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A PERSONALIDADE FEMININA EM O PRIMO BASÍLIO, DE EÇA DE QUEIRÓS RESUMO: neste trabalho a representação feminina na obra O Primo Basílio, de Eça de Queirós, evidente através das sentimentalidades femininas de suas personagens. Este trabalho é uma tentativa de demonstrar em que aspectos Eça de Queirós reflete sobre o papel da mulher na sociedade do século XIX e sobre as transgressões femininas nesse século. Revisitando a leitura de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, tentaremos, aqui, mostrar a construção feminina da personagem Luísa, que representa o caráter sonhador da mulher romântica. Aqui, o adultério é retratado na primeira carta dos amantes, como o desejo sexual aflorado e realizado. Para o narrador, sentimentalidades femininas eram análogas a encontros sexuais. Luísa não amava o primo, mas queria muito uma aventura sexual com ele. Era devassa tanto quanto quaisquer prostitutas da cidade: - É o primo! – refletia ela (Juliana) – E só vem então quando o marido se vai. Boa! E fica-se toda (Luísa) no ar quando ele sai; e é roupa branca e mais roupa branca, e roupão novo, e tipóia para o passeio, e suspiros e olheiras! Boa bêbada! Tudo fica na família! A carne clamava por prazeres nunca dantes declarados. O desejo excitava a alma sem, no entanto, abater os corações. O amor e o sexo não compartilhavam o mesmo corpo, os mesmos sentidos. Enfim, a mulher queria gozar como e com os homens, porque tinha

A FIGURA FEMININA EM O PRIMO BASÍLIO

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A PERSONALIDADE FEMININA EM O PRIMO BASÍLIO, DE EÇA DEQUEIRÓS

RESUMO: neste trabalho a representação feminina na obra O Primo Basílio, de Eça de Queirós, evidente através das sentimentalidades femininas de suas personagens. Este trabalho é uma tentativa de demonstrar em que aspectos Eça de Queirós reflete sobre o papel da mulher na sociedade do século XIX e sobre as transgressões femininas nesseséculo.

Revisitando a leitura de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, tentaremos, aqui, mostrar a construção feminina da personagem Luísa, que representa ocaráter sonhador da mulher romântica. Aqui, o adultério é retratado na primeira carta dos amantes, como o desejo sexualaflorado e realizado. Para o narrador, sentimentalidades femininas eram análogas aencontros sexuais. Luísa não amava o primo, mas queria muito uma aventura sexual comele. Era devassa tanto quanto quaisquer prostitutas da cidade:- É o primo! – refletia ela (Juliana) – E só vem então quando omarido se vai. Boa! E fica-se toda (Luísa) no ar quando ele sai; e éroupa branca e mais roupa branca, e roupão novo, e tipóia para opasseio, e suspiros e olheiras! Boa bêbada! Tudo fica na família! A carne clamava por prazeres nunca dantes declarados. O desejo excitava a almasem, no entanto, abater os corações. O amor e o sexo não compartilhavam o mesmo corpo,os mesmos sentidos. Enfim, a mulher queria gozar como e com os homens, porque tinhafantasias, vontades, fetiches, e ansiava por realizar tudo que lia em romances e que sepassava em seus sonhos. Por fim ficam os questionamentos: O que era ser mulher no universo literário do século XIX? Era uma romântica incurável e lunática ou era uma sedutora leviana? Sermulher era prazer ou dor? Quem era essa mulher que se deixava seduzir sem amar? Eradireito da mulher o gozo sexual? Na sociedade da época, a mulher era proibida de sentirprazeres. A mulher era anjo ou demônio? Que reflitamos, então, sobre o papel da mulher nasociedade do século XIX e sobre as transgressões femininas nesse século. Eça de Queirós adquiriu a técnica impressionista, na descrição sugestiva de cenas, ambientes e personagens. Na narrativa é imparcial e objetivo, característica notadamente realista. Mas ao narrar a cena amorosa deLuísa com Basílio no Paraíso, encheu-se de lirismo, dando uma conotação subjetiva repletade sensualidade: “Basílio tomou-lhe as mãos, e atraindo-a, sentando-se na cama: - Estás tãolinda! Beijou-lhe o pescoço, encostou a cabeça ao peito dela. E com a vista muito quebrada:- O que eu sonhei contigo esta noite! (...)” Percebe-se, também, uma crítica ao Romantismo: Luísa, de tanto ler romancesromânticos torna-se acéfala e frívola; tanto que passa a agir e querer ter uma vida semelhante às das heroínas

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Vivendo, assim, numa sociedade patriarcal em que o homem é tido como o soberano e por isso mesmo merecia respeito, a mulher ocupa, por sua vez, um papelsecundário e sempre dominado por aquele. Para essa mesma sociedade, o casamento é o destino da mulher, que será escolhida por seu noivo e nunca terá a possibilidade de escolha. As mulheres teriam as funções de procriar, administrar a casa, a comida e os movimentosdos membros da família Percebe-se que a mulher tem o papel de guardiã do lar. O seu lugar seria ficarencerrada em casa, ficando sempre à espera do marido:

“Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa: tinha cuidadosmuito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como umpassarinho amiga do ninho e das carícias do macho; e aqueleserzinho louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério” Luísa, antes da viagem de Jorge, era caseira, quase não saía de casa, Jorge para ela“Era o seu tudo – a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o seu homem!” Era uma moça da burguesia lisboeta sem personalidade (ausênciade caráter), fraca, totalmente submissa ao marido. Deixava-se dominar por todos e a todostemia; sua incapacidade de tomar decisões, fazem-na uma personalidade plana, semprofundidade psicológica. Seu comportamento assemelha-se ao das heroínas românticas.Para Jorge, “a Luísa era um anjo” , uma perfeita mulher para a época (caseira e boa dona de casa). Após a viagem de Jorge, Luísa sente-se muito sozinha; fragilizada e influenciadapela leitura de romances folhetinescos, acaba vivendo longe da realidade, acreditando emamores impossíveis. Nessa ausência do companheiro, torna-se adúltera. Basílio, primo de Luísa, vaidoso, egoísta, finge amá-la. É o protótipo de homem descompromissado do casamento. Tem suas aventuras amorosas para passar o tempo, sem se envolver e sem secomprometer. Falso aristocrata, quer fazer o gênero chique, dos modos finos e elegantes, mas no fundo não passa de um vulgar. A personagem Luísa é “escolhida” por Basílio apenas para passar o tempo, para ele ter uma mulher em Lisboa e não ficar sozinho. Assim, Luísa, sentimental, lânguida e sensual deixa-se seduzir por Basílio. Por sua vez, este surgeaos olhos do leitor como um vilão: seduz em nome de um sentimento que desconhece, mesquinho, quer despender pouco e usufruir muito. A mulher burguesa é vista por Eçacomo uma vítima fácil de sedução dos aventureiros, em conseqüência da educação sentimental que recebe, da influência de leituras romanescas. Ele cria uma personagem totalmente submissa ao homem, seja ele o marido ou amante. A linguagem não é só meio de sedução, é o próprio lugar da sedução. Nela, o

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processo de sedução tem seu começo, meio e fim. Basílio seduz, envolve Luísa com o poder de suas palavras doces e mansas. Luísa agora dizia: “Tenho um amante!” e “(...) ao passar diante do espelho ficou surpreendida: nunca se vira tão linda!”. Agora não tinha mais remorsos, tudo o que aconteceu não foi culpa sua, “Tinha sido uma fatalidade.” . Luísa compara o adultério como “comer a maçã proibida”:

“Todo o prazer que sentia ao princípio, que lhe parecera amor – vinha da novidade, do saborzinho delicioso de comer a maçaproibida, das condições do mistério do Paraíso, de outrascircunstâncias talvez que ela queria confessar a si mesma, quefaziam corar por dentro!”. Luísa é a heroína típica, compromissada pelo matrimônio, que aspira a fugir paraum mundo refinado, exótico e paradisíaco evocado pelo primo. Jorge, ausente, propicia àesposa a oportunidade da queda.A mulher – representada por Luísa - queria sentir os prazeres da carne, queriacorrer riscos, queria gozar como os homens, porque tinha fantasias, vontades que até então eram recolhidas. Na sociedade da época, a mulher era proibida de sentir prazeres, a mulheradúltera merecia a morte, como o próprio Jorge relata no início do romance, só que quando ele estava viajando, escreve a Sebastião, relatando sobre os seus casos na província. Logo, o que vale para a esposa, não vale para ele. A postura radical de Jorge traduz o pensamento machista do século XIX. Quanto à personagem Juliana Tavira Couceiro, criada de Jorge e Luísa, essapossui profundidade psicológica. É uma mulher doente, com problemas cardíacos. Nuncateve namorado, em sua vida só tem satisfações em comer bem, comprar botinas e xingar aspatroas, comprazendo-se das desgraças das mesmas. O fato de se sentir social ehumanamente rebaixada, faz com que ela aja por necessidade, daí a vingança, a chantagem. Juliana representa, acima de tudo, a revolta da classe trabalhista explorada pela burguesia. Ela é a revolta de classes. Na concepção machadiana, é a personagem melhor construída no romance (CELLIGOI, 2000: 17).

A personagem Luísa, representa o elemento desconstrutor da família, por isso o autor realista vai se ater na figura feminina como sendoa vilã da história, instaurando, em seu nome, o triângulo amoroso recaindo na figurafeminina toda a polêmica. Logo, traindo a fidelidade conjugal, Luísa deixa de ser a “boaesposa”, e passa a atrair as críticas da sociedade, tornando-se ameaçadora da paz familiar.

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Já Basílio, é o tipo de Don Juan esnobe ecovarde, pois após Juliana ameaçar Luísa, ele foge, finge ter compromissos para resolver:“Ele partia alegre, levando as recordações romanescas da aventura; ela ficava, nasamarguras permanentes do erro. E assim era o mundo!” Luísa, agora, queria o perdão de Jorge: “-Perdoa-me Jorge, meu Jorge, meu querido Jorge, Jorgeda minha vida!” Os homens que cometem adultério nunca se sentem culpados, enquanto asmulheres, como é o caso de Luísa, se martirizam

Luísa passa a se sentir culpada e, por não ter escolhas está nas mãos da criadaJuliana que intercepta algumas das cartas amorosas da patroa. De posse delas, entra aexercer tirânico e vingativo domínio sobre Luísa (MOISÉS, 1988: 318). Quem mandavaagora era Juliana. Luísa, assim, trabalhava dentro de casa como uma condenada paraencobrir o seu erro. Tudo isso era o preço da aventura, o preço de ter transgredido as leisimpostas pela sociedade machista da época. A mulher, aqui, segundo Malard (1978: 94), é tida como criatura frágil, irresponsável, inferior, seduzida diabolicamente sem qualquer possibilidade de recuperaçãopara a sociedade, tamanha é a culpa. Leopoldina é imoral porque, sem complexos de1Professor Cid Seixas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia – Ufba.

culpabilidade, afronta conscientemente os valores do casamento, indissolúvel para oscatólicos portugueses. Regressa Jorge, sabe do ocorrido e perdoa, mas tarde demais: Luísa acabamorrendo, enquanto Basílio impune e inconseqüente, prossegue sua carreira deconquistador barato. Enfim, faleceu para desespero de Jorge que a amava. Então, o que eraser mulher no século XIX? Ser mulher era prazer ou dor? Quem era essa mulher que sedeixava seduzir sem amar? Era direito da mulher o gozo sexual? A mulher era anjo ou demônio? Qual era o papel da mulher na sociedade do século XIX?Parece que, de acordo com Scholze (2002):personagens que ousam transgredir as leis impostas pelasinstituições encarregadas de manter a ordem das coisas são punidascom finais infelizes, solidão, autonegação da felicidade, reconhecimento do fracasso no desempenho do papel que lhes foiconfiado pela sociedade. Tudo isso transparece, recorrentemente... num infinito sentimento de culpa, fracasso, culpa... (SCHOLZE, 2002: 181). A morte, na literatura, é a punição para uma personagem como Luísa que sedeixou amar por outro homem, que não cumpriu o papel da mulher da época, que não foifiel ao marido – esse o todo soberano, o modelo da sociedade do século XIX, o pedestalinatingível. Lembramos aqui o pesadelo de Luísa, em que ela condensa seu sofrimento darepresentação onírica da peça de Ernestinho, quando Jorge ocupa o lugar do marido e

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apunhala a mulher adúltera. De acordo com Lopes (1978: 139), construtora e inventora deseu próprio sonho, é Luísa mesma que se mata e não Jorge. Evidentemente Jorge não precisou se dar o trabalho de matar a esposa, que se mata, na medida em que já interiorizarao código culpabilizante e se pune no próprio corpo através da “febre nervosa” que a leva àmorte.

Por outro lado, Luísa pode representar a classe das mulheres que lutam para fugirdas leis impostas pela sociedade machista. Na época, era um escândalo a mulher trair o marido e ela o fez, porém foi vencida pelo sistema repressor; tentou reagir, mas não conseguiu vencer e, portanto, não conseguiu mudar a sociedade machista do século XIX. Todavia, é certo que Luísa representa as mulheres batalhadoras e fortes que buscam o seu espaço na sociedade; isso, com relação ao trabalho. Luísa é vítima da maldade humana que a aniquila, representado pelos doismonstros sociais e morais – o cinismo de Basílio e a ambição frustrada de Juliana. Emboravítima, Luísa não deixa de ser culpada, pois viola a interdição máxima dentro do código moral vigente – a lei da fidelidade conjugal da época. Dessa forma, agredida a interdição, Luísa pagará o seu crime com a morte: a suafrágil psicologia sucumbe, quando Jorge toma conhecimento da traição. A morte, aqui, évista como expiação do seu pecado (BELCHIOR MENDES, 1978: 147). Com o fim deste estudo, fica claro a submissão feminina no século XIX e adecadência dos costumes da sociedade lisboeta, evidente através de leis deterministas, do caráter e temperamento das personagens, do gosto pelo detalhe e, até mesmo escabroso para o século, com personagens moralizantes: a adúltera é condenada à morte pelo narrador, embora arrependida e perdoada pelo marido