a sua tragdia, com a impecvel realizao literria, uma dessas obras que convidam venerao. Aps a sua leitura, compreende-se melhor o crtico russo V. V. Stassov, que afirmava perder toda vontade de escrever, depois de ter lido pela centsima-quinqua-gsima vez certas pginas de Tolsti. Com a Sonata a Kreutzer, chega-se a um dos pontos culminantes da tragdia interior do autor. No importa que seja difcil, virtualmente impossvel, aceitar a argumentao anticientifica do personagem central, expresso de um purita-nismo feroz em matria de sexo. A veemncia do drama humano que ali se narra d um acento convincente a concepes que, em s conscincia, impossvel subscrever hoje em dia, embora certas passagens revelam uma sagacidade extraordinria na abordagem do tema, a caracterstica lucidez tolstoiana. O prprio escritor arrepender-se-ia, depois de publicada a novela, de algumas das suas formulaes. Segundo narra o seu filho Sierguii Tolsti, no livro pstumo Crnicas do Passado (tchercki Bilovo, Editora Estatal de Belas Letras, Moscou, 1955), aps a publicao da novela, o autor mudou de opinio sobre a sensualidade que apontara na sonata de Beethoven, e disse ento que a msica no podia expressar determinado : -. itimento, mas sentimentos em geral, e que a melodia por ele citada expressava um sentimento intenso e ntido, mas impossvel de definir. Que importa, porm, tudo isto? Diante da realizao estupenda da novela, da veemncia do drama interior nela expresso, o ncleo inicial pode ter estes ou aqueles defeitos, mas eles no invalidam em nada a obra. Criado o clima interior, ela passa a ter a sua verdade especfica, a verdade suprema da criao artstica. E a fico de Tolsti constitui um testemunho magnfico da realidade e vwncia da obra literria, quaisquer que sejam as restri es ao seu contedo. As ideias expressas pelo autor esto superadas, no convencem? No importa. Os tipos que ele criou, as situaes de conflito, os dramas profundos esto a, mais convincentes do que quaisquer transposies diretas e fiis da realidade objetiva.o o o

Tolsti elaborou um estilo em contnua evoluo, indo da opulncia ao despojamento, e da simplicidade autntica ao aproveitamento das riquezas do linguajar do povo. Enfim, um estilo estudado e marcado pela experimentao, reflexo de um temperamento tipicamente requintado e que na prpria simplicidade conseguia encontrar uma forma de requinte. O tumultuar do seu mundo interior, na primeira fase de criao artstica, encontrou expresso numa forma rica de matizes, malevel, prpria para expressar tanto os estados ntimos como o deslumbramento com a natureza. Este fato patenteia-se particularmente na primeira das novelas includas neste volume. Alguns crticos j apontaram a semelhana entre ela e algumas obras de Turguiniev. A comparao tem realmente fundamento, pois Turguiniev levaria ao mximo as possibilidades de expresso da lngua russa, na arte de reproduzir a vida no campo, a natureza de seu pas. Mas, em algumas novelas e romances, Tolsti alcana o mesmo efeito, embora tambm chegue bem mais longe no trato do humano, Depois de atravessar a sua grande crise, ele passaria a advogar a necessidade de um estilo simples, direto, expresso de uma arte essencialmente didtica. O escritor, na sua Opi nio, devia aprender com o povo a sua simplicidade e sabedoria, o que seria 'bem mais importante que muitas obras de Pshkin, de Shakespeare, etc. Os contos populares tolstoianos constituem a melhor demonstrao prtica das suas formulaes tericas. Escritos com um propsito moralizante declarado, eles narram, geralmente em forma de parbola ou de aplogo oriental, uma histria singela, com uma economia extrema dos meios ex pressivos. A sua simplicidade e nitidez tornaram-nos at material quase obrigatrio nos livros de leitura do curso primrio na Rssia e nos manuais de lngua russa para estrangeiros. No entanto, preciso observar: a par desse

espojamento, h certo requinte no uso que Tolsti faz de alguns vocbulos . construes sintticas populares. Eles constituem exemplo fl grante da transformao do que banal e cotidian na lin* guagem coloquial em algo elaborado e altamente artstico, quando empregado por um grande escritor. Com todo o seu didatismo, Tolsti, ao escrever, tem plena conscincia dos va-lor\es quer musicais, quer de sugesto, de cada vocbulo, de cada locuo, e assim o seu estilo, que, segundo D. S. Mirsky (A History of Russian Literatura From Its Beginnings to 1900, Vintage Boks, 1958), o melhor exemplo (depois da prosa epistolar de Griboiedov e de Pshkin) do russo falado pela nobreza, a par de um espojamento, de uma simplificao, ganha um novo requinte, baseado no linguajar do povo. Ao contar as suas historietas, o velho voluptuoso no podia deixar de dar vazo a uma sensualidade vocabular e sinttica, -mesmo atravs da aparente indigncia dos meios de expresso. JS, depois de passar por esta prova, todo o seu estilo literrio ganhou ainda maior conciso e harmonia, que se revelam plenamente nas obras menos populares que ento escreveu, como A Morte de Iv Ilitch, Sonata a Kreutzer e outras. A primeira, certamente um dos pontos mximos atingidos pela novelstica mundial, constitui campo muito fecundo para a especulao literria. Um dos seus aspectos mais originais, em relao ao conjunto, consista sem- dvida no seguinte: a obra de Tolsti est completamente impregnada pla sua tendncia didtica, pela, sua crtica das condies da sociedade vigente, em nome de um ideal tico e filosfico; colocando diante do leitor o problema da morte, o autor ainda acena, no final desta novela, com uma sugesto mstica; mas, ao descrever a vacuidade da existncia cotidiana das camadas abastadas ou quase abastadas da sociedade, ele usa de ironia, afastando-se bastante ao pregdor e doutrinrio, para se acercar muito mais de uma exposio mordaz, quase ctica. E, nestas passagens, circunstncia que nos parece muito curiosa, ele aproxima-se dos grandes ironistas da literatura, inclusive Machado de Assis. Isolemos, por exemplo, o seguinte trecho: Esta aproximao no tom geral e at, em certa medida, na construo literria no anula, verdade, a distncia que medeia entre o iluminado, o pregador, e o observador malicioso das fraquezas humanas. Esta distncia aparece de modo flagrante sobretudo na parte final da novela, quando o moribundo Iv Ilitch encontra conforto na ajuda que lhe presta o criado Guerssim te, por fim, avista a luz, esta luz sem a qual Tolsti no poderia abordar o tema da morte. No entanto, no deixa de ser interessante esta coincidncia nos processos literrios. Terreno igualmente fecundo o que se pisa na .Sonata a Kreutzeru*. Desenvolvendo-se como um monlogo do personagem central, ela apresenta um contraste ntido entre o estado de exasperao, de alucinao do personayem, e a forma lcida, estritamente lgica, segundo a qual foi construda a novela. Isto, alis, est de todo coerente com a observao de Tolsti, contida no texto, sobre a plena lucidez com. que o seu personagem praticou o crime, a grande lucidez dos que se afastam do que se considera normal e cotidian. Compare-se, por exemplo, esta nitidez estilstica e de estrutura da novela com o estilo quase arrevesado, a /ala por vezes desconexa, deste outro grande alucinado da literatura, o para-doxalista que Dostoivski apresentou nas Memrias do Subsolo. Enfim, h um mundo de sugestes nessas trs novelas de Tolsti. Mas, num prembulo, pode-se apenas aflorar o tema. O mais cabe ao leitor.BORIS SCHNAIDERMAN

A FELICIDADE CONJUGAL

A FELICIDADE CONJUGALPRIMEIRA PARTE I ESTVAMOS de luto por nossa me, que morrera no *^ outono, e eu passei todo o inverno no campo, a ss com Ktia e Snia . Ktia era velha amiga da casa, governanta que nos criara a todos, e que eu amava e de quem me lembrava desde os meus primeiros anos. Snia era a minha irm menor. Passamos um inverno sombrio e triste em nossa velha casa de Pokrvskoie. Fazia um tempo frio, de vento, e os montes de neve aglomeravam-se mais alto que as janelas; estas geralmente ficavam geladas e foscas, .e passamos quase todo o inverno sem ir a nenhuma parte. Raramente algum nos visitava; e mesmo os que vinham no acrescentavam alegria a nossa casa. Todos tinham rostos tristes, todos falavam baixo, como que temendo Acordar algum, no riam, suspiravam e choravam amide, olhando-me e sobretudo pequena Ktia, com seu vesti-dinho preto. Parecia-se sentir ainda a morte naquela casa; a tristeza e o horror da morte pairavam no ar. O quarto de nossa me estava trancado, eu sentia medo, e algo impelia-me a espiar pnra aquele quarto frio e vazio, quando eu passava por ele, antes de me deitar. Tinha ento dezessete anos, e, no prprio ano de sua morte, minha me quisera mudar-se para a cidade, a fim de me introduzir na sociedade. A perda de mame foi para mim um grande desgosto, mas devo confessar que esse desgosto fazia-me sentir tambm que eu era jovem, bonita, como todos me diziam, e que j estava passando inutilmente o segundo inverno, isolada na roa. Antes de acabar o inverno, este sentimento de angstia, solido e simplesmente de fastio, cresceu a tal ponto que eu no deixava mais o quarto, no abria o piano e no pegava um livro sequer. Quando Ktia procurava convencer-me a ocupar-me disso ou daquilo, eu respondia: no quero, no posso, e em meu ntimo algo dizia: para qu? Para que fazer alguma coisa, quando o meu tempo melhor se perde assim em vo? Para qu? E no havia outra resposta a este para qu a no ser as lgrimas. Diziam-me que eu emagrecera e ficara mais feia nesse tempo, mas isto nem me despertava a ateno. Para qu? Para quem? Tinha a impresso de que toda a minha vida devia passar nesta solido, neste canto perdido, nesta angstia impotente, da qual eu mesma no tinha fora nem vontade de sair. Por volta do fim do inverno, Ktia comeou a temer pela minha sade e resolveu levar-me a todo custo para o estrangeiro. Mas, para isto, precisava-se de dinheiro, e ns quase no sabamos o que nos ficara aps a morte de nossa me, e todos os dias espervamos o tutor, que devia chegar e verificar a nossa situao financeira. O tutor chegou em maro. - Bem, graas a Deus! -- disse-me Ktia de uma feita em que eu andava de um canto a outro, como uma sombra, sem uma ocupao, sem um pensamento, sem um desejo Sierguii Mikhilitch (2) chegou, mandou saber de nossa sade e quis vir jantar conosco. Venha a si, minha Mchetchka (3) - acrescentou seno, o que vai pensar de voc? Ele gostava tanto de vocs todos.(2) (3) Corruptela de Mikhilovitch. N. do T. Diminutivo de Maria. N. do T.

Sierguii Mikhilitch era nosso vizinho prximo e amigo de meu falecido pai, embora muito mais moo que este. Alm de que a vinda dele alterava os nossos planos e dava a possibilidade de deixar a roa, eu me acostumara desde criana a am-lo e respeit-lo, e, ao aconselhar-me a vir a mim, Ktia adivinhara que, de todos os conhecidos, era diante de Sierguii Mikhilitch que eu mais sofreria por me apresentar sob um aspecto desfavorvel. Alm de eu gostar dele por hbito, a exemplo de todos em casa, a comear por Ktia e Snia, suas afilhadas, at o ltimo dos cocheiros, a sua pessoa tinha para mim uma importncia especial, devido a certas palavras ditas

por minha me na minha presena. Ela dissera que gostaria de um marido assim para mim. Isto me parecera ento surpreendente e at desagradvel; o meu heri era de todo diferente: magro, descarnado, plido e tristonho. E Sierguii Mikhilitch era um homem j entrado em anos, alto, corpulento e, como me parecia, sempre alegre; mas, embora essas palavras de minha me ficassem gravadas em minha imaginao, ainda seis anos atrs, quando eu tinha onze anos e ele tratava-me por tu, brincava comigo e chamava-me de menina-violeta, no era sem temor que eu s vezes perguntava a mim mesma o que faria se ele de repente quisesse casar comigo. Sierguii Mikhilitch chegou antes do jantar, ao qual Ktia acrescentara doces, creme e molho de espinafre. Eu vi pela janela como ele se aproximou de nossa casa num tren pequeno, mas, apenas dobrou a esquina, dirigi-me s pressas para a sala de visitas e quis fingir que de modo algum o esperava. Mas, ouvindo na ante-sala um bater de ps, a sua voz sonora e os passos de Ktia, no me contive e fui ao seu encontro. Segurando a mo de Ktia, ele falava alto e sorria. Vendo-me, interrompeu-se e passou algum tempo olhando para mim, sem me cumprimentar. Fiquei encabulada e senti que enrubescia. Ah! Ser possvel que voc? disse ele com a sua maneira decidida e singela, abrindo os braos e apro ximando-se de mim. Como possvel mudar assim?! Como cresceu! Isto que violeta! Tornou-se na realidade uma roseira. Com a sua grande mo segurou a minha e apertou-a com fora, honestamente, quase provocando dor. Eu pensei que fosse beijar-me a mo, e cheguei a inclinar-me para ele, mas apertou-a mais uma vez e, com olhar firme e alegre, fitou-me bem nos olhos. Fazia seis anos que eu no o via. Mudara muito; envelhecera, escurecera e cobrira-se com umas suas, o que no lhe ia nada bem; mas as suas maneiras singelas eram sempre as mesmas, tinha o mesmo rosto franco, honesto, de traos grados, os olhos inteligentes e brilhantes, o sorriso carinhoso, como que infantil. Cinco minutos depois, deixara de ser visita, tornando-se uma pessoa de casa para todos ns, inclusive para os criados, que, a julgar pela presteza em servi-lo, alegravam-se particularmente com a sua vinda. Comportava-se de maneira completamente diversa dos vizinhos, que nos visitaram aps a morte de minha me e que julgavam necessrio calar-se e chorar, enquanto permaneciam em nossa casa; pelo contrrio, ele estava falador, alegre, e no se referia sequer a minha me, de modo que a princpio esta indiferena me pareceu estranha e at inconveniente da parte de uma pessoa to chegada. Mas depois eu compreendi que no era indiferena, mas sinceridade, e fiquei grata por esta. noitinha, Ktia sentou-se para servir o ch, no seu lugar de sempre, na sala de visitas, como fazia enquanto mame era viva; Snia e .eu sentamo-nos perto dela; o velho Grigri trouxe para ele um cachimbo que pertencera a meu pai e que se conseguiu encontrar, e, como outrora, ele se ps a caminhar pela sala. Quantas mudanas tremendas nesta casa, quando se pensa! disse ele parando. 18

Sim replicou Ktia com um suspiro e, cobrindo o samovar com a tampa pequena, olhou para ele, pronta a romper em pranto. Penso que se lembra do seu pai ? dirigiu-se ele a mim. Pouco respondi. - E como estaria agora bem com ele! disse quieto e pensativo, olhando-me a cabea, acima dos meus olhos. - Eu gostava muito do seu pai! acrescentou ainda mais baixo, e eu tive a impresso de que os seus olhos brilharam. E Deus tomou-a para si! disse Ktia e, no mesmo instante, ps o guardanapo sobre a chaleira, apanhou um leno e ps-se a chorar. Sim, h mudanas tremendas nesta casa repetiu ele, virando o rosto. Snia, mostre-me os seus brinquedos acrescentou depois de algum tempo e foi para o salo. Quando ele saiu, olhei para Ktia, os olhos repletos de lgrimas. - um amigo to bom! disse ela. E realmente senti algo bom e tpido em consequncia do interesse manifestado por esse homem estranho e bondoso.

Ouviram-se da sala de visitas o pipilar de Snia e o rebulio que ele fazia brincando com a menina. Mandei-lhe ch; e ouviu-se ainda como ele se sentou ao piano e ps-se a bater nas teclas com as mozinhas de Snia. Maria Alieksndrovna! ressoou a voz dele. Venha c, toque alguma coisa. Agradava-me o fato de que ele se dirigisse a mim com tamanha simplicidade e de maneira amistosa e autoritria; levantei-me e aproximei-me dele. Toque isto disse, abrindo um caderno de msica, com o adgio da sonata quasi una fantasia, de Beethoven. Vejamos como toca acrescentou e afastou-se com o seu copo para um canto da sala. No sei por qu, senti ser impossvel para mim, na sua companhia, recusar e dizer circunlquios, no sentido de que eu tocava mal; sentei-me submissa ao teclado e comecei a tocar como sabia, embora temesse o julgamento, sabendo que ele compreendia e amava a msica. O adgio estava no tom daquele sentimento de recordao despertado pela conversa mesa de ch, e parece-me que toquei razoavelmente. Mas ele no me deixou executar o scherzo. "No, voc toca isto mal disse, acercando-se de mim deixe isto, mas o primeiro no estava ruim. Parece-me que compreende a msica." Este elogio discreto alegrou-me tanto que at corei. Era muito novo e agradvel para mim o fato de que ele, amigo e igual de meu pai, falasse comigo a ss, com seriedade, e no como se fala com uma criana, como fizera antes. Ktia foi para cima, a fim de deitar Snia para dormir, e ns dois ficamos na sala. Ele me falou de meu pai, de como se conheceram e de como viveram alegres no tempo em que eu ainda ficava sentada com os meus livros e brinquedos; e, atravs do seu relato, meu pai me aparecia pela primeira vez como uma pessoa simples e simptica, como eu no o conhecera at ento. Interrogou-me tambm sobre os meus gostos, o que lia, o que pretendia fazer, e deu-me conselhos. Agora, ele era j para mim no algum brincalho e alegre, que me provocava e fazia gracejos, mas um homem srio, singelo, capaz de amor, e por quem eu sentia involuntariamente respeito e simpatia. Sentia certa leveza, era agradvel, e ao mesmo tempo eu tinha, ao falar com ele, contra a minha vontade, um sentimento forado. Eu temia cada uma das minhas palavras; tinha muita vontade de merecer eu mesma o seu amor, que j conseguira unicamente pelo fato de ser filha de meu pai. Tendo deitado Snia, Ktia juntou-se a ns e queixou-se a ele da minha apatia, sobre a qual eu no dissera nada. - Ela deixou de me contar o principal disse ele, sorrindo e acenando para mim a cabea, numa censura. Contar o qu ?! disse eu Isto muito cacete, e vai passar. (Tinha realmente a impresso de que no s a minha angstia haveria de passar, mas que j passara e at no existira nunca.) - ruim no saber suportar a solido disse ele. Voc no j uma mocinha? Claro que sim respondi rindo. - uma mocinha m, que vive s enquanto a admiram, e apenas ficou sozinha, deixou-se abater e nada lhe agrada; tudo para exibir, nada para si mesma. Bonita opinio tem a meu respeito disse eu, apenas para no ficar calada. - No! retrucou ele, depois de um curto silncio No toa que se parece com o seu pai, em voc existe algo e o seu olhar bondoso, atento, tornou a lisonjear-me e perturbou-me agradavelmente. Somente ento notei, por trs do seu rosto alegre primeira vista, este olhar que era o nico a possuir: a princpio claro, depois cada vez mais concentrado e um tanto tristonho. Voc no pode, no deve aborrecer-se disse ele tem a msica que voc compreende, os livros, o estudo, a vida inteira pela frente, para a qual agora que pode preparar -se, para no se lamentar mais tarde. Daqui a um ano, j ser tarde. Falou comigo como um pai ou um tio, e eu senti que ele continuamente se controlava, para ficar no meu nvel. Era ofensivo, porque ele me considerava inferior a si, e agradvel, porque somente por minha causa ele considerava necessrio esforar-se em ser outro.

Aquela noite, passou o resto do tempo tratando de negcios com Ktia. - Bem, adeus, queridas amigas disse ele por fim, levantando-se, acercando-se de mim e tomando-me a mo. Quando nos veremos de novo? perguntou Ktia

Na primavera respondeu ele, continuando a segurar-me a mo irei a Danlovka (a outra aldeia que possuamos), verificarei l as coisas, vou pr em ordem o que puder, darei um pulo a Moscou, desta vez por causa dos meus negcios, e vamos encontrar-nos novamente no vero. Mas, por que tanto tempo? disse eu com profunda tristeza: realmente j esperava v-lo todos 03 dias, e de repente tive tanta pena e medo de que voltasse a minha angstia. Provavelmente, isto se refletiu em meu olhar e no tom da voz. Sim; ocupe-se mais, no desanime disse ele, num tom que me pareceu demasiado frio e singelo. na primavera, vou fazer-lhe um exame acrescentou, soltando-me a mo e sem me olhar. Na ante-sala onde paramos acompanhando-o, ele se apressou, vestindo a pelica, e tornou a percorrer-me com o olhar. "Ele esfora-se em vo! pensei. Acreditar realmente ser to agradvel para mim que ele me olhe? uma pessoa de bem, muito bom mesmo... mas no passa disso." Todavia, essa noite, Ktia e eu passamos muito tempo sem poder adormecer, falando no dele, mas de como haveramos de passar aquele vero e como viveramos no inverno. A terrvel pergunta: para qu? no se apresentava mais a mim. Parecia-me, com muita simplicidade e nitidez, que era preciso viver a fim de ser feliz, e aparecia-me muita felicidade no futuro. Era como se de repente a nossa velha e sombria casa de Pokrvskoie se tivesse enchido de vida e luz. II No entretanto, chegou a primavera. A minha angstia primeira passou, sendo substituda pela angstia dos devaneios primaveris, a angstia dos desejos e esperanas incompreensveis. Embora eu no vivesse como no incio do inverno e me ocupasse com Snia, com a msica, com u leitura,, saa frequentemente para o jardim e passava muito, muito tempo a vaguear sozinha pela alameda ou ficava sentada sobre um banco, pensativa, desejando e rpcrando Deus sabe o qu. s vezes, eu passava noites a Cio, .sobretudo se fazia luar, sentada at o amanhecer janela do meu quarto, e, de quando em quando, s escon-didfiH de Ktia, soberba apenas com um casaquinho, saa lira o jardim e corria sobre o cho orvalhado at o aude; de- uma feita, cheguei a ir de noite para o campo e dar M/.inha a volta a todo o jardim. Atualmente, difcil lembrar e compreender os sonhos que me enchiam ento a imaginao. Mesmo quando o,s lembro, no consigo acreditar que tenham sido justamente estes os meus sonhos. To estranhos eram eles, to afastados da vida. Em fins de maio, Sierguii Mikhilitch regressou da nua viagem, conforme prometera. A primeira vez chegou noitinha, quando absolutamente no o espervamos. Estvamos sentadas no terrao, preparando-nos para tomar ch. O jardim j estava todo verde, e nos canteiros cobertos de vegetao os rouxinis instalaram-se para passar todo o ms de junho. As moitas densas dos lilases apareciam como que polvilhadas de branco e roxo. Eram as flores que se preparavam para desabrochar. A folhagem na alameda de btulas era do todo transparente ao pr do sol. Havia uma sombra fresca no terrao. O denso orvalho noturno cairia ainda .sobre a erva. No quintal, alm do jardim, ouviam-se os derradeiros sons do dia, o barulho do rebanho tangido de volta; o pateta Ncon passava com, um barril pelo caminho diante do terrao, e um jacto de gua fria, saindo em crculos do regador, enegrecia a terra revolvida junto aos caules das dlias e suas estacas. No terrao, o samovar bem areado brilhava e fervia sobre a toalha branca, havia creme de leite, broinhas, biscoitos. Ktia, o ar de dona de casa, passava gua fervente nas xcaras com as suas mos rechonchudas. Faminta depois do banho, eu comia po com creme fresco, espesso, sem esperar que me servissem ch. Vestia uma blusa de linho, de mangas abertas, e tinha os cabelos molhados amarrados com um leno. Ktia foi a primeira a v-lo, ainda pela janela. Ah! Sierguii Mikhilitch! exclamou E ns que acabamos de falar a seu respeito! Levantei-me e quis ir trocar-me, mas ele me encontrou porta. Ora, que cerimnias so estas na roa? disse, olhando a minha cabea amarrada com leno e sorrindo Voc no se envergonha de Grigri, e, realmente, para voc, eu sou Grigri . Mas justamente nesse momento tive a impresso de que ele me olhava de maneira completamente diversa do que o faria Grigri, e senti constrangimento.

- Voltarei daqui a um instante disse, afastando-me dele. Mas o que h de ruim nisto aqui?! gritou na minha direo Parece uma mooila do campo. "Ele me dirigiu um olhar to estranho pensei, trocando-me s pressas no segundo andar. Bem, graas a Deus que ele veio, isto ficar mais alegre!" E, depois de me olhar no espelho, corri alegre escada abaixo e, no escondendo que me apressara, entrei ofegante no terrao. Ele estava sentado mesa e relatava a Ktia as nossas condies financeiras. Depois de me lanar um olhar, sorriu e continuou falando. Segundo dizia, os nossos negcios estavam excelentes. Agora, s devamos passar o vero na roa e, .depois, viajar para Petersbur -go, por causa dos estudos de Snia, ou para o estrangeiro. Seria bom se viajasse conosco para o estrangeiro disse Ktia pois sozinhas estaremos como que perdidas numa floresta. - Ah! Que bom seria viajar com vocs em volta do inundo! disse ele, meio brincalho, meio srio. E ento? disse eu Faamos a volta ao mundo. Elo .sorriu c meneou a cabea. E minha minha me? E os negcios? disse. Bem, no disto que se trata, conte-me como passou o tempo. Ser possvel que tornou a fraquejar? Quando lhe contei que na sua ausncia eu estudara E no me aborrecera, o que foi confirmado por Ktia, rir mo elogiou e acarinhou-me com o olhar, como a uma criana, como se tivesse direito a isto. Parecia-me indispensvel comunicar-lhe minuciosamente e com particular franquezaa tudo o que eu fazia de bom, e confessar-lhe, c o m o diante de um sacerdote, tudo o que podia deix-lo descontente. O anoitecer era to agradvel que, recolhidos apetrechos de ch, ficamos no terrao, e a conversa era to interesante para mim que nem percebi como se aquietaram em volta de ns os rudos humanos. De todos os lados, as flores desprenderam odor mais forte, um rocio abundante molhou a erva, um rouxinol cantou numa moita de lilases nas proximidades, mas calou-se apenas ouviu as nossas vozes; o cu estrelado parecia terdescido sobre ns. Percebi que escurecera somente porque um morcego penetrou de sbito, sem rudo, sob a lona do terrao o ngitou-se perto do meu leno branco. Encolhi-me junto parede e j queria gritar, mas o bicho mergulhou, igualmente depressa e sem rudo, por baixo do toldo e sumiu no lusco-fusco do jardim. Como eu gosto daqui, de Pokrvskoe disse ele, interrompendo a conversa. Seria capaz de passar a vida inteira sentado assim no terrao. - Ora, fique assim sentado disse Ktia. Pois sim, fique-se sentado disse ele a vida no espera. Por que no se casa? disse Ktia. Daria um marido excelente. Porque gosto de ficar sentado riu ele. No, Katierina (5) Krlovna, ns dois no vamos mais casar. H muito tempo que todos deixaram de me encarar como algum passvel de se casar. E eu mesmo ainda mais, e desde ento me sinto to bem, palavra. Tive a impresso de que dizia isto de certa maneira cativante e pouco natural. Isto que serve! Trinta e seis anos, e j se considera liquidado disse Ktia. E como me liquidei! continuou ele. S tenho vontade de ficar sentado. E, para casar, preciso outra coisa. Pergunte a ela acrescentou, indicando*- me com a cabea. Temos que casar essa gente. E ns dois vamos alegrar-nos por eles. No tom da sua voz, havia uma tristeza oculta e algo forado, que no me escapou. Calou-se algum tempo; Ktia e eu tambm no dissemos nada. Bem, imagine prosseguiu, virando-se na cadeira se eu de repente, em consequncia de algum acaso infeliz, me casasse com uma menina de dezessete anos, por exemplo a Mach (6)... n o, Maria Alieksndrovna. Eis um belo exemplo, estou muito contente por que isto me saiu assim... o melhor dos exemplos. Ri e no consegui compreender por que ele estava to contente e o que estava saindo assim... Bem, diga-me a verdade, a mo no corao disse ele, dirigindo-se a mim, num gracejo no seria para voc uma infelicidade unir a sua vida a um homem velho, j vivido, que s quer ficar sentado, enquanto voc tem Deus sabe que ideias fervilhando na mente, Deus sabe que vontades? Fiquei constrangida, calei-me, sem saber o que responder.(5) Corruptela de lecatierina (Catarina). N. do T. (6) Macha um diminutivo de Maria. N. do T.

Eu no lhe estou propondo casamento disse ele rindo mas, diga-me a verdade, no com um marido assim que sonha quando, noitinha, passeia sozinha pela alameda; e bem que isto seria uma infelicidade? Uma infelicidade no... comecei. Mas no seria bom concluiu ele. Sim, mas eu posso me enga...Tornou a interromper-me, porm. Bem, est vendo, e ela tem toda a razo, eu lhe fjco agradecido pela franqueza e muito contente porque tivemos esta conversa. E ainda pouco, isto seria para ruim a maior infelicidade acrescentou ele. Como voc estranho, no mudou em nada disse Ktia e saiu do terrao, a fim de mandar pr a mesa para a ceia. Calamo-nos ambos depois que Ktia saiu, e em volta tudo estava quieto tambm. Somente o rouxinol trinou no mais como o faz noitinha, isto , indeciso, interrompendo-se, mas maneira noturna, sem se apressar, tranquilo, enchendo o jardim de sons, e de longe, do fundo da ravina, um outro lhe respondeu, a primeira vez naquela noite. O mais prximo calou-se, como que prestando ateno por um instante, e gorjeou ainda mais abruptamente, com mais esforo, espalhando o seu canto sonoro. E essas vozes ressoavam tranquilas, soberanas, em seu mundo noturno, ignoto para ns. O jardineiro pas- HOU , indo dormir na estufa, ressoaram sobre o caminho os seus passos que se afastavam, marcados por botas Krossas. Algum assobiou fortemente duas vezes, ao p do morro, e tudo tornou a aquietar-se. Uma folha tremeu quase imperceptivelmente, agitou-se o pano do terrao, e, balanando-se no ar, algo cheiroso chegou at ali, difundindo-se. Eu me constrangia de ficar calada depois do que fora dito, mas no sabia, o que falar. Olhei para ele. Na penumbra, os seus olhos brilhantes voltaram-se para mim. to bom viver no mundo! disse ele. Suspirei por alguma razo. O qu? to bom viver no mundo! repeti. Tornamos a calar-nos e fiquei novamente constrangida. Vinha-me sem cessar mente que eu o ofendera, concordando com ele que era velho, e queria consol-lo, mas no sabia como faz-lo. Bem, at a vista disse, levantando-se minha me espera-me para a ceia, quase no a vi hoje. E eu queria tocar para voc uma nova sonata disse eu. Outro dia replicou-me com frieza, foi a minha impresso. At a vista. Fortaleceu-se em mini a impresso de que o ofendera, e lamentei isto. Acompanhei-o com Ktia at a sada, e ficamos ambas paradas, vendo como ele se afastava pela estrada. Quando no se ouvia mais o passo do seu cavalo, dei a volta casa, fui para o terrao e fiquei olhando novamente o jardim, e por muito tempo aind? vi e ouvi, em meio nvoa orvalhada, em que pairavam os sons noturnos, aquilo que eu queria ver e ouvir. Ele veio mais uma vez, uma terceira, e o constrangimento, proveniente da estranha conversa ocorrida entre ns, desapareceu de todo e no voltou mais. No decorrer do vero, ele vinha visitar-nos duas ou trs vezes por semana; acostumei-me a ele tanto que, se tardava, eu comeava a sentir o peso de minha vida solitria, zangava-me com ele e achava que se portava mal, abandonando-me. Tratava-me como um jovem amigo de quem se gosta, interrogava-me, provocava-me maior franqueza, dava-me conselhos, estimulava, IK vezes censurava-me e detinha-me. Mas, apesar de todos os seus esforos para tratar-me como sua igual, eu sentia que por trs daquilo que eu compreendia nele, ficav todo um mundo ignorado, em que. ele no considerava necessrio introduzir-me, e isto mais que tudo sustinha em mim o respeito por ele e me atraa. Eu sabia por meio de Ktia e dos vizinhos que, alm dos cuidados com a velha me, com quem vivia, alm da sua propriedade e da tutela sobre ns, ele tinha uns casos seus, relacionados com a sua condio de fidalgo, e que provocavam s vezes situaes bem desagradveis; mas eu nunca pude saber por meio dele como encarava tudo isto, quais eram as suas convices, projetos, esperanas. Mal eu orientava a conversa para os seus negcios, ele fazia uma careta, que lhe era peculiar, como que dizendo: "Chega, por favor, o que tem a ver com isto?" e mudava de assunto. A princpio, ficava ofendida, mas depois me acostumei a tal ponto com isto que ns sempre conversvamos unicamente de assuntos referentes a mim, e eu j considerava isto natural. A princpio no me agradou, mas depois, pelo contrrio, passei a achar agradvel a sua completa indiferena, e como que desdm pela minha aparncia. Nunca me sugeria, por um olhar ou por uma palavra, ser eu bonita, e, pelo contrrio, fazia careta e ria se, na sua presena, algum me chamava de bonitinha. Gostava at de encontrar em mim defeitos de fsico e espicaava-me com eles. Os

vestidos da moda e os penteados, com os quais Ktia gostava de me enfeitar nos dias solenes, despertavam somente as suas zombarias, que ofendiam a boa Ktia e a princpio, deixavam-me desnorteada. Tendo decidido em seu ntimo que eu agradava a ele, Ktia no conseguia de modo algum compreender como se podia deixar de apreciar que uma mulher do nosso gosto nos aparecesse sob a aparncia mais favorvel. Mas eu logo compreendi o que ele necessitava. Queria acreditar ']iio em mim no havia coquetismo. E, depois que eu compreendi isto, realmente no sobrou em mim nern sombra I n coquetismo nos trajes, nos penteados, nos movimentos; e, em compensao, apareceu, cosido a linha branca, o coquetismo da simplicidade, numa poca em que eu ain da no podia ser simples. Eu sabia que ele me amava como uma criana ou como mulher, eu ainda no me interrogava; tinha em alto preo este amor, e, sentindo que ele me considerava como a melhor das moas no mundo, no podia deixar de desejar que esta mentira permanecesse nele. E, involuntariamente, eu o enganava. Mas, enganando-o, eu mesma tornava-me melhor. Sentia o quanto era melhor e mais digno para mim exibir-lhe as melhores partes do meu esprito que os do corpo. Ele atribuir imediatamente o devido valor, parecia-me, aos meus cabelos, s mos, ao rosto, aos gestos habituais, quaisquer que fossem, bons ou maus, e conhecia-os to bem que eu nada poderia acrescentar ao meu fsico, alm de um desejo de enganar. Mas ele no conhecia o meu esprito, porquanto o amava e porque este, na mesma poca, crescia e desenvolvia-se: era nisto que eu podia engan-lo e o enganava. E que leveza eu senti na sua companhia, depois que percebi isto com nitidez! Desapareceram em mim de todo os constrangimentos sem motivo, os movimentos freados. Eu sentia que, estando de frente ou de lado, sentada ou em p, ele me via, quer eu estivesse com os cabelos para cima ou para baixo: conheciame toda e, a meu ver, estava contente comigo, como eu era. Penso que se, contrariando os seus hbitos, ele me dissesse de repente, como os demais, que eu tinha um rosto lindo, eu no me alegraria um pouco sequer. Mas, em compensao, que prazer, que claridade, apareciam-me na alma quando, aps alguma palavra minha, e depois me olhar fixamente, ele me dizia, a voz perturbada, qual procurava infundir um tom brincalho: Sim, sim, voc tem algo. uma moa simptica, devo dizer-lhe. E por que eu recebia ento tamanhas recompensas, que me enchiam o corao de alegria e orgulho? Porque eu dizia simpatizar com o amor do velho Grigri por sua neta, porque eu me comovia at as lgrimas com a poesia ou o romance que acabava de ler, ou porqu e preferia Mozart a Schulhof. E era surpreendente, pensei, com que intuio extraordinria eu percebia ento tudo o que era bom e que se devia amar; embora eu ento decididamente no soubesse o que era bom e o que se devia amar. Grande parte dos meus hbitos e gostos anteriores no lhe agradavam, e bastava que ele mostrasse, com um movimento das sobrancelhas ou com um olhar, desagradar-lhe aquilo que eu pretendia dizer, bastava que apresentasse a sua expresso peculiar, lastimvel, quase desde nhosa, e eu tinha j a impresso de no gostar mais da--quilo de que eu gostava antes. s vezes, ele apenas queria aconselhar-me algo, e eu j parecia saber o que ele diria. Se me formulava uma pergunta, fitandome nos olhos, o seu olhar puxava para fora de mim o pensamento que ele queria. Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos de ento no eram meus, eram pensa mentos e sentimentos dele, que de repente se tornaram meus, passaram para a minha vida e iluminaram-na. De maneira de todo imperceptvel para mim, passei a encarar com outros olhos tudo: Ktia, os nossos criados, Snia, eu mesma, as minhas ocupaes. Os livros, que eu lera at ento unicamente para combater o tdio, tornaram-se de sbito para mim um dos maiores prazeres da existncia; e tudo isto unicamente porque eu conversara com ele sobre livros, porque os lemos juntos e porque ele trazia-os para mim. Antes, os estudos com Snia, as aulas que eu lhe dava, eram para mim uma obrigao penosa,, que eu me esforava em cumprir unicamente por conscincia do dever; ele assistiu, porm, a uma aula, e acompanhar os sucessos de Snia tornou -se para mim uma alegria. Pareciame antes impossvel aprender toda uma pea de msica; mas 'agora, sabendo que ele a ouviria e que talvez me elogiasse, tocava quarenta vezes o mesmo trecho, de modo que a pobre Ktia enfiava algodo nos ouvidos, e eu no me aborrecia absolutamente. As mesmas velhas sonatas agora fraseavam-se de maneira totalmente diversa, saam bem diferentes e muito me lhores. Mesmo Ktia, que eu conhecia e amava como a mim mesma, transformara-se aos meus olhos. Somente agora eu compreendi que ela no era de nenhum modo obrigada a ser me, amiga, escrava, como fora at ento conosco. Compreendi toda a abnegao e devotamento dessa criatura repassada de amor, compreendi tudo o que lhe devia; e passei a am-la ainda mais. Tambm ele ensinou-me a olhar os nossos camponeses, os criados, as empregadas domsticas de maneira totalmente nova. ridculo diz-lo, mas at os dezessete anos eu vivera em meio a essa gente, mais estranha a ela que em relao s pessoas que eu jamais conhecera; nunca pensara que, tal como eu, eles tinham amores, desejos, comiserao. O nosso jardim, os nossos bosques, os nossos campos, que eu conhecia desde tanto tempo, tornaramse de repente novos e belos para mim. No era em vo que ele dizia existir na vida apenas uma felicidade indiscutvel: viver para outrem. Parecia-me ento estranho, eu no compreendia isto; mas essa convico, mais do que a ideia, j me penetrava o corao. Ele desvendou para mim toda uma existncia de alegrias no presente, sem alterar nada em minha vida, sem acrescentar nada, alm de si mesmo, a cada impresso. minha volta, tudo era quieto, como o fora desde a minha infncia, mas bastava que ele chegasse, e tudo passava a falar, todas as coisas pediam entrada em minh'alma, uma de cada vez, e enchiam-na de felicidade. Nesse vero, eu subia frequentemente ao meu quarto, deitava-me no leito, e apossava-se de mim, em lugar da anterior angstia primaveril dos desejos e esperanas no futuro, um sobressalto de felicidade no presente. No conseguia adormecer, levantava-me, sentava-me na cama de Ktia e dizialhe ser inteiramente feliz, o que, segundo lembro agora, era de todo desnecessrio dizer-lhe: ela mesma podia v-lo. Mas ela dizia-me no precisar de nada, que era tambm muito feliz, e beijavame. Eu acreditava nela, parecia-me to indispensvel e justo que todos fossem felizes. Mas

acontecia tambm estar Ktia cuidando de dormir, e s vezes, ela at se fingia zangada, enxotava-me do seu leito e adormecia; e eu ainda passava muito tempo examinando aquilo que me fazia to feliz. s vezes, levantava-me para uma orao, outras vezes rezava com as minhas prprias palavras, a fim de agradecer a Deus toda a felicidade que me concedera. O quarto pequeno estava quieto; somente Ktia respirava sonolenta e regularmente, o relgio tiquetaqueava ao seu lado, eu me virava e murmurava, ou persignava-me e beijava a cruz que me pendia do pescoo. A porta estava fechada, havia persianas nas janelas, alguma mosca ou mosquito balanavam-se e zuniam no mesmo lugar. E eu tinha vontade de nunca sair desse quartinho, no queria que chegasse a manh, e se dissipasse essa atmosfera interior, que me rodeava. Tinha a impresso de que os meus sonhos, pensamentos e rezas eram seres vivos, que viviam comigo ali na treva, que esvoaavam junto ao meu leito, que pairavam sobre mim. E cada pensamento era um pensamento dele, cada sentimento tambm. Ento ainda no sabia que era amor, pensava que isto podia ser apenas assim, que este sentimento nos era dado gratuitamente. III De uma feita, por ocasio do transporte do trigo, fui com Ktia e Snia, depois do jantar, para o jardim, e dirigimo-nos para o nosso banco predileto, sombra das tlias, sobre a ravina, alm da qual se viam campos e florestas. Fazia uns trs dias que Sierguii Mikhilitch no nos visitava, e o espervamos aquele dia, tanto mais que o nosso administrador dissera que ele prometera ir ao nosso campo. Era mais de uma, quando o vimos passar a cavalo, na direo do campo de centeio. Depois de me olhar sorrindo, Ktia mandou trazer pssegos e cerejas, de que ele gostava muito, deitou-se num banco e cochilou. Arranquei um galho torto e achatado de tlia, de folhas suculentas e casca tambm suculenta, que me molhou a mo, e, abanando Ktia, continuei a ler, afastando a todo momento os olhos e dirigindo-os para a estrada do campo, pela qual ele devia chegar. Snia estava construindo um caramancho de bonecas, junto raiz de uma velha tlia. Era um dia sem vento, abrasador, as nuvens uniam-se e negrejavam, uma tempestade armara va-se desde manha. Eu estava perturbada, como sempre antes de uma tempestade. Mas, a partir de meio-dia, as nuvens tinham comeado a desfazer-se pelos bordos, o sol deslizara para o cu limpo, e somente num canto da paisagem ressoavam uns ribombos, e ziguezagues plidos de raio, indo at o cho, perfuravam de raro em raro a densa nuvem parada sobre o horizonte, e que se confundia com a poeira dos campos. Era evidente que, pelo menos onde estvamos, a tempestade no se formaria. Sobre a estrada que se via a trechos alm do jardim, incessantemente, ora se arrastavam devagar altas e ran-gentes carroas, carregadas de feixes, ora telegas vazias vinham ao seu encontro, depressa, fazendo barulho, pernas tremiam e camisas apareciam desfraldadas ao vento. A poeira densa no se afastava nem pousava, mas ficava no ar, alm da cerca, entre a folhagem transparente das rvores do jardim. Mais longe, sobre a eira, ouviam-se as vozes, o mesmo ranger de rodas, e os mesmos feixes amarelos, que se moviam lentamente junto ao nosso muro, ali voavam no ar e, aos meus olhos, cresciam casas ovais, destacavam-se os seus telhados pontudos, e os vultos dos mujiques afanavam-se sobre eles. Na frente, sobre o campo empoeirado, moviam-se tambm as telegas, e viam-se os mesmos feixes amarelos, e vinham igualmente de longe sons de telegas, vozes e canes. De uma banda, o campo ceifado aparecia cada vez mais aberto, com fiaxas de losna crescidas nos intervalos. Mais di reita, embaixo, sobre o campo ceifado, onde havia um emaranhado deselegante, viam-se as roupas coloridas de mulheres que faziam tric, abaixavam-se e agitavam os braos, e o campo emaranhado ficava mais' limpo, com bonitos feixes distribudos sobre ele a pequenos intervalos. O vero como que se transformou aos meus olhos em outono. Havia poeira e calor, em toda parte com exce-o do nosso lugarzinho predileto no jardim. O povo trabalhador conversava, fazia barulho e movia-se vindo de todos os lados, em meio a esta poeira e este calor abrasador.

E Ktia ia ressonando to docemente sob um lenci-nho branco de cambraia, deitada sobre o nosso banco sombreado, as cerejas pretejavam to brilhantes e suculentas no prato, as nossos roupas eram to frescas e limpas, a gua brilhava na caneca, to irisada e to clara, e eu me sentia to bem! "O que fazer? -- pensei Que culpa eu tenho de ser feliz? Mas como partilhar a felicidade com outrem? Como e a quem entregar-me toda, com toda esta felicidade?..." O sol j se pusera alm dos topos da alameda de b-tulas, a poeira deitava-se no campo, os longes apareciam mais ntidos e claros com a iluminao lateral, as nuvens j se dispersavam completamente, viam-se por entre as rvores, na eira, trs novos- telhados de medas, e os mu-jiques desceram deles; telegas passaram a toda velocidade, provavelmente pela ltima vez, acompanhadas de altos gritos; mulheres com ancinhos nos ombros e com laos no cinto passaram a caminho de casa, entoando alto uma cano, e Sierguii Mikhilitch no vinha ainda, embora eu o tivesse visto havia muito descer o declive. De repente, porm, o seu vulto apareceu na alameda, do lado pelo qual eu no o esperava (fizera um rodeio pela ravina). Tendo tirado o chapu, caminhava na minha direo, o rosto alegre, cintilante, os passos rpidos. Vendo Ktia adormecida, mordeu o lbio, fechou os olhos e caminhou nas pontas dos ps; percebi no mesmo instan te que ele estava naquela sua disposio peculiar de alegria sem motivo, de que eu gostava tremendamente, e que ns chamvamos de entusiasmo selvagem. Parecia um escolar fazendo gazeta; todo o seu ser, do semblante aos ps, respirava satisfao, felicidade e uma vivacidade infantil. Boa tarde, como vai, jovem violeta? Bem? disse num murmrio, aproximando-se e apertando-me a mo... Quanto a mim, estou admiravelmente bem disse, respondendo a uma pergunta minha tenho hoje treze anos, e quero brincar de cavalinho e trepar nas rvores. ' Com um entusiasmo selvagem? disse eu, espiando os seus olhos risonhos e sentindo que aquele enw-siasmo selvagem comunicava-se a mim. - Sim respondeu ele piscando o olho e contendo um sorriso. Mas, para que precisa bater no nariz de Katierina-Krlovna ? Olhando para ele e continuando a agitar o ramo, eu nem notara que, tendo arrancado o leno de Ktia, roava-lhe o rosto com as folhas. Dei risada. - E ela vai dizer que no dormiu murmurei, como que para no acordar Ktia, mas na realidade por outro motivo: simplesmente, agradava-me falar com ele em murmrio. Moveu os lbios, arremedando-me, como se eu j estivesse falando to baixo que no se conseguisse ouvir nada. Vendo o prato das cerejas, agarrou-o como que s escondidas, caminhou na direo da tlia sob a qual estava Snia e sentou-se sobre as suas bonecas. Ela zangou-se a princpio, mas logo ele fez as pazes, depois de combinar uma competio para se ver quem comeria as cerejas mais depressa. Se quiser, vou mandar trazer mais disse eu ou ento vamos ns buscar. Ele apanhou o prato, sentou nele as bonecas, e fomos os trs em direo de um depsito. Rindo, Snia corria atrs de ns, puxando-o pelo sobretudo, para que devolvesse as bonecas. Devolveuas e dirigiu-se a mim com gravidade. - Ora, ento no uma violeta? disse-me, ainda baixo, embora no houvesse j a quem acordar mal me aproximei de voc, depois de toda essa poeira, calor, trabalhos, e senti um aroma de violeta. E no foi a violeta perfumosa, mas sabe? a violeta primeira, escurinha, que cheira a neve derretida e a erva de primavera. - Diga-me: tudo vai bem na propriedade? perguntei, para esconder a confuso de jbilo, que me causaram as suas palavras. - Admiravelmente! Este povo magnfico em toda parte. Quanto melhor a gente o conhece, mais gosta dele. - Sim disse eu hoje, antes de voc chegar, eu estava olhando do jardim os trabalhos do campo, e de repente fiquei to constrangida porque eles trabalham e eu estou to bem que...

- No faa coquetismo com isto, minha amiga -interrompeu-me ele, de repente srio, mas fitando-me com carinho nos olhos uma causa sagrada. Que Deus a livre de exibir-se com isto. - Mas apenas a voc que o digo. - Sim, eu sei. Bem, que tal as cerejas? O depsito estava fechado e no se encontrava por :ili nenhum dos jardineiros (ele os enviava todos para os trabalhos no campo). Snia correu para buscar a chave, mas, antes que voltasse, ele trepou sobre um canto da parede, ergueu a rede que havia ali e pulou para o outro ludo. - Quer? ouvi de l a sua voz. D-me o prato. - No, eu mesma quero apanhar, vou buscar a chave disse eu Snia no a encontrar... Mas, ao mesmo tempo, quis ver o que ele estava fazendo ali, como olhava tudo, como se movia supondo que ningum o visse. Nessa ocasio, eu simplesmente no queria perd-lo de vista nem um instante. Pondo-me nas pontas dos ps, corri sobre urtigas e rodeei o depsito pelo lado oposto, onde ele era mais baixo, e, trepando sobre uma tina vazia, de modo que a parede me ficou abaixo do peito, inclinei-me para dentro do depsito. Meus olhos percorreram o interior, com as suas velhas rvores tortas e com as largas folhas dentadas, por trs das quais pendiam, pesados e retos, os frutos negros, sumarentas, e, enfiando a cabea sob a rede, vi Sierguii Mikhilitch por baixo do galho tortuoso de uma velha cerejeira. Provavelmente, pensava que eu fora embora, que ningum o estava vendo. Tendo tirado o chapu, os olhos fechados, permanecia sentado sobre as runas de uma velha rvore e diligentemente rolava numa bolinha um pouco de resina de cerejeira. De repente, deu de ombros, abriu os olhos, disse algo e sorriu. Aquela palavra e aquele sorriso eram to inusitados nele que eu me envergonhei de o estar espionando. Tive a impresso de que a palavra era: Macha, "No pode ser" pensei. "Macha querida!" repetiu ele mais baixo e com mais carinho ainda. Mas desta vez ouvi distintamente essas duas palavras. O corao bateu-me com tamanha fora e uma alegria to perturbadora, como que proibida, envolveu-me de repente que eu me agarrei com ambos os braos parede a fim de no cair e no me trair. Ele percebeu o movimento, olhou em volta assustado, baixou de chofre os olhos e corou como uma criana. Queria dizer-me algo, mas no conseguia, e o seu rosto abrasava-se cada vez mais. Todavia, ao olhar-me, sorriu. Sorri tambm. Todo.o seu rosto brilhou de alegria. Ele no era mais um velho tio, que me acarinhara e me orientara, era uma pessoa igual a mim, que me amava e me temia e a quem eu tambm temia e amava. No dissemos nada e apenas ficamos olhando-nos. Mas, de repente, tornou-se sombrio, desapareceram-lhe o sorriso e o brilho dos olhos, e ele dirigiu-se a mim com frieza, novamente num tom paternal, como se tivssemos feito algo ruim, e ele, depois de voltar a si, me aconselhasse a fazer o mesmo, Mas desa da, vai machucar-se disse ele. E d um jeito no cabelo, veja o que parece. "Por que ele finge? Por que procura magoar-me?" - pensei com despeito. E no mesmo instante veio-me um desejo invencvel de perturb-lo mais uma vez, de experimentar sobre ele a minha fora - No, eu mesma quero apanhar as frutas disse eu e, agarrando-me ao galho mais prximo, pulei para cima do muro. Ele no teve tempo de me apoiar, e eu j miltava para o cho do depsito. - Voc est fazendo tanta bobagem! disse ele, tornando a corar e procurando ocultar a sua perturbao sob o aspecto de uma irritao. Bem que podia machucar-se. E como vai sair daqui? Estava ainda mais confuso que antes, porm desta vez o seu estado de confuso no me alegrou, mas assustou-me. Ele comunicou-se a mim, corei e, fugindo ao seu olhar e no sabendo o que dizer, comecei a apanhar as frutas, que no tinha onde pr. Eu me censurava, arrependia-me, tinha medo, a par da impresso de que me destruir para sempre aos seus olhos com aquela ao. Ficamos calados, ambos com um sentimento penso. Snia, que trouxera correndo a chave, tirou-nos dessa difcil situao. Depois disso, passamos muito tempo sem nos falar, e ambos nos dirigamos a Snia. Quando voltamos para junto de Ktia, que procurou convencer -n,os de que no dormira e que ouvira tudo, eu me .acalmei, e ele esforou-se em readquirir o seu tom paternal o protetor, mas no o conseguia e no enganava mais. Ixjmbrei-me ento vivamente de uma conversa que tivemos alguns dias antes. Ktia falava de como era mais fcil a um homem do que a uma mulher amar e expressar o seu amor. - Um homem pode dizer que ele ama, uma mulher afirmou ela. - E eu tenho a impresso de que tambm o homem no deve e no pode dizer que ama replicou ele. Por qu? perguntei. Porque isto ser sempre uma mentira. Que novidade h em um homem estar amando? como se, apenas ele diga isto, algo bata com estrpito: bumba ele ama. como se, apenas ele pronuncie essa palavra, deva acontecer algo fora do comum, e canhes sem conta dis parem no mesmo instante, em nome de nobres ideais. Parece-me continuou ele que homens que proferem solenemente essas palavras: "Eu a amo" enganam a si mesmos ou, o que pior ainda, enganam a outrem. Mas como vai saber uma mulher que ela amada, se no lhe disserem isto? perguntou Ktia.

Isto eu no sei respondeu ele cada um tem as suas prprias palavras. E, se existe sentimento, este h de se expressar. Quando leio romances, imagin) sempre o rosto preocupado que devem ter o tenente Strlski ou Alfredo, ao dizer: "Amo-te, Leonor!" e ao pensar que dever ocorrer de sbito algum fato incomum; e nada acontece nem com ela nem com ele: so os mesmos olhos, o mesmo nariz, tudo o mesmo. J ento, eu percebera nesse gracejo algo srio, relativo a mim, mas Ktia no permitia que se tratasse com ligeireza os heris de romance. - Os seus eternos paradoxos disse ela. Ora, diga a verdade, voc mesmo nunca disse a uma mulher que a amava? Nunca disse isto, nunca pus um joelho em terra - respondeu ele rindo e nunca hei de fazlo. "Sim, ele no precisa dizer que me ama pensei agora com vivacidade, lembrando aquela conversa. Ele me ama, eu sei. E todos os seus esforos de aparentar indiferena no me convencero do contrrio." No decorrer de todo o sero, ele conversou comigo pouco, mas em cada uma das suas palavras a Ktia, a Snia, em cada um dos seus movimentos e olhares, eu via amor e no duvidava deste. Eu somente me aborrecia e tinha pena dele rporque ainda considerava necess

io disfarar e fingir-se frio, quando tudo j era to evidente, e quando seria to fcil e simples tornarse to impossivelmente feliz. Mas atormentava-me como um crime o fato de eu ter saltado para perto dele, no depsito. Tinha incessantemente a impresso de que, por causa disso, ele deixaria de me respeitar e que estava zangado comigo. Depois do ch, dirigi-me para o piano, ele me seguiu. Toque alguma coisa, faz tempo que no a ouo disse ele, alcanando-me na sala de visitas. Era o que eu queria fazer... Sierguii Mikhilitch! disse eu, fitando-o de repente bem nos olhos. No est zangado comigo? Por qu? perguntou ele. Porque no lhe obedeci, tardinha disse eu, corando. Ele me compreendeu, meneou a cabea e sorriu. O seu olhar dizia que era preciso censurar-me, mas que ele no sentia fora para tanto. No aconteceu nada, somos de novo amigos disse eu, sentando-me ao piano. Como no! disse ele. No salo grande, de teto alto, havia apenas duas velas sobre o piano, o espao restante estava na penumbra. A noite clara de vero espiava pelas janelas aber tas. Tudo estava quieto, apenas os passos de Ktia rangiam a intervalos na sala de visitas s escuras, e o cavalo dele, preso sob a janela, fungava e batia nas bardanas com o casco. Ele estava sentado atrs de mim, de modo que eu no o via; mas sentia-lhe a presena em toda parte, na penumbra da sala, nos sons, em mim mesma. Cada olhar seu, cada movimento, que eu no via, repercutia-me no corao. Eu estava tocando a sonatafanta-sia de Mozart, que ele me trouxera e que eu aprendera na sua presena e para ele. Eu no pensava absolutamente no que estava tocando, mas, provavelmente, toquei bem, e tive a impresso de que ele gostara. Eu percebia o prazer que ele estava experimentando e, sem voltar a cabea, sentia o seu olhar fixado em minhas costas. Com-pletamente sem querer e continuando inconscientemente a mover os dedos, eu me virei na sua direo. A sua cabea destacava-se sobre o fundo da noite, que se tornava mais claro. Ele estava sentado com a cabea apoiada nas mos e fitava-me fixamente, os olhos brilhantes. Sorri vendo esse olhar, e parei de tocar. Ele sorriu tambm e meneou com censura a cabea, na direo dos cadernos de msica, indicando-me que continuasse. Quando acabei de tocar, a lua estava mais clara, erguera -se alto, e j estava penetrando no salo, a par da luz dbil das velas, uma outra, argntea, que incidia no soalho. Ktia disse que era inconcebvel como eu me detivera na parte melhor, e que tocara mal; mas, pelo contrrio, ele afirmou que eu nunca tocara to bem, e ps-se a andar pela casa, passou do .salo para a sala de visitas s escuras, e desta de novo para o salo, voltando com frequncia a cabea para mim e sorrindo. Eu sorria tambm, tinha at vontade de rir sem nenhuma razo, to contente estava com algo que sucedera instantes atrs. Apenas ele desaparecia atrs da porta, eu abraava Ktia, que estava parada ao meu lado, junto ao piano, e punha-me a beij-la no meu lugarzinho predileto, no pescoo cheio, sob o queixo; mal ele regressava, eu fingia um rosto srio e con tinha fora o riso. O que aconteceu hoje com ela? perguntou-lhe Ktia. Mas ele no respondeu, e apenas riu um pouco na minha direo. Sabia o que me acontecera. Vejam que noite! disse ele da sala de visitas, parando diante da porta do balco, aberta para o jardim... Acercamo-nos dele e realmente era uma noite como eu nunca mais vi. A lua-cheia estava sobre a casa, atrs de ns, de modo que no se podia v-la, e metade das sombras do telhado, dos postes e da lona do terrao deita-vase- de vis, em raccourci , sobre o caminho de areia e o crculo do relvado. Tudo o mais estava claro, inundado pela prata do orvalho e do luar. O largo caminho entre as flores, sobre o qual se deitavam de vis, de um lado, as sombras das dlias e das estacas, penetrava na neblina, todo claro e frio, alongava-se, brilhando com o pedregulho irregular. Via-se por trs das rvores o telhado claro da estufa, e uma nvoa crescente erguia-se da ravina. Os tufos de lilases, j um tanto desnudados, estavam iluminados at os ltimos galhos. Podia-se distinguir cada flor, todas umedecidas de orvalho. Nas alamedas, a sombra e a luz fundiam-se de tal maneira que elas no pareciam mais rvores e caminhos, e sim casas transparentes e trmulas. direita, na sombra da casa, tudo era negro, indiferente e assustador. Mas, em compensao, destacava-se ainda mais claro nessa treva o topo estranhamente espalhado do choupo, que por algum motivo detivera-se de maneira esquisita ali, perto da casa, banhado de luz viva em cima, em vez de partir voando para alhures, ao longe, para o cu azulado que se afastava. Vamos caminhar um pouco disse eu. Ktia concordou, mas recomendou que eu calasse galochas. No preciso, Ktia repliquei. Sierguii Mikhilitch vai dar-me o brao.

Como se isto pudesse impedir-me de molhar os ps. Mas, ento, ns trs o compreendamos, e no nos pareceu de modo algum estranho. Ele nunca me dera o brao, mas dessa vez eu mesma o tomei, e ele no o estranhou. Descemos do terrao os trs. Todo esse mundo, o cu, o jardim, o ar, eram diferentes dos que eu conhecera at ento. Quando eu olhava para frente, sobre a alameda pela qual caminhvamos, tinha continuadamente a impresso de que no se podia ir mais longe, que ali terminara o mundo do possvel, que tudo isso devia ficar para sempre acorrentado em sua beleza. Mas ns avanvamos, e a muralha encantada da beleza abria-se, deixava-nos entrar, e tambm ali, parecia, estava o jardim nosso conhecido, com as rvores, os caminhos, as folhas secas. E ns como que andvamos pelos caminhos, pisando nos crculos de luz e sombra, e como que a folhagem seca farfalhava-nos sob os ps e um galho novo roava-me o rosto. E era como se fosse ele quem, pisando regular e docemente ao meu lado, amparasse cautelosamente o meu brao, e como se fosse Ktia quem, caminhando co-nosco, fizesse algum rudo. E, provavelmente, era a lua no cu que enviava essa luz por entre os galhos imveis... Mas, a cada passo, novamente se fechava atrs e em frente de ns a muralha encantada, e eu cessava de acreditaram que se podia ir mais longe ainda, deixava de acreditar em tudo o que existia. Ah! Uma r! exclamou Ktia. "Quem diz isto e para qu?" pensei. Mas, em seguida, lembrei-me de que era Ktia, de que ela temia as rs, e olhei para baixo. Uma rzinha saltara e imobilizara-se diante de mim, e a sua sombra pequena via-se sobre o barro claro do caminho. E voc no tem medo? disse ele. Olhei-o. No lugar em que estvamos, faltava uma tlia da alameda, eu via nitidamente o rosto dele. E esse rosto estava to belo, to feliz... Dissera: "No tem medo?" e eu ouvira: "Amo voc, querida jovem!" Amo! amo! repetiam o seu olhar, o seu brao; e a luz, a sombra, o ar, repetiam o mesmo. Percorremos todo o jardim. Ktia caminhava ao nosso lado, com os seus passinhos midos, e arfava cansada. Disse que estava na hora de voltar, e eu tive pena, muita pena dela, coitada. "Por que ela no sente o mesmo que ns? pensei. Por que nem todos so jovens, nem todos esto felizes, como esta noite e como ele e eu?" Voltamos para casa, mas ele ainda ficou ali muito tempo, no obstante j tivessem cantado os galos, j estivessem dormindo todos em casa, e o seu cavalo ba tesse cada vez mais frequentemente nas bardanas e fungasse sob a janela. Ktia no nos lembrava que j era tarde, e ns, conversando sobre as coisas mais tolas, ficamos sentados, sem sab-lo, at depois das duas da madrugada. Os galos j cantavam a terceira vez, quando ele partiu, e comeava a alvorecer. Despediu-se como de costume, sem dizer nada de especial; mas eu sabia que a partir daquele dia ele era meu, e que no o perderia. Logo depois de confessar a mim mesma que o amava, contei tudo a Ktia. Ela ficou contente e comovida com o que lhe contei, mas a coitada pde adormecer nessa noite, e eu passei ainda muito tempo caminhando pelo terrao, fui ao jardim e, lembrando cada palavra, cada movimento, percorri as mesmas alamedas pelas quais andara com ele. No dormi toda e ssa noite e, pela primeira vez na vida, vi o erguer do sol e as primeiras horas matinais. E nunca mais vi uma tal noite, nem uma tal manh. "Mas por que ele no me diz simplesmente que me ama? pensei. Por que ele inventa no sei que dificuldades, chama a si mesmo de velho, quando tudo to simples e belo? Por que ele perde um tempo precioso, que talvez no volte nunca mais? Que ele me diga: amo, que o diga com palavras; que me tome a mo na sua, abaixe at ela a cabea e diga: amo. Que enrubesa e baixe os olhos ante mim, e ento eu lhe direi tudo. Ou no lhe direi, e apenas o abraarei, apertar-me-ei contra ele e chorarei. Mas, o que ser se eu me engano e ele no me ama?" acudiu-me de sbito mente. Assustei-me com o meu sentimento: Deus sabe onde ele poderia levar-me; lembrei-me da minha perturbao e da sua, quando eu pulara para dentro do depsito, e senti o corao pesado, pesado. Lgrimas jorraram-me dos olhos, e pus-me a rezar. E vieram-me um pensamento e uma esperana estranhos, que me acalmaram. Decidi jejuar a partir de ento, comungar no dia dos meus anos e, nesse mesmo dia, tornar-me sua noiva. Para qu? Por qu? Como isto devia ocorrer? Eu no sabia nada, mas, desde aquele instante, acreditava e sabia que assim ia acontecer. Quando voltei ao meu quarto, o dia j clareava de todo e as pessoas de casa comeavam a levantar-se. IV Estvamos no jejum da Assuno, e por isto ningum se espantou com a minha inteno de jejuar.

A semana toda ele nenhuma vez viera a nossa casa, e eu no s me surpreendia, no me alarmava e no me zangava com ele, mas, pelo contrrio, estava contente porque ele no vinha, e esperava-o apenas para o dia dos meus anos. No decorrer da semana, levantava-me cedo e, enquanto me arreavam o cavalo, examinava mentalmente os pecados da vspera e refletia sobre o que devia fazer aquele dia, a fim de ficar satisfeita com ele e no pecar nenhuma vez. Naquela poca, parecia-me muito fcil viver absolutamente sem pecado. Tinha a impresso de que bastava esforar-me um pouco. Chegavam os cavalos, eu sentava-me com Ktia ou com uma das criadas na liniika e amos igreja, a trs vers-tas. Entrando no templo, eu me lembrava sempre de que as oraes se fazem por todos "os que entram com temor a Deus", e procurava pisar justamente com este sentimento os dois degraus do adro, cobertos de erva. Na igreja, havia nessas ocasies no mais de umas dez cam

ponesas e empregadas domsticas em jejum; e eu emp-nhava-me em ser humilde, procurava responder s suas saudaes, e ia pessoalmente, o que me parecia uma faanha, apanhar com o velho soldado, starosta da igreja W, velas num caixote, a fim de coloc-las nos castiais. Atravs da Porta Real via-se a coberta do altar, bordada por minha me, sobre a iconstase havia dois anjos de madeira com estrelas, e que me pareciam to grandes quando eu era menina, e uma pombinha com uma aurola amarela, que me deixara na mesma poca muito interessada. Atrs do coro aparecia a amassada pia ba-tismal, em que eu mesma fora batizada e tantas vezes batizara filhos da nossa criadagem. O velho sacerdote aparecia envergando a casula feita com a cobertura do caixo do meu pai, e tinha, ao oficiar, a mesma voz com que sempre, desde os primeiros tempos de que me lembro, se celebrara o ofcio em nossa casa: no batizado de Snia, nas exquias de meu pai, no enterro de minha me. A mesma voz trmula do sacristo ressoava no coro, e a mesma velhota, que eu lembrava ter visto sempre na igreja, em cada ofcio, ficava parada junto parede, curvada, dirigindo os olhos lacrimosos para o cone do coro, apertava os dedos dobrados contra o xale desbotado, e murmurava algo com a boca sem dentes. E tudo isto no me despertava mais a curiosidade, era chegado a mim no s pelas recordaes: tudo isto era agora santo e grande aos meus olhos e parecia-me repleto de um profundo significado. Eu prestava ateno a cada palavra da orao, procurava responder a esta com o sentimento, e, se no compreendia, pedia mentalmente a Deus que me iluminasse ou inventava uma orao minha para substituir a que eu ouvira mal. Quando se proferiam oraes de arrependimento, eu recordava o meu(8) (9) Tipo de carruagem aberta. N. do T. O encarregado de zelar por uma igreja. N. do T. (10) Nas igrejas russas, a entrada para o altar. N. do T.

passado, e este passado infantil e inocente parecia-me to negro em comparao com a condio luminosa do meu esprito que eu chorava e horrorizava-me comigo mesma, mas ao mesmo tempo sentia que tudo seria perdoado e que, mesmo que tivesse mais pecados, o arrependimento me seria ainda mais doce. Quando, terminando o ofcio, o sacerdote dizia: "A bno do Senhor est convosco" - eu tinha a impresso de experimentar no no mesmo instante um sentimento fsico de bem-estar. No sei que luz e calor como que penetravam-me de repente o corao. O ofcio terminava e o padre vinha falar comigo, perguntava se precisava ir oficiar as vsperas em nossa casa, e a que horas devia faz-lo; mas eu agradecia-lhe comovida aquilo que ele pretendia, pensava eu, fazer por mim, e dizia-lhe que viria igreja. - A senhora mesma quer dar-se ao trabalho? dizia ele. E eu no sabia o que responder, para no cometer o pecado do orgulho. Depois da missa, se estava sem Ktia, eu sempre dispensava os cavalos, voltava sozinha a p, inclinando-me profundamente, com humildade, ante todos os que encontrava e procurando uma oportunidade de auxiliar, aconselhar, sacrificar-me por algum, ajudar a erguer uma carga, balanar uma criana, ceder passagem e sujar-me. De uma feita, noitinha, ouvi como o administrador, ao fazer o seu relatrio a Ktia, dizia que o mujique Siemion. viera pedir umas tbuas para o caixo da filha e um rublo para as exquias, e que ele acedera ao pedido. "Mas eles so assim pobres?" perguntei. "Muito pobres, senhora, no tm nem com que comprar sal" respondeu o administrador. Algo apertou-me o corao, e ao mesmo tempo eu como que me alegrei, ao ouvir isto. Enganei Ktia, dizendo-lhe que ia dar uma volta, corri para cima, apanhei todo o meu dinheiro (muito pouco, mas tudo o que possua), e, depois de me persignar, atravessei sozinha o terrao e o jardim, dirigindo-m para a isb de Siemion, na aldeia. Ela ficava no limite da aldeia, e, sem ser vista por ningum, acerquei-me de uma janela, coloquei sobre esta o dinheiro e bati. Algum saiu da isb, fez ranger a porta e gritou para mim; trmula e fria de medo, como uma criminosa, corri para casa. Ktia me perguntou onde eu estivera e o que tinha, mas no compreendi sequer o que ela me dizia e no lhe respondi. Tudo me pareceu de repente to insignificante e mesquinho. Tranquei -me no quarto e por muito tempo caminhei de um lado para outro, incapaz de fazer algo, de pensar, incapaz de dar conta do meu sentimento a mim mesma. Pensei tambm na alegria de toda a famlia, nas palavras com que eles se refeririam pessoa que depositara o dinheiro, e fiquei com pena de no o ter entregue pessoalmente. Pensei tambm no que diria Sierguii Mikhilitch, ao saber desta ao, e alegrei-me com o fato de que ningum jamais o saberia. E havia em mim tamanha alegria, to maus pareciam-me todos e eu mesma, olhava com tamanha cordura para mim e para todos, que a ideia da morte acudia-me como um sonho de felicidade. Eu sorria, rezava, chorava, e amava to ardente, to apaixonadamente, nesses momentos, a todos no mundo e a mim mesma. Lia o Evangelho no intervalo dos ofcios, e esse livro tornava-se cada vez mais compreensvel para mim, mais comoventes e mais singelas as histrias dessa existncia divina, e mais terrveis e impenetrveis as profundezas de sentimento e de pensamento que eu encontrava na sua doutrina. Mas, em compensao, quo simples e claro parecia-me tudo, quando, erguendo-me de junto do livro, tornava a fitar a vida que me rodeava, a pensar nela. Parecia to difcil viver em maldade e to simples amar a todos e ser amada. Todos me tratavam com tanta doura e bondade, at Snia, a quem eu continuava a dar aulas, era completamente outra, procurava compreender -me, agradar-me e no me causar aborrecimento. Tal como eu era, assim eram todos comigo.

Passando mentalmente em revista os meus inimigos, a quem eu devia pedir perdo, antes da confisso, lembrei fora de nossa casa apenas uma moa, vizinha, de quem eu rira um ano atrs na presena de visitas, e que, por isto, deixara de nos visitar. Escrevi-lhe uma carta, reconhecendo a minha culpa e pedindo-lhe perdo. Respondeu-me com outra em que ela mesma pedia-me perdo e perdoava-me. Chorei de alegria, lendo aquelas linhas singelas, em que percebi ento um sentimento to profundo e tocante. A nossa ama chorou, quando lhe pedi perdo. "Por que todos eles so to bons comigo? Com que foi que eu mereci tamanho amor ? " perguntava a mim mesma. Involuntariamente, lembrava-me de Sierguii Mikhilitch e passava muito tempo pensando nele. No podia proceder de outro modo e at no considerava isto um pecado. Mas eu pensava nele agora de maneira completamente diversa daquela noite em que soubera pela primeira vez que o amava, eu pensava nele como em mim mesma, ligando-o sem querer a cada pensamento sobre o meu futuro. A influncia opressiva, que eu experimentava na sua presena, desaparecera completamente da minha imaginao. Agora, sentia-me igual a ele e, da altura da minha disposio espiritual, compreendia-o plenamente. Via nele agora, com nitidez, aquilo que antes me parecera estranho. Sfriente agora eu compreendia o porqu das suas palavras, no sentido de que a felicidade consiste unicamente em viver para ou-trem, e agora concordava plenamente com ele. Tinha a impresso de que, em dois, seramso to infinita e tranquilamente felizes. E eu imaginava no viagens ao estrangeiro, no o brilho, a sociedade, mas uma vida completamente diversa, quieta, familiar, na roa, com um eterno autosacrif cio, com um eterno amor mtuo e com a eterna conscincia da Providncia, sempre suave, sempre pronta a acudir em socorro. Comunguei, conforme planejara, no dia dos meus anos. Tinha no peito uma felicidade to completa, quando voltava nesse dia da igreja, que temi a vida, temi toda impresso, tudo o que pudesse estorvar essa felicidade. Mas apenas descemos da liniika, entrada da casa, ressoou sobre a ponte o cabriole to conhecido, e eu vi Sierguii Mikhilitch. Deu-me os parabns, e entramos juntos para a sala de visitas. Jamais, desde que eu o conhecia, estivera to tranquila e independente com ele, como nessa manh. Sentia em mim todo um mundo novo, que ele no compreendia, um mundo mais elevado que ele. No sentia na sua proximidade a menor perturbao. Ele compreendia provavelmente por que isto acontecia, e era comigo terno, cordato, religiosamente respeitoso. Acerquei-me do piano, mas ele trancou-o e escondeu a chave no bolso. No estrague o humor disse. Voc tem agora na alma a melhor msica do mundo. Fiquei grata por isto, e ao mesmo tempo me era um pouco desagradvel que ele compreendesse demasiado fcil e claramente em meu ntimo tudo o que devia per manecer secreto a todos. Durante o jantar, disse que viera dar-me os parabns e tambm despedir-se, porque ia no dia seguinte para Moscou. Dizendo isto, olhou para Ktia; mas depois lanou-me um olhar de relance, e eu notei como ele temia perceber uma perturbao em meu rosto. Mas no me espantei, no me alarmei, no lhe perguntei sequer se era por muito tempo. Eu sabia que ele o diria, e sabia tambm que no haveria de partir. Como o sabia? No posso agora explic-lo de modo algum a mim mesma; mas, nesse dia memorvel, tinha a impresso de saber tudo o que acontecera e que ainda haveria de acontecer. Eu estava como que num sonho feliz, quando tudo o que sucede parece que j existiu antes, como se ns o conhecssemos desde muito tempo e soubssemos tambm o que o futuro nos reserva. Ele queria partir logo depois do jantar, mas Ktia, que se cansara na missa, fora deitar-se um pouco, e ele teve que esperar que ela acordasse, a fim de se despedir. Havia muito sol no cho e, por isto, samos para o terrao. Apenas nos sentamos, comecei a dizer com a mxima tranquilidade aquilo que devia decidir a sorte do meu amor. E no comecei a diz-lo mais cedo, nem mais tarde, mas no momento exato em que nos sentamos, e quando ainda no se dissera nada, e ainda no havia nenhum tom, nenhuma caracterstica na conversa, que pudesse estorvar aquilo que eu queria dizer. Eu mesma no compreendo de onde me surgiam tamanha tranquilidade, esprito decidido e preciso nas expresses. Como se no eu, mas algo independente da minha vontade, falasse em mim. Ele estava sentado na minha frente, os cotovelos sobre a balaustrada, e, tendo puxado para si um ramo de lils, arrancava as folhas deste. Quando comecei a falar, ele soltou o ramo e apoiou a cabea no brao. Isto podia ser a posio de um homem absolutamente tranquilo ou muito perturbado. Para que viaja? perguntei significativa e pausadamente, olhando-o bem de frente. Tardou em responder. Negcios! proferiu depois, baixando os olhos. Compreendi como lhe era difcil mentir para mim, em resposta a uma pergunta feita com tanta sinceridade. Oua disse eu voc sabe o que o dia de hoje significa para mim. Ele muito importante por inmeras razes. Se lhe fao esta pergunta, no para demonstrar simpatia (sabe muito bem que me acostumei a voc, que eu gosto de voc), mas simplesmente porque preciso saber. Para que viaja?

muito difcil para mim dizer a voc a verdadeira raxo da minha viagem disse ele. Esta semana, eu pensei muito em voc e em mim, e decidi que preciso partir daqui. Voc compreende por que o fao, e se gosta de mim no me far mais perguntas. Esfregou a testa com a mo fechou com esta os olhos. Isto me penoso E voc o compreende. O corao bateu-me com fora. No posso compreender disse eu no posso, e diga-me voc, pelo amor de Deus, por amor ao dia de hoje, diga-me isto1 eu posso ouvir tudo tranquila. Ele mudou de posio, olhou-me e tornou a puxar para si o ramo. Alis disse, depois de uma pausa e com uma voz que procurava em vo aparentar firmeza embora isto seja tolo e impossvel de contar com palavras, embora isto me seja penoso, vou procurar explic-lo a voc acrescentou com uma careta, como que provocada por uma dor fsica. Ora! disse eu. Imagine que existiram um dia certo senhor A, vamos fazer de conta disse ele um homem velho e vivido, e certa senhora B, jovem, feliz, que ainda no vira as pessoas nem a vida. Em consequncia de determinadas relaes familiares, ele amou-a como uma filha, e no temeu am-la de outra maneira. Calou-se, porm no o interrompi. Mas ele esqueceu que B. era to jovem ainda que a vida constitua para ela um brinquedo prosseguiu de repente, depressa, decidido, sem me olhar que era fcil passar a am-la de outra maneira, e que isto a divertiria. Ele enganou-se e de repente sentiu que um outro sentimento, pesado como o arrependimento, esgueirava-se para o seu ntimo, e assustou-se. Teve medo de que se rompessem as suas relaes amistosas, e decidiu-e a uma viagem, antes que isto acontecesse. Dizendo-o, tornou, como que por acaso, a esfregar os olhos e cerrou-os. Mas por que ele teve medo de am-la de outra maneira? disse eu quase imperceptivelmente, contendo a perturbao, e a voz saiu-me regular; mas, provavelmente, pareceulhe zombeteira. Respondeu num tom que parecia ofendido. Voc jovem, eu no o sou mais. Voc quer brincar, e eu preciso de outra coisa. Brinque, mas que no seja comigo, seno vou acreditar, e isto ser mau para mim, e voc acabar envergonhando-se de t-lo feito. Foi A. quem disse isto acrescentou bem, tudo isto tolice, mas voc compreende por que vou viajar. E no falemos mais sobre isto. Por favor! No! No! Falemos! disse eu, e lgrimas tremeram-me na voz. Ele amava-a ou no? No respondeu. E se no a amava, por que brincou com ela como se brinca com uma criana? disse eu. Sim, sim, A. foi culpado respondeu ele, interrompendo-me s pressas mas tudo acabou, e eles separaram-se ... como amigos. - Mas isto horrvel! Ser possvel que no exista outro desfecho? mal consegui proferir, e assustei-me com o que dissera. Sim, existe disse ele, o rosto perturbado e fitando-me bem de frente. Existem dois desfechos diferentes. Mas, pelo amor de Deus, no me interrompa e compreenda-me tranquilamente. Alguns dizem -- comeou ele, levantando-se e tendo um sorriso doentio, penoso alguns dizem que A. perdeu o juzo, apaixonou-se loucamente por B. e disse-lhe isto. . . E ela apenas riu. Para ela, isto no passava de brincadeira, e para ele era um assunto vital. Estremeci e quis interromp-lo, dizer-lhe que no se atrevesse a falar por mim, mas, contendo-me, ele colocou a mo sobre a minha. Espere disse, a voz trmula outros dizem que ela compadeceu-se dele, imaginou, a coitada que no vira o mundo, que ela tambm podia am-lo, e concordou em ser sua esposa. E ele, o louco, acreditou, acreditou que toda a sua vida comearia de novo, mas ela mesma viu que o enganara . . . e que ele a enganara tambm... No falemos mais sobre isto concluiu ele, provavelmente incapaz de dizer mais, e ps-se a andar em silncio na minha frente.

Ele dissera: "No falemos nisto" mas eu via que esperava a minha palavra com todas as foras da sua alma. Quis falar, mas no pude, algo apertou-me o peito. Lancei-lhe um olhar, ele estava plido e tinha o lbio inferior trmulo. Tive pena dele. Fiz um esforo e de repente, rompendo a fora do silncio, que me acorrentara, falei com uma voz baixa, interior, a qual, temia eu, ia romper-se a cada momento. E o terceiro desfecho disse eu e detive-me, mas ele permaneceu calado e o terceiro desfecho consiste em que ele no a amava, mas f-la sofrer, sofrer, e pensou estar com a razo, viajou para longe e ainda tinha orgulho de algo. Voc e no eu est brincando, eu amei-o, amei-o desde o primeiro dia repeti, e nessa palavra "amei" a minha voz passou involuntariamente de suave, interior, a um grito selvagem, com que eu mesma me assustei. Ele estava plido na minha frente, o lbio tremia-lhe cada vez com mais fora, e duas lgrimas desceram-lhe sobre as faces. Isto ruim! quase gritei, sentindo que sufocava de lgrimas ms, no-choradas. Por qu? exclamei, e ergui-me a fim de me afastar dele. Mas ele no me deixou. Tinha a cabea no meu colo, OH seus lbios beijavam ainda as minhas mos trmu-lis, e as suas lgrimas molhavam-nas. Meu Deus, se eu soubesse! disse ele. Por qu? Por qu? continuava eu a repetir sempre, e na alma eu tinha felicidade, uma felicidade que no voltaria jamais. Cinco minutos depois, Snia corria escada acima, para junto de Ktia, e gritava por toda a casa que Macha queria casar com Sierguii Mikhilovitch

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No havia razo para adiar o nosso casamento, e nem eu nem ele o queramos. Ktia, verdade, quisera ir a Moscou, a fim de comprar e encomendar peas para o enxoval, e a me dele exigira que, antes de casar, ele adquirisse uma nova carruagem e moblia e que forrasse a casa com papel de parede novo, mas ambos insistimos em que se deixasse isto para mais tarde, j que era to indispensvel, e se celebrasse o casamento duas semanas depois do meu aniversrio, sem barulho, sem enxoval, sem convidados, sem padrinhos, ceias, champanha e todos stei acessrios convencionais do ato matrimonial. Ele mS contou como a sua me ficara descontente pelo fato de que o casamento devia realizar-se sem msica, sem montanhas de bas e sem uma reforma de toda a casa, enfim, de maneira bem diversa do casamento dela, que custara trinta mil rublos,; e como ela, ao remexer(11) bas na despensa, em conferenciara seriamente, s escondidas dele, com a governanta Mriuschka , sobre certos tapetes, cortinas e bandejas indispensveis nossa felicidade. Do meu lado, Ktia fazia o mesmo com a ama-sca Kuzmnischna. E no se podia falar disso com ela num tom de brincadeira. Estava firmemente convicta de que ns dois, ao falarmos do nosso futuro, apenas fazamos dengos e insignificncias, como peculiar s pessoas nesta condio; mas que a nossa felicidade efetiva dependeria exclusivamente do corte e da costura corretos das camisas e do ponto com que se bordariam as orlas de toalhas de mesa e guardanapos. Entre o dia do Sudrio e a festa de S. Nicolau, comunicaram-se algumas vezes ao dia notcias confidenciais sobre o que estava sendo preparado e onde, e embora, aparentemente, as relaes entre Ktia e a me dele fossem das mais carinhosas, j se percebia entre elas certa diplomacia um tanto hostil, ainda que sutilssima. Tatiana Sieminovna, a me dele, com a qual eu travara agora relaes mais ntimas, era uma dona de casa altiva e severa, uma gr-senhora dos velhos tempos. Ele amava-a no s como um filho, por obrigao, mas tambm como uma pessoa humana, por sentimento, considerando-a a melhor, a mais inteligente, a mais bondosa, a mais afetuosa mulher no mundo. Tatiana Sieminovna ora sempre boa conosco e particularmente comigo, e estava contente porque o filho ia casar-se, mas, quando a visitei como noiva, pareceu-me que ela queria fazer-me sentir que eu no era dos melhores partidos para o seu filho, e que no me faria mal lembrar sempre esta circunstncia. K u a compreendia totalmente e concordava com ela. Vamo-nos diariamente nessas duas semanas derradeiras. Ele vinha jantar e ficava at meianoite. Mas, apesar daquilo que dizia, e eu sabia que estava dizendo a verdade ao afirmar que no podia viver sem mim, ele nunca passava o dia inteiro comigo e procurava continuar ocupado com os negcios. At o casamento, as nossas colaes exteriores continuaram as mesmas de antes, no nos tratvamos por tu (12), ele no me beijava sequer a mo, e no s no procurava, mas at evitava ficar comi-KO a ss. Era como se temesse entregar-se ternura demasiado grande, nociva, que havia nele. No sei- se foi le ou eu que mudamos, mas agora eu me sentia com-pletamente igual a ele, no encontrava nele o arremedo dr simplicidade, que me desagradara antes, e frequentemente via deliciada na minha frente, em lugar de um liomem que inspirava respeito e medo, uma criana dcil, perdida de felicidade. "Mas somente isto que existia urlo! pensava eu com frequncia Ele uma pessoa oxatamente igual a mim, no mais que isto." Parecia-me agora que ele estava todo diante de mim e que eu passara Ji conhec-lo completamente. E tudo o que eu comeava a(11) Diminutivo de Maria. N. do T. (12) No texto original, eles se tratam por vs, que o tratamento russo menos ntimo. N. do T

conhecer era to simples e to concorde comigo mesma. At os seus planos sobre como iramos viver juntos eram os meus prprios planos, apenas definidos mais claramente e melhor com as suas palavras. Naqueles dias, o tempo estava feio, e ns ficvamos quase sempre dentro de casa. As melhores palestras ntimas tinham lugar num canto, entre o piano e a janela pequena. A luz das velas refletia -se perto, na janela negra, e gotas escorriam de raro em raro sobre o vidro lustroso. Havia batidas no telhado, a gua soltava borrifos na poa sob a calha, a umidade esgueirava-se pela janela. E o nosso canto parecia mais claro, mais tpido e alegre. E sabe? H muito, eu queria dizer-lhe uma coisa disse ele de uma feita em que ficamos at tarde, senta dos a ss nesse canto. Enquanto voc tocava, no parei de pensar nisso. No diga nada, sei tudo disse eu. Ele sorriu. Sim, est certo, no falemos nisso. No, diga-me: o que ? perguntei. Trata-se do seguinte: lembra-se de quando lhe contei aquela-histria sobre A. e B.? Como no lembrar essa histria tola? Ainda bem que tudo acabou assim. .. Sim, mais um pouco e toda a minha felicidade pereceria por minhas prprias mos. Voc me salvou. Mas o mais importante que eu no parei de mentir ento, e agora estou envergonhado, quero acabar de dizer o que pretendia. Ah, por favor, no precisa. No tenha medo disse ele, sorrindo. Preciso apenas defender-me. Quando comecei a falar, eu quis argumentar. Para que argumentar?! ~ disse eu. No se, deve nunca. Sim, eu argumentava mal. Depois de todos os meus erros e decepes, quando voltei para a roa, disse a mim mesmo decididamente que o amor acabara para mim, que ficaram para mim unicamente as obrigaes do final de uma existncia, de modo que por muito tempo no dava conta a mim mesmo do que significava o meu sentimento por voc e onde ele podia levar-me. Eu tinha e no tinha esperana, ora me parecia que voc estava procedendo com coquetismo, ora me surgia a esperana, mas eu mesmo no sabia o que ia fazer. Mas, depois daquela noite lembra-se? Foi quando passeamos at tarde pelo jardim eu me assustei, a minha felicidade atual pareceu-me demasiado grande e impossvel. Ora, o que Hiicederia se eu me permitisse ter esperana, e em vo? Mas, naturalmente, eu pensava apenas em mim mesmo; porque sou um reles egosta. Permaneceu algum tempo em silncio, os olhos fixos em mim. Mas no era apenas tolice o que eu dizia ento. Bem que eu podia e devia ter medo. Eu tomo tanto de voc e posso dar to pouco. Voc ainda criana, um boto que ainda h de desabrochar, a primeira vez que ama, e eu. . . Sim, diga-me com franqueza retruquei, mas de repente tive medo da sua" resposta. No, no precisa - acrescentei. Se eu j amei antes? Sim? disse ele, adivinhando no mesmo instante o meu pensa