_A Forca Oculta Dos Protestantes

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    A Fora Ocultados

    Protestantes

    Toda religio induz

    uma poltica;

    toda poltica oculta

    uma crena.

    A n d r B i l er

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    Ouverture, Le Mont-sur-LausanneLabor et Fides, Genebra

    Sua

    DO MESMO AUTOR

    Igreja, Poltica, Trabalho.Genebra, Labor et Fides, 1944.

    O Pensamento Econmico e Social de Calvino. Genebra, Georg et Cie, segundaedio,1961.

    O Humanismo Social de Calvino.Genebra, Labor et Fides, 1961.

    Liturgia e Arquitetura.Genebra, Labor et Fides, 1961.

    O Homem e a Mulher na Moral Calvinista.Genebra, Labor et Fides, 1963.

    Calvino, Profeta da Era Industrial. Fundamentos e Mtodo da tica Calvinista da

    Sociedade. Genebra, Labor et Fides, 1964.

    Uma Poltica da Esperana.Da F s Lutas por um Mundo Novo. Paris, Centurion eGenebra, Labor et Fides, 1970.

    O Desenvolvimento Louco.O Grito de Alarme dos Sbios e o Apelo das Igrejas.Genebra, Labor et Fides, 1973.

    Cristos e Socialistas antes de Marx.Genebra, Labor et Fides, 1982.

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    A Fora Oculta dos Protestantes

    Oportunidade ou Ameaa para a Sociedade?

    Prefcio de Jean-Bernard Racine

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    Todos os direitos reservados sobre a edio francesa em Editions Ouverture, Le Mont-sur-Lausanne (Sua), e em Editions Labor et Fides, Genebra (Sua) - 1995

    ISBN 2-88413-047-0 (Ouverture)ISBN 2-8309-0799-X (Labor et Fides)

    memriade meus pais e

    em homenagema minha esposa,

    pelos quaisexperimento

    sentimentos derespeitosae calorosa

    gratido.E a meus queridos filhos e

    netos;eles ajudam-me a

    compreendero mundo novo

    que Deus recriacada dia

    e para cuja renovaoele nos confiao Evangelho.

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    RESUMO

    __________ (Ver o ndice de assuntos discriminados no final da obra)

    Introduo da Edio BrasileiraPrefcioIntroduo

    Os Protestantes, Oportunidade ou Ameaa para a Sociedade?

    Primeira Parte

    Os Protestantes e o Advento das Grandes Democracias.

    As Razes da Democracia.

    Os Combates pela Democracia.

    SEGUNDA PARTE

    Os Protestantes e o Desenvolvimento das Sociedades Modernas.

    Os Fundamentos de um Desenvolvimento Justo.

    A tica Crist em Luta com as Ideologias Contemporneas.

    Os Combates pela Justia Social.

    O Engajamento das Igrejas e o Ecumenismo.

    Um Imperativo da tica Crist: Democratizar a Economia.

    A Igreja Universal, Sentinela das Naes.

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    PrefcioA essncia do homem, no seria ela

    ser um ente que pode testemunhar?

    Ser e Ter, Gabriel Marcel

    Na era ps-moderna do fim das grandes narrativas, da exploso do mercadoreligioso e da religiosidade oscilante tanto terica quanto prtica que o acompanha, a fcrist tem ainda algo a dizer e a oferecer? Num contexto crescente de individualismo edeterminao, onde se amplia a defasagem no s entre pases ricos e pases pobres, masonde se multiplicam, nuns e noutros, sociedades a duas ou trs velocidades, os

    trabalhadores desempenhando o papel de amortecedores universais de crise, oprofessor Andr Biler desloca ou, melhor ainda, aprofunda o debate, tentando revelar-lhe a face oculta. Longe de coloc-lo ao nvel da oposio entre valores da direita, docentro e da esquerda, ele assume o risco de ancor-lo, mais acima, e mediante aredescoberta deles, nos valores originais da Reforma, na exata medida em que estesderivam da revelao crist.

    O protestantismo: oportunidade ou ameaa?

    Diagnstico crtico, sem dvida, mas tambm viso e esperana num presente onde

    as opinies, muitas vezes paradoxais, que procedem de autores protestantes ou catlicos,divergem e se questionam. Para o autor, elas todas contm uma parte de verdade, masoutros no hesitam: se a sociedade moderna se constri segundo um modeloindividualista, este seria de origem calvinista; longe de ser uma oportunidade para asociedade, os protestantes representariam antes uma ameaa.

    Rude tarefa procurar no mundo de hoje os frutos da Reforma: uma democracia quefuncione, um desenvolvimento cultural, econmico e social justo, vo cometimento semdvida, se empreendido com desconhecimento de suas razes. Ainda que ela se oponhas ideologias contemporneas, chegada a hora da tica protestante, do retorno, dorecurso s fontes, mesmo se aqueles mesmos que delas procedem as tenham esquecido.Ora, essas fontes acham-se na Palavra de Deus, aquela mesma que vai auxiliar o autor aengajar-se num empreendimento revelador de desmistificao das representaes sociais,as mais bem ancoradas no momento, e talvez as mais perigosas. Da sua deciso de

    passar pelo crivo os enunciados que se tornaram tradicionais, com o propsito de ouenaltecer as influncias do esprito reformado sobre o curso do capitalismo ou de osdenunciar.

    O autor dir o que pensa, tomando a cautela de esclarecer, desde o princpio, que,ao constatar-se que o protestantismo favorece o desenvolvimento de certas virtudes, nose deve concluir que elas esto ausentes naqueles que no compartilham da mesmaherana. Isso no impede que para ele a oposio permanea pertinente entre ahierarquia sagrada e vertical do catolicismo tradicional de um lado, e, do outro, a

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    afirmao da Reforma quanto autoridade nica da Escritura sagrada, vocaoindividual endereada por Deus a cada indivduo, a liberdade que flui da liberao

    pessoal e da vida nova recebida na comunho e perdo de Cristo. A responsabilidade

    assim compreendida e vivida conduz ao exerccio do sacerdcio universal na Igreja, baseda concepo democrtica na Igreja em primeiro lugar, na Cidade depois, as liberdadesintelectuais, sociais e poltica estando implicitamente contidas, consoante o pastorBoegner, na liberdade individual. proclamar que, se a elaborao da resposta sempre graciosa e nunca satisfatria, ser tambm firme e solidamente embasada, semexcluir totalmente, longe disso, os riscos inerentes a uma Reforma deformada eigualmente consagrada, ideologizada, como as estruturas do catolicismo.

    Uma maneira de ser profeta: um mtodo, uma viso, valores.

    Desde o princpio do jogo, a dramatizao da anlise mobiliza o leitor de um textoque, longamente estudado e amadurecido, est continuamente em movimento (eco dosmovimentos e dos ritmos da histria), claro, estimulante, simultaneamente regressivo e

    progressivo, remetendo o passado histrico s interrogaes e aos significados dopresente. Bela maneira de ser profeta no duplo sentido de colocar os homens diante deDeus e de pensar o futuro, ou melhor ainda, de pensar o futuro posicionando os homensdiante de Deus. Uma problemtica ao menos parcialmente inscrita na histria pessoal doautor que, hesitante primeiramente entre matemtica, economia, teologia e carreiramilitar, percebe, em seguida a um acidente de avio, o sentido que vai dar a uma vidasalva, e subitamente descobre que Deus lhe oferece, aos vinte e trs anos, uma segundavida (tema recorrente na obra) para responder a sua verdadeira vocao. Formao

    teolgica e em cincias econmicas e sociais ensejar-lhe-, conjuntamente com suacarreira pastoral, tentar responder questo: qual a nova tica social para a novasociedade que se instalar aps o fim das hostilidades? Sua tese de doutorado emcincias econmicas, intitulada O Pensamento Econmico e Social de Calvino,fornecer-lhe- as primeiras chaves de uma resposta elaborada, atravs de numerosasobras, no decurso de mais de um quarto de sculo.

    Restava extrair desse conjunto de estudos o balano prospectivo que ele hoje nosexpe. O mtodo e o intento esto claramente explicitados: sempre partindo deconsideraes teolgicas particulares, que Andr Biler define uma tica concreta,associando a tica social tica individual. Assim procede no tocante ao salrio por

    exemplo, expresso tangvel do salrio gracioso e imerecido com que Deus distingue aobra de cada indivduo. Profano, o salrio remete antes de tudo obra de Deus, de sorteque desse significado espiritual e tico atribudo ao salrio decorre que o produto dotrabalho no pertence, portanto, mais ao patro que ao operrio, ambos scios de umaatividade comum.

    Quanto ao intento, ele se inscreve numa mediao essencial, talvez se devesseescrever uma chave, a chave, sempre a mesma: o novo nascimento em Jesus Cristo,a aceitao da graa de um Deus sensvel ao corao, se no razo como pretendiaPascal, mas que, para Andr Biler, se torna razo, razo que se inscreve na histriamediante a escuta, o testemunho e o engajamento dos homens. Renovado, transformado

    por uma vida nova, tal o efeito primeiro da proclamao do Evangelho, base de uma

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    Reforma na qual o autor descobrir, no seu primeiro captulo, as razes da democracia,sublinhando todavia que o regime democrtico no gerador por si prprio dos valoresque o fazem viver, que ele estar incessantemente ameaado por todas as formas de

    perverso social prestes a se manifestarem, e que s conseguir sobreviver at o fimcomo produto de uma tica que deve ser permanentemente renovada por uma f, a nicacapaz de transformar e reconstruir a vida individual e coletiva. Esses valores, por certo,no so naturais ao homem atualmente desnaturado. So o fruto de transformao

    prvia deste quando aceita ser interpelado pelo Evangelho.

    Aps e antes do advento das grandes democracias: um fator espiritual e teolgico.

    Inscrevendo-se na cadeia dos grandes estudos consagrados longa histria dasmentalidades, o estudo de Andr Biler no se contenta, como outros, de pr emevidncia o papel cultural como determinante de base, ou melhor ainda, de um terceirofator (A . Peyrefitte) decorrente do religioso. Impe-se ir mais a fundo nesse fatorreligioso para nele descobrir, aps e antes, a qualidade do fator espiritual eteolgico. A primeira parte (Os Protestantes e o Advento das Grandes Democracias)dedica-se ao exame de como o cristianismo reformado suscitou o surgimento, no dademocracia no Ocidente, que existiu bem antes da Reforma, mas das grandesdemocracias modernas. Ele demonstrar, com efeito, que os herdeiros da ReformaCalvinista se acham precisamente na raiz da democracia, na origem das trs grandesrevolues que moldaram o mundo moderno, a revoluo democrtica ocidental, a

    primeira revoluo anti-colonialista importante, e muito particularmente a revoluo

    industrial da qual o autor acentua o papel na transformao radical e permanente daordem social, dos hbitos, dos costumes, das mentalidades, das estruturas econmicas e

    polticas das sociedades humanas. Mas, a investigao vai mais longe: essa reformaportadora de esperana? Caso afirmativo, em que ela se radica? No residiriaexatamente, de certo modo, em que a uma Igreja sentinela, vanguardeira, sofredora ecombatente seja inerente compreender a natureza e os riscos de uma autntica ticacrist, reportando-se ao Evangelho, como fonte permanente de renovao espiritual e

    poltica? Essa a tese do autor, que vai indagar o passado luz daquilo em que ele setransformou e dos significados que assumiu, mantendo cautela para no cair naarmadilha do dogmatismo e dos anacronismos, mas sem nada ocultar do que julgue ser acontribuio e as responsabilidades comuns ou respectivas dos cristos de todas asconfisses.

    Ocasio nica para identific-las ao ensejo da leitura deste sobrevo histrico decinco sculos, mediante a nfase dada a certos pontos de referncia significativos (masque trabalho para lhes resgatar o valor e a pertinncia!), repondo as discrepncias entrecatlicos e protestantes no seu contexto histrico e ideolgico. Incrvel deparar noherdeiro de J. Alvin, do liberal S. Sismondi como do radical J. Fazy, mas igualmentede D. Boehnhoeffer, K. Barth e M. Boegner, e num mesmo trabalho, to vasta culturasobre as razes de nossa transformao coletiva, de seu sentido e de seus significados.Dessa forma, a descoberta da historicidade de nossas prticas, conduzindo adivergncias de opinio sobre a estrutura da sociedade, e o esclarecimento das tenses,

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    que elas implicam para o futuro, mantm-se aqum e vo alm de prticas protestantes,bem como catlicas.

    Nascido na Europa, transportando-se depois de Plymouth para New Plymouth, ofermento democrtico reformado chegar Amrica, onde uma vez mais, novainterpretao da Palavra de Deus conduzir a novas relaes entre os homens e a novotipo de sociedade. Uma ou outra dessas expresses da idia de renovao das coisas edas gentes reapresentam-se ao menos em uma de cada trs das quarenta primeiras

    pginas, e as animam todas. Mas, que subsiste do equilbrio preconizado por Alvin? Anecessidade de subordinar a vida econmica s exigncias e obrigaes de uma ticasocial rigorosa? A proclamao da solidariedade econmica dos homens e das naes? Anecessidade de certa redistribuio permanente das riquezas e do trabalho em favor dosmais desfavorecidos, principalmente dos desempregados. A legitimidade, teologicamente

    estabelecida, das intervenes legislativas do Estado nesse domnio, para disciplinar ojogo indispensvel de uma s liberdade, nas relaes entre cidados de uma cidade, deum pas e da comunidade universal? Evidentemente, esse equilbrio assim concebido nofoi perseguido em seguida nas sociedades democrticas industriais, para cujodesenvolvimento a Reforma havia contribudo intensamente.

    Um desenvolvimento de cor protestante?

    Analisando os protestantes no desenvolvimento das sociedades modernas, asegunda parte permite ao autor questionar-se: em que medida os prprios protestantes

    so solidariamente responsveis por esta evoluo? Tentaram eles modific-la? Em quesentido? A anlise histrica est apta para pr em evidncia as conseqncias imprevistase os efeitos perversos, inclusive no poder protestante, no trnsito da moral calvinista

    para o moralismo calvinista.Certamente, hoje, mais se analisa do que se fundamenta o mito. Mas, na medida

    que ele for revelado enquanto tal, o mito estabelecido em ideal sagrado, erigindo-se emabsoluto independente de toda referncia f que o engendrou, transformado emideologia independente, poder ser esvaziado e substitudo pelo retorno s origens, ascese na sociedade, ao invs de vivido na segregao do mundo como na Idade Mdia.Assim essa ideologia que A . Weber denomina o esprito capitalista, utilitarista,individualista, despreocupado com a tica global, a tica social, transfigurado em moral

    burguesa secularizada, orientado para a poupana e o lucro, mas negligente quanto spreocupaes sociais importantes que inspiravam a tica do cristianismo reformadooriginal, to distante da religio que por vezes se voltou contra si mesmo.

    Nutrindo sua tese pelo estudo da origem protestante de certo liberalismoeconmico moderno e da evoluo das sociedades ocidentais, Andr Biler est

    particularmente habilitado para detectar os valores essenciais da tradio crist, inclusivejunto aos utopistas, mesmo que esses valores, destacados do contexto teolgico global,hajam alimentado as ideologias profanas dos sculos subseqentes. F na razo, naconscincia e na cincia, transmudada em verdadeira religio secular segundo aexpresso de R. Aron, viso otimista do homem que esquece as verdades evanglicas

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    que afirmam ser o homem uma criatura decada que necessita, como toda a criao, sertransformada para encontrar sua identidade. Demonstrando como se constituram asideologias econmicas, que ocuparam o lugar da tica crist, e como elas dividiram o

    mundo em cls polticos hostis, ele nos enseja assistir aos combates travados peloscristos em prol da justia na aurora de uma era nova industrial, participar dos maisrecentes esforos que as Igrejas tm empreendido no intuito de que a tica crist sejarespeitada, graas particularmente ao movimento ecumnico. Antes de enunciar aexigncia de um dever urgente e de longo flego: democratizar as decises no setorda economia, mediante melhor harmonia entre o capital e o trabalho, respeitando tanto aliberdade quanto a dignidade de todos os parceiros.

    A esperana como ato de f: a igreja, sentinela da democracia ?

    Longe das ideologias tornadas crenas secularizadas, impregnadas de esperanasilusrias, repensando de novo e por ns, hoje como no tempo de seu aparecimento ecristalizao, a Eterna Palavra de Deus que ressoa nas Escrituras (a grande lio daReforma), o trabalho visionrio do Professor Biler se inscreve numa s e mesma

    perspectiva: a da esperana que ato de f, prpria de sua condio de arteso da paz,prtico de uma cidadania ativa, exercitando o direito resistncia, numa Igreja que elequer, ele cr ser, - em otimismo trgico moda de Mounier, ou em pessimismo ativo maneira de Rougemont - teologicamente fundada como sentinela da democracia nummundo certamente sempre ambivalente mas destinado ao Reino de Deus, nica realidadeltima para a qual marcha o conjunto da humanidade e toda a criao.

    Compreende-se ento que a empreitada de desmistificao ultrapassa largamente a

    encenao, mesmo dinmica, do passado. O mtodo faz irresistivelmente pensar nadistino, cara aos bilogos, entre fentipos e bitipos, aqueles mero reflexo e realizaodestes. O estudo do papel dos protestantes no desenvolvimento das sociedades modernasatualiza, passando-os no crivo, os enunciados tradicionais visando ou enaltecer asinfluncias do esprito reformado sobre o desenvolvimento do capitalismo, ou denunciaro protestantismo como responsvel por seus abusos recolocando as duas perspectivas nocontexto dos patrimnios histricos.

    Oportunidade, sobretudo, de assim observar de mais perto o que encobre esteoutro lugar comum relacionado com a prosperidade das sociedades protestantes e ocontraste Norte-Sul no desenvolvimento da Europa. O leitor sabe muito bem, a essaaltura do desdobramento da obra, que haver, como ao longo da primeira parte,iniciando por Genebra e Alvin, alargando depois a anlise com a indagao sobre asrelaes posteriores entre o protestantismo e a sociedade ocidental, certas nuanas asubministrar de modo reflexivo e crtico. O autor no hesita em submeter consideraoas explicaes propostas, quer provenham de socilogos quer de telogos. Ultrapassa-os, todavia, mediante anlise terica e prtica dos fundamentos de um desenvolvimento

    justo, reconhecendo a legitimidade do comrcio, das trocas e da diviso do trabalho, masapelando para o controle dos preos nas situaes de penria e de monoplio e para arepulsa aos abusos do poder do dinheiro, hegemonia do capital sobre o trabalho e supremacia da economia. Mas, o cristo sabe muito bem que o essencial no est nessacontrovrsia. E o autor evita subverter a ordem dos valores e de inverter as causas e as

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    conseqncias: seu pensamento vai alm do princpio dialtico, que ele contudo dominaadmiravelmente.

    Retorno e recurso s fontes: tambm e sempre, o Evangelho no cerne do debate dehoje.

    O autor cr fundamentalmente no carter imutvel, independente do tempo, do que revelado na Palavra de Deus, autoridade suprema. Da, essa reivindicao, nica, peloretorno ao patrimnio original, Boa Nova, ao Evangelho. Mas, esta percebida comofonte permanente de renovao espiritual e poltica, incrustando em ns uma atitude decontestao, antpoda do pio do mundo, pela volta igualdade, justia, simplicidade. Ele espera desse mpeto regenerador que se crie um liame entre

    renovao da religio e novo estatuto da sociedade. Bem longe das represses cruis,seja populares seja artsticas, que sempre pretenderam reprimi-lo na histria, masfundado no princpio chave de renascimento e de novo nascimento, e sob a condio deque a Palavra no seja confiscada pelo poder. Sabemos que numerosssimos catlicos, oque o autor no revela muito claramente, esto dispostos a segui-lo nesta via, e j ocomentam tanto na prtica religiosa como nas homilias dominicais.

    Ser-se- enfim sensibilizado pela arte que tem o autor de suscitar em sua anlisehistrica ecos absolutamente contemporneos. No se trata mais somente de dirigircrticas ao princpio e prtica atuais da confuso dos poderes polticos e religiosos,ainda cara ao catolicismo como entendido por Roma, e obstculo ao ecumnicacontempornea, nem mesmo de estigmatizar certas decises recentes relativas a

    problemas de populao. A respeito, primeiro, da grande surpresa do desenvolvimentolouco e de seus efeitos perversos, o autor uma vez mais mira mais longe ainda, e mais

    profundo. Assim que o texto todo adornado de notas e proposies incidentesinterpelando o indivduo ao explicar-lhe as intenes originais e ao procurar evidenciar asdvidas de significado s quais elas hoje se reportam, exatamente quando so largamentedeformadas ou esquecidas. Significado do sabat ou significado do trabalho por exemplo,a respeito dos quais o leitor logo entender que eles podem contribuir para a construoda personalidade humana e para a maneira de viver em seu tempo. Nem por isso ocoletivo esquecido. Partindo da questo que Igreja hoje, por que sociedade?, AndrBiler situa finalmente o imperativo da tica crist na democratizao da economia.

    Sem dvida alguma que atravs deste trabalho consagrado ao que outros poderiamdenominar estudo sobre a analogia da f, o autor auxiliar todos aqueles que, de formaabsolutamente atual, desejariam esclarecer o debate essencial hoje, e muito recentementegerado pelo relatrio Minc1 dirigido a Edouard Balladur, opondo uma nova palavramestre, o princpio da equidade, ao princpio da igualdade, princpio que teria cadoda moda depois de ter embalado toda a histria social do ps-guerra.

    O dilema, com efeito, est no cerne de qualquer poltica econmica, social,territorial2 : trata-se de orientar-se exclusivamente em funo das correlaes da

    1Alain Minc,La France de lan 2000, Paris, Odile Jacob, Documentation franaise, novembro de 19942Mercedes Bresso et Claude Raffestin, Lconomie de lenvironnement: idologie ou utopie?Lespacegographique,no. 2, 1979;Jean-Bernard Racine,La ville entre Dieu et les hommes, Presses bibliques

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    sociedade produtivista, maximizando unicamente a eficincia, implicando certamente ocrescimento, mas tambm e correlativamente, os grandes princpios da comunicao, dahierarquia, da dissimetria, da superioridade, da desigualdade, do valor de troca, da

    produo, da temporalidade, do custo econmico e da concentrao, ou de considerarantes uma sociedade mais existencial, valorizando a comunho, a simetria e asolidariedade, o valor de uso, a territorialidade, o custo social e a regulamentao, aeconomia como meio e no como fim? Trata-se de opor, em nome da teoria da justia

    proposta pelo filsofo americano John Rawls, a ambio republicana de igualdade, anovo modo de reflexo sobre a tica social pretendendo que as instituies bsicas sejamapenas justas na medida que contribuam para tornar a situao dos mais desfavorecidos -os hoje excludos do trabalho - a melhor possvel?

    As proposies do Professor Biler vo alm de meras medidas circunstanciaispara uma classe tambm ela circunstancial, um mesmo princpio de justia podendo

    traduzir-se, no tempo e no espao, por polticas muito diferentes. Mas ento, se umapoltica econmica e social incarna mal um princpio de justia e conduz a resultadosaberrantes, a poltica ou o princpio que se deve incriminar? Resta saber o que igualdade, o que realmente equidade, uma e outra enredadas na prpria dinmica muitocontraditria por vezes. Andr Biler no intervm explicitamente no debate, ou antesele se situa acima do princpio e das definies categricas. Procurando definir ascondies de um liberalismo social ou de um socialismo liberal inteligentes, eleremonta uma vez mais s fontes mesmas do problema, deparando nos princpios daReforma com a idia e a fora de uma igualdade como equidade, da mesma forma queencontrar na equao entre meta econmica e meta social a razo mesma da economia.

    Uma economia que tem portanto por finalidade no s a satisfao das

    necessidades solvveis, mas tambm a satisfao das necessidades essenciais de cadaindivduo, sendo a solidariedade to essencial quanto a produtividade. Porque tais soefetivamente certos preceitos evanglicos importantes traduzidos para termoseconmicos e sociais. Visto que, como o dizia F. Mitterand por ocasio da Reunio deCpula Mundial do Desenvolvimento Social em Copenhague, o homem deve ser oobjetivo ltimo de toda estratgia poltica ou econmica. E se assim , isso passa

    portanto pelo social. Mas, qual o homem do social para Andr Biler, seno essacriatura divina cujas relaes com as outras, por exemplo com a Terra, no sero boas,

    justas e equitativas, a no ser na medida que se radiquem no Plano de Deus para Suacriao? Cristianismo social protestante e catolicismo socialpodem e devem convergir.

    F-lo-o tanto mais facilmente quanto mais, no engajamento ecumnico, o apelo juventude e aos leigos contribuir para demolir o isolamento das Igrejas.As ms relaes que os homens mantm com a terra so apenas a expresso das

    ms relaes que eles nutrem entre si, dizia Marx. Esperamos que como o prefaciador,o leitor da ltima obra de Andr Biler ficar convencido de que justamente as msrelaes entre os homens so antes de tudo a expresso das ms relaes que elesmantm com Deus e Aquele a quem as religies crists, em respeito s diferenaslegtimas e s diversas culturas, e renunciando a encerrar Deus no seu empreendimentohumano, prestam homenagem de forma nica e especfica: Cristo de quem falam as

    Universitaires, Genebra, 1993.

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    Escrituras. Nesse sentido, o apelo da Reforma mais do que nunca oportuno e se dirigea todos os cristos. Um apelo que renovou intensamente a ambio de um universitriogegrafo desejoso de colocar seus conhecimentos e experincias ao servio de uma tica

    que se situa no espao em cujo seio vivemos. Ethos: simultaneamente morada e modode viver, lembrava Bernard Rordorf3.

    Jean-Bernard RacineProfessor da Unversidade de Lausanne

    3La transformation de lespace habit,Bull. du Centre protestant dEtudes, julho 1975.

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    Introduo

    Os Protestantes,Oportunidade ou Ameaa para a Sociedade?

    Os julgamentos emitidos sobre o papel dos protestantes na sociedade moderna socontraditrios. Para uns, o papel benfico, exemplar. Para outros, detestvel,

    perigoso. Para uns, ele est na origem das grandes democracias e do desenvolvimentoeconmico ocidental. Para outros, ele responsvel pelo individualismo destruidor dasociedade contempornea e inspirador de todos os abusos do capitalismo.

    Um colaborador da revistaEsprit, J. -C. Eslin4, professor da Ecole Europenne des

    Affaires (EAP), questionava-se sobre as conseqncias da vigorosa penetrao domodelo americano na Europa. Esse modelo, dizia ele, tipicamente protestante.

    1. A sociedade moderna constri-se segundo um modelo individualista de origemcalvinista.

    uma questo de saber, escrevia ele, at que ponto a adoo na Frana de talmodelo de individualismo de origem calvinista... uma oportunidade ou uma ameaa.

    E continuava: Parece que os franceses descobrem nos anos atuais uma liberdadede pensamento que desconheciam desde o sculo XVI, uma de liberdade de concepona confrontao... que em princpio favorvel pesquisa e imaginao.

    Este autor constata que, anos decorridos, as duas maiores influncias dominantes,a da Igreja Catlica e a da Revoluo Francesa, foram violentamente requestionadas.

    Ambas funcionavam sobre o modelo de verdade que provm do alto e setransmite do alto para baixo, tanto na poltica como na educao, na escola e nauniversidade.

    Mas, o jovem francs torna-se como o americano, um indivduo que definesozinho seu referencial de verdade, avana s, desassistido..., motiva-se a si prprio, fazde si prprio o objeto de seu esforo, concebe os prprios objetivos, fixa os prprios

    prazos, resumindo, assume o compromisso de viver no mundo e nele alcanar sucesso...

    sem contar com o respaldo dos outros (a famlia, o Partido, a Igreja). , prossegue oautor, o modelo que o socilogo Max Weber, analisando o comportamento doscalvinistas, definiu como o do ascetismo no mundo.

    Se assim , conclui Eslin, a tica americana, a tica protestante, que ainda dominao pas mais poderoso do mundo, embora sob a forma mais secularizada que se possaquerer, no se impor ela na Frana?

    Eis o problema colocado: em que medida o protestantismo um dos fatoresdeterminantes do desenvolvimento das mentalidades modernas e das sociedades

    4Le Monde, 26 de abril de 1985

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    democrticas e industriais contemporneas? Noutros termos: o que , nessas sociedades,herana do protestantismo e o que que advm de outras influncias?

    Assinalamos desde j, de passagem, a observao pertinente deste autor que,

    falando da influncia atual da tica protestante, sublinha que se trata de sua forma maissecularizada. Voltar-se- mais alm a essa importante particularidade, indispensvel compreenso das influncias recprocas do protestantismo e da sociedade moderna.

    Notamos tambm a meno s duas autoridades hierrquicas dominantes, a IgrejaRomana e a Repblica leiga. Ainda que a segunda, durante a Revoluo, se hajainsurgido violentamente contra a primeira, os jacobinos tomaram da Igreja o modeloautoritrio, centralizado e hierrquico que permanece o arqutipo das sociedades deorigem catlica romana, e, j muito antes, o do paganismo e de numerosas sociedadesreligiosas primitivas.5

    2. A filosofia poltica do Contrato Social.Sobre tema anlogo, uma entrevista de Jean Baubrot, presidente da seo das

    cincias religiosas da escola prtica de Altos Estudos em Paris, aparecia na revistaLHistoire6. Tratava-se de definir a poltica dos grandes protestantes mais conhecidos,como Maurice Couve de Murville, Jrme Monod, da direita (moderada) e Pierre Joxe,Lionnel Jospin e Michel Rocard, da esquerda (moderada).

    O modelo poltico do protestante francs, observa J. Baubrot, deriva mais domodelo puritano que do modelo jacobino, no sentido que o protestante imune dasideologias e dos modelos polticos utpicos, e espera da sociedade no que ela fixe acada indivduo um destino social comum, mas que lhe subministre simplesmente os

    meios de atingir a florescncia individual. H portanto uma cultura poltica especficados protestantes. Os protestantes so alrgicos ao coletivo. Esta noo incompatvelcom sua preocupao com a individualidade. o que bem demonstrou o filsofo PaulRicoeur, contraditando as teses de Jean-Paul Sartre - e o que se passa hoje parece dar-lhe razo. Por exemplo, Michel Rocard manifestou muitas vezes essa dimenso crticaa respeito do marxismo.

    No entanto, acresce J. Baubrot, na Frana est-se ainda longe deste modelocultural de origem protestante, porque no se cancelar com uma penada toda a tradio

    poltica francesa.Se os protestantes franceses optam muitas vezes por uma poltica de esquerda

    (moderada), isso deve-se ao fato de que, tradicionalmente, o inimigo, o perseguidor, aIgreja Catlica, que a tradio poltica francesa identifica direita. E reciprocamente.Alm disso, sua situao de minoria ameaada empurrava naturalmente os protestantes

    para a esquerda e para o laicato republicano, defensores do fraco e do oprimido.Se, na Frana, o protestantismo se bandeia antes para a esquerda moderada, em

    qualquer outra parte pde ele encarnar o modelo liberal. Mesmo nos pases onde maioria, o protestantismo isola e acolhe as minorias. A idia dos direitos humanos nasceul, na Inglaterra do sculo XVII, depois na Amrica inglesa. Para certos Puritanos, a

    5Cf. L. Dumont, Homo hierarchicus, Paris, 1966.6LHistoire, nmero especial, 135, julho-agosto 1990.

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    Igreja crist constituda de voluntrios, que assinam um pacto entre eles e Deus, masno o impem aos outros. a afirmao da individualidade ( tambm a origem religiosada filosofia poltica do Contrato Social): cada um proprietrio de seu corpo e de suas

    capacidades de criar sem ser constrangido por liames indesejados de dependncia paracom qualquer senhor seja ele qual for. As idias capitalistas germinaram nesse terrenocultural. O que pode produzir uma sociedade de tipo liberal ou social democrata.

    J. Baubrot observa portanto a existncia de duas tendncias dominantes no seiodo protestantismo moderno. Ora, ambas provm da Reforma. A partir da heranaequilibrada do cristianismo reformado original que insiste com igual fora sobre orespeito liberdade tanto quanto sobre o respeito equidade (preconizandoconseqentemente o que se pode denominar seja liberalismo social seja socialismoliberal), uns se filiam direita moderada privilegiando a liberdade, outros esquerdamoderada insistindo sobre a justia e a solidariedade sociais. Existir entre eles tenso

    contnua mas fecunda.J. Baubrot se junta a J.-C. Eslin quando afirma que o modelo poltico doprotestante francs se aproxima mais do modelo puritano que do modelo jacobino,mas no vai mais longe que ele quando este emite a idia de que o modelo puritano, nosdias presentes inteiramente secularizado, est em vias de modelar o carter dos jovensfranceses.

    O problema est portanto novamente bem colocado: em que medida a herana docristianismo reformado foi assimilada, em sua forma secularizada, por certas sociedadesda vanguarda do desenvolvimento ocidental e, alm disso, at que ponto essa herana foiinfluenciada pela evoluo histrica das sociedades modernas?

    Examinemos tambm outros testemunhos interessantes.

    3. A opinio de dois observadores catlicos sobre os protestantes.

    Com interpretao muito moderna das antigas teses do socilogo Max Weber(trabalhos de que se tratar mais adiante), dois autores franceses emitiram sobre os

    protestantes juzos que seguem no mesmo sentido daqueles de Eslin, mas dos quais elestiram concluses diametralmente opostas.

    O primeiro, Alain Peyrefitte, membro da Academia Francesa, manifestou seupensamento numa obra muito conhecida e intitulada: O Mal Francs.7 O segundo,Robert Beauvais, um catlico nostlgico, publicou um livro aparecido no mesmo ano e

    na mesma editora, cujo ttulo, algo provocador, : Seremos Todos Protestantes.

    8

    Destas duas vises projetadas sobre os descendentes atuais da Reforma,comeamos por evocar a primeira.

    A . Peyrefitte interroga-se sobre o mal que corri seu pas; e muito particularmentesobre o mal de uma civilizao tecnocrata, cada vez mais centralizadora e ditatorial, que

    por toda a parte se engenha em esmagar o indivduo e em priv-lo de suasresponsabilidades. o mal de uma sociedade hierrquica e desconfiada9 . Esta

    7Alain Peyrefitte, O Mal Francs, Paris, 1976.8Robert Beauvais, Seremos Todos Protestantes, Paris, 1976.9A . Peyrefitte, op. Cit., p. 29.

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    sociedade est constantemente ameaada pelo risco de cesarismo10, porque aautoridade poltica nela detm todos os poderes - em vez de exerc-los. Porconseqncia, o cidado se sente impotente diante de uma mquina cega11. Essa

    situao conduz passividade do cidado, quebrada por bruscas revoltas12. Essecesarismo da sociedade civil a herana tanto do modelo autocrtico da IgrejaRomana quanto de seu contramodelo leigo erigido sobre o mesmo esquema, ocentralismo da Revoluo, de aparncias democrticas.

    O autor ataca com razo as sociedades polticas hierarquizadas que sufocam ainiciativa econmica individual. Mas tem-se o direito de perguntar se tais censuras no

    podem ser dirigidas tambm s sociedades industriais modernas, nas quais aresponsabilidade individual dos acionistas assim como a dos trabalhadores cada vezmais confiscada por novas hierarquias econmicas e financeiras, que tm forte tendncia concentrao dos poderes.

    O autor ope, no sem razo, a sociedade hierrquica e desconfiada quela queele chama de sociedade confivel,responsvel e contratual. Os pases anglo-saxesou continentais como a Holanda e a Sua, influenciados pela Reforma calvinista, soexemplos deste ltimo tipo. L, diz Peyrefitte, a sociedade deixa de ser um dado que seimpe a todos, um meio fatal e hierarquizado, para tornar-se - ao menos de incio -empresa coletiva da qual cada um participa com zelo igual e direitos iguais.13

    Deve-se reter a curta frase ao menos de incio, que confere restrio importanteao desenvolvimento que assumiu, desde a Reforma, o sistema econmico dito liberal,cada vez mais centralizador.

    Interrogando-se, ento, a respeito da origem desses dois modelos, a sociedadeautoritria hierrquica e a liberal democrtica, A . Peyrefitte identifica a da primeira na

    permanncia do sistema catlico romano, inspirado no cesarismo antigo de Roma que aContra-Reforma prolongou em oposio s aspiraes profundas dos povos modernos.O modelo anglo-saxo, ao contrrio, devido ao triunfo da Reforma e a seudesdobramento rumo aquisio das liberdades humanas.

    A Reforma, escreve o autor, elimina pouco a pouco a autoridade cesariana, liberaa energia emancipadora. A Contra-Reforma esmaga a virtualidade emancipadora, reforaa tendncia opressora. ... Os pases protestantes apropriaram-se da lio de Erasmo,evoluram para a tolerncia e o policentrismo. Os pases catlicos, em sua obsessounitria, perseguiram o pluralismo e construram o monocentrismo.Disso resultou, aqui,uma caminhada catica, l, uma marcha rpida para a democracia; aqui, a rotina, l, a

    inovao; aqui, a economia menosprezada, l, a economia exaltada.

    14

    Observar-se- ainda, de passagem, a expresso economia exaltada atribuda Reforma, enquanto que essa exaltao, hoje extremada, como se ver, corresponde maisao liberalismo integral posterior do que ao da Reforma, que um liberalismo contido

    pela preocupao da justia social.

    10Ibid. p. 42.11Ibid. p. 48.12Ibid. p. 66.13Ibid. p. 173.14Ibid. p. 174.

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    Arriscando simplificar um pensamento muito mais matizado, pode-se resumir aidia dominante de Peyrefitte dizendo que a herana de Roma induz uma estruturamental, religiosa e scio-poltica, centralizadora, hierrquica e autoritria que reduz a

    importncia da personalidade e da iniciativa individual. Ao contrrio, o pensamentorevolucionrio da Reforma, que foi uma verdadeira revoluo cultural 15, conduz auma mentalidade e a uma sociedade de progresso e de imaginao criadora na liberdade.A mensagem essencial do protestantismo emancipadora, diz ainda o autor. QuandoCalvino... exorta seus correligionrios a se tornarem responsveis por si prprios, eledisparou um movimento que eles no podiam prever e que no se deixar facilmentecanalizar 16.

    Anlise semelhante poder-se-ia fazer, hoje, acerca da histria e da evoluo dospases do Este assim como da Amrica Latina, da frica ou da sia. Ditaduras ouregimes pessoais aparentemente democrticos neles se instalaram por toda a parte onde

    subsistia, ou subsiste ainda, a imagem do velho modelo de sociedade hierrquica eautoritria, freqente nas civilizaes primitivas. Este modelo, tomado de emprstimo daantigidade pag pela Igreja Romana, perdurou ou reproduziu-se nas estruturas mentais,eclesisticas e sociais de numerosas regies que no conheceram a Reforma. Assim que, por exemplo, o modelo monrquico russo foi uma transposio do modelo romano,transmitido Rssia por Roma por intermdio de Bizncio pelos fins do primeiromilnio. Este modelo autocrtico foi inteiramente secularizado e robustecido pelocomunismo. (Corre o risco, alis, de ressurgir sob diferentes formas hoje no antigoimprio da Rssia, apesar das reformas em curso).

    Denis de Rougemont ponderou que nenhuma ditadura moderna se estabeleceu empas influenciado pela Reforma calvinista. Notar-se-, com efeito, que os ditadores

    Lenin, Stalin, Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Pinochet e tantos outros dspotas desegunda categoria eram todos de origem ortodoxa russa ou catlica romana.

    Retornemos aos controversos juzos sobre o papel do protestantismo e docatolicismo na Europa, examinando a opinio do segundo pesquisador catlicosupramencionado.

    4. A reforma, revoluo emancipadora ou materialista?

    O segundo autor catlico ao qual nos referimos, Robert Beauvais, faz quase asmesmas constataes que Alain Peyrefitte, mas delas apresenta interpretao

    radicalmente diferente. Deplora o esprito ao mesmo tempo revolucionrio e mercantildos calvinistas aos quais imputa, no rasto de incontveis polemistas catlicos do sculoXIX, todas as deficincias da sociedade democrtica e industrial moderna. Os cristosreformados, diz ele, so responsveis pela destruio das antigas estruturas hierrquicase autoritrias, que proporcionaram aos pases latinos a ordem, o respeito aos valorescristos tradicionais e, por conseqncia, a hegemonia das naes europias sobre oresto do mundo, graas sobretudo s conquistas coloniais. Num encadeamento de causase efeitos, que vai da Reforma plutocracia moderna materialista, passando pela filosofia

    15Ibid. p. 166.16Ibid. p. 167.

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    do Iluminismo, a franco-maonaria e a Revoluo Francesa - segundo ele, o mais nefastoproduto do protestantismo - ele v degradar-se no s o Ocidente mas tambm a IgrejaRomana universal, sob a influncia dominante, onipresente e muitas vezes clandestina

    dos protestantes. Tem a coragem de afirmar alto e bom som - mesmo que seja demaneira extremada - o que se pensa na surdina em muitos meios profundamenteconservadores ou reacionrios.

    Como Alain Peyrefitte, Robert Beauvais inquieta-se com a marcha da sociedadetecnocrtica contempornea para uma ditadura disfarada. Mas, em vez de deplorarcomo ele a supresso dos indivduos ante os imperativos de uma tecnocracia poltico-econmica crescentemente desptica, aniquiladora daquele sentido de responsabilidadeque o calvinismo havia promovido to intensamente, ele, ao contrrio, condena o

    protestantismo por se ter apoderado dos instrumentos de comando da sociedadefinanceira e industrial.

    Denuncia tambm a filantropia dos protestantes, que muitas vezes lhes serviu debiombo para mascarar-lhes o esprito de lucro, to prejudicial ao mundo operrio. OPuritano, afirma ele, precisa da filantropia para se fazer perdoar o lugar que ocupou navanguarda do capitalismo. O protestante, alm de puritano, tambm filantropo,escreve ele. A filantropia marcou o sculo XIX que foi o sculo da ascenso econmica

    protestante na Frana. Provocada pelas primeiras manifestaes desse vcio impune - am conscincia -, a burguesia tratou de lavar-se dele atravs da filantropia...17

    verdade, (falar-se- disso mais adiante), que a filantropia, quo desinteressadahaja ela sido ou possa ser ainda, muitas vezes impediu que os cristos (de todas asconfisses) investigassem as causas da misria, justamente quando se devotavam

    bravamente a reduzir-lhe os efeitos. Constata-se isso tanto no sculo XIX, a respeito dos

    sofrimentos do novo proletariado industrial, quanto no sculo XX, a propsito dosefeitos ambguos, benficos mas igualmente perversos, que causa no Terceiro Mundo odesenvolvimento econmico acelerado dos pases industrializados.

    Enquanto Alain Peyrefitte v na autonomia moral do protestantismo essa foraindividual, que o impele para as audaciosas iniciativas, e essa independncia que lhe fazintolerveis os regimes autoritrios e opressores, Robert Beauvais, ao contrrio,considera que o calvinismo est na origem desse esprito revolucionrio que, segundoele, arruinou e continua arruinando o Ocidente. A insubmisso essencial, escreve, quefaz do protestante um opositor nato, nunca cessou de manifestar-se, em graus diferentes,na maior parte dos comportamentos huguenotes: estar em paz consigo mesmo e com

    Deus ... pressupe um estado de bravata quase permanente para com suas relaes, asociedade, os usos, os conformismos e a simples opinio corrente18.E enquanto o acadmico Peyrefitte elogia o gosto pelo trabalho dos Puritanos, que

    levou os povos protestantes vanguarda das naes industriais, Beauvais descobre noseu ardor laborioso e na sua predisposio ao ganho a origem do materialismodevastador, que destri nosso mundo moderno.

    17R. Beauvais, op. Cit., p. 42 et 94.18Ibid. p. 73.

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    5. Capitalismo e marxismo, subprodutos do protestantismo?

    Deste desvio dos costumes (subentendido: provocado pelo protestantismo)

    engendrado pela santificao da Rentabilidade, prossegue Beauvais, nasceu a novaheresia: a sagrao do trabalho, fermento da riqueza. A exaltao do Trabalho tornou-seum dos dogmas da moral ocidental. a conseqncia de um matraqueado intensivo,encarregado de combater as tendncias naturais do homem, e as verdades da Escrituraque o tornam uma maldio.19

    As crianas de minha gerao, escreve ainda Beauvais, foram ninadas por cantigasedificantes, repletas de filhos-famlias preguiosos e debochados que morriam aos setentaanos, consumidos pelos prazeres. Mas, tomavam a precauo de nos ocultar que o

    primognito, filho modelar, esposo exemplar e sempre no escritrio antes dosempregados como o exige a moral do bom patro, morria de infarto aos cinqenta anos,

    abatido pelos problemas de gesto e de rentabilidade. Se tais coisas se divulgassem, seriaa anarquia.O autor continua: A religio do trabalho (subentendido: produto do

    protestantismo) de tal modo enraizada no inconsciente que o marxismo s precisouabaixar-se para empunh-la: observem-se nos primeiros filmes soviticos os semblantesextasiados dos colcoses diante do espetculo de uma mquina de ceifar em ao....

    No mbito da historieta, adita Beauvais, instrutivo notar que Karl Marx,cruzado do anti-capitalismo, e Arthur Philips, fundador de uma das mais poderosasmultinacionais europias, eram primos (distantes), ambos de origem israelita e ambosnascidos e educados na religio protestante qual se convertera sua famlia.20Capitalismo e marxismo, portanto, se do as mos neste culto da eficincia seja qual for

    o preo. certo, como se ver, que existe uma filiao direta entre o capitalismo e ocomunismo. Mas que ambos sejam, como pretende o autor, herana de origem

    protestante, isso um grande exagero, embora no inteiramente falso, levando-se emconta certos desvios protestantes deplorveis. Ento, em que medida isso verdade? Ede que outras origens advm essa herana? Tais so as apaixonantes questes que urgetentar responder.

    6. Entre calvinistas e luteranos, nuanas.

    Quando se fala do protestantismo, esclarece ainda Beauvais, impe-se distinguir o

    calvinismo, de tendncias revolucionrias, do luteranismo mais conservador. Nossos doisautores concordam neste particular.Nas suas regies protestantes, escreve Peyrefitte, ela (a Alemanha) no ingressou

    na idade industrial to rapidamente quanto os Pases Baixos, a Inglaterra, a Sua oumesmo os Estados Unidos. Antes de nisso ver uma exceo, cumpre notar que aAlemanha reformada luterana e no calvinista. O luteranismo mantm-se Igreja, anti-romana certamente, mas Igreja hierrquica e dogmtica. Para o politiclogo e osocilogo, o luteranismo situa-se entre o catolicismo e o calvinismo. O que no pode

    19Ibid. p. 44.20Ibid. p. 44.

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    deixar de ter relao com o fato de que os pases reconhecidamente calvinistas hajaminiciado o surto de progresso no sculo XVII, os pases luteranos somente no sculoXIX, enquanto os pases catlicos deviam aguardar o sculo XX.21

    Peyrefitte menciona tambm, para confirmar as observaes, o sucesso de AdolfoHitler. Esse personagem, vindo do Sul, a regio mais romanizada do Santo ImprioRomano Germnico..., austraco de nascimento, teve na Baviera seu maior apoio

    popular.22A Baviera, como sabido, uma das regies mais catlicas da Alemanha,como catlica a ustria.

    De sua parte, Beauvais faz anlise simtrica, mas para louvar o espritoconservador dos luteranos. No confundir luteranos e calvinistas, tal o ttulo de umcaptulo de sua obra na qual se l: Amigos dos prazeres deste mundo e acomodados vida, os luteranos protestantes dos departamentos franceses e das naes estrangeiras doLeste, bem como dos pases europeus do Norte, acham-se circundados por terra frtil e

    produtiva. Menos atingidos pelas perseguies que os irmos calvinistas, elesrepresentam o elemento conservador da comunidade. Os calvinistas, que se difundirampelo Sul da Frana e o Jura, so o elemento rebelde, liberal e progressista.23

    Se o ramo luterano conservador estimula submeter-se s leis de um mundo criadopor Deus, as tendncias individualistas e liberais do esprito democrtico agitam ocalvinismo desde a Reforma: os pastores genebreses haviam adquirido muito cedo ohbito de criticar, desde o plpito, os homens do poder e de apelar para o povo contraeles.24 Esta ltima observao, como se ver diversas vezes, no est destituda de

    pertinncia.Constatar-se- tambm que essas diferenas entre luteranos e calvinistas se

    explicam pela sucesso de duas etapas histricas, bem distintas, da Reforma, que

    conduziu os reformadores a adotarem posies diferentes na ordem e na importncia dasreformas a empreender. Mas, se a observao delas til para explicar certos matizesentre as famlias reformadas, elas no alteram fundamentalmente as caractersticas do

    protestantismo considerado no seu conjunto.

    7. Permanncia de certos traos de carter entre os protestantes.

    notvel que, a despeito da grande onda de secularizao dos espritos que varreuo Ocidente, se constatem ainda hoje sobrevivncias tpicas da influncia confessionalsobre o comportamento dos homens em sociedade. Ouvimos, por exemplo, o

    testemunho de um magistrado catlico italiano. Sabe-se que a Siclia particularmenteinfetada pelos delitos da mfia. Em 1993, as autoridades de mais de vinte municpiosforam destitudas do poder e substitudas por comissrios nomeados pelo governoitaliano. Ora, eis o testemunho de um destes magistrados, M. Violente: A cultura

    protestante, observou ele, tem maior vigor na sua luta contra a mfia do que a culturacatlica. Nesta ltima, as confisses e a absolvio levam a comportamentos deirresponsabilidade. Sabe-se, por outro lado, que coragem manifestaram os valdenses do

    21A . Peyrefitte, op. Cit., p. 144.22Ibid. p. 146.23R. Beauvais, op. Cit., p. 47.24Ibid. p. 90.

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    Piemonte na sua luta secular contra todas as formas de corrupo. Mas quem cita essetestemunho, vindo de magistrado no protestante, se apressa a prestar homenagemmerecida a todos os outros resistentes, cristos ou no, que participaram e participam

    ainda heroicamente desse difcil combatem e muitas vezes oneroso, contra a corrupo.No h na Europa, nota ele, pas como o nosso onde to grande nmero de magistradosforam assassinados, s dezenas, e to grande nmero de policiais, de funcionrios,

    perderam a vida na defesa da legalidade. 25 Ao constatar-se que o protestantismofavorece o desenvolvimento de certas virtudes, no se deve concluir que estas se achemausentes daqueles que no participam dessa mesma herana. Isso deve ser sublinhadodesde agora e conservado na memria ao longo desta obra. Pois, quando se pem emevidncia certas virtudes estimuladas pela Reforma, isso no significa que os protestantes

    possuam o monoplio exclusivo de tais qualidades.

    8. Finalmente: os protestantes, oportunidade ou ameaa para a sociedade?

    Em definitivo, podemos verificar que os diferentes autores catlicos ouprotestantes, aos quais nos referimos, fazem a mesma anlise do protestantismo e docatolicismo: o primeiro, o protestantismo, fermento algo revolucionrio, semente deliberdade que liberta o homem dos conformismos religiosos, sociais e polticos e oencoraja a iniciativas benficas que lhe sugere o Evangelho; o segundo, o catolicismo,

    baseado, ao contrrio, sobre a autoridade primeira da tradio (religiosa e por analogiasocial e poltica) assegura a permanncia de uma ordem, que mantm o povo emtranqila e voluntria submisso. O primeiro estimula a sociedade e sua vontade de

    enriquecimento; o segundo, conquanto lute, como o primeiro, pela caridade individual esua doutrina social contra a misria, estimula, porm, o princpio de certa pobreza

    propcia meditao espiritual e que no leva exaltao da riqueza. Mas, enquantoAlain Peyrefitte se rejubila com a existncia dessa fora espiritual dinmica que o

    protestantismo, apta a conduzir as sociedades a seu apogeu, Robert Beauvais deplora odesenvolvimento dessa liberdade perniciosa, que conduz ao desmoronamento da ordemestabelecida. E ambos concordam em reconhecer que essa noo da ordem hierrquica uma herana antiga da Roma pag, depois catlica, e da latinidade.

    Mas, o acmulo da autoridade religiosa e da autoridade poltica na mesma pessoa,o Soberano Pontfice, , no tocante ao cristianismo, inveno relativamente recente. O

    imperador Csar e os sucessores desempenharam ambas as funes. Persistentes disputasocorreram entre o poder poltico e o religioso para conseguir acumular esses doispoderes supremos. Mas os imperadores, cristianizados, rejeitaram tal amlgama,reputando-o indigno de sua f. (Graciano, desde o sculo IV). Essa dupla hegemonia foireivindicada pelo papa muito mais tarde, na Idade Mdia e at os nossos dias. Talambio poltico-religiosa era totalmente estranha ao esprito dos primeiros cristos pormuitos sculos. Ver-se-, mais adiante, como o papado procurou e definiu essa duplasupremacia pretensamente divina. O chefe da Igreja catlica romana afirmava ser, ento,

    25Giuseppe Platone, As notcias de Riesi, maro 1993.

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    simultaneamente a autoridade poltica suprema das naes e a autoridade religiosauniversal dos cristos.

    Nosso propsito considerar o grau de pertinncia das observaes e

    consideraes dos autores, que acabam de serem citadas. Pois elas contm todas umaparte da verdade. E poder-se- constatar finalmente - uma das concluses a que esteestudo levou o autor - de uma parte, que toda religio induz uma poltica, e de outra,que toda poltica oculta uma crena (profana ou religiosa).

    Trata-se, antes de tudo, de examinar (captulos I e II) como o cristianismoreformado suscitou a promoo, no da democracia no Ocidente que existiu bem antesda Reforma, mas aquela das grandes democracias modernas; depois, como evoluramestas e sob quais influncias. (As democracias anteriores, todavia, muitas vezes s eramreais para parte da populao. Elas conciliavam-se facilmente com a escravido antiga oua servido medieval.)

    Tentar-se- em seguida, na segunda parte, compreender quais foram as relaesentre o protestantismo e o desenvolvimento econmico e industrial nas suas origens(captulos III e IV).

    Depois interrogar-se- a histria para apreender de que modo, da Reforma aostempos modernos, evoluram as relaes da sociedade industrial ocidental, cada vez maissecularizada e materialista, com o cristianismo, e como eles se influenciaramreciprocamente. Por-se- especialmente a questo de saber quais so hoje, na poca dosgrandes progressos tecnolgicos das sociedades industriais em via de expanso universal,as responsabilidades comuns dos cristos de todas as confisses. No esto elesconvidados, pelo seu Senhor, a reencontrar a unidade de seu testemunho espiritual e desua tica, particularmente social, no respeito das diferenas legtimas e nas suas diversas

    culturas? (captulos V e VI).

    9. Observaes pessoais.

    Sem dvida que tal empreendimento, que procura estabelecer em poucas pginascorrelaes entre domnios to complexos e aparentemente to distantes uns dos outros,como a religio e a sociedade poltica e econmica, aventura temerria. Trata-se desobrevo histrico de cinco sculos. Este se atm mais a certos pontos de refernciasignificativos, do que a longa e minuciosa anlise. No , pois, estudo sistemtico dognero acadmico. Nada tem a ver com um manual de teologia, nem com um livro de

    histria, menos ainda com um tratado de tica, se bem que seja um ensaio que interessetambm a essas reas. Certamente, sempre perigoso emitir observaes de carter gerala partir de fatos particulares. Mas, dada a experincia da observao area que o autoradquiriu outrora no exrcito, ele se recorda que, em tempo brumoso, certas refernciasno solo, bem escolhidas, fornecem melhores indicaes sobre a rota do que uma cartatopogrfica minuciosa, mas sem utilizao a grande altitude.

    Os reformadores nos ensinaram tambm que a sabedoria no devia permanecerencerrada em obras destinadas a especialistas emritos, mas que devia tornar-se acessvela qualquer um, a fim de que todos possam tambm amar a Deus com todo o seu

    pensamento, como lhes pede Jesus Cristo (Mateus, c. 22, v. 37).

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    Referindo-se ao pensamento dos reformadores, comparado, nos efeitos sociais, aodo catolicismo romano, o autor no pretende ressuscitar disputas confessionais de outrapoca. Mas, como ele se empenha sobretudo em tirar concluses, muitas vezes

    inconscientes e inesperadas, das diversas crenas na construo e na marcha dassociedades, ele no pode evitar de pr em evidncia as diferenas que surgem entre asconfisses. Alis, ao estudar o advento da democracia na Gr-Bretanha, ver-se- que osmesmos problemas, encontrados alhures entre protestantes e catlicos, despontam alientre protestantes de diversas denominaes. Uns, os Anglicanos, so sob muitosaspectos os mais prximos do catolicismo romano. Eles sero os fiis sustentculos doabsolutismo real combatido pelas diversas revolues. Outros, como os Quakers e oscongregacionalistas (para os quais a comunidade local soberana), sero, ao contrrio,

    juntamente com muitos Puritanos, os ardentes promotores da democracia. Entre essesextremos situam-se os presbiteriano-sinodais (no seio dos quais as comunidades locais se

    atribuem uma autoridade superior). Eles sero os partidrios de uma realeza parlamentar,democrtica. So suas diferenas de viso sobre a Igreja que os levaro tambm adivergncias de opinio sobre a estrutura da sociedade. A exigncia democrtica dependediretamente da eclesiologia de cada denominao, consoante ela leve em conta ou no,na prtica, a exigncia evanglica do sacerdcio universal (cada um seu prpriosacerdote). Esta concepo permite a cada indivduo entrar diretamente em relao comDeus, sem mediao obrigatria de um clrigo, intermedirio necessrio entre Deus e osfiis, para a distribuio dos sacramentos especialmente.

    O dilogo ecumnico enriquecedor quando essas diferenas so admitidas, juntocom tudo o que os crentes de diversas origens tm em comum. O captulo dedicado aomovimento ecumnico contemporneo lembr-lo-. Contudo, o autor quer declarar,

    desde agora, a tal respeito, quanto ele se enriqueceu espiritualmente por trocasecumnicas, particularmente no contato com homens e mulheres filiados ao catolicismoromano. Verificou, alis, que, hoje, o conhecimento bblico de muitos deles faria inveja amuitos protestantes, por demais esquecidos das exigncias de sua f nesta matria.

    Ele deparou igualmente com grande fraternidade nos grupos de militantes semcarter confessional ou religioso. Alguns deles fizeram-no pensar nesses artfices da

    paz, esses combatentes corajosos, que tm fome e sede de justia dos quais falaCristo e que, dizia ele, embora no o conheam ainda, precedero os crentes no Reino deDeus. Pois eles o encontraram, sem o saber, na pessoa dos pobres que eles socorreram,dos refugiados que eles acolheram, dos doentes e dos prisioneiros que eles visitaram

    (Evangelho de Mateus, c. 5 e 25).

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    Primeira Parte

    Os Protestantes e o Advento das Grandes Democracias

    Captulo I

    As Razes da Democracia

    As interpretaes do papel dos protestantes na sociedade, dadas pelos autorescitados na introduo, instigam a mais amplas reflexes. preciso examinar, de mais

    perto, quais so, de fato, os fatores que, no esprito e na ao dos cristos reformados,contriburam, desde a Reforma, para favorecer a dinmica poltica e econmica domundo moderno.

    Nesta primeira parte, iniciar-se- pelo exame do aspecto poltico desta dinmica,que conduziu ao advento das grandes democracias. E para compreender o que se passouna Reforma, urge recordar brevemente os acontecimentos que a precederam e

    acompanharam.26

    1. A emergncia dolorosa de um novo mundo.

    Em todo Ocidente cristo e desde suas origens, a imagem profunda do Cristosofredor, homem da dor, amigo dos humildes e dos deserdados, e por isso desprezado,rejeitado, preso, torturado, condenado e executado injustamente sob o pretexto deconluios subversivos, permaneceu gravada no esprito das massas populares miserveis. uma imagem de todos os tempos, mas ela ressurge sempre com mais vigor no espritodas populaes subjugadas pela violncia ou aniquiladas pela misria.

    Entre os sculos XIII e XVI, poderosa corrente de contestao, alimentada nessafonte permanente de renovao espiritual e poltica que o Evangelho, no cessou dequestionar a sociedade profana e religiosa, autoritria e hierrquica da poca, e reclamarum retorno simplicidade e igualdade evanglicas.

    Numerosas comunidades urbanas ou rurais obtiveram a grande custo cartasdemocrticas, outorgando-lhes liberdade relativa. O nascimento da ConfederaoHelvtica primitiva, em 1291, apenas um exemplo dentre muitos outros na Europa.

    26Encontrar-se-o nesta obra exposies sumrias de estudos mais completos do autor, especialmente:La pense conomique et sociale de Calvin, Genebra, 1959; Lhumanisme social de Calvin, Genebra,1961; Lhomme et la femme dans la morale calviniste, Genebra, 1963; Calvin, prophte de lreindustruielle, Genebra, 1964.

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    Genebra tambm, futuro bero da Reforma Calvinista, obteve franquias, confirmadas em1387 por seu bispo, prncipe do Imprio.

    A Reforma pode ser considerada, ao mesmo tempo, fruto e depois causa

    determinante dessa efervescncia espiritual e poltica. Ela tambm experimentou a sinade numerosos movimentos populares em prol da renovao da religio e de novoestatuto para a sociedade. Seus mpetos renovadores foram habitualmente denunciados

    pelos poderes estabelecidos, polticos e religiosos conjuntamente, e geralmentereprimidos cruelmente.

    A poca da Pr-Reforma foi assim poca de intensa efervescncia religiosa esocial. Em muitas regies da Europa, sublevaes populares foram provocadas por uma

    pletora de folhetos e libelos fervorosos contra os poderes constitudos e largamentedistribudos, graas s recentes descobertas tcnicas que acabavam de subverter os meiosde comunicao, o papel e a imprensa. Revoltas de camponeses, rebelies de proletrios

    das regies mineiras, movimentos dos Lolardos na Inglaterra, dos Anabatistas noContinente, so os mais conhecidos, com as tentativas de reformas religiosas e sociaisanteriores de Pedro Valdo (sculo XII), de John Wyclif (sculo XIV), de Joo Huss eJernimo Savonarola (sculo XV), todos acusados, condenados, executados ouqueimados por terem difundido as verdades evanglicas, muitas vezes traduzidas emlngua vulgar por seus prprios prstimos, enquanto seus discpulos eram perseguidos efreqentemente exterminados.

    2. O despertar maravilhoso dos humanismos complementares.

    O desejo acutssimo de reformas profundas tanto do sistema feudal hierrquicodominante quanto do cristianismo romano, construdo segundo o mesmo modelo, noagitava apenas os meios populares. Um movimento inovador das artes, das letras e do

    pensamento teolgico, filosfico e cientfico apossava-se das elites. Vivia-se aextraordinria esperana de um renascimento. Sonhava-se ver realizar-se melhor queantigamente o que anunciava o Evangelho quando falava de vida nova, de novonascimento, porque ele infundia em todos os conhecimentos e em todas as atividadeshumanas a luz da Palavra de Deus, que lhes d seu sentido e que lhes confere suafinalidade, mas sob a condio de que essa Palavra no seja confiscada por umaautoridade eclesistica qualquer, atribuindo-se o monoplio de uma interpretao

    autntica.Renascena e Reforma corresponderam ambas ao mesmo anseio. So doismovimentos complementares sobre os quais difcil dizer qual engendrou o outro. Defato, a instigao mtua comeou muito antes que emergissem na superfcie da Histriaas agitaes sucessivas, que posteriormente foram aglutinadas sob a denominao deRenascena e Reforma.

    A Reforma e a renovao das artes e das idias so solidrias, ou antes so osdois aspectos contemporneos de um mesmo renascimento, escreve Paul Faure.27 Eacrescenta: Calvino, comentando o Evangelho de So Joo (c. 3, v.3), fala, neste

    27Paul Faure, La Renaissance, Paris, 1949, p. 6.

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    sentido, indiferentemente de reforma, regenerao, renovamento, renovao. Mesmo secertos inovadores como Petrarca, j no sculo XIV, por desprezo Idade Mdia e a seudeclnio religioso, s sonhavam fazer reviver a antiga civilizao pag greco-latina, a

    maioria dos humanistas e dos reformadores cogitavam, antes de divergirem sobre certospontos, de uma renovao global do humanismo baseado num retorno s fontes de todaa cultura humana e crist.

    Alis, no princpio do sculo XVI, so os prprios humanistas que interpretam edifundem a Palavra de Deus. Lefvre dEpales, que desejava orar em lngua que seentenda e no mais em latim, elabora a primeira traduo da Bblia em francs,aparecida em 1530, ao mesmo tempo que humanistas italianos e ingleses traduzem e

    propagam os textos sagrados.28De sua parte, pobres valdenses do Piemonte, discpulos de Pedro Valdo, cotizar-

    se-o, quando aderirem Reforma, para publicar, integralmente a seu custo, a magnficaBblia francesa que apareceu em 1532, traduzida por Roberto Olivetan, com prefcio deJoo Calvino. A sede da Palavra de Deus, v-se, era partilhada por sbios assim como

    pelo povo. E os sbios esto, com razo, preocupados em liberar-se do aprisionamentoacadmico e eclesistico para transmitir o saber aos humildes. Erasmo recoloca em

    posio de honra as teologias dos primeiros sculos da era crist, a dos Padres da Igreja,e se levanta contra os debates estreis dos doutores e professores que impem aoscrentes seus sistemas filosficos, isto , a escolstica medieval que adquire autoridadeno catolicismo romano.29Em 1523, ressalta Guy Bedouelle, ele descreve a histria daIgreja como lenta asfixia da f pela razo, fonte de perniciosas controvrsias. Outrora,escrevia Erasmo, a f repousava sobre a vida mais do que sobre o conhecimento dos

    artigos de f.30Na frtil agitao espiritual e intelectual dos sculos XV e XVI, existia portanto

    uma intuio justa: o antigo humanismo, o humanismo antropocntrico, aquele daAntigidade pag, a despeito de suas invenes mitolgicas fantasistas, frutos deimaginao, devia, despojado de seus artifcios religiosos, concorrer para oconhecimento do homem, tal qual o propunha o Evangelho e criar assim um humanismonovo, no mais antropocntrico, mas teocntrico, ou melhor, cristocntrico.

    3. Deplorvel divrcio.

    Todavia, este conhecimento cristo do homem tendo sido obscurecido pelosclrigos, muitos humanistas rejeitavam suas pretenses, considerando o humanismo daIgreja Romana um humanismo tutelado. Tanto mais que essa tutela se estendia a toda acultura e que, alm disso, se impunha por opresso, violenta se necessria. Estava-se nosculo XVI, poca dos conquistadores catlicos, que impunham aos indgenas do Novo

    28Guy Bedouelle, De lhumanisme aux rformes, em Laventure de la Rforme, por Pierre Chaunu,Paris, 1986, p. 75.29Ibid. p. 76.30Ibid.

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    Mundo a f pelo terror, e tempo da Inquisio, que velava por fazer desaparecer todocontestador da autoridade de direito divino da hierarquia romana.

    Assim, por reao, uma tendncia cada vez mais importante do humanismo

    renascente tornava-se anticlerical. Anunciava uma atitude antes de tudo de indiferena,refugiando-se num desmo por demais vago muitas vezes, que novamente alijava oconhecimento de Deus para o plano do imaginrio. Como dir mais tarde Voltaire, nosem razo: Se Deus criou o homem sua imagem, o homem lhe deu o troco. Tal foiento o infeliz desvio do humanismo antropocntrico da Renascena.

    Encontrar-se- essa tendncia ao longo dos sculos seguintes, preconizandoprimeiramente a tolerncia(excelente, mas insuficiente sobrevivncia da caridade crist),depois o atesmo, na origem dasecularizao do pensamento ocidental (no confundircom a laicidade da cultura). Esta secularizao, deixando profundo vcuo religiosoinsuportvel no homem, gerar rapidamente todas as ideologias substitutivasdos tempos

    modernos que ocuparo o lugar da f crist. Ver-se-o mais adiante os duplos efeitos,benficos e perversos, que tais ideologias produziro na histria poltica, econmica efinanceira do Ocidente, do mundo inteiro em seguida. O liberalismo integral, depois osdiversos socialismos, tornar-se-o verdadeiras crenas profanas, substituindo a religio,sem jamais confess-lo.

    De sua parte, a Reforma tomava direo divergente. Reportando-se s fontes maisantigas do cristianismo original, ela evocava o humanismo de Deus, isto , o mistrio daincarnao divina no representante da humanidade, Jesus de Nazar. Reatava assim como humanismo cristo das origens, um humanismo cristocntrico. Os entes humanos noestavam mais condenados a conceberem por si mesmos imagens de Deus, representaesimaginrias, dolos. A Palavra de Deus tornada carne (Evangelho de Joo, c. 1), o

    prprio Deus dava-se a conhecer na pessoa de um homem. Satisfazia assim a expectativasecular da humanidade. Abria dessa forma ao ser humano o caminho de seu prprioconhecimento e lhe oferecia assim a possibilidade de reencontrar sua verdadeiraidentidade. Homens e mulheres eram convocados a renascer na conformidade dessaimagem de Deus, a cuja semelhana haviam sido criados. E atravs dessa vida nova, esserenascimento, eles reencontravam ao mesmo tempo o prximo, ele tambm

    primitivamente criado segundo a mesma imagem.Esse humanismo cristocntrico, essa nova imagem do homem, redescoberta pelo

    cristianismo reformado, permitia a cada indivduo compreender que sua natureza atualera uma natureza degradada e que devia ser restaurada. Mas essa nova concepo

    permitia-lhe tambm descobrir que ele trazia em si, como toda pessoa, os traosmaravilhosos de sua identidade primeira. Cada indivduo podia, portanto, conhecer-se asi mesmo e redescobrir que toda a criao era tambm convidada para sua renovao(Romanos, c. 8, v. 20-21).

    V-se tudo o que, de um lado, a Renascena podia subministrar Reforma peloalargamento dos novos conhecimentos em todas as direes do saber racional, e tudo oque, de outro lado, a Reforma podia oferecer aos humanistas, lembrando-lhes que ohomem s se conhece verdadeiramente quando faz em Cristo a redescoberta de suahumanidade primitiva, hoje desnaturada.

    Mas, a distncia, que haviam assumido com relao pesquisa teolgica renovadacertos humanistas, arrefecidos pelo autoritarismo exclusivista do catolicismo romano, s

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    far aprofundar-se. Ela alargar-se-, como havia previsto Erasmo, quando receava que aRenascena se restringisse a um retorno puro e simples civilizao pag daAntigidade. Ir at completa separao do cristianismo para incidir na iluso de um

    conhecimento do homem por ele mesmo, recurvado sobre si mesmo e indiferente Revelao crist. Tal ser a fonte de todas as extravagantes utopias que produziro asideologias polticas modernas, origem dos sangrentos conflitos do sculo XX. Essessimulacros da f crist arrastaro mesmo no seu desvio muitos cristos.

    Essas discrepncias, j percebidas no sculo XVI, foraro os reformadores amarcar, por sua vez, sua distncia com referncia a essa tendncia rumo a umhumanismo secularizado. Isto ser a fonte de mal-entendidos duradouros entre cristosreformados e humanistas, a despeito da complementao e das potencialidades deenriquecimento mtuo de seus conhecimentos. Reportar-nos-emos a isso a propsito dasideologias profanas, produtos do sculo das Luzes, e do bom uso que cumpre delas

    fazer. Pois, reformados e humanistas se reagruparo nas revolues democrticas paraabater o Antigo Regime de direito divino, sustentado pela Igreja Romana.

    4. Do absolutismo de direito divino democracia.

    precisamente na guinada da Histria, assinalada pela Renascena e pela Reforma,que se desenham os futuros regimes poltico-religiosos dos tempos modernos. Isso verdadeiro mesmo para a Rssia, pas to afastado, aparentemente, daquilo que se passano resto do mundo. Depois do assalto destruidor do Isl na bacia mediterrnea, desde osculo VII, e em seqncia tomada de Constantinopla em 1453, a Rssia permanece a

    nica nao livre do Leste europeu. O cristianismo ali assumira a forma da ortodoxiaoriental. Esse imprio adotara, tambm, o esquema antigo de governo temporal eespiritual de tipo romano. Mas transformou-o, invertendo-o. Instituiu o csaro-papismo(regime onde o poder poltico domina o poder religioso). O Czar (Csar) nele tem a

    precedncia sobre a autoridade eclesistica. tambm regime autoritrio e hierrquico.Ora, radicalmente secularizado no sculo XX pelo atesmo marxista, esse modelo, ondeo Estado onipotente, era assumido e robustecido pelo comunismo. Subsistir at seurecente desmoronamento. Essa passagem do antigo para o novo regime assemelha-se,um pouco, ao que ocorrera um sculo mais cedo na Frana. O modelo monrquico dedireito divino fora reassumido, radicalmente secularizado verdade, pela Repblica

    autoritria e centralizada dos Jacobinos, no tempo da Conveno.Os arqutipos de organizao social e religiosa ficam profundamente inscritos namemria dos povos, ainda quando os novos beneficirios do poder renegam as origens.

    No mbito religioso como no mbito temporal, no regime teocrtico como noregime csaro-papista, a autoridade vem de cima. Ela dita sua vontade, suas ordens esuas leis a um povo educado para receb-las e obedec-las. Esta , como se ver em

    pargrafo prximo, a razo pela qual o exerccio da democracia ser to tardio e todifcil nos pases do Leste assim como nas naes catlicas, ou de origem catlica massecularizadas. So esses, tambm, os motivos por que nelas to fcil o advento deregimes autoritrios e militares, por vezes totalitrios.

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    Como foi lembrado antes, a herana das democracias antigas se mantivera, aolongo da Idade Mdia, em pequenas comunidades rurais ou urbanas. Mas, semprecontrolada pelas grandes monarquias reais ou imperiais, esse modelo no gerara qualquer

    das grandes democracias ocidentais. Ademais, a democracia era freqentemente muitorelativa, acompanhando-se, por vezes, da servido e, mais tarde, do regime censatrio.

    Com a Reforma e nos sculos seguintes, surgem na Europa outros tipos degoverno. Forjam-se a partir das mentalidades protestantes e das estruturas democrticasde suas Igrejas. Desde o sculo XVI em Berna, Bale ou Genebra, no sculo XVII naInglaterra (um sculo antes da Revoluo Francesa), depois na Holanda, nos EstadosUnidos, nos pases nrdicos, por toda parte onde prosperam maiorias ou fortes minorias

    protestantes, instalam-se regimes liberais e democrticos, sob a forma de repblicas oude monarquias parlamentares constitucionais.

    Verificar-se- que, graas penetrao do individualismo desenvolvido peloliberalismo econmico nos pases latinos fiis ao catolicismo romano, tais regimesdemocrticos neles se estabelecero embora progressiva e tardiamente, mas no semsofrimento e violentas reaes contra-revolucionrias.

    Constatar-se-, tambm, que, nesses mesmos pases, o comunismo penetrar maisrapidamente e ser muito mais ativo e virulento que naqueles outros. Na Inglaterra, porexemplo, o notvel esforo do metodismo protestante no intuito de acudir e mesmosustentar na luta as camadas miserveis do proletariado, no curso da revoluoindustrial, encorajou muito cedo um trabalhismo moderado edemocrtico que por longo tempo erigiu barreiras ao comunismo.

    Desde os primrdios, a Reforma correspondeu, tambm, expectativa dos pobres

    propondo, como fez em Genebra por exemplo, um novo humanismo social, o docristianismo original. Tais sero, nos pases reformados, os fundamentos de umademocracia equilibrada tanto quanto de prosperidade relativamente equitativa paratodos.

    Importa, porm, evitar de inverter a ordem dos valores e de ver na Reforma ummovimento principal e prioritariamente poltico ou scio-econmico. Seria esquecer suas

    prioridades espirituais. Pois, o novo estatuto poltico, econmico e social, que elapropor, ser apenas a conseqnciade sua preocupao principal: redescobrir, na suapureza original, a vida nova proposta pelo Cristo dos Evangelhos, e viver retamente, nomundo profano, a f crist assim renovada.

    Portanto, antes de examinar as estruturas polticas e sociais induzidas, em largaparte, pelo curso da Reforma, importa considerar quais foram os valores primordiais queessa renovao propagou para construir uma nova cidade. Esquecendo levar emconsiderao tais prioridades, arrisca-se nada compreender a respeito das razes

    profundas e primordiais do aparecimento das grandes democracias modernas. Estasrazes so muitas vezes ignoradas ou ocultas por observadores, que tomam osfenmenos aparentes e superficiais da histria como causas, quando muitas vezes someros efeitos secundrios de causas religiosas, mais determinantes porque mais

    profundas. Invertendo assim as relaes entre os fatos, fica-se exposto, alm disso, aosquestionamentos sem resposta, que despontam hoje ante o espetculo aterrador detantos regimes polticos insensatos, minados pela corrupo, as intrigas mortferas e os

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    conflitos sanguinrios, tribais, tnicos ou raciais encarniados. A democracia noconsegue instalar-se nem permanecer l, onde as premissas religiosas ou filosficas

    profundas das populaes so estranhas aos princpios evanglicos, iluminados pelo

    cristianismo reformado.

    5. As prioridades da Reforma.

    A Reforma no foi nem pretendeu ser em primeiro lugar uma reforma da sociedadeapenas; nem mesmo unicamente uma renovao moral, a base indispensvel sobre a qualse constroem as relaes humanas. Procurando restaurar um cristianismo fiel a suasorigens, ela pretendia reproporcionar ao mundo o conhecimento do ser humano, tal qualele em sua complexidade, e sobretudo indicar a cada indivduo as possibilidades de sua

    restaurao, na perspectiva de uma vida poltica co-participante e de relaeseconmicas eqitativas. Propunha-se dignificar os fundamentos originais da vidaespiritual, donde derivam os valores morais e cvicos imprescindveis boa marcha dassociedades.

    O pastor Marc Boegner, primeiro presidente do Conselho Ecumnico das Igrejas eex-presidente da Federao das Igrejas Protestantes, era eclesistico que usufrua deformao tanto jurdica e diplomtica quanto teolgica, um pouco como havia sido a do

    prprio Calvino. No seu livro intitulado A Influncia da Reforma sobre oDesenvolvimento do Direito Internacional31, ele escrevia: Se, no limiar dos temposmodernos, a Europa sofreu um abalo cujos efeitos esto longe de serem exauridos,

    porque as conscincias dos homens viveram um drama espiritual, do qual saram tendo

    encontrado numa completa dependncia para com Deus o segredo de uma liberdademoral,da qual deviam nascer todas as liberdades modernas.32(Ns sublinhamos).

    Este historiador protestante reitera portanto, ressaltando-lhes os fundamentosespirituais, as constataes enunciadas pelos autores catlicos citados anteriormente (cf.a Introduo). Ele escreve ademais: Por mais imprevistas aos reformadores que tenhamsido as conseqncias sociais e polticas que a Reforma devia provocar, elas se achavamimplcitas, todavia, quer na atitude que eles haviam assumido com relao Igreja quernas doutrinas segundo as quais formularam sua f.33

    Um dos primeiros ensinamentos evanglicos exaltados pela Reforma, que maistranstornou a condio humana com relao s concepes da Idade Mdia, a

    proclamao de que um chamamento individual endereado por Deus a cadaindivduo qualquer que seja ele, e sem a intermediao necessria de uma hierarquiaclerical, o que faz de cada indivduo uma pessoa nica e inteiramente responsvel por si

    prpria. Essa responsabilidade primeira dos indivduos deve exercer-se em todos osdomnios.

    Mas, considerando os desvios que padecer a tica crist dos tempos modernos,sob a influncia da descristianizao do pensamento da qual se falar mais longe, urgedeterminar que essa responsabilidade no se exerce apenas por cada indivduo ante si

    31Marc Boegner, Linfluence de la Rforme sur le dveloppement du droit international, Paris, 1926.32Marc Boegner, Linfluence de la Rforme... Op. Cit. P. 13.33Ibid.

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    prprio, mas tambm e sobretudo diante de Deus e seu julgamento divino. Em virtudedessa comunho com Deus, a responsabilidade de cada indivduo o fundamento de umaliberdade particular, que no uma liberdade incondicional, mas uma liberdade

    submissa. Trata-se de uma liberdade comedida e controlada, aquela que decorre daemancipao pessoal e da vida novarecebidas na comunho e noperdo de Cristo. No mais questo da liberdade louca que requesta o homem natural centrado sobre simesmo, considerada como valor profano autnomo capaz de bastar-se a si mesma, essaliberdade que propor, com suas excelentes qualificaes mas tambm com seus

    perversos aspectos, a ideologia profana do liberalismo integral moderno. Pois, nessecenrio de uma cultura inteiramente secularizada, essa liberdade individualistatransformar-se- na liberdade desenfreada e egocntrica, que torna paulatinamentedesgovernveis as democracias modernas.

    Outra afirmao essencial da Reforma que a vocao e a responsabilidade

    individuais, que o Evangelho confere a cada indivduo, levam ao exerccio dosacerdciouniversal na Igreja. O Evangelho faz, com efeito, de cada crente, sujeito autoridadenica e universal da Palavra de Deus, seu prprio sacerdote. um sacerdote leigo, pode-se dizer, plenamente responsvel por sua vida espiritual e a de sua Igreja, na suacomunho com os ministrios particulares que suscita o Esprito Santo.

    O princpio do sacerdcio universal estar na base da concepo democrtica daIgreja, primeiro, e da cidade, depois, quando os protestantes tero dele apreendido todoo significado religioso e poltico.

    Essa perspectiva da plena responsabilidade de cada indivduo, tanto no seucomportamento espiritual e moral quanto na sua funo eclesistica e cvica, revolucionaconsideravelmente a antiga viso do catolicismo romano. Neste, a autoridade desce do

    alto para baixo at o fiel. a hierarquia, que detm um poder sagrado e que dita a cadaindivduo como deve compreender a verdade do Evangelho e qual deve serconsequentemente seu comportamento moral e social. Mais profundamente ainda, essahierarquia que se apropria do direito exclusivo de distribuir o que sagrado. Ela o relobrigatrio que faz a comunicao entre Deus e o homem, por intermdio dossacramentos. Isso, sob o aspecto psicolgico, contribui intensamente para sagrar ashierarquias eclesisticas e, por analogia, as hierarquias polticas. E estas tambm seagrupam sob o modelo vertical. Alm disso, a hierarquia espiritual comanda e ordena oregime temporal.

    Contrariamente, a responsabilidade individual conferida diretamente a cada crente

    faz dele o delegadoda autoridade divina, quer no reconhecimento dos ministrios que oCristo suscita no interior da Igreja, quer, por analogia, nas diversas funes da sociedadetemporal. Trata-se de um princpio fundamental na construo da vida comum, espiritual,depois temporal. Aqui, a autoridade, que procede de Deus, comunicada diretamenteao povo dos crentes e, em seguida, por ele delegada, de baixo para cima, s autoridadeshumanas, eclesisticas, depois polticas, na medida da vocaoque lhes reconhecida.

    Nas sociedades protestantes, esta comunicao da autoridade - importa repeti-loporque essencial para compreender as diferentes mentalidades poltico-religiosas dospovos - orienta-se, portanto, exatamente no sentido inverso daquele que prevalece naconcepo catlica romana, porquanto, l, a autoridade vem do alto descendo at o

    povo.

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    A respeito da primeira afirmao bsica do pensamento reformado que se acaba demencionar, o chamamento de Deus que suscita a responsabilidade pessoal, MarcBoegner escreve: Seguramente, ...as liberdades intelectuais, sociais, polticas, esto

    implicitamente contidas na liberdade espiritual que Lutero, Calvino e seus companheirosde luta usaram vis--vis da Igreja, de sua doutrina e de sua disciplina.34

    Aps ter recordado outra afirmao essencial da Reforma, a autoridade nica daSanta Escritura, da qual cada crente o intrprete nico responsvel perante Deus,Marc Boegner ressalta, ainda, que essa doutrina devia ter conseqncias culturaisconsiderveis. J que a Bblia substituiu aos padres como autoridade, faz-se mister queos fiis, todos os fiis, possam conhec-la e empreendam um estudo pessoal dela. necessrio, portanto, que ela seja traduzida para as diversas lnguas nacionais e que cadafiel aprenda sua lngua materna de modo que possa ler a Bblia com proveito. Da anecessidade de uma instruo popular, pela qual a atividade intelectual do povo

    despertada e excitada. Da, tambm, o aparecimento de literaturas nacionais, queauxiliam os povos a tomarem conscincia de seu gnio e de suas aspiraes.35 (Nssublinhamos.)

    Pode-se acrescentar hoje: da tambm decorre a cautela dos pases europeus detradio protestante, os pases nrdicos especialmente, para se deixarem enclausurarnuma Europa poltica de tipo excessivamente centralizado, concebido algo demasiadosegundo o modelo romano autoritrio e centralizador, e a propenso desses pases paraformarem, a exemplo da Sua, modelos confederados, europeus e mundiais, ao mesmotempo coordenadores das naes e respeitosos das diferentes identidades.

    A responsabilidade por seu prprio desenvolvimento espiritual, moral, intelectual eat fsico, incumbe, pois, em primeiro lugar a cada fiel, mas tambm a cada comunidade

    encarregada de prover a educao cultural de cada indivduo. Ela acarreta oflorescimento da pessoa, que logo repercute na vida poltica e econmica. Esse o pontode partida obrigatrio para que desabroche e funcione uma civilizao democrticacompleta.

    Talvez se faa preciso lembrar, a esse respeito, que, no pensamento calvinista, asautoridades polticas democrticas, que constituem o Estado, tm uma vocao

    particular, que as torna responsvel perante Deus no exerccio de sua funo. Sua misso muito distinta, porm, daquela da Igreja. Esta est encarregada de anunciar a vida novaoferecida aos cidados e s cidads na comunho do Cristo, com a tica que deladecorre, ao passo que os magistrados se acham incumbidos de manter mediante as leis, e

    mesmo pela fora se necessria, um nvel de moral na sociedade que deva aproximar-sequanto possvel da tica crist, mas que jamais poder atingi-la, dada a naturezacorrompida dessa sociedade global. A Igreja anuncia o reino de Deus que chega, embora

    j inaugurado s em muito pequena parte, na vida dos crentes, enquanto que o Estadosomente pode dele refletir imagem muito distante. E para que essa imagem seja a mais

    prxima possvel desse reino - para que o nvel da tica do Estado seja o mais elevadopossvel -, a Igreja tem importante misso de aconselhamento e tambm de intercessojunto s autoridades. Ela deve recordar a todos os fiis (que tendem a esquec-lo) que os

    34Ibid.35Ibid. p. 14.

  • 7/22/2019 _A Forca Oculta Dos Protestantes

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    magistrados so ministros de Deus (Romanos, c. 13), que a prece de intercesso a favordeles constitui igualmente obrigao pessoal de todo crente.

    V-se, pois, em razo de tudo o que acaba de ser dito, que o regime poltico

    democrtico no criador por si mesmo dos valores que o fazem viver. Ele estincessantemente ameaado por todas as formas de perverso social, prestes amanifestarem-se. Ele s pode perdurar como produto de tica que deve serincessantemente renovada por uma f, a nica capaz de transformar e reconstruir a vidaindividual e coletiva.

    Constata-se, tambm, quo estranha ao cri