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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 32, n. 4, 4302 (2010) www.sbfisica.org.br A for¸ca eletromotriz de movimento e os fundamentos da teoria eletromagn´ eticacl´assica (Motional electromotive forces and the foundations of the classical electromagnetic theory) Paulo Henrique Dionisio 1 Instituto de F´ ısica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil Recebido em 19/12/2009; Aceito em 10/3/2010; Publicado em 25/2/2011 Discute-se, aqui, uma quest˜ao relevante acerca da explica¸c˜ ao de certos fenˆomenos, quais sejam aqueles em que surge uma for¸ca eletromotriz de movimento em situa¸c˜ oes tais que a lei de Faraday n˜ao se aplica. Na esteira desta discuss˜ao, comentam-se outras quest˜oes a respeito da teoria eletromagn´ etica cl´assica, como a sua estrutura axiom´aticaesuarela¸c˜ ao com a teoria da relatividade. Palavras-chave: for¸ ca eletromotriz de movimento, lei de Faraday, equa¸c˜oes de Maxwell, teoria da relatividade. We discuss here an important question concerning the explanation of some phenomena in which a motional electromotive force appears, by using Faraday’s law under conditions where it does not apply. In addition, this discussion gives rise to comments on subjects such as the axiomatic structure of the classical electromagnetic theory and its relation with relativity. Keywords: motional electromotive force, Faraday’s law, Maxwell equations, relativity. Para a L´ ıgia, minha aluna de teoria eletromagn´ etica “O meu dever cultural ´ e pensar por mim, sem obediˆ encia a outrem – nullius addictur jurare in verba magistri ; o meu dever cultural ´ e registrar pela palavra escrita, grafando como entendo que devo, o que pensei. Assim se cria a cultura e portanto a civiliza¸c˜ ao.” Fernando Pessoa 1. Introdu¸c˜ ao Propomos discutir, neste artigo, uma abordagem fre- quentemente utilizada em textos de f´ ısica b´asica para cursos universit´ arios, ao tratarem de determinada classe de fenˆomenos relacionados com a indu¸c˜ ao eletro- magn´ etica. Os fenˆomenos a que nos referimos s˜ao aque- les em que se induz uma for¸ca eletromotriz (abreviada- mente, fem) em um objeto met´alico que se move sujeito a um campo magn´ etico uniforme e estacion´ario. 2 Como exemplos, temos os seguintes casos: um bast˜ao ou haste met´alica que se move perpendicularmente a si pr´oprio e ao campo magn´ etico (Fig. 1a), uma haste met´alica que gira sobre um plano perpendicular ao campo magn´ etico presa por uma das extremidades (Fig. 2a) e o d´ ınamo de disco de Faraday, tamb´ em conhecido como gerador homopolar (Fig. 2b). A abordagem em discuss˜ao con- siste em explicar tais fenˆomenos com base na lei de Faraday. Esta lei, como se sabe, estabelece que a fem induzida em um circuito fechado 3 vale a varia¸c˜ ao tem- poral do fluxo magn´ etico atrav´ es da ´area por ele deli- mitada ε = - dΦ dt = - d dt ZZ A B · dA, (1) onde ε ´ e a fem induzida no circuito, A ´ e a ´area por ele delimitada, B ´ e a indu¸c˜ ao magn´ etica ou densidade de fluxo magn´ etico, Φ ´ e o fluxo magn´ etico atrav´ es da ´ area A e o sinal tem a ver com o sentido da corrente el´ etrica induzida. Ora, nos casos mencionados acima, 1 E-mail: [email protected]. 2 Um campo vetorial ´ e dito uniforme quando, a qualquer instante, possui mesmo m´odulo, mesma dire¸c˜ao e mesmo sentido em todos os pontos da regi˜ao considerada. ´ E dito estacion´ario quando, em qualquer ponto do espa¸co, n˜ao se altera com o passar do tempo. 3 Neste trabalho, tratamos apenas de objetos met´alicos filamentares: fios que percorrem uma ´ unica trajet´oria de uma extremidade a outra, sem se entrecruzarem ou se superporem, aos quais nos referimos genericamente como “circuitos”. Tais circuitos podem ser fechados ou abertos, conforme suas extremidades se unam ou n˜ao. A ´ unicaexce¸c˜aoser´aod´ ınamo de disco de Faraday. Tendo em vista nossos objetivos, isto n˜ao implica perda de generalidade. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 32, n. 4, 4302 (2010)www.sbfisica.org.br

A forca eletromotriz de movimento

e os fundamentos da teoria eletromagnetica classica(Motional electromotive forces and the foundations of the classical electromagnetic theory)

Paulo Henrique Dionisio1

Instituto de Fısica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, BrasilRecebido em 19/12/2009; Aceito em 10/3/2010; Publicado em 25/2/2011

Discute-se, aqui, uma questao relevante acerca da explicacao de certos fenomenos, quais sejam aqueles emque surge uma forca eletromotriz de movimento em situacoes tais que a lei de Faraday nao se aplica. Na esteiradesta discussao, comentam-se outras questoes a respeito da teoria eletromagnetica classica, como a sua estruturaaxiomatica e sua relacao com a teoria da relatividade.Palavras-chave: forca eletromotriz de movimento, lei de Faraday, equacoes de Maxwell, teoria da relatividade.

We discuss here an important question concerning the explanation of some phenomena in which a motionalelectromotive force appears, by using Faraday’s law under conditions where it does not apply. In addition, thisdiscussion gives rise to comments on subjects such as the axiomatic structure of the classical electromagnetictheory and its relation with relativity.Keywords: motional electromotive force, Faraday’s law, Maxwell equations, relativity.

Para a Lıgia, minha aluna de teoria eletromagnetica

“O meu dever cultural e pensar por mim, sem obediencia a outrem – nullius addictur jurare in verbamagistri ; o meu dever cultural e registrar pela palavra escrita, grafando como entendo que devo,o que pensei. Assim se cria a cultura e portanto a civilizacao.”

Fernando Pessoa

1. Introducao

Propomos discutir, neste artigo, uma abordagem fre-quentemente utilizada em textos de fısica basica paracursos universitarios, ao tratarem de determinadaclasse de fenomenos relacionados com a inducao eletro-magnetica. Os fenomenos a que nos referimos sao aque-les em que se induz uma forca eletromotriz (abreviada-mente, fem) em um objeto metalico que se move sujeitoa um campo magnetico uniforme e estacionario.2 Comoexemplos, temos os seguintes casos: um bastao ou hastemetalica que se move perpendicularmente a si proprio eao campo magnetico (Fig. 1a), uma haste metalica quegira sobre um plano perpendicular ao campo magneticopresa por uma das extremidades (Fig. 2a) e o dınamo

de disco de Faraday, tambem conhecido como geradorhomopolar (Fig. 2b). A abordagem em discussao con-siste em explicar tais fenomenos com base na lei deFaraday. Esta lei, como se sabe, estabelece que a feminduzida em um circuito fechado3 vale a variacao tem-poral do fluxo magnetico atraves da area por ele deli-mitada

ε = −dΦdt

= − d

dt

∫∫

A

B · dA, (1)

onde ε e a fem induzida no circuito, A e a area porele delimitada, B e a inducao magnetica ou densidadede fluxo magnetico, Φ e o fluxo magnetico atraves daarea A e o sinal tem a ver com o sentido da correnteeletrica induzida. Ora, nos casos mencionados acima,

1E-mail: [email protected].

2Um campo vetorial e dito uniforme quando, a qualquer instante, possui mesmo modulo, mesma direcao e mesmo sentido em todosos pontos da regiao considerada. E dito estacionario quando, em qualquer ponto do espaco, nao se altera com o passar do tempo.

3Neste trabalho, tratamos apenas de objetos metalicos filamentares: fios que percorrem uma unica trajetoria de uma extremidadea outra, sem se entrecruzarem ou se superporem, aos quais nos referimos genericamente como “circuitos”. Tais circuitos podem serfechados ou abertos, conforme suas extremidades se unam ou nao. A unica excecao sera o dınamo de disco de Faraday. Tendo em vistanossos objetivos, isto nao implica perda de generalidade.

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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nao se configura a existencia de um circuito fechado e,portanto, nao ha uma area atraves da qual se possacalcular o fluxo. Mesmo assim, alguns autores calcu-lam a fem induzida usando a lei de Faraday, medianteo emprego de artifıcios tais como importar indevida-mente resultados de situacoes onde a lei se aplica ouintroduzir elementos estranhos ao seu conteudo origi-nal, como “circuitos imaginarios” e “areas varridas”.4

A abordagem alternativa ao uso da lei de Faradaynessas situacoes consiste em considerar a forca eletro-motriz sob o ponto de vista microscopico. O classico deSlater e Frank [1, p. 79] estabelece com precisao:

By definition, the emf around a circuitequals the total work done, both by electricand magnetic forces and by any other sortof forces, such as those concerned in chemi-cal processes, per unit charge, in carrying acharge around the circuit.

Assim,

ε =1q

∮F · d`. (2)

Nas situacoes abrangidas pela lei de Faraday, a forcaeletromotriz e dita induzida. Nos casos em que se tratade fem de movimento, os portadores de carga eletricadentro do objeto metalico, com ele arrastados no campomagnetico, sofrem uma forca magnetica FM = qv×Bque os desloca ao longo do circuito [2, p. 16-2; 3, p. 349-350], de modo que

ε =∮

v×B · d`. (3)

Nas situacoes que propomos discutir, como nao hacircuito fechado, a forca magnetica faz com que os por-tadores de carga se acumulem em determinadas regioes,ficando o objeto polarizado. As Eqs. (2) e (3) podemser usadas calculando-se a integral ao longo de um per-curso que conecta as regioes onde se acumulam as car-gas de sinais contrarios [4, p. 143, 283]

ε =1q

∫ +

−F · d` (2a)

ε =∫ +

−v×B · d`. (3a)

Nas secoes seguintes, confrontaremos essas duasabordagens, mostrando como se relacionam e dis-cutindo a sua validade. Embora sem a intencao deaprofundar a discussao a respeito de aspectos episte-mologicos relacionados a construcao e a estrutura das

teorias fısicas, procuraremos caracterizar o posiciona-mento das abordagens em confronto frente a estru-tura axiomatica da teoria eletromagnetica classica. Co-mentaremos tambem, brevemente, a relacao entre estateoria e a teoria da relatividade. Evitaremos o uso docalculo vetorial e de recursos matematicos mais elabo-rados, de modo a manter o texto compatıvel com otratamento usualmente dado ao assunto nos livros defısica universitaria basica.

Como exemplo de texto didatico que privilegia ocalculo da fem de movimento pela lei de Faraday,pode-se mencionar o popular livro de David Hallidaye Robert Resnick, ao longo de suas sucessivas edicoes[5]. Como exemplo de texto que enfatiza o papel daforca magnetica, temos o classico Sears e Zemansky.Em edicoes mais antigas [6, p. 689], estes autores inici-avam o estudo da inducao eletromagnetica pela analiseda situacao da Fig. 1a, que de imediato resolviamseguindo os passos da Eq. (3a). Em edicoes mais re-centes [4, cap. 30], adotam a sequencia de topicos maisfrequentemente usada, qual seja iniciar o assunto apre-sentando as experiencias de Faraday e a Eq (1), masmantem a discussao da situacao da Fig. 1a e sua solucaopela Eq. (3a). O livro de A.S. Chaves [7, secao 23.7]pode ser citado como um texto que trata o assunto comobjetividade e precisao.

2. As duas abordagens

A primeira abordagem a ser discutida consiste em usara lei de Faraday para calcular a fem de movimento emcasos como os mencionados na Introducao. Vejamos osartifıcios frequentemente utilizados para este fim.

Um primeiro artifıcio consiste em importar resul-tados de situacoes onde a lei de Faraday se aplica.Em geral, os textos didaticos destinados a cursos uni-versitarios de fısica basica iniciam a exposicao do as-sunto “inducao eletromagnetica” pela apresentacao dasleis de Faraday e Lenz, Eq. (1), exemplificando suaaplicacao com casos como o ilustrado pela Fig. 1b: umahaste metalica de comprimento ` desliza sobre trilhosmetalicos em forma de U, com os quais esta em contato,constituindo o conjunto um circuito retangular de areavariavel, sujeito a um campo magnetico perpendicularao seu plano (B e a inducao magnetica). Da lei de Fara-day resulta que a fem induzida no circuito vale ε = B`v.Mais adiante, ao apresentarem a situacao da Fig. 1a,alguns textos argumentam que, na Fig. 1b, a causada inducao e o movimento da haste e que, portanto,nela reside a fem induzida. Argumentam tambem que,sendo a haste o sujeito e o objeto da fem induzida, ofenomeno da inducao ocorrera mesmo na ausencia dasdemais partes do circuito, de modo a concluırem que a

4O autor deste texto relata ver-se frequentemente envolvido em discussoes com colegas sobre o assunto proposto. Curiosamente, taisdiscussoes so ocorrem no estrito cırculo em que se decide a publicacao de um artigo, estando ele as vezes na posicao de autor, instado adefender seu ponto de vista frente aos arbitros, outras vezes na posicao de arbitro, cioso de convencer os autores de sua posicao. Comotais discussoes as vezes adquirem contornos ideologicos, parece-lhe oportuno esclarecer o assunto a luz do dia.

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haste, mesmo isolada como na Fig. 1a, fica sujeita auma fem induzida

ε = B`v. (4)

Ora, a lei de Faraday descreve o sistema sob umponto de vista macroscopico. Isto significa, conside-rando-se o caso especıfico da Fig. 1b, que surge umafem induzida ε = B`v no circuito como um todo, sendoque, no calculo, ` representa a largura do retangulo enao o comprimento de um de seus lados em particular.Nao se pode, apenas com base nessa lei, estabelecerque fracao da fem induzida cabe a qual parte do cir-cuito. Tambem nao se pode atribuir funcao especıficaa qualquer parte do circuito, sendo impossıvel afirmarque esta ou aquela parte seja dispensavel no processo.Assim, a simples transposicao do resultado da situacaoda Fig. 1b para a situacao da Fig. 1a resulta indevida.

O segundo artifıcio e um passo adiante do primeiro.Uma vez que o resto do circuito nao influencia nemo processo nem o resultado, ele nao precisa existir defato, basta imagina-lo. Na situacao da Fig. 2a, porexemplo, pode-se considerar que o arco ab e o raio accomponham com a haste movel bc um circuito fechadoimaginario. Como a area do setor circular abc vale

A = θ`2/2, a aplicacao da lei de Faraday resulta em(sem levar em conta o sinal)

ε =dΦdt

=d(Bωt`2)

dt=

Bω`2

2. (5)

Os mesmos argumentos anteriores sao entao usadospara dispensar o circuito auxiliar e atribuir essa feminduzida a haste girante, mesmo isolada. As mesmasobjecoes anteriores invalidam tambem este artifıcio.

Recorre-se as vezes ao artifıcio de calcular o fluxomagnetico atraves da area varrida pela haste. Esteprocedimento decorre da constatacao de serem os cir-cuitos imaginarios estabelecidos de forma arbitraria.No caso da Fig. 2a, por exemplo, podemos criar umainfinidade de circuitos imaginarios simplesmente mu-dando a posicao do ponto a, mas a aplicacao da leide Faraday dara sempre o mesmo resultado, pois avariacao temporal do fluxo nao depende da area do cir-cuito em si, mas apenas de sua variacao. Dito de outromodo, o que importa e a variacao do fluxo atraves da“area varrida” pela haste em seu movimento. Assim, seela leva um certo tempo t para varrer o setor circular deabertura angular θ, o fluxo atravιs dessa area varridavalera Φ = Bωt`2/2, cuja variacao temporal repete oresultado da Eq. (5).

Figura 1 - a) Uma haste metalica de comprimento ` move-se em uma regiao do espaco onde atua um campo magnetico uniforme eestacionario (B e a inducao magnetica). A haste fica polarizada conforme indicado. b) Uma haste metalica desliza sobre trilhos metalicoscom os quais esta em contato, de modo que o conjunto constitui um circuito fechado. Na presenca do campo magnetico, o circuito epercorrido por uma corrente eletrica induzida no sentido indicado.

Figura 2 - a) Uma haste metalica de comprimento ` gira com velocidade angular ω, presa por uma de suas extremidade, sobre um planoperpendicular ao campo magnιtico, varrendo um cırculo de raio igual ao seu comprimento. Nas condicoes da figura, a extremidade cadquire polaridade positiva e a extremidade b, negativa. b) O dınamo de disco de Faraday ou gerador homopolar: um disco metalicogira com velocidade angular ω sujeito a um campo magnetico uniforme e estacionario paralelo ao seu eixo. O centro e a borda do discoficam polarizados conforme indicado.

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Figura 3 - a) Um portador de carga eletrica em um dınamo de disco de Faraday fica sujeito a uma forca magnetica F = qv×B. b) Odınamo de disco em funcionamento.

Apesar da identidade formal entre o uso da area var-rida e o calculo pela lei de Faraday, ha uma diferencaessencial: a lei de Faraday aplica-se a um ente fısicoconcreto, qual seja um circuito real; ja a area varrida eum ente hipotetico, abstrato. A discussao, na proximasecao, do caso ilustrado pela Fig. 5a esclarecera estadiferenca.

Outro procedimento, que nao e propriamente umartifıcio, consiste em elevar a expressao ε = B`v, queexpressa a fem de movimento na situacao da Fig. 1a,a condicao de “formula feita”. Na Fig. 2a, por exem-plo, a haste girante pode ser subdividida em hastes decomprimento infinitesimal d`, cabendo a cada uma, deacordo com a “formula”, uma fem induzida dε = Bvd`.Fazendo v = ωr, onde r e a distancia de um elementogenerico ao ponto central C e integrando ao longo docomprimento da haste, obtem-se o mesmo resultado daEq. (5). Este procedimento e correto, mas, caso a“formula” nao haja sido previamente obtida de maneiraadequada, transforma-se em um artifıcio para contornara ausencia de uma explicacao fısica consistente para ofenomeno.

Em oposicao a essa primeira abordagem, que analisao sistema sob um ponto de vista macroscopico, pode-seconsiderar a origem da fem de movimento sob um pontode vista microscopico. Esta sera a nossa segunda abor-dagem. Tomemos como exemplo o dınamo de disco deFaraday. Seja ` o seu raio. A Fig. 3a mostra um por-tador de carga eletrica positiva dentro do disco, sendocom ele arrastado em uma trajetoria circular, animadoportanto de uma velocidade tangencial v e sujeito auma forca magnetica radial F = qv × B. De acordocom a Eq. (3a)

ε =∫ C

A

v×B · d` =

C∫

A

ωrBd` =Bω`2

2. (6)

Comparando com a Eq. (5), ve-se que as fem demovimento induzidas na haste e no disco sao de igualvalor, se ` e ω e B forem os mesmos.

A Fig. 3b mostra o dınamo de disco em funciona-mento. Um resistor R tem suas extremidades conec-

tadas por meio de escovas ao centro e a borda do disco,de modo que o conjunto forma um circuito fechado. Oresistor fica sujeito a uma fem dada pela Eq. 6, demodo que, desprezando-se a resistencia eletrica dos de-mais componentes do conjunto, a corrente eletrica i queo percorre vale Bω`2/2R. Em suma, o disco girantefaz o mesmo papel que faria uma pilha ou bateria deigual “voltagem”. Note-se que nao ha variacao de fluxomagnetico atraves do circuito e portanto, pela descricaomacroscopica do fenomeno, a fem induzida deveria sernula. Temos aı uma situacao em que a lei de Faradaye violada [2, secao 17-2; 7, p. 140].

E forcoso reconhecer que, nas situacoes aqui estu-dadas, o calculo da fem induzida via forca magneticasobre os portadores de carga (segunda abordagem) e di-reto, de facil compreensao e pleno de significado fısico,pois reflete o carater magnetostatico do fenomeno. Jaa descricao macroscopica via lei de Faraday (primeiraabordagem) recorre a argumentos desnecessariamentesofisticados e inadequados e nao esclarece a origemfısica do fenomeno [8, secao IV]. No caso do dınamo dedisco, nem mesmo o recurso a um circuito imaginarioou a uma area varrida parece ser possıvel. De fato, tex-tos que apresentam a primeira abordagem muita vezesrecorrem a comparacao com os resultados da segundaabordagem como argumento para validar seus procedi-mentos.

3. A questao da area varrida

Pode-se mostrar que, no caso de um circuito fechadoque se move em um campo magnetico estacionario (masnao necessariamente uniforme), a variacao do fluxomagnetico atraves da area varrida pelo circuito e igual avariacao do fluxo magnetico atraves da area delimitadapelo circuito, com o sinal trocado. Na Fig. 4a, um cir-cuito fechado desloca-se a partir de uma certa posicaoinicial C0, atingindo sucessivamente as posicoes C1 eC2, nas quais delimita as areas A1 e A2, respectiva-mente. Este deslocamento pode envolver translacao,rotacao e deformacao do circuito. Ao atingir C1 e C2,o circuito tera varrido as areas laterais AV1 e AV2, res-pectivamente, sendo ∆AV = AV 2−AV 1. Sejam ΦA1,

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ΦA2, ΦAV 1 e ΦAV 2 os fluxos magneticos atraves dasrespectivas areas, conforme indicadas pelos subscritos.Mostra-se facilmente que Φ∆AV , o fluxo atraves da area∆AV, vale ΦAV 2 − ΦAV 1. Como o campo magneticonao se altera durante o deslocamento, pode-se conside-rar que as superfıcies A1, A2 e ∆AV constituem, emum dado instante, uma superfıcie fechada imersa nele.Pela lei de Gauss do magnetismo, o fluxo magneticoatraves de uma superfıcie fechada e nulo. O fluxomagnetico atraves da area A1 tem sinal contrario aoconvencionado para uma superfıcie fechada e deve sertomado com sinal negativo (observem-se na figura osvetores dA1, dA′1 e dA2). Assim,

−ΦA1 + ΦA2 + Φ∆AV = 0,

ou seja

Φ∆AV = ΦA1 − ΦA2,

ou ainda (como querıamos demonstrar)

ΦAV 2 − ΦAV 1 = −(ΦA2 − ΦA1). (7)

Seja ΦA2 − ΦA1 = ∆Φ. Dividindo-se a Eq. (7) por∆t, o tempo transcorrido durante o deslocamento deC1 ate C2 e tomando o limite para ∆t → 0, obtem-se

dΦAV

dt=−dΦdt

. (8)

Tendo em vista a lei de Faraday, Eq. (1),

ε =dΦAV

dt. (9)

Ve-se, assim, que a fem induzida no circuito quese move pode ser calculada pela variacao temporal dofluxo tanto atraves da area por ele delimitada, quanto

atraves da area por ele varrida. Duas consideracoes, noentanto, se fazem necessarias a respeito deste segundoprocedimento. Em primeiro lugar, ele so se aplica acircuitos fechados, pois, para justifica-lo, recorreu-se alei de Gauss do magnetismo, que requer um volumefechado. Situacoes como as das Figs. 1a e 2a nao saocontempladas. Em segundo lugar, ao usa-lo nao esta-mos usando a lei de Faraday, cujo enunciado, consubs-tanciado na Eq. (1) e na frase que a antecede, refere-seespecificamente a area delimitada pelo circuito. Assim,a Eq. (9) deve ser vista como um corolario da lei deFaraday, jamais como uma formulacao alternativa paraela.

Como exemplo, vejamos a situacao mostrada naFig. 5a. Uma espira retangular de lados ` e L move-se sobre o plano XY com velocidade v = v0i em umaregiao do espaco onde a inducao magnetica e dada porB = B0xk (B0 e uma constante com dimensoes deinducao magnetica por comprimento). No instante t =0, o lado esquerdo da espira coincide com o eixo Y . Emum instante t qualquer, a espira andou uma distanciax = vt. Apliquemos a lei de Faraday. No instante t,o fluxo magnetico atraves da area A delimitada pelaespira vale

ΦA =∫ x+L

x

B0x′`dx′ =

B0L`(L + 2vt)2

,

de modo que a fem induzida instantanea valera

ε = −B0L`v. (10)

O sinal negativo significa que a fem induzida e no sen-tido anti-horario para quem olha ao longo do eixo Z,ou seja, e no sentido horario na figura.

Figura 4 - a) Um circuito fechado desloca-se desde uma posicao inicial C0 ate as posicoes C1 e C2, varrendo, sucessivamente, asareas laterais AV1 e ∆AV. Um campo magnetico estacionario, mas nao necessariamente uniforme, atua na regiao. b) Se C1 e C2

forem infinitesimalmente proximos, a area varrida dAV e um infinitesimo de primeira ordem e o elemento de area varrida d2AV e uminfinitesimo de segunda ordem.

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4302-6 Dionisio

Usemos agora a Eq. (9). Como a espira se movi-menta sobre o plano XY, a area varrida por ela eachatada neste plano e compreende dois retangulos dealtura ` e largura x, um entre as abscissas 0 e x e ooutro entre as abscissas L e L + x. Note-se que o fluxoatraves do segundo destes retangulos devera ser tomadocom sinal negativo, devido a ja mencionada convencaode sinal para a orientacao de superfıcies fechadas.5 Ofluxo atraves dessa area varrida AV sera, pois

ΦAV =∫ x

0

B0x′`dx′ −

∫ x+L

L

B0x′`dx′ = −B0L`vt,

e a fem induzida sera

ε =dΦAV

dt= −B0L`v,

que repete a Eq (10), como era de se esperar. Apesarda semelhanca dos procedimentos e da identidade dosresultados, apenas o calculo que considera a area deli-mitada pelo circuito, jamais o que considera a area queele deixa para tras ao movimentar-se, corresponde aouso da lei de Faraday.

Pode-se mostrar tambem que o valor da fem demovimento calculado usando-se a area varrida e com-patıvel com o valor calculado pela interpretacao mi-croscopica do fenomeno. Na Fig. 4b, as posicoes C1 eC2 sao infinitesimalmente proximas e os vetores d`, vdte d2AV representam, respectivamente, um elemento decomprimento do circuito, um deslocamento infinitesi-mal deste elemento e uma area varrida elementar. Note-se que dAV e um infinitesimo de primeira ordem, ja quepossui uma so dimensao infinitesimal (vdt), enquantod2AV e um infinitesimo de segunda ordem, pois pos-sui uma segunda dimensao infinitesimal (d`). O fluxomagnetico dΦAV atraves da area varrida dAV vale

dΦAV =∫∫

dAV

B · d2AV =∮

B · d`× vdt =

dt

∮v×B · d`.

Assim,

dΦAV

dt=

∮v×B · d`. (11)

E, tendo em vista a Eq. (3),

ε =dΦAV

dt. (9a)

Ate aqui, assumimos sem provar a equivalenciadas expressoes macroscopica, Eq.(1), e microscopica,

Eq. (3) para o calculo da fem de movimento. Ao obter-mos as Eqs. (9) e (9a), de fato produzimos tal prova.Mais explicitamente, unindo-se as Eqs. (8) e (11),escreve-se

− d

dt

∫∫

A

B · dA =dΦAV

dt=

∮(v×B) · d`. (12)

O artifıcio da area varrida estabelece, pois, umaponte entre as explicacoes macroscopica e microscopicada fem de movimento e garante a equivalencia entreelas.

O estudo da situacao mostrada na Fig. 5a completa-se com a obtencao da Eq. (10) diretamente a partir daEq. (3), que deixamos de apresentar por ser trivial.

O artifıcio da area varrida pode ser estendido aocalculo da fem de movimento em circuitos abertos. AFig. 5b mostra um condutor filamentar de compri-mento ` que efetua um deslocamento infinitesimal emuma regiao do espaco onde atua um campo magneticoestacionario (nao mostrado na figura). Basta repetir oargumento que leva a Eq. (11) e, levando em conta aEq. (3a), trocar as integrais fechadas por outras aber-tas, calculadas ao longo do comprimento do condutor.Fica, assim, validado o uso do artifıcio da area varridaem situacoes como as das Figs. 1a e 2a. Ressalte-se, porem, que tal validade decorre da descricao mi-croscopica do fenomeno via forca magnetica e nao dasua interpretacao macroscopica via lei de Faraday.

Por tudo o que se disse ate aqui, ve se que o calculoda fem de movimento pelo artifıcio da area varrida, nocaso de campos magneticos estacionarios, e lıcito, utile mais abrangente do que a propria lei de Faraday, poisaplica-se tambem a circuitos abertos.

4. A lei de Faraday (ou, mais propria-mente, a regra do fluxo)

Consideremos, agora, a lei de Faraday em toda a suageneralidade. Variacoes do fluxo ocorrem porque ocampo magnetico varia com o tempo, ou porque o cir-cuito se move, alterando assim sua relacao espacial como campo magnetico, ou pela combinacao destes doisfatores. Deformacoes do circuito tambem acarretamvariacao do fluxo, mas podem ser descritas como devi-das ao movimento desigual de partes do mesmo. Assim,na Eq. (1), a derivada completa do fluxo magneticoatraves da area do circuito pode ser expressa em termosde suas derivadas parciais a B constante (estacionario)e A constante (todas as partes do circuito em repouso):6

ε =−dΦdt

= −(∂Φ∂t

)B est. − (∂φ

∂t)v=0. (13)

5Suponha que a velocidade da espira fosse dada por v = v0(i + k). Em sua translacao, seguiria uma trajetoria a 45◦ com o planoXY, de modo o volume fechado varrido por ela seria um paralelepıpedo oblıquo, com o fluxo magnetico entrando pela face inferior epela face inclinada da direita e saindo pela face superior e pela face inclinada da esquerda.

6Conforme notacao adotada pela Ref. [8, p. 337].

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A forca eletromotriz de movimento e os fundamentos da teoria eletromagnetica classica 4302-7

Figura 5 - a) Uma espira retangular de lados L e ` move-se sobre um plano perpendicular a um campo magnetico estacionario mas naouniforme. A area varrida pela espira ao mover-se a partir de x = 0 e achatada no plano e representada pelos dois retangulos de altura `e largura x designados por AV, que os lados direito e esquerdo da espira deixam para tras. b) Um condutor filamentar de comprimento` desloca-se no espaco sob acao de um campo magnetico estacionario (nao mostrado na figura).

Nesta equacao, a segunda parcela descreve a con-tribuicao da presenca de um campo magnetico nao esta-cionario para a fem induzida em um circuito fechado

εtransf = −(∂Φ∂t

)v=0 = −(

∂t

∫∫B · dA

)

v=0

=

−∫∫

∂B∂t

· dA. (14)

O subscrito transf refere-se ao fato de que este e oprincıpio de funcionamento dos transformadores. Usan-do as definicoes de forca eletromotriz, Eq. (2) e decampo eletrico,

εtransf =1q

∮F · d` =

∮Eind · d`. (15)

Assim, εtransf e interpretada como o resultado daacao sobre os portadores de carga de um campo eletricoEind, induzido pelo campo magnetico nao estacionario.Comparando as Eqs. (14) e (15),

∮Eind · d` = −

∫∫∂B∂t

· dA. (16)

E util considerar-se a Eq.(16) tambem sob sua formadiferencial, a qual se obtem mediante o uso do teoremade Stokes (ver, por exemplo, [3 , p. 68]):

∇×Eind = −∂B∂t

. (17)

As Eqs. (16) e (17) continuam validas mesmo naeventual presenca de um campo eletrostatico, pois,sendo este conservativo (irrotacional), nao contribuipara o lado direto delas. O subscrito ind pode, entao,ser dispensado e e sem ele que essas equacoes integramo quadro das equacoes de Maxwell (EM3 na Tabela 1).

Ja a primeira parcela da Eq. (13) descreve a fem demovimento induzida em um circuito fechado em razaode ele mover-se ou deformar-se sob a acao de um campomagnetico:

εmov = −(∂Φ∂t

)B est = −(

∂t

∫∫B · dA

)

B est.

. (18)

Os mesmos argumentos que levam as Eqs. (8) e(11) aplicam-se tambem na presenca de um campomagnetico nao estacionario, desde que, na primeira de-las, considere-se apenas a derivada parcial do fluxo a Bestacionario,7 de modo que permanece a ponte entre asvisoes macro e microscopica da fem de movimento

−(

∂t

∫∫B · dA

)

B est.

=dΦAV

dt=

∮v×B · d`.

(19)Assim, no caso geral de um circuito fechado que

se move em um campo magnetico nao estacionario, aEq. (13) resulta em

ε = εtransf + εmov = −∫∫

(∂B/∂t) · dA +∮

(v×B) · d`, (20)

ou (usando a Eq. (16))

ε =∮

(E + v×B) · d`. (21)

Em resumo, o procedimento matematico de des-dobrar a derivada total do fluxo magnetico em suasderivadas parciais corresponde ao procedimento fısicode considerar a fem induzida em um circuito que semove em um campo magnetico nao estacionario como asuperposicao dos efeitos, sobre os portadores de carga,do proprio campo magnetico e de um campo eletricopor ele induzido.

Ao final da secao anterior, foi dito que, no caso decampos magneticos estacionarios, o calculo da fem demovimento via fluxo magnetico atraves da area varridae mais abrangente do que via fluxo magnetico atraves

7Ver, por exemplo, a Ref. [8, apendice].

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4302-8 Dionisio

da area do circuito, pois aplica-se tambem a circuitosabertos. Agora, em um contexto mais amplo, vemosque tanto εtransf., Eq. (14) quanto εmov., Eq. (18) saoparcelas desdobradas da Eq. (1) e que, portanto, deve-se usar para ambas o mesmo domınio de integracao,qual seja a area delimitada pelo circuito. Esta e umarazao matematica pela qual o artifıcio da area varridanao pode substituir a lei de Faraday no contexto dateoria.

As Eqs. (20) e (21) podem ser vistas como umaforma estendida ou desdobrada da lei de Faraday. Valea pena transcrever aqui partes do texto em que RichardFeynman expressa em palavras, de maneira simples eclara, o conteudo das Eqs. (1), (13), (20) e (21) [2,p. 17-2):

Deste modo a ‘regra do fluxo’ – de que a femem um circuito e igual a taxa de variacao dofluxo magnetico atraves do circuito – vale seo fluxo varia tendo como causa a variacaodo campo, ou porque o circuito se move,ou ambos. As duas possibilidades – ‘o cir-cuito se move’ ou ‘o campo varia’ – sao in-distinguıveis no enunciado da regra. Aindaassim, usamos duas leis diferentes para ex-plicar os dois casos – v×B para o caso emque ‘o circuito se move’ e ∇×E = −∂B/∂tpara o caso em que ‘o campo varia’.Devemos entender a regra do fluxo daseguinte maneira. No caso mais geral, aforca por unidade de carga e F/q = E+v×B. Nos fios em movimento, existe a forcado segundo termo. Alem disso, existe umcampo E se um campo magnetico estivervariando. Estes efeitos sao independentes,mas a fem ao longo do circuito e sempreigual a taxa de variacao do fluxo magneticoatraves dele.

Ja foi mencionado que a Eq. (16), bem comosua forma diferencial, Eq. (17), integra o quadro dasequacoes de Maxwell, onde figura com o nome de leide Faraday. Por esta razao, para evitar ambiguidades,Feynman refere-se a nossa Eq. (1) simplesmente comoa regra do fluxo. A. Macedo [3] prefere chamar asEqs. (16) e (17) de leis de Faraday da inducao e aEq. (1) de lei de Faraday ampliada. Adotaremos, apartir de agora, a nomenclatura de Feynman.

Na presenca de um campo magnetico nao esta-cionario, havera sempre um campo eletrico induzido,mesmo na ausencia de qualquer objeto material. A leide Faraday, Eqs. (16) e (17), permite calcula-lo. Sehouver suficiente simetria (na mesma acepcao em que serequer simetria para o uso da lei de Gauss na forma in-tegral), o circuito fechado requerido pela Eq. (16) serarepresentado por uma curva fechada imaginaria, auxi-liar, tal como as superfıcies gaussianas. Caso contrario,a Eq. (17), acrescida da especificacao de condicoes

de contorno adequadas, fornecera o resultado desejadopara E. Se um circuito estiver em movimento nessaregiao, a Eq. (21) permitira o calculo da fem induzidanele, mesmo que seja aberto, como na Fig. 5b. Nestaultima condicao, a superposicao do efeito da eventualpresenca de um campo eletrostatico permitira descre-ver completamente a separacao de cargas no condutor.Considerando-se ainda que, de acordo com a definicaode Slater&Frank antes transcrita, pode-se incluir soba forma de campos eletricos nao-eletrostaticos o efeitode “any other sort of forces, such as those concernedin chemical processes”, a Eq. (21), ou sua contra-partida diferencial, assume o papel de ser de fato arepresentacao formal mais geral e abrangente e o ins-trumento mais completo para o calculo da forca eletro-motriz em um circuito, seja aberto ou fechado.

5. Quem vem antes: a regra do fluxo oua forca de Lorentz?

A ponte entre as descricoes macro e microscopica da femde movimento, Eq. (19), pode ser percorrida nos doissentidos. Galili e cols. [8] vao no sentido macro-micro erelatam obter a expressao para a forca magnetica sobreuma carga em movimento (que eles chamam de forcade Lorentz) a partir da regra do fluxo. Seus passossao semelhantes aos que seguimos nas secoes anteri-ores. Primeiro, desdobram a derivada total do fluxomagnetico em suas derivadas parciais como na Eq (13),cuja primeira parcela identificam como a que descrevea fem de movimento, como na Eq. (18). Em seguida,tal como fizemos na secao 3 para obter as Eqs. (8) e(11), estudam situacoes como as das Figs. 4a e 4b parademonstrar as igualdades das Eqs (19). Assim, essesautores deduzem a Eq. (3) (εmov =

∮(v×B) · d`)

usando apenas a propria regra do fluxo, o seu des-dobramento nas derivadas parciais, a lei de Gauss domagnetismo e argumentos geometricos, sem recorrera qualquer consideracao acerca da natureza fısica dofenomeno. A velocidade do portador de carga entrounesta expressao por via da definicao geometrica da aread2AV = d` × vdt (ver Fig. 4a). E lıcito, pois, con-siderando a definicao de forca eletromotriz (Eq. (2)),identificarem o produto v×B como a forca magneticapor unidade de carga

FM/q = v×B. (22)

Thus, the Lorentz force naturally followsfrom the definition of the rate of flux changedΦ/dt as a complete derivative (and fromthe Maxwell equation

vB · dA = 0),

concluem os autores. Ao que devemos acrescentar:tendo em vista, tambem, a definicao de forca eletro-motriz.

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A forca eletromotriz de movimento e os fundamentos da teoria eletromagnetica classica 4302-9

Ja Macedo [3] apresenta uma inusitada deducao daregra do fluxo, usualmente “obtida” como uma gene-ralizacao das experiencias de Faraday. Parte da ex-pressao da forca de Lorentz F/q = E + v × B e dadefinicao de forca eletromotriz, que, combinadas, resul-tam na Eq. (21), a qual desdobra em duas parcelas

ε =∮

E · d` +∮

v×B · d`. (23)

Usando o teorema de Stokes e a lei de Faraday naforma diferencial (Eq. (17)), transforma a primeiraparcela acima na Eq. (14). Para transformar a segundaparcela na Eq. (18), percorre a ponte representada pelaEq. (19), agora no sentido micro-macro. Depois, medi-ante simples superposicao das Eqs. (14) e (18), obtema Eq. (13). Assim, deduz a regra do fluxo a partir daforca de Lorentz.

Facamos um parentesis para comentar outroparagrafo de efeito de Feynman sobre a regra do fluxo[2, p. 17-2]:

Nao conhecemos nenhum outro lugar nafısica, onde um princıpio geral tao simplese tao acurado precise ser analisado em ter-mos de dois fenomenos diferentes8 para sercompreendido. Normalmente uma genera-lizacao assim surge de um unico princıpiomais profundo. Mesmo assim, neste casonao parece haver uma implicacao mais pro-funda. E necessario entender a ‘regra (dofluxo)’ como a acao combinada dos efeitosde dois fenomenos bastante distintos.

Se atentarmos para a definicao de Slater e Frank[1], vemos que as fem’s decorrem da acao de qualquertipo de forca sobre os portadores de carga eletrica emum metal. Seja na visao de Galili e cols., seja na visaode A. Macedo, as fem’s induzidas decorrem da acaode uma unica categoria de agentes fısicos: os camposmagneticos, que agem sobre os portadores de carga se-gundo dois mecanismos diferentes, conforme sejam esta-cionarios ou nao estacionarios. Na Eq. (23), cada umdesses mecanismos aparece descrito com uma integralde linha ao longo do circuito fechado e nao e surpreen-dente que ambas possam ser transformadas em umaintegral de superfıcie sobre a area delimitada pelo cir-cuito. Os dois fenomenos diferentes nao sao, afinal, taodistintos assim...

Voltemos aos procedimentos de Galili e cols. e A.Macedo, acima relatados. Qual o correto: deduzir a re-gra do fluxo a partir da forca de Lorentz, ou vice versa?Qual destas duas relacoes entre grandezas precede aoutra, na formulacao da teoria eletromagnetica classica(TEMC)? De fato, o que esta mostrado acima e quea regra do fluxo e a forca de Lorentz sao proposicoesequivalentes e que nao existe uma unica maneira de

organizar hierarquicamente os elementos de uma teo-ria. Para Galili e cols., a regra do fluxo e uma lei,um princıpio fundamental do qual decorre, entre ou-tras consequencias, a expressao da forca de Lorentz.Tanto quanto transparece de seu texto, eles concebema TEMC como fundamentada sobre quatro leis ouprincıpios gerais, que seriam a lei de Gauss, a lei deGauss do magnetismo, a regra do fluxo e a lei deAmpere-Maxwell (ver Tabela 1). Uma analise maisapurada da estrutura logica assim construıda talvez re-comendasse guindar a definicao de campo eletrico acondicao de uma quinta lei, de modo a poder-se de-duzir tambem a primeira parcela da Eq. (23). Ja paraA. Macedo, e a expressao da forca de Lorentz que as-sume o status de equacao fundamental, da qual se de-duz a regra do fluxo, sendo cinco as equacoes basicas daTEMC: as quatro equacoes de Maxwell e a expressaoda forca de Lorentz, conforme listadas na Tabela 1.

Chamemos de estrutura axiomatica de uma teo-ria a uma particular organizacao do seu conteudo,com cada um de seus elementos basicos cumprindouma funcao bem definida: os conceitos, definicoes,convencoes, princıpios ou leis organizados hierarquica-mente de modo que deles se possam extrair por deducaoas consequencias da teoria e assim descrever o compor-tamento dos sistemas fısicos a que se refere. A vali-dade da teoria e estabelecida pela coincidencia entrea descricao dos fenomenos fısicos que dela decorre eos fatos observados. Ja a conveniencia ou a aceitacaode uma dada formulacao axiomatica advem de con-sideracoes tais como: economia (o uso de um menornumero possıvel de princıpios basicos), simplicidade(permitir a obtencao de resultados de forma sim-ples, direta), abrangencia (conduzir a descricao deuma maior variedade se situacoes fısicas) etc. Pode-se, em princıpio, recorrer a mais de uma formulacaoaxiomatica, por mera conveniencia. Nos textos demecanica classica, por exemplo, encontra-se o problemado oscilador harmonico simples resolvido usando qual-quer uma das formulacoes newtoniana, lagrangiana ouhamiltoniana. O importante e que o usuario da teoriatenha consciencia de qual formulacao esta usando, poisa hibridizacao de formulacoes pode levar a descricoesambıguas ou interpretacoes equivocadas.

Mas a construcao de uma teoria pressupoe a exis-tencia de um modelo. O modelo e uma concepcaoidealizada, um conjunto de hipoteses sobre o sistemafısico, sua constituicao, suas partes, suas relacoes e suasfuncoes. O modelo serve de arcabouco para a teo-ria, de modo que esta reflete a visao e a percepcaodo seu autor sobre o sistema fısico em questao. Nocaso dos fenomenos eletromagneticos, os construtoresda TEMC adotaram um modelo que os levou a esta-belecerem as cinco relacoes matematicas relacionadasna Tabela 1 como as leis basicas do eletromagnetismo.Talvez seja apropriado referirmo-nos a esta formulacao

8Grifado no original.

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como a TEMC vigente. O termo vigente reflete a duplacondicao de que ela nao e a unica possıvel, mas e a quedesfruta de aceitacao universal.

6. A teoria eletromagnetica classica vi-gente

Na concepcao de Maxwell e seus colaboradores, osfenomenos eletromagneticos resultam da acao e da in-teracao de um unico ente fısico fundamental: a cargaeletrica. Ainda de acordo com a concepcao por eles ado-tada, objetos dotados de carga eletrica nao interagemdiretamente, mas a interacao e mediada pelo campoeletromagnetico. A teoria que eles construıram para adescricao dos fenomenos eletromagneticos possui umaestrutura formal e uma logica intrınseca que privilegiamessa nocao de campos como mediadores das interacoes.Primeiro, na presenca de cargas eletricas, surgem oscampos. Depois, os campos encarregam-se de agir sobreoutras cargas eletricas. Entao, primeiro necessitamosde equacoes que, dadas as fontes (cargas eletricas emrepouso ou em movimento), permitam obter os campos.Este e o papel das equacoes de Maxwell (EM). Depoisprecisamos saber como agem os campos sobre as cargaseletricas. Isto e dito pela equacao da forca de Lorentz(FLZ). Sao cinco, entao, as equacoes fundamentais daTEMC: as quatro EM e a FLZ. Esta e tao importantequanto as quatro outras juntas, pois descreve sozinha asegunda etapa do processo de interacao.

Escritas como na Tabela 1, as EM especificam, a es-querda das igualdades, os campos e a direita, suas res-pectivas fontes. Ha duas equacoes com campo eletrico aesquerda. Na lei de Gauss da eletricidade, o lado direi-to contem a carga eletrica. Na lei de Faraday, a direitaesta a variacao temporal de um campo magnetico. Istosignifica que ha, na natureza, duas classes de camposeletricos, correspondendo cada uma a um tipo diferentede fonte: os campos eletrostaticos, que surgem na sim-ples presenca de cargas eletricas, e os campos eletricosinduzidos por campos magneticos nao estacionarios.Ha tambem duas equacoes com campo magnetico a

esquerda. Na lei de Gauss do magnetismo, temoszero a direita, o que nos informa a inexistencia decarga magnetica e, consequentemente, de um campomagnetostatico de origem e propriedades analogas asdo campo eletrostatico. Em compensacao, na lei deAmpere e Maxwell ha duas parcelas a direita, sig-nificando que ha tambem dois tipos de fontes e por-tanto duas classes de campos magneticos: os magne-tostaticos, devidos a presenca de cargas eletricas emmovimento (correntes eletricas), e os induzidos porcampos eletricos nao estacionarios.9

A regra do fluxo nao e uma das equacoes basicasda TEMC. Nao possui a necessaria generalidade, poisseu enunciado refere-se a uma situacao particular, qualseja a presenca de um circuito fechado; e nao reflete omodelo de interacao entre cargas eletricas mediada porcampos, pois descreve o fenomeno da inducao sob umponto de vista macroscopico. De fato, ela se enquadraem um contexto historico anterior ao pleno desenvolvi-mento da TEMC e corresponde a um nıvel conceitualhierarquicamente inferior. Assim, ela foi preterida pelaexpressao da forca de Lorentz, que, conforme ja sedemonstrou, lhe e equivalente. No entanto, sua im-portancia historica, seu denso conteudo fısico e suapraticidade no calculo das fem’s induzidas nas variassituacoes em que se aplica fazem com que continuesendo um elemento de grande importancia no conjuntoda teoria.

7. A teoria eletromagnetica classica e ateoria da relatividade

Os idealizadores da TEMC logo se aperceberam deque ela nao era invariante frente as transformacoes deGalileu. Albert Einstein, no primeiro paragrafo de seuartigo “Sobre a eletrodinamica dos corpos em movi-mento”, no qual apresenta aquela que hoje conhece-mos como a teoria da relatividade especial ou relativi-dade restrita (TR), assim descreve essa dificuldade [9,p. 143]:

Tabela 1 - As leis fundamentais da teoria eletromagnetica classica: as quatro equacoes de Maxwell e a expressao da “forca de Lorentz”.

vE · dA = q/ε0 EM1 Lei de GaussvB · dA = 0 EM2 Lei de Gauss do magnetismo∮E · d` =− ∫∫

∂B∂t · dA EM3 Lei de Faraday∮

B · d` = µ0i + µ0ε0ddt

∫∫∂E∂t · dA EM4 Lei de Ampere-Maxwell

FL = q (E + v×B) FLZ Forca de Lorentz

9Comparando-se a lei de Faraday com a lei de Ampere-Maxwell, parece faltar aquela uma segunda parcela a direita da igualdade.A inexistencia dessa parcela “virtual” e coerente com o zero a direita na lei de Gauss do magnetismo: se, segundo esta, nao existemcargas magneticas, nao existem tambem correntes magneticas analogas as correntes eletricas para figurarem naquela.

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A forca eletromotriz de movimento e os fundamentos da teoria eletromagnetica classica 4302-11

Considere-se, por exemplo, a interacaoeletrodinamica entre um ıma e um condu-tor. O fenomeno observavel, aqui, dependeapenas do movimento relativo entre o con-dutor e o ıma, ao passo que o ponto devista usual faz uma distincao clara entreos dois casos, nos quais um ou outro dosdois corpos esta em movimento. Pois se oıma esta em movimento e o condutor estaem repouso, surge, nas vizinhancas do ıma,um campo eletrico com um valor definido deenergia que produz uma corrente onde querque estejam localizadas partes do condutor.Se o ıma, contudo, estiver em repouso, en-quanto o condutor se move, nao surge qual-quer campo eletrico na vizinhanca do ıma,mas, sim, uma forca eletromotriz no condu-tor, que nao corresponde a nenhuma ener-gia per se, mas que, supondo-se uma igual-dade do movimento relativo, nos dois casos,da origem a correntes eletricas de mesmamagnitude e sentido que as produzidas, noprimeiro caso, pelas forcas eletricas.

Resolver esse tipo de impasse foi, de fato, a mo-tivacao historica para o surgimento da TR. Foge aocontexto deste artigo detalhar os passos de seu desen-volvimento. Primeiro, mostrou-se que as equacoes daeletrodinamica sao covariantes frente as transformacoesde Lorentz. O postulado a respeito da constancia davelocidade da luz foi o recurso encontrado por Eins-tein para dar fundamento e estrutura a teoria. Mas aadocao das transformacoes de Lorentz, em substituicaoas de Galileu, exigiu a revisao dos conceitos classicosde espaco e tempo absolutos. O resultado disto foi odesenvolvimento de uma nova mecanica, que englobaa mecanica newtoniana como limite no caso de baixasvelocidades (v << c). No que diz respeito a TEMC,interessa-nos constatar que, assim como as dimensoes ea massa dos objetos e a duracao dos eventos, tambem ocampo eletromagnetico deve ser transformado quandomudamos de referencial.

Consideremos o caso de dois referenciais inerciais S eS’ tais que suas respectivas origens e eixos se superpoemno instante t = t’ = 0 e S’ move-se com velocidade v aolongo do eixo X de S (ou seja, v = vi). A Tabela2 apresenta as relacoes de transformacao do campoeletromagnetico quando se passa de S para S’. Por sim-ples inspecao, ve se que o que e um campo eletrico oumagnetico puro em um referencial pode transformar-se em uma mistura de campos eletrico e magnetico emoutro referencial. Reforca-se, assim, a nocao de queo campo eletromagnetico e um ente uno, ja que iden-tifica-lo como eletrico, magnetico ou uma mistura deambos depende apenas do referencial em que se situa oobservador.

Tabela 2 - A transformacao relativıstica do campo eletromagne-tico [10, 262]. S e S’ sao dois referenciais inercias. S’ move-se emrelacao a S com velocidade v = vi. No instante t = t’ 0, S e S’tem suas respectivas origens e eixos coincidentes.

E′x = Ex B′

x = Bx

E′y =

Ey − vBz√1− (v/c)2

B′y =

By + (v/c2)Ez√1− (v/c)2

E′z =

Ez + vBy√1− (v/c)2

B′z =

Bz − (v/c2)Ey√1− (v/c)2

Vejamos como se interpreta a fem de movimento,a luz da TR. Tomemos como exemplo a situacao daFig. 1a, repetida na Fig. 6. O referencial S, represen-tado pelos eixos XYZ, e fixo no laboratorio. O referen-cial S’, representado pelos eixos X’Y ’Z’, e fixo na hastemetalica. No laboratorio, atua um campo magneticouniforme e estacionario B = Bk e o campo eletrico enulo. Conforme vimos, a forca magnetica sobre os por-tadores de carga dentro da haste e a responsavel porpolarizacao e pela fem induzida. Sob o ponto de vistade um observador em S’, contudo, a haste e os porta-dores de carga encontram-se em repouso em um campomagnetico uniforme e estacionario, de modo que nao hacomo explicar, com base na TEMC, nem a separacaodas cargas nem a fem induzida. Apliquemos, entao, asrelacoes de transformacao da Tabela 1, das quais resul-tam

B′ = Bk′, (24)

E′ = − vB√1− (v/c)2

j′. (25)

Figura 6 - Os eixos XY Z pertencem ao referencial S, fixo nolaboratorio. Os eixos X′Y ′Z′ pertencem ao referencial S’, fixona haste metalica. No referencial laboratorio, atua um campomagnetico uniforme e estacionario B = Bk. No referencial dabarra, surge um campo eletrico E′ = −E′j.

Ve-se, assim, que, para o observador em S’, o campomagnetico continua uniforme, estacionario e orientadosegundo o eixo Z, mas surge um campo eletrico E′, con-forme mostrado na figura. Este campo eletrico agira so-bre os portadores de carga e provocara a polarizacao da

10Note-se que o comprimento da haste nao se altera, pois so ha contracao na direcao do movimento

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4302-12 Dionisio

haste. Usando-se a Eq. (4), calcula-se a fem induzida10

no referencial S’

ε =B`v√

1− (v/c)2. (26)

Em 1952, refletindo sobre as origens dos estudos queo levaram ao desenvolvimento da TR, Einstein escreveu[9, p. 129]:

Meu caminho direto para a teoria da rela-tividade especial foi determinado principal-mente pela conviccao de que a forca eletro-motriz induzida em um condutor que semove em um campo magnetico nada maise do que um campo eletrico.

Como se ve, sua intuicao foi plenamente confirmada.Fica claro que, em se tratando de fenomenos eletro-magneticos, nao se pode raciocinar a moda Galileu.Nao basta, por exemplo, cogitar sobre como seriam aslinhas de campo de um ıma, conforme vistas por um ob-servador em movimento em relacao a ele. E necessariorecorrer sempre as relacoes de transformacao.

Note-se que a fem de movimento nao e a mesma nosdois referenciais. A Eq. (26) somente se reduz a Eq. (4)para pequenas velocidades (v << c). De fato, as forcaseletromotrizes, como as diferencas de potencial, nao saoinvariantes frente a mudancas de referencial. Na lin-guagem da TR, o potencial eletrico V compoe com o ve-tor potencial magnetico A um quadrivetor cujo modulo,este sim, e um invariante relativıstico [10, p. 269].

8. Comentarios finais

A regra do fluxo, Eq. (1), nao e uma das equacoesde Maxwell. Constitui-se, no entanto, em um ele-mento fundamental da TEMC. Primeiro, por sua im-portancia historica: “This law of electromagnetic in-duction, which bears Faraday’s name, is the founda-tion of the study of electromagnetic theory”, afirmamSlater e Frank [1, p. 78]. Segundo, por sua praticidade.Com efeito, permite calcular com simplicidade fem’sinduzidas em circuitos fechados em uma grande varie-dade de situacoes, quer sejam tais fem’s devidas a pre-senca de um campo magnetico nao-estacionario, quersejam fem’s de movimento, ou ainda uma combinacaode ambos os tipos. E usada tambem com sucesso naexplicacao de fenomenos tais como as correntes de Fou-cault e o funcionamento dos freios magneticos.

Na sala de aula, demonstrar a regra do fluxo e amaneira mais frequente de iniciar o estudo da inducaoeletromagnetica, pois basta um ıma, uma bobina e umgalvanometro para fazer saltar aos olhos a realidade dofenomeno. No entanto, o que ha de concreto ali sao ape-nas esses objetos. O campo e o fluxo magnetico, bemcomo a forca eletromotriz, sao elementos abstratos, sao

conceitos que elaboramos com a finalidade de descre-ver, de compreender o que se passa. Tais conceitosso adquirem pleno significado quando imersos em umcontexto teorico amplo, ancorado em uma estruturaaxiomatica consistente. Assim, o procedimento de A.Macedo (ver secao 5) de deduzir a regra do fluxo apartir dos princıpios fundamentais da TEMC, emborasurpreendente por raro, e pertinente e necessario. Oprimeiro contato com o fenomeno e sua interpretacaoem termos de campos, fluxo e fem induzida constituem,de fato, o inıcio da aprendizagem e contribuem paraa formacao da estrutura conceitual na mente do estu-dante. Para muitas aplicacoes, ate mesmo em escalaindustrial, esse conhecimento basico e suficiente. Mas,no contexto da TEMC vigente, a regra do fluxo deixade ser uma evidencia experimental e adquire a condicaode previsao teorica. A admiravel coincidencia entre aprevisao e os fatos chancela a correcao, a adequacao ea utilidade da teoria.

A insistencia de alguns autores e professores em es-tender a validade da regra do fluxo a fem de movi-mento em circuitos abertos nao se justifica. Tendoem vista o modelo, os fundamentos, a estrutura for-mal e a logica intrınseca da TEMC vigente, a ex-plicacao ortodoxa para a fem de movimento e a acaoda forca magnetica sobre as cargas livres no interiordo condutor que se move em um campo magnetico ex-terno, conforma Eqs. (3) e (3a). A razao de tal in-sistencia talvez seja uma percepcao equivocada sobrea formulacao axiomatica da TEMC, provavelmente ge-rada pela circunstancia de se usar a denominacao leide Faraday tanto para a Eq. (1) como para a equacaoEM3 na Tabela 1.

O artifıcio da area varrida merece de fato maisatencao do que tem recebido. Como vimos, ele tambempermite calcular a fem de movimento de maneira sim-ples em muitas situacoes. Mas, antes de ser usado, deveser justificado e sua justificativa, no caso de circuitosabertos, so e possıvel com base na acao da forca deLorentz. Qualquer tentativa de se obter tal justifica-tiva com base na regra do fluxo incorre, de imediato,em um erro de princıpio, pois a regra refere-se explici-tamente a circuitos fechados. Via de regra, tais tenta-tivas passam tambem por uma utilizacao indevida dalei de Gauss do magnetismo. O artifıcio da area var-rida cumpre tambem uma funcao importante na teoria,pois representa a ponte entre as versoes macroscopica emicroscopica da fem de movimento, conforme Eqs. (1),(3) e (12), demonstrando a equivalencia entre elas.

Encerremos transcrevendo um trecho do prefacio deAnita Macedo ao seu livro Eletromagnetismo [3]. Asmesmas palavras aplicam-se, de certa forma, tambemao presente artigo:

O objetivo fundamental deste texto e con-tribuir para isso: evidenciar a beleza logicae formal de uma teoria fısica coerentemente

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A forca eletromotriz de movimento e os fundamentos da teoria eletromagnetica classica 4302-13

unificada. Consequencia desse objetivo e aabordagem axiomatica com que este livroapresenta o eletromagnetismo classico. Eletoma as equacoes de Maxwell e a lei da forcade Lorentz como postulados basicos e trataa eletrostatica, a magnetostatica e a quase-estatica como elas sao: casos particularesda eletrodinamica.

Referencias

[1] J.C. Slater and N.H. Frank, Electromagnetism (Mc-Graw Hill, New York and London, 1947).

[2] R.P. Feynman, R.B. Leighton e M Sands, Licoes deFısica de Feynman (Bookman, Porto Alegre, 2008),v. 2.

[3] A. Macedo, Eletromagnetismo (Ed. Guanabara, Rio deJaneiro, 1988).

[4] H.D. Young e R.A. Freedman, Sears e Zemansky FısicaIII: Eletromagnetismo (Addison Wesley, Sao Paulo,2004).

[5] P.H. Dionisio, Revista Brasileira de Ensino de Fısica29, 309 (2007).

[6] F. Sears, M.W. Zemansky e H.D. Young, Fısica 3: Ele-tricidade e Magnetismo (LTC, Rio de Janeiro, 1984).

[7] A.S. Chaves, Fısica: Eletromagnetismo (Reichmann &Afonso, Rio de Janeiro, 2001).

[8] I. Galili, D. Kaplan e Y. Lehavi, Am. J. Phys. 74, 337(2006).

[9] A. Einstein. O Ano Miraculoso de Einstein: Cinco Ar-tigos que Mudaram a Face da Fısica (Editora da UFRJ,Rio de Janeiro, 2001).

[10] P. Lorrain e D.R. Corson, Eletromagnetic Fields andWaves (Freeman, San Francisco, 1970), p. 276.