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A força sísmica da ideia de liberdade e a legitimidade das revoluções democráticas

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Um dos principais fundamentos do sistema político-filosófico de Rousseau é a noção de liberdade natural, compreendida como um elemento essencial da condição humana. Partindo da liberdade natural para a liberdade política, o filósofo de genebra prescreve o modelo de organização civil que nos serviu, neste trabalho, como critério de medida para questionar a legitimidade de governos despóticos e, consequentemente, de movimentos sociais que se rebelam para destituir os tiranos do poder e instaurar a democracia.

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A força sísmica da ideia de liberdade e a legitimidade das revoluções democráticas.

Caius Brandão caiusbrandã[email protected]

Introdução

Desde o início de 2011, o mundo vem sendo sacudido por um movimento social

que impressiona por sua força avassaladora, com conseqüências drásticas e, até certo

ponto, imprevisíveis. O poder de tal movimento se compara aos dos abalos sísmicos de

grande magnitude que, também no início do ano, devastaram a costa leste do Japão. O

que aqui nos parece ser semelhante à intensidade desse fenômeno natural é o poder das

idéias. Indiscutivelmente, a força propulsora no epicentro dos movimentos sociais que

hoje se alastram pelo mundo árabe é idéia de liberdade.

O ato de auto-imolação e a morte de um jovem vendedor na Tunísia, que teve

suas mercadorias confiscadas pela polícia local, desencadearam uma série de protestos 

que culminou no fim do governo de 23 anos do ditador Zine El Abidine Ben Ali. O fim

do regime militar na Tunísia, por meio de uma revolta popular, gerou um efeito-dominó

de proporções inimagináveis por todo o mundo árabe. Em seguida ao levante na

Tunísia, foram necessários apenas 18 dias para que jovens egípcios conseguissem reunir

dezenas de milhares de pessoas em protestos pacíficos na Praça Tahrir, no Cairo, e

derrubar o governo ditatorial de Hosni Mubarak. Depois de mais de 30 anos no poder,

hoje ele se encontra preso e responde na justiça por crimes de corrupção e assassinato

de manifestantes. Além da onda de protestos pacíficos em diversos países do chamado

Mundo Árabe, tais como na Jordânia e Arábia Saudita, atualmente, insurgentes da Líbia,

Palestina, Iêmen, Síria e Bahrein enfrentam batalhas sangrentas por mudanças políticas,

sociais e econômicas em seus respectivos países. O cenário que impressiona o mundo

ocidental é de um povo de aproximadamente 180 milhões de pessoas de diferentes

nações, há décadas subjugadas por seus atuais governantes, mas que agora gritam

unissonamente por democracia – no mesmo idioma e a partir da mesma consciência de

liberdade. Saber-se livre é, no entanto, apenas o primeiro passo para a realização

concreta e objetiva da liberdade de um povo que deseja ser livre e soberano.

De acordo com o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 –

1831), ao construir uma representação de si, o espírito de um povo busca conhecer a sua

própria essência, que é a liberdade.

“O direito do ético nos povos é a consciência que o espírito de si mesmo possui. Portanto, o que se realiza na história é a representação do espírito. A

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consciência do povo depende do que o espírito de si mesmo sabe; e a última consciência, a que tudo se reduz, é que o homem é livre.” (HEGEL, 1995, p. 56).

Em outras palavras, quando o espírito de um povo toma consciência de si

mesmo, ele reconhece a sua liberdade como elemento essencial. Hegel, contudo,

pondera que, apesar de necessária, a autoconsciência de um povo não é suficiente para a

efetiva concretização da sua liberdade. Isso porque tal progresso deve acontecer tanto

no plano subjetivo, quanto no objetivo.

“Os fins, os princípios, existem nos nossos pensamentos só na intenção interna ou também nos livros, mas ainda não na realidade efectiva; ou o que só é em si constitui uma possibilidade, uma potência, mas não passou ainda da sua interioridade à existência. Tem de ocorrer um segundo momento para a sua realidade efectiva, e tal momento é a actuação, a realização, cujo princípio é a vontade, a actividade dos homens no mundo em geral.” (HEGEL, 1995, p. 75).

Em suma, o espírito de um povo deve reconhecer-se livre no plano das idéias.

Mas, em seguida, é absolutamente necessário que este povo também seja capaz de criar

condições objetivas para que a sua liberdade se realize concreta e efetivamente no

mundo. Tais condições objetivas, para Hegel, significam a adequação das instituições

sociais (ou seja, o Estado, as leis e os costumes) aos princípios gerais da razão que

determina que o homem é livre por definição.

Dessa forma, o pensamento hegeliano nos auxilia na compreensão deste

momento histórico em que o povo árabe, a partir da tomada de consciência de si como

espírito livre, se rebela contra o despotismo de seus governantes para dar início ao

processo de realização efetiva da sua liberdade.

Por outro lado, nos resta ainda nos perguntar sobre a legitimidade destes

movimentos sociais que, de forma pacífica ou beligerante, desafiam a ordem

estabelecida, e desobedecem as autoridades civis e militares para desestabilizar

governos legalmente constituídos e internacionalmente reconhecidos. Assim, chegamos

ao principal objetivo deste trabalho que é o de buscar um fundamento ético, político e

filosófico para as revoluções democráticas.

Acreditamos que podemos defender a legitimidade destes movimentos sociais

com o auxílio de outro teórico da liberdade, o filósofo genebrino Jean-Jacques

Rousseau.

A partir da compreensão sobre aquilo que é realmente essencial à natureza dos

seres humanos, o filósofo de Genebra propõe um modelo de organização política,

através do qual o poder civil, oriundo da soberania popular, deve assegurar a liberdade e

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a igualdade de todos na vida em sociedade. Utilizaremos este modelo abstrato como

critério de medida para questionar a legitimidade de um governo que não reconhece a

soberania de seu povo – valendo-se, inclusive, da força de seus exércitos nacionais e de

mercenários estrangeiros contra seus próprios concidadãos, com o intuito de sufocar as

revoluções democráticas e se perpetuar no poder. Ao demonstramos a ilegitimidade dos

governos despóticos, pretendemos justificar as ações de levante popular, frutos do

imaginário democrático que hoje anima o espírito do povo árabe.

Sobre a legitimidade do poder civil

No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens1, Rousseau procurou evidenciar os elementos constitutivos mais essenciais à

natureza humana a partir de um hipotético estado de natureza, quando o homem

primitivo, também chamado de selvagem, ainda se encontrava livre dos vícios e da

escravidão que a vida social lhe impôs. Logo, ao abstrair dos seres humanos todas as

aquisições oriundas de uma vida em sociedade, Rousseau buscava determinar o que

neles constitui a sua condição natural, como também as suas paixões inatas. Em síntese,

no Segundo discurso, temos que a autonomia, a autenticidade, a igualdade, a

perfectibilidade e a liberdade, além das paixões inatas (o amor de si e a piedade) são

condições naturais do homem que constituem a sua essência e lhe conferem dignidade.

É, portanto, com o auxílio desse repertório conceitual relacionado à natureza humana,

no qual a liberdade, a igualdade e a autenticidade do homem natural recebem um papel

de destaque especial, que Rousseau erguerá o edifício do seu projeto político-filosófico.

No Contrato social, Rousseau prescreve um modelo de soberania popular e de

estruturação da sociedade civil. Neste modelo abstrato reside o ideal libertário de

Rousseau, onde a cidadania é constituída de tal forma que cada cidadão permanece tão

livre quanto o homem primitivo, tornando-se soberano quando legisla, e súdito quando

se obriga a respeitar as leis que ele próprio criou enquanto soberano. Assim, Rousseau

irá nos oferecer um critério de medida para legitimação do poder civil.

O filósofo concebe um modelo de associação (o contrato social) pelo qual os

indivíduos defendem e protegem seus bens e a si próprios com toda a força da

1 A partir de agora, nos referimos a esta obra como o Segundo Discurso.

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sociedade, ao mesmo tempo em que obedecem apenas a si mesmos. Em suas próprias

palavras:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. (ROUSSEAU, 1979, p. 32)

Logo, a universalidade da vontade por liberdade e dos interesses por proteção e

segurança autoriza a instituição do corpo soberano que passa a legislar com vista ao

bem público. Rousseau chama de vontade geral a reunião das vontades de cada

indivíduo no contrato social que tem como único objeto o bem comum. Para o filósofo

de Genebra, a voz da soberania popular, única detentora de um poder civil legítimo, é a

vontade geral.

Procuramos demonstrar, até aqui, como Rousseau atribui ao corpo de cidadãos a

função de legislador supremo do bem comum. No entanto, “toda ação livre tem duas

causas que concorrem em sua produção: uma moral, que é a vontade que determina o

ato, e a outra física, que é o poder que a executa.” (ROUSSEAU, 1979, p. 73) Assim,

Rousseau faz uma importante distinção entre a vontade que determina o ato (o poder

legislativo) e a força que o executa (o poder executivo, também chamado de governo).

O que será, pois, o Governo? É um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política. (ROUSSEAU, 1979, p. 74)

Conclui-se daí que o governo legítimo não passa de um funcionário que executa

a vontade geral do corpo soberano. Para o genebrino, “a primeira e mais importante

máxima do governo legítimo ou popular, ou seja, daquele que tem por objeto o bem do

povo, é, pois, como já o disse, seguir em tudo a vontade geral.” (ROUSSEAU, 2006, p.

91)

Apesar da brevidade dos argumentos até aqui encadeados, acreditamos já

possuirmos elementos suficientes para analisarmos, à luz do pensamento de Rousseau, a

questão da ilegitimidade dos governos despóticos.

Antes mais nada, vejamos como o filósofo distingue o governo popular do

governo tirânico:

Seria então conveniente dividir ainda a economia pública em popular e

tirânica. A primeira é a de todo Estado no qual, entre o povo e os chefes,

reina uma unidade de interesses e de vontade; a outra existirá

necessariamente em qualquer lugar onde o governo e o povo tiverem

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interesses diferentes e, consequentemente, vontades opostas. As máximas da

economia tirânica estão inscritas ao longo dos arquivos da história e nas

sátiras de Maquiavel. As outras só se encontram nos escritos dos filósofos

que ousam reclamar os direitos da humanidade. (ROUSSEAU, 2006, p. 91).

Logo, sem maiores dificuldades, podemos chamar de tirânico o governo que

ordena bombardeios contra as áreas residenciais da população que exige a sua renúncia.

Sobre o uso da força bélica de um governo contra o seu próprio povo, Rousseau

acrescenta:

Transformados em inimigos dos povos que deveriam tornar felizes, os tiranos estabeleceram tropas organizadas, aparentemente, para conter o estrangeiro, e, efetivamente, para oprimir o habitante. (ROUSSEAU, 2006, p. 115).

Para Rousseau, nenhum homem possui autoridade natural sobre outros homens.

Para ser legítimo, o direito de mando deve ser estabelecido exclusivamente por

convenção, e nunca pela força da violência. Com este argumento, Rousseau refuta o

“direito do mais forte” e conclui que “só se é obrigado a obedecer aos poderes

legítimos”. (ROUSSEAU, 1979, p. 26)

Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz qualquer direito, só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima existente entre os homens. (ROUSSEAU, 1979, p. 26)

Se Jean-Jacques não reconhece a obrigação de obediência aos poderes

ilegítimos, ou seja, aos governos despóticos, seria o filósofo um defensor do direito à

revolução democrática? No Segundo discurso, temos uma passagem que deixa clara a

sua posição frente ao dilema da legitimidade das revoluções democráticas:

(...) o déspota só é senhor enquanto é o mais forte e, assim que si pode expulsá-lo, absolutamente não lhe cabe reclamar contra a violência. A rebelião que finalmente degola ou destrona um sultão é um ato tão jurídico quanto aqueles pelos quais ele, na véspera, dispunha das vidas e dos bens de seus súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba.

No Contrato social, Rousseau nos oferece mais um argumento para legitimar um

levante popular:

“Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse julgo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lhe arrebataram, ou tem ele o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la”. A ordem social, porém, é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. (ROUSSEAU, 1979, p. 22)

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Uma possível interpretação para esta citação de Rousseau nos permite justificar

a legitimidade das revoluções democráticas a partir do ‘direito sagrado’ à ordem social.

Com base nesta premissa, os povos que se reconhecem livres teriam então o direito de

recuperar a liberdade que lhes foi subtraída por seus tiranos para instituir uma nova

ordem social, onde a soberania popular e a vontade geral pudessem ser resguardadas por

governos legitimamente constituídos.

Conclusão

Um dos principais fundamentos do sistema político-filosófico de Rousseau é a

noção de liberdade natural, compreendida como um elemento essencial da condição

humana. Partindo da liberdade natural para a liberdade política, o filósofo de genebra

prescreve o modelo de organização civil que nos serviu, neste trabalho, como critério de

medida para questionar a legitimidade de governos despóticos e, consequentemente, de

movimentos sociais que se rebelam para destituir os tiranos do poder e instaurar a

democracia.

Vimos então que, à luz do pensamento de Rousseau, apenas podemos considerar

legítimo o poder civil constituído pela soberania popular. O corpo soberano, através da

vontade geral, legisla sobre o bem comum e institui o governo para executar

exclusivamente o que prescreve esta vontade, assegurando, assim, a liberdade política,

artificialmente criada pelo contrato social. Por esta via, procuramos demonstrar porque

Rousseau considera ilegítimos os governos despóticos, a quem, consequentemente, não

se tem a obrigação de obedecer. Ademais, identificamos no que Rousseau chama de

“direito sagrado’ – o direito à ordem social – os desdobramentos dos fundamentos

éticos, políticos e filosóficos que procurávamos para justificar as revoluções

democráticas.

Neste momento em que expomos nossas considerações finais, não poderíamos

nos furtar de relembrar o pensamento de Hegel a cerca da necessária adequação das

instituições sociais aos princípios gerais da razão, para a realização concreta e efetiva da

liberdade, da qual o espírito de um povo toma consciência como elemento essencial. Se

por um lado, podemos reconhecer como uma grande conquista do povo árabe a tomada

de consciência da sua liberdade e a destituição de seus governos tirânicos, por outro,

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não devemos ignorar o maior desafio que eles tem pela frente, a saber: a transformação

dos seus Estados, suas leis e seus costumes.

Referências bibliográficas:

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na História – Introdução à Filosofia da

História Universal. Lisboa: Ed. Edições 70, 1995.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000.

_____________________ Do Contrato Social. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979.

_____________________ Economia (Moral e Política). Verbetes Políticos da Enciclopédia – Diderot e D’Alembert. Ed. UNESP & Discurso Editorial.