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A Filha do Mercador de Seda AF · preto e comprido, para condizer com o vestido de gola chinesa que mandara fazer especialmente para aquele dia? O corpete do vestido ficava-lhe bem

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Cronologia da História do Vietname

1787Começa o envolvimento francês no Vietname. O Tratado de

Versalhes cria uma aliança entre o rei francês Luís xvi e o príncipe vietnamita Nguyễn Anh.

1840-1890A França coloniza a Indochina (Vietname, Camboja e Laos).

O Vietname é dividido em três áreas: Tonkin, Annam e Cochinchina.

1927-30Com o intuito de resistir aos franceses, surgem no norte do país

dois grupos comunistas que são fortemente reprimidos.

1940O Japão invade e ocupa o Vietname durante a Segunda Guerra

Mundial, permitindo que o governo colonial francês permaneça no país durante mais algum tempo.

1941-44A Liga para a Independência do Vietname é criada por Ho Chi

Minh, que surge como o líder da resistência antijaponesa.

1945Os japoneses assumem (brevemente) o governo substituindo os

franceses. Depois da rendição do Japão, os vietnamitas, liderados

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por Ho Chi Minh, assumem o controlo (também por pouco tempo). As forças militares britânicas e norte americanas ajudam os france-ses a restabelecer o domínio colonial.

1946Os vietnamitas resistem. As forças militares francesas bombar-

deiam o porto de Haiphong. Começa a primeira Guerra da Indochina (ou Guerras Francesas).

1946-54Durante a guerra da Indochina, a China e a URSS apoiam Ho

Chi Minh; os Estados Unidos apoiam a França, para poderem travar a disseminação do comunismo.

1954Com o apoio da população, as forças vietnamitas cercam um

posto militar francês que se encontra isolado na cidade de Dien Bien Phu. Doze mil militares franceses ficam encurralados no cerco. A França rende-se. São assinados os Acordos de Genebra, que divi-dem o Vietname entre Norte e Sul, e são marcadas eleições nacio-nais para daí a dois anos.

1955-56Ngo Dinh Diem autoproclama-se Presidente do Vietname do Sul

com o apoio dos EUA, e recusa-se a realizar eleições nacionais.

1957-59Armas e homens do Vietname do Norte começam a infiltrar-se

no Sul. Começa a sublevação comunista no Sul.

1960No Sul forma-se o Vietcongue, ou Frente de Libertação Nacional,

para combater os Estados Unidos.

1964Um barco de patrulha do Vietname do Norte ataca um contrator-

pedeiro dos Estados Unidos.

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1965Tropas de combate norte-americanas chegam ao Vietname, dan-

do início à Guerra do Vietname. Os Estados Unidos largam mais bombas do que as que foram lançadas em toda a Segunda Guerra Mundial.

1973Os Estados Unidos retiram as suas tropas do Vietname depois

do Tratado de Paris, negociado por Nixon e Kissinger, mas as hosti-lidades no Sul continuam.

1975Os comunistas tomam Saigão. Os últimos cidadãos americanos

são evacuados do país. O Vietname é unificado sob a ordem comu-nista e Saigão é renomeada Cidade de Ho Chi Minh.

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Prólogo

Submersa, move-se em espirais em câmara lenta, com o lon-go cabelo a rodopiar à volta da cabeça. Enfeitiçada pela luz dourada que trespassa a água, agita as pernas e impulsio-

na o corpo para cima, seguindo as bolhas da sua própria respira-ção que trilham o caminho em direção à superfície. O sol plano estilhaça-se e espalha gotículas brilhantes por toda a água. Atira a cabeça para trás, inspira rapidamente e vê o rosto da irmã. Pas-sam-se segundos. Encadeada, à medida que o mundo passa por ela, levanta uma mão para acenar, abre a boca para gritar. Mas a água volta a engoli-la. O rio ruge à medida que se deixa boiar na água, com a sua voz a ecoar os baques e batidas. Tum, tum. Não obstante a necessidade de gritar por socorro, não consegue produzir um único som. Está desesperada por respirar, mas sabe que não vai conseguir. Tenta nadar, mas algo lhe suga a força. Por cima de si, a iridescência desvanece-se. E ela começa a afundar-se. No fundo do leito do rio a água é fria e cada pulsar de luz é mais dé-bil que o anterior; tudo acontece muito depressa. Tenta virar-se, tenta subir uma escada aquosa até à superfície, mas o rio é demasiado po-deroso e os seus pés escorregam pelos espaços. As imagens da sua casa começam a inundar-lhe de novo o pensamento, as pernas estão cada vez mais pesadas e, à medida que o rio lhe suga a capacidade de lutar, sente-se a flutuar nas profundezas. Não está a flutuar, mas a afogar-se.

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Fios de SedaDe maio até aos primeiros dias

de julho de 1952

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1Hanói, Vietname

Nicole inspirou o ar impregnado do aroma das gardénias sel-vagens, o arbusto de flores brancas e folhas verdes e bri-lhantes que cobriam o chão da área parcialmente coberta

do jardim. Olhou pela janela do quarto e viu o pai lá em baixo, a verificar se tudo estava em ordem no exterior. Ainda era um homem bonito, com o cabelo escuro bem cortado e ostentando alguns fios grisalhos espalhados pela cabeça, que lhe davam um ar particular-mente distinto. Embora fosse um pouco irritante ele estar a usar a festa do 18.º aniversário de Nicole para exibir o jardim, era forçada a admitir que o pai o deixara muito bonito. O incenso ardia junto às janelas amplas da casa cor de mel de inspiração francesa e os pe-quenos lagos do jardim refletiam as luzes brilhantes e coloridas das lanternas de papel penduradas nos ramos de duas enormes árvores frangipani.

Nicole olhou uma última vez para o espelho e ponderou cuida-dosamente. Deveria prender um pé de brincos-de-princesa ao cabelo preto e comprido, para condizer com o vestido de gola chinesa que mandara fazer especialmente para aquele dia? O corpete do vestido ficava-lhe bem justo ao corpo franzino, como uma segunda pele, e quando se mexia a saia rodopiava à sua volta a poucos centímetros do chão. Edith Piaf cantava Hymne à l’amour na telefonia. Ela olhou novamente pela janela e decidiu não levar as flores no cabelo ao ver a irmã, Sylvie, a caminhar agora ao lado do pai, com a sua cabeça quase encostada à dele, como tantas outras vezes. Por um instan-te, Nicole sentiu-se posta de parte e engoliu uma breve pontada de

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inveja. Já devia estar habituada, contudo, a irmã era linda mesmo an-tes de escovar o cabelo ou lavar os dentes; o cabelo ruivo ondulado, as maçãs do rosto bem esculpidas e o nariz francês perfeitamente arrebitado tratavam disso. Alta e esguia, Sylvie herdara os traços do pai francês, enquanto Nicole se parecia mais com a mãe vietnamita, há muito falecida. Nicole sentia-se muitas vezes constrangida com a cor âmbar da sua pele. Endireitou os ombros, sacudiu aquele mo-mento e saiu do quarto; não ia deixar que nada estragasse o seu dia.

Enquanto caminhava através da grande sala de tetos altos que dava acesso ao jardim, as duas ventoinhas de lâminas de latão relu-zentes refrescavam o ar. A sala, como o resto da casa, era elegante e estava cheia de antiguidades requintadas. Através da porta aberta viu duas antigas colegas de escola, Helena e Francine, que mexiam no cabelo, constrangidas, num cantinho do jardim. Foi até junto delas e recebeu abraços e beijos. Enquanto conversavam sobre namorados e os exames finais a que tinham passado, o jardim foi-se enchendo; quando Nicole conseguiu finalmente afastar-se apologeticamente, viu que os convidados franceses já tinham chegado e se encontra-vam agora a fumar e a beber, enquanto alguns dos vietnamitas abas-tados desfilavam nas suas sedas. Reparou num homem alto e de ombros largos, num fato de linho claro, que se aproximava da sua irmã, e qualquer coisa nele fez com que Nicole os fitasse duran-te alguns instantes. Depois alisou o cabelo, endireitou os ombros e atravessou o jardim.

Sylvie tocou no braço do homem e sorriu-lhe.— Deixa-me apresentar-te a minha irmã, Nicole. Ele estendeu a mão.— Mark Jenson. Já ouvi falar muito de ti. Ela aceitou a mão dele e olhou para cima, para os seus olhos,

mas a cor azul intensa sobressaltou-a e teve de desviar o olhar. — O Mark é de Nova Iorque. Conhecemo-nos enquanto lá estive

— dizia a Sylvie. — Ele viaja por todo o mundo. — É o teu aniversário, não é? — disse ele, sorrindo para Nicole. Ela engoliu em seco e teve dificuldades em encontrar a voz, mas

felizmente a irmã interrompeu-a.— Tenho de ir dar uma palavrinha a uma pessoa. — Acenou

para uma mulher atarracada que estava do outro lado do jardim,

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depois virou-se para Mark e deu uma risada enquanto lhe tocava na mão. — Não demoro muito. A Nicole vai tomar conta de ti.

Mark sorriu educadamente. Por um instante, o ar pareceu ficar tão carregado que Nicole ficou sem conseguir respirar. Mudou o peso do corpo de um pé para o outro, depois levantou os olhos para o fitar como devia ser e tentou não pestanejar demasiado. Os olhos dele eram da cor de safiras e o contraste com a pele muito morena tornava-os ainda mais brilhantes.

— Então — acabou por dizer Nicole.Ele não falou, mas continuava a olhá-la fixamente. Sentiu-se subitamente constrangida e tocou no queixo. Será que

tinha alguma coisa no rosto?— Não estava à espera de que fosses tão bonita — disse ele. — Oh — disse ela, sentindo-se confusa. — Tenho a certeza de

que não sou. — Mas o que esperara ele? E por que motivo esperara o que quer que fosse?

— Quando nos encontrámos nos Estados Unidos, a Sylvie falou--me de ti.

Os pensamentos de Nicole desembaraçaram-se lentamente. Cla-ro que Sylvie lhe falara da irmã. É muito normal falarmos da nossa família, principalmente quando estamos longe de casa.

Nicole sorriu.— Então sabes que sou a ovelha negra da família. Ele afastou uma madeixa de cabelo que lhe caía com teimosia

por cima do olho direito.— Assim de repente lembro-me das palavras «incêndio» e «tenda».Perante esta provocação suave, a mão de Nicole voou até à boca.— Oh, não, Deus do céu! Ela não te contou essa história?Ele soltou uma gargalhada. — Eu tinha 13 anos e foi um acidente. Mas não é justo que já

conheças histórias sobre mim e eu não saiba absolutamente nada sobre ti.

Um impulso trespassou o corpo de Nicole. Como se também o tivesse sentido, Mark estendeu uma mão, mas ela apercebeu-se de que o fizera apenas para indicar o caminho.

— Vamos buscar um copo de champanhe e depois talvez possas mostrar-me o jardim? Vou contar-te tudo o que quiseres saber.

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Enquanto caminhavam, a tensão que sentia desde que tinham sido apresentados começou a aligeirar, embora Nicole, no seu metro e sessenta de altura, se sentisse minúscula ao lado dele, desejando ter calçado uns sapatos de tacão maior.

Um empregado de fato branco aproximou-se com uma bandeja na mão. Mark aceitou dois copos e passou ambos a Nicole.

— Importas-te que fume?Ela abanou a cabeça.— A tua pronúncia não parece ser de Nova Iorque.Ele tirou um maço de Chesterfield do bolso, acendeu um cigarro

e estendeu a mão para um dos copos. Os dedos de ambos tocaram- -se e Nicole sentiu-se invadida por uma pontada que lhe percorreu o interior do braço.

— Não é. O meu pai tem uma pequena quinta de laticínios no Maine. Foi lá que cresci.

— E o que te fez sair de lá?Ele ficou muito quieto. — A sede de aventura, acho eu. Depois de a minha mãe morrer,

o meu pai fez o melhor que podia, mas as coisas nunca mais foram iguais.

O tom de voz dele tinha mudado e Nicole reconheceu a tristeza reprimida sob as suas palavras.

— A minha mãe também morreu — disse. Ele assentiu com a cabeça.— Sim, a Sylvie contou-me. Seguiu-se um instante de silêncio.Ele voltou a suspirar e sorriu, como se estivesse a recordar-se.— Fiz todas as coisas que normalmente se fazem no campo —

pescar, caçar —, mas a minha paixão eram as motorizadas. As cor-ridas de motas em terra batida. Quanto mais perigosa fosse a pista, mais eu adorava a corrida.

— Nunca te magoaste?Ele soltou uma gargalhada.— Magoei-me muitas vezes! Mas nunca nada sério. Parti um

tornozelo ou outro e estalei algumas costelas. Estava suficientemente próxima dele para cheirar o calor condi-

mentado da sua pele. Havia qualquer coisa nele que a deixava feliz,

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mas Nicole virou-se ligeiramente para longe de Mark e olhou para o céu pontilhado de estrelas, enquanto escutava o som das cigarras e dos pássaros noturnos que se movimentavam por entre as folhas das árvores. Mark tinha dado um passo para o lado e Nicole viu que a sua altura lhe dava aquele andar solto que se via muitas vezes nos atores dos filmes americanos; era um andar descontraído que transmitia à-vontade e confiança.

— As pessoas dizem que maio é o último mês da primavera em Hanói, mas esta noite está tão quente que parece que já é verão. Pre-feres ir para dentro de casa? — perguntou-lhe.

— Numa noite como esta?Nicole sentiu-se entusiasmada e riu-se. O cabelo castanho claro

de Mark tinha alguma ondulação e agora tinha um brilho dourado. Alguém tinha acendido os archotes do jardim e a luz das chamas refletia-se no rosto e no cabelo dele.

— Onde estás hospedado?— No Métropole, no Boulevard Henri Rivière.Naquele instante, Sylvie reapareceu e levou-o consigo. Depois

de Mark se ir embora, Nicole sentiu a ausência dele e, apesar de todas as pessoas que andavam por ali, o jardim pareceu-lhe subita-mente vazio. Lembrou-se de um dos provérbios favoritos de Lisa, a cozinheira da casa: Có công mài sắt có ngày nên kim — se polires um ferro o suficiente, consegues fazer uma agulha. Embora Lisa fosse francesa falava vietnamita suficiente para se desenrascar nos mercados e tinha grande orgulho em conseguir citar os provérbios regionais. Enquanto a música começava a tocar, Nicole pensou que talvez estivesse na altura de aplicar um certo polimento a si mesma. E também estava na altura de dançar pela noite dentro.

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Na manhã seguinte, Nicole percorreu o labirinto de divi-sões até chegar ao rés do chão da casa. Atingido o fun-do da escadaria estreita atravessou um longo corredor e

abriu a porta da cozinha. Depois observou as paredes cobertas de pequenos azulejos brancos retangulares e a fileira de panelas de cobre que pendiam da barra de ferro no centro da cozinha. As novas persianas de enrolar verdes conferiam um ambiente fresco ao espaço e quatro grandes arcos na parede, que ainda cheiravam a tin-ta, dividiam a cozinha em secções.

Lisa já estava confortavelmente instalada numa das poltronas, mesmo ao lado das portas do solário, de onde podia observar a sua preciosa horta. Desde o nascimento de Nicole que Lisa era a única constante da sua vida. O seu aspeto era exatamente o que se esperava de uma cozinheira: roliço. Com pouco mais de 40 anos, Lisa tinha o cabelo, que começava a ficar grisalho, descontraidamente preso num carrapito no cimo da cabeça e os pés apoiados numa ban-queta. Com as mãos vermelhas de lavar a loiça, remexeu no bolso para tirar o primeiro cigarro do dia; era uma mulher cujas únicas preocupações se centravam à volta dos coelhos, dos lagartos ou dos pássaros, e em certificar-se de que as longanas eram colhidas em segurança durante o mês de julho, prontas para as conservas.

— Não te importas de ir buscar o teu café?Nicole assentiu com a cabeça, serviu-se de café numa caneca

grande e a seguir deixou-se cair na poltrona em frente à de Lisa.— Estou a precisar disto.

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— Ressaca?— Acho que sim. — Ontem à noite vi-te a conversar com um homem de aspeto

muito interessante.— Qual deles? — Nicole tentou esconder o sorriso, mas sabia

que não havia muito que pudesse esconder de Lisa. — Presumo que gostes dele?Nicole soltou uma gargalhada.— A sensação foi extraordinária. Sei que provavelmente parece

uma idiotice, mas senti-me como se tivesse acabado de conhecer a pessoa que pode vir a mudar toda a minha vida.

Lisa sorriu.— Ele é muito bonito. Fico feliz por ti, chérie. Dançaste? — Com ele não. Ele não ficou muito tempo. Mas Nicole não conseguiu explicar a sensação de mudança,

como se todos os seus velhos sentimentos de imperfeição e insufi-ciência estivessem a desaparecer. O breve encontro com Mark tivera um impacto forte no seu íntimo e não conseguia deixar de pensar que era apenas o início de algo muito diferente.

— O que é que ele faz?— Não lhe perguntei. — Sorriu francamente a Lisa e levantou-

-se. — É americano.— É amigo da Sylvie?Ouviu-se um barulho vindo do quarto da governanta, a meio do

corredor, e Nicole fez uma careta.— A Bettine está aqui, é?Lisa assentiu com a cabeça. Apesar de trabalharem juntas há mui-

tos anos, não podiam ser mais diferentes uma da outra. Enquanto Lisa era roliça e cheia de curvas, Bettine era magra e parecia ter engolido um garfo. O quarto confortável de Lisa e a sua pequena sala de estar privada que ficavam mesmo ao lado da cozinha sem-pre foram uma fonte de conflito entre as duas, porque a governanta tinha os seus aposentos mais afastados da casa. A copa e a lavanda-ria eram o domínio da empregada doméstica, Pauline, e havia uma sala destinada à preparação da comida para a ajudante de co-zinha que normalmente se contratava quando Lisa precisava de ajuda.

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Nicole abriu as portas do solário e, enquanto inspirava o ar espesso de maio com o seu aroma a terra molhada, ouvia o riquexó que se apro-ximava das traseiras da casa. Apertou o roupão de seda em volta do cor-po, olhou de relance para os primeiros dióspiros amarelados caídos na relva — onde a Sylvie dizia que os corpos dos proprietários anteriores tinham sido enterrados — e viu Yvette, a filha do padeiro, a descer do seu riquexó, com as fitas das tranças negras a esvoaçarem com a brisa.

O aroma do brioche acabado de fazer pairava no ar com a sua chegada.

Nicole chamou a menina e uma vez na cozinha, puxou duas ca-deiras da mesa de pinho polido. Lisa já tinha colocado os pratos para os dois pain au chocolat de Nicole e para a fatia de pão branco macio de Yvette, barrado com manteiga e mel.

Apesar de ter apenas 10 anos, era normalmente Yvette que entregava as suas delícias de pastelaria de sábado: tartes de crème anglaise, pão fresco para comer com geleia e compotas, os brioches do pequeno-almoço, croissants e pain au chocolat. A mãe de Yvette era vietnamita e morrera às mãos dos japoneses durante a guerra, mas Yves era um progenitor dedicado, que tentava ser ao mesmo tempo pai e mãe da pequena, de quem Nicole gostava bastante.

Nicole dobrou as pernas por baixo do corpo e ficou a observar o cachorrinho de Yvette. Trophy já andava a bisbilhotar pela cozinha e subiu para uma das cadeiras num piscar de olhos.

— Cãozinho mau! — Yvette acenou com o punho, mas foi tarde demais, o cachorro já tinha roubado um croissant e estava debaixo da mesa a devorá-lo.

Nicole soltou uma gargalhada.— Ele é tão amoroso. — Quem me dera ser mais velha, para poder ter vindo à tua

festa. Houve baile?— Sim, mais para o fim, mas a noite estava tão bonita que nin-

guém tinha vontade de vir para dentro de casa. Lisa viu as horas. Sabia que Yvette não devia tomar o pequeno-

-almoço ali, mas era uma rotina que as três gostavam de cumprir. — É melhor ires andando — disse Lisa, olhando para cima. Nicole estava prestes a discordar, mas Yvette levantou-se de um

salto, com Trophy a ladrar mesmo atrás dela.

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— Silêncio, ou acordas a casa toda — disse Yvette e pegou no cachorro ao colo, para receber múltiplas lambidelas no rosto. Saiu pela porta das traseiras e passou pelo solário, onde o aroma picante da planta esguia do gengibre de Lisa inundava o ar.

Assim que Yvette saiu, Nicole deu um beijo no rosto de Lisa. — Mal posso acreditar que já tens 18 anos, minha querida menina

— disse a cozinheira enquanto fungava. — Parece que ainda ontem…Nicole sorriu amplamente.— Oh, não fiques agora demasiado sentimental. Tenho coisas

importantes para fazer.— Como por exemplo?— Como planear o resto da minha vida.— Tem alguma coisa que ver com aquele tipo americano em que

estás de olho?— Não faço ideia de quando vou voltar a vê-lo. — Nicole hesitou

perante a perceção súbita de que não sabia sequer quanto tempo Mark se demoraria em Hanói. Mas tinha esperanças de que a Paris do Oriente, como os franceses gostavam de chamar àquela húmida cidade, conseguisse lançar o seu sedutor feitiço sobre ele.

Ao jantar estavam só os três à mesa. A mais pequena das duas salas de jantar da casa dos Duval ficava em frente a um pequeno pa-vilhão de teto de colmo mobilado com enormes cadeiras de verga e uma mesa baixa de tampo de vidro, ao lado de um lago de nenúfares. Num dos cantos encontrava-se um bonito biombo esculpido e lacado que separava uma pequena secretária e um sofá onde Sylvie gostava de escrever. Como Nicole gastara o pouco tempo que tinha para se arranjar antes do jantar a ler um livro, penteou o cabelo com os dedos e olhou para o teto. Era azul, com nuvens brancas fofas e pequenos querubins a voar à volta da ventoinha; nunca gostara daquela pintura.

Ouviu o som dos pavões vindo das portas que davam para o jar-dim, mesmo ali ao lado.

— Malditas criaturas — disse o pai. — Sempre com estes gras-nados horrorosos.

— Mas são tão bonitos — disse Nicole. — Não achas?— Porque é que a Lisa os mantém aqui no jardim? Dão comigo

em doido.

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— O pai tem razão — disse Sylvie. — Os pavões são profunda-mente irritantes.

Depois disto jantaram em silêncio. Estava demasiado calor, não obstante o movimento suave da ventoinha. As pesadas cortinas de seda, presas com cordões de borlas douradas, não estavam fechadas e os suaves painéis de musselina esvoaçavam com a débil sugestão de uma brisa. Os gritos dos pavões que continuaram a ecoar no ar só serviram para aprofundar a disposição sombria do pai.

Estavam a acabar a sobremesa quando olhou de relance para Sylvie e para Nicole antes de falar.

— Ainda bem que estão as duas aqui. As irmãs entreolharam-se. Ultimamente, a atmosfera em casa

andava um pouco carregada: surgiam mensagens entregues por homens magros e tensos em uniformes brancos, o telefone tocava sem parar e o Papá parecia andar cada vez mais exausto. Nicole reparara no aumento rápido do número de americanos que visi-tavam a casa da família e chegou à conclusão de que deviam ser da CIA. Mas quando perguntou à irmã, Sylvie mostrou-se muito reservada. Aparentemente nenhuma das raparigas sabia ao certo o que se passava.

O pai contorceu-se ligeiramente na cadeira.— Agora que já tens 18 anos, Nicole, quero explicar os meus

planos. Tinha pensado em falar-vos disto quando ambas tivessem mais de 21 anos, mas uma vez que agora vou assumir um cargo no governo, os meus planos sofreram alterações.

— O que quer isso dizer? — perguntou Sylvie.— Quer dizer que não vou estar disponível para tratar dos nos-

sos negócios. — Que cargo vais assumir, Papá? — perguntou Nicole. — A natureza exata do trabalho é secreta, mas com todos os con-

tactos que tenho no Vietname, eles parecem achar que sou o homem certo para o cargo. É uma enorme honra ser escolhido para trabalhar para o bem da França.

— Mas quer dizer que vais trabalhar aqui em Hanói?— Maioritariamente. — Fez uma pausa breve. — Isto pode ser

uma surpresa para vocês, mas acredito que o melhor para a nossa empresa é haver apenas uma pessoa encarregue dos seus destinos.

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Uma vez que a Sylvie é mais velha, decidi entregar-lhe o controlo da empresa, com efeito imediato.

Nicole olhou de relance para a irmã, mas Sylvie baixou os olhos e mexeu no guardanapo.

— Quando o ano chegar ao fim tudo estará no nome da Sylvie, mas guardei a pequena loja de seda para ti, Nicole.

— Não estou a entender. Por que motivo não podemos partilhar? Sempre pensei que um dia eu e a Sylvie acabaríamos por gerir o negócio juntas.

O pai abanou a cabeça.— A Sylvie é mais velha e mais sábia do que tu. Tem mais expe-

riência, principalmente nos mercados americanos e o mais justo é que seja ela a assumir o controlo da empresa. Se tivesses estudado tudo o que devias no lycée, como a tua irmã tão diligentemente fez, terias muito mais oportunidades à tua disposição. Certamente entendes isto.

Nicole franziu o sobrolho.— Então a Sylvie vai ficar à frente da Paul Bert?O pai assentiu com a cabeça.A rapariga engoliu rapidamente e imaginou a imponente Maison

Duval, com o magnífico teto abobadado, escadaria de teca polida e elegantes varandins no primeiro andar. Ficava situada na Rua Paul Bert, frequentemente conhecida como os Campos Elísios, e Nicole adorava-a.

— O que mais? — perguntou. O pai fixou um ponto por cima da cabeça dela enquanto contava

pelos dedos:— A firma de importação e exportação e empório do bairro francês.Nicole sabia que a maior parte da seda que vendiam vinha de

Huế, onde se localizava a parte da exportação e onde concentrara as suas esperanças.

— Mas estava à espera de um dia vir a ser a chefe de compras. Pensei que era por isso que me levavas contigo às aldeias produtoras de seda quando a Sylvie estava na América.

O pai levou a mão ao bolso para tirar um charuto e bateu com ele em cima da mesa.

— Ouve, lamento muito se isto te deixa desiludida, chérie, mas as coisas são como são. Ainda tens a opção de terminar os estudos,

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ou então de aceitar a minha oferta e tomares conta da velha loja de seda; se nenhuma das duas te agradar, vou ter de te encontrar um bom marido vietnamita.

Era uma brincadeira do pai, mas Nicole não foi capaz de impedir que as lágrimas de angústia lhe inundassem os olhos.

— Pensei que a velha loja estava abandonada.Ouviu-se mais um grasnado vindo da rua. O pai encheu a boca

de ar e os nós dos dedos ficaram brancos enquanto se agarrava com força à mesa. Nicole conseguia sentir o seu aroma — a cera do cou-ro, o brandy e os charutos — enquanto observava as narinas do pai a incharem.

— Malditos pássaros — resmungou ele. Nicole sentia-se destroçada. Já com a viagem à Europa sucedera

a mesma coisa. Sylvie fora e ela não. Claro que a viagem tivera lugar pouco depois de ter incendiado acidentalmente a tenda onde se cele-brava o 18.º aniversário de Sylvie.

O pai levantou-se.— Fiquem as duas e acabem o vosso jantar. A Lisa deve estar

mesmo a trazer o café. Vou beber o meu no escritório. Nicole conseguiu conter, a muito custo, o ardor que lhe inunda-

va os olhos.— E quanto aos negócios, não te esqueças de que a Sylvie é cinco

anos mais velha do que tu e que é de extrema confiança. — Ao che-gar à porta, o pai olhou para trás. — Quando desistes da escola antes dos exames e desapareces durante dias, estás à espera que eu faça o quê? Toda a força policial da cidade andou à tua procura. E durante esse tempo, tu e a idiota da tua amiga decidiram entrar num autocar-ro com destino a Saigão. Devias ter-te lembrado de que íamos ficar preocupados. Podia ter acontecido alguma coisa de grave.

Ela deixou cair a cabeça. Será que alguma vez se iam esquecer daquilo?

— Eu sei. E lamento imenso. Não pensei.— Pois, mas agora precisas de pensar e só espero que tenhas

aprendido com os teus erros. — Aprendi sim, papá. De verdade. — Então prova-o e faz da loja de seda um sucesso. Depois logo

se vê o que mais poderás fazer.

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No dia seguinte a temperatura deve ter chegado aos 32º C ou 33. Nicole observava um lagarto de olhos protuberantes a subir a parede para se esconder por baixo de uma folha de

feto, e sabia que a rua estaria terrivelmente húmida. Ali, contudo, o salão assemelhava-se a um jardim sombrio, graças à frescura criada pelo chão de mosaicos, os gigantescos fetos de interior e a luz que entrava pela cúpula alta de vidro. Pegou nas chaves que estavam no tabuleiro de madrepérola, olhou para baixo e ajeitou a saia do vestido justo, depois calçou sapatos de salto alto a condizer. Precisava de se afastar de casa para refletir no anúncio do pai e decidiu caminhar até ao centro da cidade.

Quando deixou a casa para trás, virou-se e viu Lisa a abrir as portadas verdes das janelas. A casa de três pisos resplandecia com o estuque ocre acabado de pintar, e as goteiras salientes do telha-do faziam sombra sobre a varanda que contornava toda a estrutura. O exterior de traços exclusivamente franceses ocultava o interior de estilo oriental, com os painéis vermelhos de verniz da China colo-cados em ambos os lados do piso térreo e decorados com folha de ouro.

Nicole encaminhou-se para o centro da cidade, mas depois de algumas viragens na estrada, pareceu-lhe ouvir alguém a chamar o seu nome ao longe. Hesitou, mas ao escutar novo grito e um ber-ro vindos de uma rua que passava por detrás da principal, deu um passo atrás. Ao olhar para o fundo da rua não viu nada. Deviam ser as crianças a brincar, pensou e recomeçou a andar. Os gritos

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tornaram-se mais sonoros e alarmantes. Sem tomar a decisão cons-cientemente, virou para a rua de trás, onde várias casas de janelas estilhaçadas davam para o alcatrão também estragado. Algumas ruas ainda estavam à espera de arranjos, depois da destruição da Segunda Guerra Mundial e da batalha que se seguiu contra os vietnamitas. Tirou os sapatos e saltou o melhor que pôde com o vestido justo por cima dos destroços junto à curva, onde as árvores escondiam da vista o resto da rua estreita.

Ali conseguiu ver meia dúzia de rapazinhos franceses demasia-do entusiasmados. Quando se aproximou, ficou horrorizada ao ver que estavam a empurrar uma menina contra a parede por detrás de uma árvore. A menina, encurralada e sem hipótese de fugir do círculo de rapazes, parecia mais nova do que os seus atormentado-res, que aparentavam ter uns 13 anos. Nicole observou toda a cena e aproximou-se a correr.

— Métisse, métisse! — Entoava um dos rapazes.Os outros juntaram-se a ele, a zombar da rapariga com os rostos

distorcidos pelo desdém. — Métisse suja.— Vai para a tua terra. Quando a menina se virou com a saia azul clara a rodopiar, Nicole

reconheceu o rosto manchado de lágrimas — Yvette! Nem parou para pensar e desatou a correr pela rua fora. Os rapazes viram-na a aproximar-se e a maior parte deles recuou, mas os dois mais cor-pulentos mantiveram-se firmes. Uma das fitas azuis do cabelo da Yvette soltou-se e um dos rapazes agarrou-lhe na trança.

— Larga-a — ordenou Nicole na sua voz mais autoritária, ten-tando controlar a situação. Estava vagamente consciente dos sons da cidade que a rodeavam: as buzinas dos carros, o estalar dos riquexós, as vozes humanas, mas o que mais ecoava aos seus ouvidos era o bater descompassado do seu próprio coração.

— Ela também é uma métisse. Não lhe deem ouvidos — disse o rapaz mais alto.

O cheiro a álcool chegou ao nariz de Nicole e no chão viu as beatas de cigarros por entre as folhas e os pedaços de betão partidos.

— Mas o pai dela… — começou por dizer um dos rapazes mais pequenos.

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Nicole correu até ao rapaz mais alto, agarrou-o pelo colarinho e começou a bater-lhe com os sapatos.

— O meu pai vai fazer queixa de ti!Muito convencido, o rapaz ainda se debateu, mas um dos saltos

pontiagudos de Nicole apanhou-o na têmpora. Ele ficou muito quie-to e, como qualquer rufia, começou a choramingar assim que tocou na cabeça e viu que tinha sangue nos dedos.

Nicole semicerrou os olhos.— Se voltas a tocar-lhe…Ele espetou-lhe o dedo do meio, mas começou a recuar.— É isso mesmo, fujam como os cobardes que são. A meterem-

-se com uma menina mais pequena! Muito corajosos. Um outro rapaz virou-se para voltar para trás; era um dos mais

calados que ficara atrás dos outros e Nicole não reparara nele. Era magro e estava bem vestido e agora que olhava para ele o seu rosto parecia-lhe familiar. Quando viu o brilho da faca que ele trazia na mão, olhou de relance para a Yvette.

— Corre, Yvette — gritou e apontou para trás. — Vai por ali. Corre para casa, o mais depressa que conseguires.

Yvette hesitou.— Vai. Agora!Quando a menina rodou sobre os calcanhares, Nicole endireitou

os ombros e ficou à espera com as pernas ligeiramente afastadas e pés bem fincados no chão.

O rapaz resfolegou com desprezo antes de fazer um ataque sú-bito na sua direção, agitando a faca no ar. Ela desviou-se, mas con-seguiu agarrar-lhe no braço e torcê-lo com brusquidão por trás das costas.

— Ai! Estás a magoar-me! — gritou o rapaz.— Larga a faca!Ele debateu-se e conseguiu libertar-se, mas antes disso a faca

raspou a face de Nicole. O rapaz empurrou-a para o chão e em choque ela tocou no rosto, vagamente consciente de que um ho-mem passava por ela a correr. Quando levantou os olhos, viu que o homem estava a segurar o rapaz pelo pescoço. E ficou ainda mais chocada quando o viu com toda a clareza e percebeu que era Mark Jenson.

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— Larga a faca, sacaninha — gritava Mark, enquanto o rapaz fazia um som terrível de quem se estava a engasgar, com os olhos muito arregalados de medo.

Nicole olhou também horrorizada. Por um instante parecia que o americano estava prestes a esganar o rapaz. Abriu a boca para gri-tar antes que a situação piorasse ainda mais, mas Mark largou o rapaz enquanto lhe dava um bom empurrão. O rapaz cambaleou, mas não chegou a cair.

Enquanto o rapaz e o homem se fitavam, Nicole sentiu o toque do ar na sua pele. Subitamente pareceu-lhe mais frio, como aconte-cia quando o sol se escondia atrás de uma nuvem e, contudo, o sol continuava tingido do mais impressionante dos azuis. O rapaz con-tinuava a brandir a faca à sua frente e enquanto sentia que o suor lhe cobria a testa, Nicole teve a certeza de que ele se ia atirar ao homem mais velho. Mas o momento estendeu-se durante demasiado tempo e depois de pensar melhor no que estava a fazer, o rapaz deu um passo atrás e largou a faca.

Mark deu um passo em frente e levantou um punho.— Agora desaparece daqui.O rapaz desatou a fugir.Durante alguns instantes tudo ficou muito silencioso, mas agora

Nicole sentia-se subitamente consciente dos ruídos da cidade que chegavam até si.

Mark virou-se para ela.— Pronto — disse, colocando um braço à volta da sua cintura.

Depois, enquanto a ajudava a levantar-se, Nicole sentiu o calor da mão dele através do tecido fino do vestido de algodão.

— Eu estava a tratar do assunto sozinha — disse ela, mas ambos sabiam que estava perturbada.

Mal se atrevia a analisar o que sentia depois de ter sido chamada de métisse — o nome de conotação negativa que davam às crianças multirraciais —, por isso tentou abafar a onda de vergonha que sen-tia. Antes de os vietnamitas terem conquistado o poder, embora por pouco tempo, as coisas não eram assim. Mas agora, no que dizia res-peito aos franceses, ser multirracial e ter um aspeto oriental implica-va ser-se objeto de olhares desconfiados e murmúrios. Era algo que nunca acontecia a Sylvie, que tinha um aspeto quase inteiramente

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francês, mas esta não era a primeira vez que Nicole se sentira alvo de provocações e era o tipo de situações que expunha instantaneamente as suas inseguranças mais profundas.

O vento começou a soprar quando Mark lhe removeu o sangue do rosto com os dedos, que a seguir limpou com um lenço.

— Obrigada — agradeceu Nicole. Lá se foi o ar polido que tanto queria aparentar, pensou, enquanto tentava recompor o cabelo num apanhado que nunca ficava bem feito. Alisou a saia do vestido e pa-rou, lembrando-se de repente quem era o rapaz que a atacara: Daniel Giraud. O pai dele era o chefe da polícia e amigo do pai de Nicole. O que acabara de acontecer não ia ser bem aceite.

— Vamos — disse Mark. — Acho que estamos os dois a precisar de uma bebida.

Ajudou-a a passar por cima das crateras da estrada antes de se encaminharem na direção do Boulevard Henri Rivière, onde con-tinuaram a andar sob a sombra dos tamarindos. Quando estavam mais perto do hotel, Mark abrandou o passo.

— Estás a sentir-te bem?— Estou um bocadinho abalada.Parou de andar para olhar para ele como devia ser. Ele usava

uma camisa xadrez de cores suaves e calças de linho e estava tão es-canhoado como se esperaria de um americano. O seu aspeto era tão agradável com roupas descontraídas como com o fato de gala; talvez até fosse melhor, pensou Nicole. Olhou de relance para o outro lado da rua, onde ficava a residência do Alto Comissário Francês e espe-rou que o pai não estivesse ali; depois passaram pelas portas largas de vidro do Hotel Métropole.

Mark passou a mão pelo cabelo para o alisar para trás e a seguir fez sinal para as mesas de chá.

— Chá ou algo mais forte?Ela sorriu e gesticulou para as janelas duplas que ficavam na

parte de trás do hotel.Ele olhou também para os pórticos largos que rodeavam os jar-

dins do hotel.— Chá, mas lá fora, à sombra — disse Nicole. Do varandim iam

conseguir ouvir a banda a ensaiar música de dança antiquada, inter-calada com canções de Nat King Cole.

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Uma vez no exterior, ele puxou uma cadeira e ela sentiu um aro-ma agridoce, como anis e limão, e sentiu a respiração quente de Mark a bater-lhe na nuca.

Instalaram-se numa mesa ao lado de três oficiais do Exército Francês; um deles riu-se, levantou um charuto no ar e acenou com ele na direção de Nicole. Ela cheirou a espiral de fumo que se esten-deu até si e sorriu-lhe.

— Então e Hanói? Gostas de aqui estar? — perguntou a Mark.— É um local fantástico para a seda.— É esse o teu trabalho?— É sim. Venho numa missão para encontrar seda.— Temos realmente sedas fantásticas aqui, embora eu também

gostasse de ir à China e à Índia. Já lá estiveste?Enquanto bebiam o chá, Nicole observou-o por baixo da franja

espessa. O rosto dele não era completamente harmonioso. De frente era um homem bem-parecido, mas de lado via-se bem que o queixo era um pouco anguloso de mais. O nariz era direito e ela já reparara nas rugas finas que partiam em leque dos cantos dos olhos e que se aprofundavam quando sorria. Ele parecia estar a tentar situar-se enquanto passava os olhos pelo varandim. Nicole sabia perfeitamen-te como ele se sentia. Desesperada por parecer tão francesa como a irmã, aprendera a procurar pelos sinais subtis: o movimento ligeiro da cabeça, um certo ar reservado, embora nunca tenha conseguido reproduzi-los com exatidão; mais do que qualquer outra coisa, para se ser convenientemente francês era preciso exsudar uma sensação de direito natural absolutamente perfeita.

Quando os olhos de Mark se fixaram no seu rosto, Nicole viu que as sombras escuras por baixo deles o faziam parecer um pouco mais velho. Era um homem, não um rapaz, e o primeiro por quem ela se sentia atraída.

— Então e tu? — perguntou ele. — Bem, nós costumávamos viver junto ao rio em Huế e só ví-

nhamos a Hanói para passar o Natal, mas agora já cá vivemos há cinco anos. Tu tens muita sorte. Tudo o que sempre quis foi viajar pelo mundo e comprar seda. — Abanou a cabeça e soltou uma pe-quena gargalhada para si mesma. — Não quero mesmo passar a vida inteira em Hanói.

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Naquele instante apareceu um homem com um cigarro apagado entre os lábios. Falou numa língua estrangeira que Mark entendia. Ele pegou no isqueiro, abriu-o com um estalido e deu lume ao ou-tro homem antes de responder. Seguiu-se um fluxo de palavras que pareciam russo enquanto Mark assumia o controlo da situação. Em-bora se mantivesse com uma atitude calma, o homem parecia estar a discutir — ou pelo menos a falar com um tom de voz alterado — mas acabou por encolher os ombros e afastar-se. Qualquer que fosse o motivo da discussão, Mark tinha aparentemente ganhado.

— Bem — disse Nicole quando o homem já não estava ao alcan-ce da sua voz —, também falas russo? O que se passou?

— Nada de importante — Mark fez uma pausa. — A minha mãe era soviética. Caucasiana. O meu avô paterno era professor univer-sitário e quando ele e a minha avó foram mortos durante a revo-lução, a minha mãe fugiu dos Bolcheviques e foi para a América.

— Mas o teu pai é americano?— Sim. A minha mãe casou com ele pouco tempo depois de

chegar à América e eu nasci logo a seguir. Qualquer coisa no tom de voz dele desencorajou Nicole de fazer

mais perguntas. — Quanto tempo vais ficar por aqui? — perguntou, enquanto

torcia uma madeixa de cabelo entre os dedos. — O tempo que for preciso. O empregado de mesa apareceu com uma bandeja com um bule

branco de chá de jasmim, chávenas e pires a condizer. Nicole semi-cerrou os olhos e olhou para as mãos de Mark enquanto ele agrade-cia ao empregado. Não eram mãos elegantes habituadas a tarefas de escritório, mas mãos grandes acostumadas ao trabalho físico.

Ficaram em silêncio durante algum tempo e quando acabaram de beber o chá ele suspirou, viu as horas e a seguir olhou intensa-mente para ela, com a pele em redor dos olhos enrugada.

— Gostei mesmo muito de te ver, Nicole Duval. És uma lufada de ar fresco.

Ela recostou-se na cadeira e percebeu que não conseguia cruzar os olhos com os dele. Pareciam trespassá-la por completo e ela não queria mostrar-se de uma vez só. Será que um homem como ele poderia algum dia interessar-se por uma rapariga como ela? Quando

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levantou os olhos, Nicole viu-o a endireitar a gravata e a passar a mão pelo cabelo.

— Já te vais embora?Ele assentiu com a cabeça. — Desculpa. Mas tenho um compromisso de trabalho e já estou

atrasado. Foi ótimo voltar a ver-te. Se achares que já estás completa-mente recomposta, posso chamar-te um táxi.

Ela soltou uma gargalhada. — Sabes uma coisa? Já me tinha esquecido daqueles rapazes.— Se quiseres podemos voltar a encontrar-nos, talvez para beber

um café?— Muito bem.— Então bebemos um café de manhã, daqui a três dias? Diga-

mos, às nove e meia? Encontramo-nos no chafariz em frente ao hotel.

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Nicole ficou a olhar intensamente para o turbilhão de cores de um mercado no bairro vietnamita. Era fácil vaguear até ao coração das ruas antigas, entrelaçadas com as vielas aromá-

ticas que cheiravam a gengibre e carvão. Observou as vendedoras a apregoarem os seus produtos com vozes estridentes, com as meias, xailes e bobinas de fio de algodão dispostas em carrinhos cobertos com palha e toldos, enquanto os homens ficavam sentados de per-nas cruzadas em bancos baixos, a lançarem os seus dados sobre o passeio. Os canários cantavam nas gaiolas de bambu penduradas nos toldos das lojas estreitas e o sol iluminava as partículas de pó, fazendo o ar brilhar.

Apesar de toda a beleza, Nicole sentia um ligeiro aperto no co-ração. Depois da partida dos japoneses no fim da Segunda Guerra Mundial e de Ho Chi Minh ter proclamado a independência do Vietname, o governo vietnamita assumira brevemente o poder. Mas os franceses tinham ripostado e, apoiados pelos britânicos e pelos americanos, reconquistaram o seu império na Indochina. A loja de seda esteve fechada durante todo aquele tempo, e conti-nuava fechada, mas mesmo assim Nicole decidira ir dar uma vista de olhos. Sabia que a maior parte das raparigas da sua idade ficaria muito feliz por ter a sua própria loja para gerir, mas ela albergara a esperança, e tinha sido encorajada a acreditar, que o futuro lhe reservava muito mais do que uma simples loja. Não conseguia evi-tar a sensação de desilusão e mágoa provocadas pelo favoritismo do pai.

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A história dos franceses na Indochina, desde o estabelecimento das suas colónias no século xix, tinha sido incutida em Nicole duran-te toda a sua vida; eles elevaram o país com a sua mission civilisa-trice, a missão civilizadora, construíram estradas, escolas e hospi-tais. Mas como Nicole herdara os traços vietnamitas da mãe, parecia demasiado oriental para pertencer inteiramente ao lado francês, mas também era demasiado francesa para pertencer inteiramente ao lado vietnamita. Antes da guerra esta questão não importava, mas agora, com tanta suspeição a pairar no ar, era um facto importante. Observou os olhos das raparigas vietnamitas, cujos chapéus cómicos oscilavam para cima e para baixo enquanto vendiam cebolas fritas e caldos, e conseguiu rever-se nos rostos inexpressivos, mas boni-tos. Ouviu um grito agudo por trás de si. Virou-se e viu um leitão a fugir da sua pocilga improvisada. O bichinho correu desalmado pela rua, passando por uma fileira de galinhas engaioladas e por entre as pernas dos vendedores e clientes do mercado. As aves co-meçaram a bater as asas e a grasnar, e uma mulher gritava enquan-to corria atrás do leitão. Nicole viu o pequeno drama a desenrolar- -se e sorriu. Talvez não fosse assim tão mau estabelecer aqui o seu negócio. Havia sempre qualquer coisa a acontecer e nunca se aborreceria.

Mais para o interior do velho bairro, os telhados ondulados das casas estreitas aninhavam-se uns nos outros como dominós embria-gados. Gostava daquelas 36 ruas estreitas, cada uma delas dedicada à venda de um único artigo: chapéus em Hang Non, pratos e tabu-leiros de cobre em Hang Dong; tecidos de seda em Hang Gai, que era onde viviam os tintureiros de seda e que os franceses conheciam como Rue de la Soie.

Comprou um pão doce com sabor a coco numa banca em Hang Duong, mastigou-o lentamente e continuou a andar até chegar à mais antiga das três lojas que a família tinha em Hanói. Sentou--se no degrau da porta. Era meio-dia em maio e, com exceção da humidade, a exuberância daquele dia ensolarado contagiava todo o local. Ouviam-se gargalhadas, o som de um rádio que passava uma música desafinada e o movimento constante das pessoas, bicicletas e animais que se misturavam à medida que a fragrância das flores--de-lótus inundava o ar. Sentiu-se mais animada.

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Uma jovem mulher, pouco mais do que uma rapariga, na verda-de, que vendia fio de seda com a mãe, saiu da loja do lado. Era mi-núscula, de uma beleza delicada e trazia o cabelo preso numa única trança grossa que lhe caía pelas costas.

— Olá — disse a rapariga. — Esta loja é sua?Nicole levantou-se e fez uma pequena vénia com a cabeça.— Sim, agora é minha.— E vai abrir brevemente? Não é muito bom deixá-la fechada

durante tanto tempo. Nicole olhou de relance para os fardos de tecido desbotado que

continuavam em exposição na janela do primeiro andar que, sem pestanejar, olhavam para o mundo cá fora.

— Talvez.— Chamo-me O-Lan — disse a rapariga. — Quer ir beber um

café?Nicole hesitou, mas a rapariga irradiava simpatia, enquanto espe-

rava pela resposta. — Obrigada. Gostava muito. Posso só dar uma vista de olhos ao

interior da loja e depois vamos?Nicole observou os pássaros de seda que adornavam a janela e

imaginou o espaço com prateleiras cheias de tecidos brilhantes e cortinas novas no andar de cima que ondulariam com a brisa. A ra-pariga do lado era simpática e apesar de a loja de seda ser um pouco velha, não lhe pareceu tão má como estava à espera. Para sua grande surpresa, até estava a gostar da experiência.

Quando entrou na loja ligou as luzes e deu um puxão para abrir as persianas da frente. Estas enrolaram-se com um estalido seco e deixaram cair nuvens de pó. Nicole tapou o nariz e correu pela loja tubiforme até à porta das traseiras, abrindo-as de par em par. No pátio interior para lá das portas, agarrou as flores amarelas das trepadeiras que tapavam a maior parte das paredes do pátio e as janelas do andar de cima. O pátio, aberto para o céu, era povoado por uma dúzia de gatos que dormitavam nas lajes do chão, a apro-veitarem o calor do sol. Os gatos ajudavam a controlar os roedores e outras pestes. O forno de barro, agora apagado, os tachos partidos em cima de um banco corrido e o poço no meio do pátio indicavam que este tinha sido utilizado como cozinha exterior. Deu uma vista

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de olhos rápida à casa de banho simples à esquerda e à cozinha inte-rior e quarto dos empregados aos quais só se acedia através do pátio e que agora se encontravam mergulhados na escuridão. Quando viu uma porta no fundo da despensa da cozinha, abriu-a e percebeu que dava acesso a uma viela estreita. Olhou de relance para o edifício principal, onde uma escada exterior subia em caracol até ao piso de cima e viu que O-Lan tinha na sua varanda vasos de hoa cuc, ou cri-sântemos, cor de laranja e vermelhos. Tomou uma nota mental para comprar também algumas flores.

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Depois de uma noite irrequieta, Nicole foi despertada de-masiado cedo por um sonho recorrente. Só que desta vez não era um pesadelo que a fazia transpirar. Desta vez

tudo acontecia num dia sem vento, quando a bruma lilás ficava sus-pensa sobre o rio como um oceano infinito. Sentia-se como se es-tivesse a afundar-se numa piscina cor de lavanda; por cima dela, a luz do sol brilhava com uma intensidade crescente sobre a água, até que o globo amarelo do Sol enchia todo o horizonte. O segredo era não se debater. A pior parte do sonho era o cheiro terrível a peixe e o facto de, por um instante, Sylvie também ter aparecido nele. Isto dei-xou Nicole perturbada e a sensação continuou até depois de o sonho acabar. Dizem que nunca morremos nos nossos próprios sonhos e que se morrermos isso significa que já não acordamos — por isso a morte permanece sempre um mistério, até em sonhos.

O dia em que se mudaram de Huế para Hanói foi um daqueles dias gloriosos de céu azul com um vento fresco soprado da China, sem ponta de humidade. Nicole olhou para a água gelada do Rio Perfume que dividia Huế e soube que, apesar de tudo, iria ter mui-tas saudades da sua casa na margem sul do rio, ornamentada de árvores.

Aqui em Hanói não tinha rio para admirar, mas as traças bania-nas e as árvores frangipani oscilavam com a brisa, a chuva já tinha passado e à medida que o sol começava a pôr-se sobre o jardim, os pavões da casa ao lado dedicaram-se a dormir. Desceu as escadas e encontrou Lisa, que normalmente se levantava às cinco da manhã

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para ligar a caldeira. Naquele dia estava lenta, sem querer cooperar, e a sala encheu-se de fumo. Enquanto se ajoelhava junto à caldeira, Lisa afastou o cabelo dos olhos e deixou marcas de carvão no rosto.

— Maldito monstro velho!Nicole soltou uma gargalhada. — Estás a falar do meu pai?Lisa endireitou-se e esfregou as costas.— Claro que não. Estou a falar desta sucata do caraças!— Olha a língua — disse Nicole enquanto abria a porta das tra-

seiras para deixar sair o fumo. — Acordaste tão cedo porquê, minha flor?— Não consegui dormir mais.Lisa continuou a mexer na fogueira e o calor começou a aumen-

tar. Levantou-se com as mãos nas ancas, num gesto de exasperação. — Pronto, já está. Vou fazer o café. E então, há novidades?Nicole encolheu os ombros. De cada vez que pensava na injusti-

ça da decisão do pai sentia os olhos a encherem-se de lágrimas. — Ele deu-me a velha loja de sedas, mais nada.Lisa fez um estalido com a língua e resmungou; depois limpou a

mesa com movimentos amplos enquanto dizia:— Bem, acho que todos temos de começar por algum lado. Ago-

ra senta-te.Nicole puxou uma cadeira.— Todos menos a Sylvie. Ela recebeu tudo de bandeja e nem se-

quer sabe tanto sobre seda como eu. Porque é que ele é tão injusto?Lisa encheu a boca de ar e prendeu as mechas de cabelo solto

atrás das orelhas. — Há coisas que… não sei bem. Mas depois de a tua mãe morrer… Nicole interrompeu-a.— Ele culpa-me por isso, não culpa?— Agora já não.— Mas culpava?Lisa hesitou, como se houvesse qualquer coisa que não estava

preparada para divulgar.— Minha querida menina, isso já foi há tanto tempo. Porque

não olhas para o futuro? Prova-lhe que consegues sair-te bem. — Fui ver a loja velha.

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Lisa inspirou rapidamente.— O quê?— Bem, ouvi dizer que tinha explodido uma bomba no bairro

velho. Só espero que agora já seja seguro. — Os revolucionários vietnamitas estão perto de Hanói?— Provavelmente não. Mas sabes como são os mexericos.Seguiu-se um momento de calmaria.— Queres que te dê um jeito nos ombros?Nicole assentiu com a cabeça e Lisa contornou a mesa para se

colocar atrás dela. Depois começou a massajá-la para desfazer os nós. — Nesse caso, está na tua mão voltares a encher aquela loja de

vida. — Acho que está. A verdade é que gostei muito dela.Lisa parou a massagem e Nicole virou-se para olhar para ela.

Alguma coisa trespassou o rosto da cozinheira e a rapariga reparou que os seus olhos estavam húmidos.

— Eu sempre te amei, pequenina. — Lisa voltou a hesitar. — E sei que as coisas têm sido difíceis para ti.

Nicole sentiu um nó a formar-se na garganta. Lisa suspirou.— Acho que o teu pai tem a sua própria culpa sobre os ombros e

talvez a descarregue sobre ti de vez em quando. — Porque havia ele de se sentir culpado?Lisa abanou a cabeça.— Nicole, não sejas tão dura com a tua irmã. Ela também sofreu.

Não deixes que aquele seu ar indiferente te engane… E eu sempre tentei dar o meu melhor para compensar o que aconteceu.

— O que aconteceu em Huế não foi culpa tua. — Tens de tentar fazer o melhor que conseguires daquela loja,

meu amor. Vá, anda cá. — Abriu os braços de par em par, e Nicole levantou-se para a abraçar.

Quando os braços da Lisa a envolveram, Nicole não conseguiu impedir que uma torrente de lágrimas lhe caísse pelo rosto. Lisa fez--lhe festas nas costas e quando Nicole se afastou para limpar o rosto, a cozinheira sorriu.

— Pronto, assim está melhor. Uma boa choradeira nunca fez mal a ninguém. Não é assim tão mau quanto possas pensar.

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— Não é?— Não. Até pode ser melhor assim, sabes?

O quarto de Sylvie tinha as paredes pintadas do mais suave tom de amarelo, o chão estava coberto de tapetes brancos e havia corti-nas de brocado pálido nas janelas. Naquele entardecer, Nicole ba-teu à porta do quarto da irmã, entrou e sentou-se sobre a colcha de cetim.

Nicole inspirou enquanto a brisa leve vinda do jardim trazia con-sigo o cheiro a fumo e a relva acabada de cortar. O quarto ainda estava ensolarado e só o ruído de um ramo que se agitava na rua per-turbava o silêncio. Sylvie já tinha vestido o pijama de seda branca e escovado o longo cabelo ruivo ondulado que andava a deixar crescer há anos; agora exibia-o orgulhosamente, porque lhe chegava quase à cintura e não tinha uma única ponta espigada. Quando começou a escrever no diário, sentada no toucador junto à janela, Nicole olhou para a fila organizada de livros na estante, para os delicados orna-mentos de vidro na prateleira por cima da cama da irmã e para as rosas amarelas e brancas sobre o toucador. A seguir desembrulhou um caramelo e começou a chupá-lo. O quarto da irmã era sacrossan-to, havia um lugar específico para cada objeto; se ela tivesse amor à vida, não tocaria em absolutamente nada.

— Ontem tomei chá com o Mark Jenson — disse Nicole. — No hotel. Estavam lá alguns oficiais e havia música.

— Estou a tentar concentrar-me.— Gosto bastante do Mark. Ele tem os olhos azuis mais extraor-

dinários de sempre, não tem?Sylvie inclinou ligeiramente a cabeça e fez uma pausa antes de

falar:— Ele não é um pouco velho demais para ti?Nicole levantou os olhos para o teto. Seria velho demais? Voltou

a olhar para a irmã.— Estás a escrever sobre o quê?— Estás entediada, Nicole? — Sylvie fechou o diário de capa de

couro e começou a limar as unhas.Nicole invejava as unhas perfeitas da irmã, cada uma perfeitamen-

te limada com a mesma curvatura. As suas unhas lascavam com a

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maior das facilidades e com o baile de verão a aproximar-se rapida-mente — era o primeiro a que Nicole ia — tinha de cuidar das unhas.

— O que vais usar no baile? — perguntou.— É segredo.Nicole decidiu que iria esperar até que a irmã saísse e depois ia

revistar-lhe o quarto.— Sei o que estás a pensar e aviso-te já que não está aqui!Nicole soltou uma gargalhada. — Quando é que aprendeste a ler o pensamento das pessoas?Sylvie abanou a cabeça e olhou intensamente para a irmã, com

os olhos cor de avelã brilhantes como um espelho perfeito.— Tu tens o coração ao pé da boca. És demasiado transparente.Sylvie era exatamente o oposto. As duas irmãs não podiam ser

mais diferentes. Nunca se sabia o que Sylvie estava a pensar ou a sentir.

— Nunca sentiste uma vontade imensa de correr para o meio da rua e dançar nua sob as estrelas? — perguntou Nicole.

Sylvie soltou uma gargalhada.— Tu já?Nicole fitou a irmã. Porque parecia sempre tão calma? Enquanto

Sylvie parecia mal se dar conta da injustiça da situação em que se encontravam, Nicole não conseguia pensar noutra coisa.

— Diz-me porque é que o papá te deu a empresa inteira.A irmã agitou um frasco de verniz cor-de-rosa e começou a pin-

tar as unhas.— Sabes bem porquê. Ele vai concentrar-se no trabalho para o

governo.— E sabes que trabalho é esse?Sylvie voltou a levantar os olhos e Nicole viu uma gota de verniz

a cair no chão. Sylvie pegou num lenço de papel e limpou o verniz. Viu o papel do caramelo da irmã, agachou-se, pegou nele e colocou-o no lixo.

— Então?— Sei tanto como tu, chérie. — E continuou a pintar as unhas.

— O que eu quero saber é se vais aceitar a oferta da loja de seda ou não? Porque se vais, temos de organizar algum tipo de proteção na zona.

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— Proteção? — Só como precaução.Nicole fitou as feições da irmã e interiorizou a simetria perfeita

do seu rosto. Toda a gente invejava a pele imaculada de Sylvie e as suas maçãs do rosto finamente esculpidas; ela era a rapariga que tinha tudo. Por sua vez, Sylvie parecia estar também a estudar as feições da irmã, mas depois baixou os olhos e acabou de pintar a última unha.

No dia seguinte, nuvens negras sufocantes reuniram-se sobre a cidade e o tempo pareceu ficar pesado. Nicole mal podia esperar pela manhã seguinte, pelo seu encontro com Mark, e cirandou pela casa e pelo jardim numa espécie de antecipação. Queria falar com o pai a respeito da loja, mas ele parecia ainda mais distraído do que o habitual; quando Nicole sentiu que já não conseguia esperar mais, entrou-lhe pelo escritório adentro na esperança de o encontrar sozi-nho. Infelizmente interrompeu uma visita de um mandarim de topo vietnamita, no preciso instante em que este estava a falar de uma rede clandestina que operava em Haiphong.

— Então? O que queres agora? — perguntou o pai com brusqui-dão. — Estou a meio de uma conversa privada.

— Não ouvi nada — disse ela, sentindo-se constrangida. — Só que-ria dizer-te que aceito a oferta da loja.

— Muito bem. Fala com a Sylvie.As palavras «fantoche francês» ecoaram nos seus ouvidos

quando ia a sair do escritório. Estas palavras tinham sido toscamen-te pintadas a vermelho mais do que uma vez no muro do jardim da vizinha, Madame Hoi. Seria possível que o pai fosse o mestre dos fantoches? Ficou surpreendida quando, parecendo mudar de ideias, ele veio atrás dela, fechando a porta do escritório atrás de si.

— Recebi um telefonema a fazer queixa de ti — disse ele em voz baixa. — E devo dizer-te que fiquei muito mal impressionado.

— Que queixa? — Passou revista mental a todas as coisas que tinha feito e que o pai pudesse objetivamente repudiar.

— Diz respeito ao Daniel Giraud. Aparentemente apontaste-lhe uma faca anteontem. O que diabo andavas a fazer com uma faca?

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Nicole sentiu-se a ficar cada vez mais quente. O pequeno idiota não perdera tempo em fazer queixa dela. Prendeu o cabelo atrás das orelhas.

— Não foi isso o que aconteceu. Quem tinha a faca era ele. Vê, ainda tenho o corte que me fez aqui no rosto! Não fui eu que apontei a faca a ninguém.

— Ele é um rapaz pequeno. E tímido.— Pode ser isso que aparenta, mas…Foi interrompida bruscamente pela voz do pai.— Não admito que uma filha minha ande por aí a comportar-se

como um rufia. Vais escrever-lhe uma carta a pedir desculpa.— Eles estavam a intimidar a Yvette. O rapaz é um racista, exata-

mente como o pai dele. — Isso não importa, é o que vais fazer e pronto — disse o pai.

— O pai dele pode ser um racista, mas é o novo chefe da polícia e se não fosse meu conhecido, este assunto teria tido consequências mais sérias.

A seguir apontou para a rua.— A melhor coisa que podes fazer com uma faca é cortar o pes-

coço àqueles malditos pássaros. Deu meia volta sobre os calcanhares e voltou para o escritório. Depois de o pai se ir embora, Nicole ficou a ouvir os sons do

mundo através da janela aberta e algum tempo depois ouviu-o a acompanhar a visita à porta antes de voltar ao jardim das traseiras. Os passos do pai começaram por ser sonoros, mas depois o ruído cessou, por isso foi atrás dele e viu que estava sentado num banco virado para o lago, agora coberto com flores. O aroma doce das flores deslizava pelo ar, mas o pai estava a segurar a cabeça com as mãos, sem se aperceber do que o rodeava. Levantou a cabeça, arrancou uma rosa de uma roseira próxima, cheirou-a e a seguir deitou-a ao chão, para a pisar com o calcanhar.

Apesar das diferenças que existiam entre os dois e da paciên-cia do pai que parecia cada vez mais reduzida, Nicole sabia que ele andava preocupado com a agitação que se vivia no país. Não queria chamar-lhe uma guerra, embora fosse do conhecimento comum que, não muito longe da cidade de Hanói, batalhas estavam a ser travadas e perdidas.

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Àquela hora os insetos esvoaçavam por todo o lado e o jardim era invadido por um movimento constante provocado por uma brisa que fazia restolhar as folhas. Observou os ramos da figueira-dos- -pagodes a agitarem-se para um lado e para o outro e os pássaros que voavam junto ao lago. Uma leve bruma pairou sobre a água enquan-to colhia algumas margaridas silvestres e conversava com o jardinei-ro em vietnamita, que regava as hortênsias.

Quando o pai reparou que ela estava ali, fez-lhe sinal para se aproximar e chegou-se para o lado no banco, para lhe dar espaço para se sentar.

— Desculpa se fui brusco contigo. Fico contente por teres deci-dido ficar com a loja.

— E eu peço desculpa por ter sido ingrata. — Fez uma pausa. — Posso fazer-te uma pergunta, papá?

— Claro que sim.— É verdade que os revolucionários vietnamitas estão a aproxi-

mar-se cada vez mais de Hanói?Ele fitou-a.— Porque dizes isso?— Porque ouvi alguns boatos. A Lisa ouviu qualquer coisa sobre

uma bomba que rebentou no bairro velho. E tens andado tão preo-cupado que achei que talvez fosse por isso.

— É um disparate. E mesmo que os revolucionários consigam o apoio de algumas das aldeias rurais, jamais conseguirão derrotar o exército francês. — Tirou um jornal do bolso do casaco. — Estás a ver? Não houve bomba nenhuma.

Nicole leu os cabeçalhos. Era verdade, a existência da bomba fora negada, mas também leu que um oficial francês tinha sido assassi-nado por um vietnamita que se escondera num bosque de bambus.

Apontou para a notícia.— E este assassinato?— Uma infelicidade, mas as lutas estão muito longe, nos campos

de arroz e nas montanhas. Quem está a sofrer são os camponeses. — Odeias os vietnamitas?O pai pareceu ficar surpreendido com a pergunta.— Claro que não. A tua mãe era vietnamita. Mas nós, os france-

ses, fizemos do país aquilo que ele é hoje. Nós e apenas nós. E só nós

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o podemos governar como deve ser. Agora tenho de ir. Tenho uma reunião tardia com o Mark Jenson.

— Ele é simpático, não é?O pai franziu o sobrolho.— É melhor não te aproximares demasiado dele, Nicole.— Porque não? Ele é apenas um comerciante de seda.O pai não lhe respondeu. — Amanhã vou começar a tratar da loja, se puder ser. Vou fazer

uma limpeza. O pai deu-lhe uma palmadinha na mão e foi-se embora. A noite aproximava-se e quando a escuridão viesse seria de for-

ma abrupta. Nicole olhou para as árvores e conseguiu distinguir suavemente o canto dos pássaros noturnos por cima do barulho das panelas de Lisa, na cozinha. Puxou o xaile de lã à volta dos ombros e sentiu que estava à beira de um precipício que separava dois mun-dos diferentes; um feito de atividade humana, onde por vezes sentia tanta dificuldade em adaptar-se e outro composto apenas pela natu-reza. As regras eram diferentes em ambos os mundos. Enquanto observava o céu alaranjado a tingir a água do lago em tons de ama-relo brilhante, apercebeu-se de qualquer coisa desconhecida no seu interior. Era uma sensação de formigueiro e entusiasmo que tinha tudo que ver com Mark. Não sabia por que motivo o pai a avisa-ra para não se aproximar muito dele, mas decidiu ignorar o aviso. Quando o vento voltou a soprar ouviu-se o movimento das folhas, seguido pelo ranger dos ramos da figueira-dos-pagodes e pelo estalar do seu tronco. Quando a escuridão completa a envolveu, imaginou que o Mark estava ali sentado ao seu lado.

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