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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES - CEART PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO – PPGT DÉBORA DE MATOS A FORMAÇÃO DO PALHAÇO: TÉCNICA E PEDAGOGIA NO TRABALHO DE ÂNGELA DE CASTRO, ESIO MAGALHÃES E FERNANDO CAVAROZZI ILHA DE SANTA CATARINA 2009

A Formação Do Palhaço - Técnica e Pedagogia No

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC

    CENTRO DE ARTES - CEART

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEATRO PPGT

    DBORA DE MATOS

    A FORMAO DO PALHAO: TCNICA E PEDAGOGIA NO

    TRABALHO DE NGELA DE CASTRO, ESIO MAGALHES E

    FERNANDO CAVAROZZI

    ILHA DE SANTA CATARINA

    2009

  • DBORA DE MATOS

    A FORMAO DO PALHAO: TCNICA E PEDAGOGIA NO

    TRABALHO DE NGELA DE CASTRO, ESIO MAGALHES E

    FERNANDO CAVAROZZI

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Teatro.

    Orientador: Prof. Dr. Valmor Beltrame

    ILHA DE SANTA CATARINA

    2009

  • Ficha elaborada pela UDESC / Biblioteca Central CRB-14/372 Iraci Borszcz

    M433f

    Matos, Dbora de, 1980- A formao do palhao : tcnica e pedagogia no trabalho de

    ngela de Castro, Esio Magalhes e Fernando Cavarozzi / Dbora de Matos Florianpolis, 2009.

    182 p. : il. ; 30 cm

    Bibliografia: p.148-153 Orientador: Valmor Beltrame. Dissertao (mestrado) Universidade do Estado de Santa

    Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Teatro, Florianpolis, 2009.

    1. Palhaos Criao. - 2. Atores Formao. - 3. Castro, ngela de. 4. Magalhes, Esio. 5. Cavarozzi, Fernando. I. Beltrame, Valmor (Orientador). - II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Teatro. III. Ttulo

    CDD: 792.028 20.ed.

  • DBORA DE MATOS

    A FORMAO DO PALHAO: TCNICA E PEDAGOGIA NO

    TRABALHO DE NGELA DE CASTRO, ESIO MAGALHES E

    FERNANDO CAVAROZZI

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Teatro,

    no Programa de Ps-Graduao em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de

    Santa Catarina.

    Banca Examinadora

    Orientador: ______________________________________________________________ Prof. Dr. Valmor Beltrame Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

    Membro ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Vera Collao Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

    Membro ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Neyde de Castro Veneziano Monteiro Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

    Ilha de Santa Catarina, ____ de _______________________ de 2009.

  • AGRADECIMENTOS

    Gostaria muitssimo de agradecer

    minha famlia: pai, me, Camila e Vitor; meus amores da vida, pelo eterno carinho,

    inmeros consolos, pelo zelo e incansvel companheirismo. Agradeo muito por estarem

    sempre ao meu lado nas tempestades, nas calmarias e pelo amor incondicional.

    Ao Professor Dr. Valmor Beltrame, o Professor Nini, pela orientao dedicada e

    atenciosa, por suas contribuies sensveis e objetivas no apenas para este estudo, mas

    tambm por toda minha trajetria artstica. Mestre para a arte e para a vida.

    Aos artistas ngela de Castro, Esio Magalhes e Fernando Cavarozzi, que to

    generosamente compartilharam de suas experincias e conhecimento permitindo o

    desenvolvimento deste estudo.

    Aos meus companheiros de vida e trabalho: Greice Miotello, a Gr, por suas

    gargalhadas, sua alegria e sua fome de trabalho, por estar sempre presente, at mesmo nas

    pesquisas de campo, dando-me apoio, coragem e confiana; Paula Bittencourt, a Paulinha, por

    sua seriedade com o trabalho e seu jeito serelepe de ser, por sua inocncia e seu modo leve de

    viver a vida; Marianne Consentino Tezza, a Tica, o encontro mais antigo desta trupe, ao lado

    de quem descobri o Teatro e o Palhao. Muito obrigada pelos conselhos e puxes de tapete,

    realizados com extrema amorosidade, permitindo que eu sempre vislumbre a possibilidade de

    ir mais alm; Mariella Mrgia, a Mari, por suas falas duras e aveludadas, por sua voz e sua

    melodia que nos preenchem de alegria; Cassiano Vedana, o Magro, por sua calmaria e

    tranquilidade, por sua musicalidade que nos transmite serenidade; ao Gabriel Junqueira

    Cabral, o Biel, por seu amor, carinho e dedicao, por estar sempre ao meu lado, pelos

    momentos de compreenso, alegria e descanso. Egon Seidler, Heitor Lins, Harmnica e Ive

    Luna novos amigos de caminhada, obrigada pelos momentos compartilhados de trabalho, de

    risos e de emoes. Agradeo famlia Trao, a quem dedico este trabalho.

    s amigas Larissa, Maria Fernanda e Vernica, que por todo esse tempo foram muito

    compreensivas e atenciosas, sem nunca desistirem de mim.

    E, por fim, a todas aquelas pessoas, professores, professoras (em especial os

    professores Jos Ronaldo Faleiro, Vera Collao, Mrcia Pompeo e Milton de Andrade),

    alunos, alunas, amigos e amigas que, de alguma forma, permitiram (e permitem) a expanso

    de meus limites pessoais, levando-me a uma contnua (re)criao.

    Obrigada! Muito Obrigada!

  • E no me esquecer, ao comear o trabalho, de me preparar para errar. No esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho. Todas as vezes em que no dava certo o que eu pensava ou sentia que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, j teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo de delrio e erro. Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: pois s quando erro que saio do que conheo e do que entendo. Se a verdade fosse aquilo que posso entender terminaria sendo uma verdade pequena, do meu tamanho.

    Clarice Lispector

  • RESUMO

    A pesquisa objetiva investigar o processo de formao do palhao, (re)conhecer princpios tcnicos e procedimentos pedaggicos utilizados na formao do palhao/aprendiz. O estudo dos modos de operacionalizar a prtica de ensino/aprendizagem na arte da palhaaria evidencia um conjunto de saberes que podem instrumentalizar a prtica de jovens artistas. Esta investigao analisa a trajetria de trs artistas profissionais. So eles: ngela De Castro, Esio Magalhes e Fernando Cavarozzi. O estudo, de carter qualitativo, apresenta inicialmente uma reviso da bibliografia na busca de investigar cdigos que definem esta linguagem artstica. Posteriormente, desenvolve-se uma anlise dos percursos dos trs artistas. Tal anlise se efetua por meio da observao de espetculos, oficinas, cursos e com a realizao de entrevistas. A apresentao dos procedimentos recorrentes por eles utilizados, longe de reduzi-los a planilhas e esquemas imutveis, pretende apontar um conjunto de bons conselhos para auxiliar jovens artistas na construo de seus prprios caminhos profissionais e artsticos.

    Palavras-Chave: Palhao. Processo formativo. Tcnicas de Criao. Pedagogia do Ator.

  • ABSTRACT

    The research aims to investigate the clown formation process, recognizing the technical principles and pedagogic procedure used in the clown/apprentice formation. The study of how to operationalize the practice of teaching/learning the clown art shows a group of knowledge that can be used by young artists to help them in practice. This investigation analyzes the trajectory of three professional artists: ngela de Castro, Esio Magalhes and Fernando Cavarozzi. The study, in qualitative terms, presents initially a literature review seeking to investigate codes that define this artistic expression. Afterwards, it is analyzed the professional life of the three artists. This is made by the observation of their shows, workshops, courses and by interviewing them. The presentation of the procedure used by them regularly, far from reduce it to spreadsheets and unchangeable schemes, intends to point out a group of good advices to assist young artists to build their own artistic and professional life.

    Key-Words: Clown. Traning process. Creation techniques. Actors pedagogy

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................09

    1 A ARTE DA PALHAARIA: HERANAS DE UMA TIPOLOGIA CMICA....16 1.1. Os Tipos Cmicos e a Reconstituio de uma Matriz Tipolgica...................................18

    1.2. A Linguagem do Palhao: ressonncias da manifestao da tipologia cmica...............39

    1.2.1. Heranas do Teatro Popular.................................................................................40

    1.2.2. O Nariz Vermelho e a Mscara da Loucura.........................................................43

    1.2.3. A Construo de um Estado.................................................................................48

    1.2.4. Relao, Interatividade e o Exerccio da Alteridade............................................52

    1.2.5. A Improvisao Codificada..............................................................................54

    1.2.6. O Riso, a Emoo e a Cura: uma catarse cmica ................................................58

    1.2.7. A Arte do Palhao: uma exposio pessoal.........................................................61

    2 CONVOCATRIA: UMA TRAJETRIA NA ARTE E NA VIDA........................64 2.1 No Princpio a Intuio: o comeo de uma longa caminhada.........................................64

    2.1.1 ngela De Castro: uma cidad do mundo...........................................................65

    2.1.2 Esio Magalhes: um palhao de nome e sobrenomes..........................................69

    2.1.3 Chacovachi: o palhao terceiro-mundista ...........................................................73

    2.2 A Formao do Palhao: singularidades multiplicadas em alteridades..........................78

    2.2.1 Um Banquete Mesa...........................................................................................81

    2.2.2 Um Cardpio Variado..........................................................................................99

    3 PERCURSOS DE APRENDIZ: OS PROCEDIMENTOS PEDAGGICOS DE TRS PALHAOS......................................................................................................103

    3.1 O Trabalho sobre a Argila e a Preparao de um Territrio Expositivo........................105

    3.2 O Confronto e o Prazer da Exposio............................................................................118

    3.3 O Jogo do Palhao: um olhar particularizado ao mundo...............................................129

    3.4 Criao de Nmeros: a formao em cena.....................................................................135

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................144

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................148

  • APNDICES..........................................................................................................................154

    NGELA DE CASTRO.........................................................................................................155

    APNDICE A Entrevista com ngela De Castro ..............................................................156

    ESIO MAGALHES..............................................................................................................164

    APNDICE B Entrevista com Esio Magalhes I................................................................165

    APNDICE C Entrevista com Esio Magalhes II...............................................................170

    FERNANDO CAVAROZZI...................................................................................................176

    APNDICE D Entrevista com Fernando Cavarozzi ...........................................................177

  • INTRODUO

    Ao longo desta dcada, venho atuando na Trao Companhia de Teatro e estudando a

    prtica do palhao, suas contribuies formao, treinamento e criao do ator. O interesse

    pela arte do palhao tem se acentuado no decorrer desses anos, pelas possibilidades que a

    linguagem oferece ao trabalho artstico da Companhia. As atividades do palhao e as etapas

    de sua formao levam o artista ao encontro/confronto consigo e com o mundo, permitindo

    com isso a exposio de feies de sua pessoalidade. Contudo, o processo que o conduz

    composio de uma corporeidade para seu palhao (a forma de andar, falar, jogar, agir e

    reagir e, portanto, de se relacionar com o mundo a sua volta) mostrava-se ainda indizvel em

    meu processo de compreenso e apropriao dessa linguagem.

    Desde o ano de 2001, estudo textos, realizo prticas laboratoriais, workshops, assisto a

    vdeos e espetculos teatrais nos quais atuam palhaos. Tais atividades, no entanto, se

    desenvolveram de um modo bastante intuitivo, fazendo com que aumentasse meu interesse no

    aprofundamento terico e prtico, principalmente no que concerne formao do palhao.

    Assim, iniciei a presente pesquisa calcada no desejo de sistematizar os processos formativos e

    criativos dessa linguagem cnica.

    O principal objetivo da pesquisa analisar processos de formao e criao na prtica

    do palhao, a fim de evidenciar princpios tcnicos e procedimentos pedaggicos que

    orientam o palhao/aprendiz em sua formao. A investigao se apia na observao e

    anlise do trabalho de trs profissionais, que atualmente so referncias nas prticas artsticas

    e pedaggicas nessa arte no Brasil: ngela De Castro, Esio Magalhes e Fernando Cavarozzi.

    Todos realizam, h anos, pesquisas prticas sobre a linguagem do palhao.

    Considerando a complexidade e abrangncia do tema, fazem-se necessrias algumas

    consideraes.

    Roberto Ruiz (1987) afirma que a palavra clown derivada de clod, que significa

    campons, homem rstico, ligado terra, ao campo. J a palavra palhao de origem

    italiana e, provavelmente, provem de paglia, que significa palha. Acredita-se que tal

    formulao decorrente do material usado por esses cmicos para confeccionar seus

    figurinos, servindo para proteg-los durante as quedas. Historicamente, ambos os histries

    (palhao e clown) apresentavam diferenas sutis: o primeiro era o representante do circo,

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    AdemirTypewriterpossveis diferencas entre clown e palhaco

  • Introduo 10

    enquanto o segundo, do teatro. Ou ainda, o primeiro construa sua comicidade em meio a

    atrapalhaes e esquisitices, cujo fim era a pura diverso, enquanto o segundo tinha sua

    comicidade arquitetada pela exposio do ridculo do artista, abordando temas da fragilidade

    humana.

    Contudo, clown e palhao, apesar de possurem uma formao histrica e etimolgica

    distinta, nesta pesquisa devem ser entendidos como expresses que apresentam o mesmo

    significado. Com o desenvolver deste estudo, percebemos que as antigas distines que

    diferenciavam a prtica de cada um desses histries mostram-se cada vez mais superadas por

    artistas que atualmente desenvolvem um trabalho com essa linguagem. Optamos por utilizar a

    palavra palhao, uma vez que os artistas aqui entrevistados assim se denominam. A expresso

    clown ser mantida quando forem usadas citaes de autores que a utilizam. 1

    Outro aspecto a ser evidenciado que o palhao, aqui, no identificado como

    personagem, porque sua construo no se funda em referncias psicolgicas, contextuais e

    temporais vinculadas a uma escritura dramatrgica pr-existente. O palhao no apresenta

    uma lgica psicolgica estruturada e preestabelecida. (BURNIER, 2001, p. 217). Na

    perspectiva de Luiz Otvio Burnier (2001, p. 209), no se trata de um personagem, ou seja,

    uma entidade externa a ns, mas da ampliao e dilatao dos aspectos ingnuos, puros e

    humanos (como nos clods), portanto estpido, do nosso prprio ser. 2

    Logo, o palhao que interessa a esse estudo o mais nu de todos os artistas porque

    pe em jogo a si mesmo, sem poder trapacear. (DIMITRI, 1982, p. 37). a expresso

    extracotidiana da estupidez, do ridculo e da ingenuidade do prprio artista, constituda em

    linguagem cnica. Sua expressividade, suas aes fsicas, sua corporeidade e sua forma de se

    relacionar com o interno e o entorno (corpo, espao e pblico) tm uma lgica psico-corprea

    prpria, peculiar a cada ser humano. o sujeito em jogo com sua prpria condio humana,

    divertindo-se acerca de si mesmo. (MACHADO, 2005, p. 102). Questiona padres, saberes

    e poderes socialmente institudos ao denunciar o mundo absurdo e trgico em que vivemos. 1 Lopes (2001) aponta diferenas entre as caractersticas do palhao e do clown. Este, segundo a pesquisadora, extrai o ridculo de si mesmo com a ajuda do nariz vermelho, e recorria, a princpio, ao tema da fragilidade humana. Aquele, por sua vez, o tipo de artista que tenta fazer graas e trapalhadas por meio de suas esquisitices, sem outras intenes que no sejam as de promover a pura diverso no pblico. (LOPES, 2001, p. 65-66). No entanto, atualmente, a miscigenao existente entre as prticas do clown e do palhao so to complexas que dificultam a apresentao de peculiaridades e diferenciaes. Portanto, os trs artistas selecionados para estudo sero, aqui, identificados como palhaos. Interessa-nos mais analisar como se d a formao dos mesmos, do que a definio de nomenclaturas mais adequadas para a caracterizao de suas performances. 2 A discusso sobre a definio do palhao enquanto personagem ou no personagem um tema vasto e complexo, certamente tema para outra investigao. Por isso, optamos por fazer esse recorte acatando a conceituao de Luiz Otvio de Burnier.

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  • Introduo 11

    A arte do palhao vem ganhando espao nas investigaes teatrais, no apenas no seu

    aspecto prtico revelando-se um procedimento eficaz formao do ator contemporneo 3

    como tambm nos estudos acadmicos, contribuindo construo do conhecimento cientfico

    nas artes cnicas. Percebe-se um aumento significativo na produo bibliogrfica sobre o

    tema, o que demonstra o interesse por parte de artistas, encenadores e pedagogos teatrais pela

    linguagem.

    Boa parte dessa produo bibliogrfica est dedicada anlise do processo criativo do

    palhao e construo de espetculos. 4 Ainda so escassos os estudos direcionados ao

    reconhecimento de princpios tcnicos e procedimentos aplicados formao do aprendiz. Por

    isso, elegemos duas principais questes de estudo: a) Como se d o processo de

    ensino/aprendizagem na arte da palhaaria? b) Existem princpios criativos recorrentes nas

    prticas de atuao do palhao? Indagamos ainda a respeito dos saberes que um artista

    necessita para se tornar palhao. Acreditamos que esses saberes originam-se na aptido que o

    artista desenvolve para ampliar sua capacidade de estar e se manter em relao com o meio

    (espao, pblico, objetos). Cremos que essa interao seja fruto do exerccio do artista de

    colocar-se numa relao alicerada no contnuo dilogo entre a voz do mundo e a voz que vem

    do universo interior do artista, a voz de si mesmo.

    Sobre a prtica da improvisao no processo de formao do ator, Charlies Dullin

    (1946) ressalta que ela exige do artista a busca de si mesmo, o que denominou de voz de si

    mesmo. J a confrontao desse si mesmo com o mundo exterior, ele denominou de voz

    do mundo. Acreditamos que no trabalho do palhao essa contnua confrontao apresenta-se

    3 Desde o incio da dcada de 1960, o estudo sobre a tcnica do palhao, como um procedimento didtico formao e ao treinamento do ator, ganha espao nas escolas de formao de ator, bem como na prtica de companhias teatrais importantes na histria do teatro contemporneo. Destacamos, aqui LEcole Internationale de Thtre Jacques Lecoq e Ecole Philippe Gaulier, escolas de formao de ator que direcionam parte do seu programa ao trabalho com o palhao. Dentre as companhias de teatro mais importantes que utilizaram a tcnica do palhao para o trabalho de treinamento e criao do ator ressaltamos o Thtre du Soleil, grupo teatral coordenado pela encenadora Ariane Mnouchkine. Segundo Franoise Quillet (apud KASPER, 2004, p. 17-18), o trabalho com o palhao indicava a partir da dcada de 1960 uma vontade de escapar ao realismo, atuao. psicolgica, aos antigos cdigos naturalistas, uma contestao do teatro burgus do sculo XIX, um desejo de encontrar uma forma clara, legvel, que possa desvelar os mecanismos sociais e humanos. No Brasil, a prtica do palhao ganhou relevo nas pesquisas de Luis Otvio Burnier, junto ao Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais Lume. Atualmente, Ricardo Puccetti (ator, pesquisador e palhao) d continuidade a essa pesquisa. 4 Um percentual expressivo da produo bibliogrfica relacionada pesquisa do palhao direciona seus estudos sobre a eficcia do treinamento do palhao como mtodo pedaggico formao do ator e descrio de processos criativos (BARBOZA, 2001; BURNIER, 2001; CONSENTINO, 2008; FERRACINI, 2001; ICLE, 2006; MACHADO, 2005, MARTINS, 2004; WUO 2005). Algumas obras dedicam-se a estudos de reorientao histrica do palhao (DIMITRI, 1982; CASTRO, 2005; LECOQ, 1987; LECOQ, 1997, MARTINS, 2004; WUO 2005). Outra se empenha em realizar uma anlise do papel poltico do palhao na sociedade (KASPER, 2004). H tambm aquelas que examinam a interveno do palhao na rede hospitalar (MASETTI, 1998; WOU, 1999.).

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  • Introduo 12

    tanto no processo de iniciao e formao do jovem aprendiz, como tambm na performance

    do artista ao longo de sua trajetria. Por meio da construo de um estado especfico de

    palhao, o artista se coloca em comunicao direta com o pblico, transformando e sendo

    transformado pelas microrrelaes estabelecidas a cada encontro.

    A hiptese central desta investigao consiste em reconhecer que existem duas

    principais dinmicas que orientam o processo de formao e criao do palhao: o exerccio

    da improvisao e a dilatao da capacidade do artista em manter-se em relao em tempo e

    espao (contnuo dilogo entre a voz do mundo e voz de si mesmo).

    A opo por observar o trabalho dos profissionais ngela De Castro, Esio Magalhes

    e Fernando Cavarozzi justifica-se, principalmente, por identificarmos que todos so artistas

    com reconhecida trajetria como palhaos; os trs desenvolvem um trabalho pedaggico

    voltado formao do palhao; seus percursos profissionais e artsticos so, atualmente,

    referncias ao trabalho de artistas atuantes ou mesmo, de jovens principiantes. Eles atuam

    profissionalmente, h pelo menos dez anos, tanto no Brasil como no exterior, reafirmando,

    desse modo, o reconhecimento de seus percursos no campo do teatro, em especial, na

    linguagem do palhao.

    ngela De Castro, brasileira, radicada h mais de vinte anos em Londres (Inglaterra),

    uma palhaa bastante respeitada na Europa e no Brasil. reconhecida tanto por seu trabalho

    criativo dentro da linguagem do palhao, como por sua prtica pedaggica de formao.

    fundadora de duas importantes organizaes dedicadas ao trabalho do palhao: Contemporary

    Clowning e The Why Not Institute sediadas em Londres.

    Esio Magalhes integra o grupo Barraco Teatro de Baro Geraldo (Campinas/SP) e

    desenvolve um trabalho criativo e pedaggico de formao de ator. Suas investigaes esto

    focadas, principalmente, no trabalho com a mscara: a mscara neutra, as mscaras de

    personagens, as mscaras da Commedia dellarte e por fim o nariz vermelho que configura a

    mscara do palhao.

    Fernando Cavarozzi, ou Chacovachi, argentino e desenvolve um trabalho de

    formao e de criao artstica direcionado linguagem da rua. conhecido como Palhao

    Terceiro-Mundista ou Palhao filsofo, pela forma peculiar com que articula e desarticula o

    riso da plateia por meio de provocaes, denncias e delrios.

    Este estudo se caracteriza como pesquisa qualitativa. Seus principais procedimentos

    metodolgicos so: reviso bibliogrfica e pesquisa de campo, realizada por meio de

    entrevistas e observaes de espetculos e processo pedaggico de trs palhaos.

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    AdemirTypewriterdinamicas pricnipais:improvisocontnuo e dilatado dilogo entre duas vozes. a voz do mundo e a voz de si mesmo.

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  • Introduo 13

    A primeira etapa desta pesquisa estuda os elementos que ajudam a identificar a

    manifestao do palhao como linguagem artstica, apresentando as especificidades da

    linguagem do palhao. Alm disso, faz um estudo genealgico dos representantes da tipologia

    das mscaras cmicas no intuito de clarificar suas caractersticas recorrentes. Conforme

    afirma Burnier (2001, p. 206), apesar da distinta formao etimolgica, palhaos, clowns,

    bufes e bobos compem uma mesma matriz tipolgica. Eles contm em si uma mesma

    essncia: colocar em exposio a estupidez do ser humano, relativizando normas e verdades

    sociais.

    Nessa etapa, realizamos a reviso bibliogrfica, tendo como principal suporte terico

    os estudos de Bakhtin (2002); Burnier (2001); Castro (2005); Drio Fo (1999); Kasper (2004);

    Lecoq (1997); Lopes (2001); Martins (2004); Ruiz (1987); entre outros.

    Buscamos, no estudo dos tipos cmicos (bufo, bobo da corte, jogral, cmico

    dellarte, louco), reconhecer legados que auxiliam a prtica e formao do palhao na

    atualidade. O estudo dos tipos cmicos objetiva identificar as premissas que substancializam a

    matriz tipolgica presente na linguagem do palhao. Por isso, o captulo no aprofunda os

    aspectos histricos, polticos, sociais e culturais especficos de cada tipo cmico porque isso

    demandaria outra pesquisa.

    No segundo captulo, so apresentados os artistas ngela De Castro, Esio Magalhes e

    Fernando Cavarozzi, cujos processos de formao e de criao so evidenciados, destacando-

    se: as referncias tericas e artsticas que influenciaram suas trajetrias, seus modos de

    descoberta pela linguagem do palhao, a identificao dos seus mestres, alm dos acertos e

    erros significativos nas suas formaes. Essas informaes foram obtidas na observao de

    espetculos e com a realizao de entrevistas com os trs artistas.

    Sero apresentados, no terceiro e ltimo captulo, alguns princpios tcnicos e

    procedimentos pedaggicos evidenciados nas prticas formativas desenvolvidas por cada um

    desses artistas. Revisaremos, assim, a hiptese que orienta esta pesquisa averiguando sua

    validade. Procuramos, com isso, esboar possveis procedimentos de formao, treinamento e

    criao referentes arte do palhao na atualidade.

    A anlise dos procedimentos pedaggicos de ngela De Castro dar-se- sobre o

    contedo correspondente primeira etapa de seu processo de formao, observado no

    workshop A Arte da Bobagem, realizado em 2007, durante o Encontro Internacional de

    AdemirHighlight

    AdemirTypewriterrelativizao das normas e verdades sociais

  • Introduo 14

    Palhaos - Anjos do Picadeiro 6 em Salvador (BA). 5 No entanto, sua dinmica de

    ensino/aprendizagem realizada num perodo de seis semanas. 6 A seleo dessa etapa ocorre

    porque a pedagoga a define como a de maior importncia para o aprendiz. Nela so trabalhos

    os fundamentos da prtica do palhao e os alicerces da linguagem, construindo a base para as

    demais etapas do curso.

    Os procedimentos pedaggicos de Esio Magalhes foram observados do mdulo

    Mergulho na Menor Mscara do Mundo, workshop desenvolvido durante o Anjos do

    Picadeiro 7, realizado na cidade do Rio de Janeiro/RJ (2008). 7

    Por fim, analisaremos a prtica pedaggica de Fernando Cavarozzi (o palhao

    Chacovachi), observada durante seu workshop Manual e Guia do Palhao de Rua

    desenvolvido em Baro Geraldo (Campinas/SP), no VI Feverestival Festival Internacional

    de Teatro de Campinas, em fevereiro de 2008. Chacovachi, como um artista autodidata que

    aprendeu seu ofcio nas ruas, destaca em sua dinmica pedaggica estruturas que concebeu e

    edificou ao longo de sua trajetria e que, ainda hoje, compem a sua performance.

    Com esse capitulo, no pretendemos apresentar um guia prtico formao do

    palhao constitudo por princpios imutveis. Procuramos organizar aquilo que Barba (1995,

    p. 07) denominou de conjunto de bons conselhos: algumas indicaes teis a jovens artistas

    que se iniciam na linguagem do palhao, ou mesmo, nas prticas das artes cnicas. Tais

    conselhos no visam limitar a liberdade expressiva e criativa do aprendiz, mas, colaborar

    com a sua formao.

    5 Anjos do Picadeiro um Encontro Internacional de Palhaos realizado no Brasil e produzido pela companhia Teatro de Annimo e demais parcerias, desde 1996. Trata-se de um congresso que rene uma diversidade de palhaos e pesquisadores da rea oriundos dos mais variados lugares do Brasil e do exterior, onde se renem artistas de diferentes tradies buscando compartilhar experincias e refletir sobre o fazer artstico do palhao da tradio modernidade, da aldeia universalizao do riso. , segundo Esio Magalhes e Fernando Cavarozzi (Chacovachi), no Brasil, um dos principais meios para formao de jovens e/ou atualizao profissional de experientes palhaos. Neste ano de 2009, em sua 8 edio, o evento acontecer em Florianpolis/SC, entre os dias 23 a 30 de novembro. Com o tema Espiral de influncias o encontro comemora 10 anos do Grupo de Teatro P de Vento, companhia teatral catarinense, dirigida por Pepe Nuez. Mais informaes no site . 6 Na integra, sua prtica pedaggica estruturada num perodo de seis semanas: nas duas primeiras semanas, as atividades esto voltadas compreenso, criao e manuteno do que vem a ser o estado de palhao; na terceira semana, a pedagoga trabalha sobre o palhao na tragdia; na quarta semana os iniciantes entram num processo intenso de improvisao; na quinta semana, a prtica pedaggica leva os aprendizes a um processo de concepo e criao de um nmero cnico; a sexta semana direcionada aos ensaios e apresentaes de nmeros. O que denominamos aqui de primeira etapa est enquadrado nas duas primeiras semanas do curso, em que a pedagoga apresenta os fundamentos que, no seu modo de ver, governam a prtica do palhao. 7 Sua dinmica completa de aprendizagem envolve outras etapas. Parte do exerccio com a mscara neutra, passando pela mscara expressiva, no mdulo O Ator e a Mscara. Numa segunda semana estuda as mscaras da Commedia Dellarte e seus personagens-tipos, at chegar ao nariz vermelho, mdulo denominado Mergulho na Menor Mscara do Mundo. Os mdulos so independentes e estruturados no perodo de uma semana cada.

  • Introduo 15

    Organizamos esta etapa do estudo em quatro eixos: trabalho sobre a argila e

    preparao de um territrio expositivo; o confronto e o prazer da exposio; jogo do

    palhao: um olhar particularizado ao mundo; e criao de nmeros: a formao em cena.

    importante frisar que tal diviso no ocorre objetivamente na prtica pedaggica desses

    artistas. Conforme Eugenio Barba (1995, p. 05), os vrios nveis de organizao so durante

    uma prtica artstica (de formao ou performance) inseparveis. Eles somente podem ser

    separados por meio de abstrao, numa situao de pesquisa analtica e durante o trabalho

    tcnico de composio feito pelo ator.

    Este estudo no tem a pretenso de esgotar esse complexo tema. Tampouco se prope

    formulao de esquemas reducionistas sobre o processo formativo e criativo do palhao.

    Como afirma Boaventura de Souza Santos (1997, p. 31), a noo de lei tem vindo a ser

    parcial e sucessivamente substituda pelas noes de sistema, de estrutura, de modelo e, por

    ltimo, pela noo de processo. Trata-se, portanto, de um estudo pontuado pela investigao

    do processo criativo e pedaggico de trs palhaos na busca de edificar um conjunto de bons

    conselhos a jovens artistas iniciantes nas artes cnicas, auxiliando o aprendiz nos possveis

    modos de erigir uma forma particular de trilhar sua jornada.

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  • 1. A ARTE DA PALHAARIA: HERANAS DE UMA TIPOLOGIA CMICA

    A manifestao do palhao se faz presente nas mais antigas civilizaes humanas.

    Segundo Alice Viveiro de Castro, um dos maiores obstculos que os pesquisadores encontram

    ao investigar a origem do palhao est, justamente, na abundncia de denominaes que essa

    figura recebeu ao longo de diferentes momentos histricos e territoriais. Assim, clown,

    grotesco, truo, bobo, tony, augusto, jogral, so alguns dos nomes mais comuns que usamos

    para nos referir a essa figura louca, capaz de provocar gargalhadas ao primeiro olhar.

    (CASTRO, 2005, p. 11).

    Registros mostram a presena de figuras cmicas em diferentes momentos histricos,

    cuja principal funo era expressar, de forma ousada e irreverente, e por meio de uma extrema

    teatralidade gestual, os absurdos do comportamento humano. No Egito, os faras, tal qual os

    nobres medievais, no viviam sem um bufo ao seu lado. (CASTRO, 2005, p. 20). Da

    mesma forma, os bufes eram presenas imprescindveis aos olhos de Imperadores chineses.

    ndios norte-americanos tm como representantes equivalentes os heyokas. Funo

    semelhante assumem os hotxus, uma espcie de xam presente na cultura dos cras (tribo

    indgena brasileira localizada no estado de Tocantins). J a figura de Mi-tshe-ring representa

    um velho bufo sbio dos monges budistas tibetanos. 8

    De diversas formas e em diferentes sociedades surgem essas figuras cmicas

    apresentando caractersticas similares por onde quer que apaream. Para Simioni (apud WOU,

    2005), o palhao tende a ressurgir com fora nos momentos em que a humanidade vive

    grandes crises, momentos de guerras e turbulncias. Isso reflete o imenso interesse que a

    linguagem vem provocando nos dias atuais. Ana Elvira Wou conclui, com isso, que o

    palhao, atualmente, segue forte e um dia vai desaparecer de novo e se misturar como um

    pedao da humanidade para de novo talvez seguir. Por isso o clown sempre existiu. (WOU,

    2005, p. 14).

    A reconstituio genealgica dos tipos cmicos desenvolvida nesta fase do estudo

    tem como principal objetivo a investigao da matriz da tipologia cmica, na busca de

    identificar as caractersticas herdadas prtica artstica do palhao. Por meio do levantamento

    de elementos que caracterizam bobos, palhaos, bufes, jograis e servos da commedia

    8 Informaes mais detalhadas em CASTRO, 2005, LOPES, 2001 e MARTINS, 2004. A respeito dos Hotxus, ver: PUCCETTI, Ricardo. O riso dos Hotxus. In FERRACINI, Renato (Org.). Corpos em Fuga, Corpos em Arte. So Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: Fapesc, 2006. p. 157-166.

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  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 17

    dellarte, enquanto tipos procedentes de uma mesma linhagem, destacaremos premissas que

    substancializam essa matriz cmica e que servem de legado arte do palhao.

    Pesquisadores como Burnier (2001); Castro (2005); Drio Fo (1999); Kasper (2004);

    Lecoq (1987; 1997); Lopes (2001); Martins (2004) e Roberto Ruiz (1987) apresentam um

    breve levantamento histrico da origem do palhao, ou dos tipos cmicos, chegando s mais

    antigas manifestaes desse arqutipo. Para Drio Fo, o palhao vem de muito longe. Por

    isso, podemos dizer que as mscaras italiana nasceram de um casamento obsceno entre

    jogralescas, fabuladores e clowns; e, posteriormente, depois de um incesto, a Commedia pariu

    dezenas de outros clowns. (FO, 1999, p. 305). Burnier confirma essa tese; segundo o

    pesquisador e encenador brasileiro, o clown ou palhao tem suas razes na baixa comdia

    grega e romana, com seus tipos caractersticos, e nas apresentaes da commedia dellarte.

    (BURNIER, 2001, p. 205).

    Castro (2005), em seus estudos a respeito do bobo da corte, alerta sobre o risco em

    tentar isolar alguns dos tipos pertencentes a essa matriz, principalmente pela ineficcia nas

    tradues que, muitas vezes, impedem o reconhecimento das aproximaes entre expresses

    distintas e, em grande parte, de diferentes formaes etimolgicas: Todas essas tentativas de determinar um nome para cada tipo e fixar cada um dos tipos com seu devido nome so sempre vs. Para comear, temos a questo da traduo. Em francs, o bobo da corte fou (louco), em ingls fool (louco), mas muitas vezes o termo usado jester, que seria melhor traduzido para o portugus como jogral. Em portugus, temos o termo bobo designado o bobo do rei, mas este era tambm chamado de bufo, louco ou gracioso. S que muitas vezes bufo era o termo usado para o louco da aldeia e, louco, apenas um padre que gostava da pndega nas festas da Quaresma, ou um goliardo, que andava pelas tabernas cantando e contando histrias cmicas carregadas de sensualidade e erotismo. Jogral e Menestrel viraram na nossa lngua atual figuras lricas que recitavam versos para as amadas e tangem um alade, mas, como vimos, podia ser tambm os nomes dados a saltimbancos, graciosos e rsticos de feiras (CASTRO, 2005, p. 31).

    A tipologia da mscara cmica representada por uma variedade de histries que

    apresentam significativas proximidades entre si. Contudo, no se pode deixar de notar que

    existem tambm certas especificidades referentes estrutura de criao e manifestao de

    cada tipo cmico. De acordo com Luiz Otvio Burnier (2001, p. 206): Os tipos caractersticos da baixa comdia grega e romana; os bufes e bobos da Idade Mdia; os personagens fixos da commedia dellarte italiana; o palhao circense e o clown possuem uma mesma essncia: colocar em exposio a estupidez do ser humano, relativizando normas e verdades sociais.

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 18

    Procuraremos evidenciar os elementos que perpassam a prtica artstica dos tipos

    pertencentes a essa matriz, na tentativa de identificar as caractersticas presentes nas zonas de

    fronteira territrios compartilhados. Objetivamos, com isso, reconhecer os principais

    elementos que fundamentam a linguagem de um de seus herdeiros: o palhao.

    O esboo direcionado reconstituio genealgica da tipologia da mscara cmica e a

    exposio das caractersticas relativas manifestao de seus histries colaboram com a

    compreenso de uma diversidade de componentes que definem o universo do palhao. Assim,

    a investigao dos tipos cmicos estar, aqui, direcionada ao levantamento dos principais

    cdigos que delimitam a manifestao do palhao, cdigos esses que mais tarde nos

    auxiliaro na anlise dos processos criativos e procedimentos pedaggicos dos trs palhaos

    selecionados para o presente estudo.

    1.1. Os Tipos Cmicos e a Reconstituio de uma Matriz Tipolgica

    A manifestao cmica faz-se presente desde as culturas mais primitivas, percorrendo

    a histria da humanidade. Seus representantes descendem da vida e no da arte, sendo muitas

    vezes difcil balizar os limites entre a vida e o jogo da representao. A arte da bobagem 9

    representada pela tipologia da mscara cmica apresenta, em diferentes organizaes sociais,

    aspectos recorrentes em seus modos de criao e expresso. Seus histries promovem o riso

    por meio de uma inverso na ordem do mundo. Sustentado por um estado de jogo, o trabalho

    desses cmicos mostra-se movido pelo prazer e pelo divertimento. Com escrnio, eles lanam

    questionamentos a sua sociedade, na medida em que ridicularizam suas instituies de saberes

    e poderes, denunciando e se divertindo com as paixes e vcios do comportamento humano.

    De aparncias estpidas e repugnantes so capazes de promover o riso pelo desvelar de

    verdades ocultas.

    Como os tipos cmicos aqui estudados, em maioria, governaram a manifestao da

    cultura cmica medieval e renascentista, encontramos nos estudos realizados acerca desse

    perodo um suporte bibliogrfico capaz de orientar essa etapa da investigao. Bufes, bobos

    da corte, anes, jograis, comediantes dellarte so alguns dos principais representantes da

    9 Parafraseando ngela De Castro que intitula seu workshop de formao e aprofundamento na linguagem do palhao de A Arte da Bobagem.

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  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 19

    cultura cmica no medievo e renascimento. De estrutura bastante familiar, suas tcnicas e

    costumes eram frequentemente passadas de gerao a gerao.

    Ao tentar isolar cada um dos tipos cmicos, percebemos que a manifestao desses

    histries alastra-se por uma extensa territorialidade, tornando turvas, ou mesmo insuscetveis

    de demarcao, as fronteiras que separam cada uma dessas mscaras. Como afirma Lopes,

    estamos lidando com uma legio de atores populares, que fazem prevalecer uma arte de fcil

    compreenso, e de difcil delimitao. (LOPES, 2001, p. 64). O estudo dos bufes, bobos,

    jograis, comediantes dellarte, ou mesmo do arqutipo do louco no se prope a isolar e

    categorizar cada um desses tipos em definies inflexveis e imutveis. Diferente disso,

    buscamos um panorama das possibilidades criativas e expressivas desses cmicos, a fim de

    reconhecer os principais legados e seus desdobramentos na arte do palhao na atualidade.

    Os bufes e bobos no nasceram do fazer artstico. No eram como artistas

    representando um papel: continuavam sendo bufes e bobos em todas as circunstncias da

    vida. Como personificaes da prpria vida, encarnavam uma forma especial da vida, ao

    mesmo tempo real e ideal. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte. (BAKHTIN, 2002,

    p. 07). Revelavam verdades desagradveis com jocosidade e expressavam, em grave tom,

    aspectos de pouca relevncia.

    A transferncia das solenidades oficiais de cunho religioso ou civil para um plano

    material e corporal configurou-se como um procedimento recorrente na comicidade

    estruturada durante a Idade Mdia. Bobos e bufes faziam-se presentes em cerimoniais e ritos

    elevados, parodiando seus atos solenes. As intervenes cmicas realizadas em cerimnias

    oficiais do Estado ou da Igreja invertiam os moldes das relaes humanas oficialmente

    estabelecidas. Construam uma vida paralela: um segundo mundo capaz de revelar um lado

    extraoficial da sociedade em que se est inserido e suas deliberadas relaes de poderes.

    Marginalizados por sua inadequao fsica, psquica ou social, aos bufes (e aos

    representantes da tipologia cmica) era dado o direito palavra. Sob a mscara da

    inadequao social, eram livres para provocar, parodiar, denunciar, criticar e blasfemar. Sua

    fala como a do louco ao mesmo tempo proibida e ouvida. (PAVIS, 2003, p. 35). Ao

    colocar em desordem a organizao social vigente, o bufo provoca o riso por meio de uma

    inverso da ordem do mundo. Suas ambiguidades so corporificadas na forma de seu fsico

    deformado. Assim, no bufo, seu corpo inteiro mascarado.

    O bufo apresenta como principal caracterstica expressiva o carter grotesco:

    acentuao esttica e ideolgica de sua manifestao artstica e social. O grotesco, por sua

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 20

    vez, tem vnculos estreitos com o tragicmico. De acordo com Pavis, o grotesco e o

    tragicmico so gneros mistos que mantm um equilbrio instvel entre o risvel e o trgico,

    cada gnero pressupondo seu contrrio para no se cristalizar numa atitude definitiva. O

    autor destaca ainda como elementos essenciais manifestados na representao do grotesco:

    exagero premeditado, desfigurao da natureza, insistncia sobre o lado sensvel e material

    das coisas. (PAVIS, 2003, p. 188-189).

    A animalizao do ser humano e humanizao dos animais tambm se configuram

    como procedimentos presentes na manifestao do grotesco na busca de provocar uma

    reflexo nos modos tradicionais do comportamento humano. Reaproxima o ser humano de

    seus instintos e sua corporeidade. Assim, o grotesco apresenta-se como uma importante linha

    esttica e ideolgica presente na manifestao do bufo. 10

    O trabalho desses histries mantm-se presente, em mltiplos desdobramentos, na

    manifestao teatral da atualidade, encontrando avanados nveis de miscigenao com a

    prtica artstica do palhao. Prticas pedaggicas da atualidade direcionadas formao e ao

    processo de criao desse tipo cmico encontram no prazer pela brincadeira, na caracterizao

    do grotesco e no procedimento da pardia ferramentas para treinamento do artista/bufo. 11

    Segundo Marianne Tezza Consentino, a composio do bufo passa pela pesquisa da pardia

    pessoal: aonde voc foi mais agredido? [...] esta conscincia que ir definir sua deformao

    fsica, sendo esta a exposio corporal (exagerada e escancarada) de uma agresso moral.

    (CONSENTINO, 2008, p. 66).

    No processo de formao e de criao do bufo, as prticas so orientadas de forma a

    promover uma exposio pessoal ao iniciante, conduzida pelo olhar apurado do pedagogo. Os

    10 O grotesco reporta-se a uma acentuao esttica e ideolgica de uma expresso artstica e social. materializado pelo confronto gerado quando aquilo que era familiar e conhecido revela-se distante e estranho. Alguns de seus componentes podem ser traduzidos pelo inesperado, pela surpresa e pela desorientao das estruturas naturais que orientam o ser humano no mundo. Na perspectiva de Bakhtin o grotesco marcado pela liberao do terrvel ou do assombroso para transformar-se em aspectos risveis, inofensivos e iluminados. Fenmeno marcado pelo movimento incessante de transformaes, o grotesco no se configura sob uma forma definitiva. A ambivalncia seu trao essencial, assim tudo que limitado, caracterstico, fixo, acabado precipita-se para o inferior corporal para a ser refundido e nascer de novo. (BAKHTIN, 2002, p. 46). Sobre o grotesco, ver BAKHTIN, 2002 e ALONSO, Aristides. Disponvel em: < http://www.novamente.org.br/ arquivosnovos20-01-2005/Artigo%20Aristides%20-20O%20 Grotesco.doc >. Acesso em: 17 ago. 2008. 11 Existem duas importantes escolas de formao de ator que desenvolvem um mdulo especfico em seu programa ao trabalho expressivo com o bufo: a cole Internationale de Theatre fundada por Jacque Lecoq e Ecole Philippe Gaulier fundada por Philippes Gaulier. No Brasil esta prtica pedaggica pode ser encontrada junto ao Programa de Ps Graduao em Teatro da Escola de Comunicao e Artes (ECA/USP) que oferece aos seus alunos a disciplina O Ator Bufo ministrada pela Prof. Dra. Elisabeth Lopes da Silva. A escola de formao de ator TEPA (Teatro Escola de Porto Alegre) localizado no sul do pas tambm desenvolve um mdulo de atuao especfico ao trabalho do bufo, ministrado pela atriz e pedagoga Daniela Carmona.

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  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 21

    trabalhos so desenvolvidos principalmente por procedimentos como a pardia e a

    composio das deformidades fsicas. A exposio pessoal auxilia na definio da

    deformao a ser explorada pelo artista. A deformao o leva a uma limitao fsica, recurso

    que lhe possibilita a visitao de outros nveis de experimentao.

    As seguintes caracterizaes so frequentemente utilizadas no trabalho pedaggico

    com o bufo: a corcunda, a barriga exagerada, exacerbao de rgos genitais e a excluso de

    um ou mais membros (como braos e pernas). No trabalho podem aparecer, ainda,

    caracterizaes como: gigante, ano, doenas ou anomalias. As caractersticas fsicas,

    psquicas e/ou sociais esto sustentadas pelo princpio da marginalizao, representando a

    somatizao das deformaes humanas interiores, das dores da humanidade. (BURNIER,

    2001, p. 215).

    As deformidades fsicas cumprem uma funo importante no processo de criao do

    bufo: proporciona ao artista liberdade, predispondo-o brincadeira, alm de lev-lo a

    explorar aspectos da animalidade e buscar uma forma particular de assumir uma atitude

    grotesca frente ao mundo, conduzindo-o a uma expresso exagerada dos sentimentos

    humanos. As deformaes desempenham papel similar mscara do palhao. No trabalho do

    palhao, o nariz vermelho, a maquiagem e o figurino no esto ali unicamente a servio de

    uma esttica, mas apresentam-se como uma herana grotesca do bufo. Esses elementos

    so, segundo Burnier (2001), manifestaes sutis dessas mesmas deformaes.

    A prtica com o bufo confere ao artista um gestual grotesco e provocador.

    Valorizam-se atitudes que perpassam a agressividade, a blasfmia e a jocosidade. O artista

    cria tenso junto ao espectador, ao mesmo tempo em que provoca uma exploso de

    gargalhadas. Essa atitude pode ser frequentemente observada no trabalho de Leo Bassi, um

    importante palhao/bufo em atuao, que vem provocando grande influncia nas

    manifestaes artsticas vinculadas linguagem em questo. Os palhaos de rua, como o

    caso de Chacovachi, assumem, em geral, atitudes assemelhadas. Buscam, no exerccio da

    provocao, da denncia e do delrio, um procedimento criativo a servio de suas

    performances.

    A pardia um importante elemento expressivo nessa prtica de atuao. No

    treinamento do bufo, ela se revela um procedimento de criao e atuao, pertencendo mais

    ao plano da cena do que o da dramaturgia. A pardia age como um meta discurso de carter

    crtico em relao situao parodiada. Trata-se, sobretudo, da inverso de todos os signos:

    substituio do elevado pelo vulgar, do respeito pelo desrespeito, da seriedade pela caoada.

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 22

    (PAVIS, 2003, p. 278). Ao parodiar, o bufo questiona valores estticos e filosficos: critica,

    provoca, blasfema, zomba. Sua misso , ao mesmo tempo, reformadora e divertida pois o

    bufo levado a caoar de determinadas situaes, movido por seu prazer pelo divertimento.

    Ele ri e faz rir, denunciando verdades ocultas e zombando da sociedade, suas relaes

    humanas e institucionais.

    No trabalho pedaggico desenvolvido por Philippe Gaulier, 12 embora o pedagogo

    confirme a existncia de certa permeabilidade entre a prtica do bufo e do palhao, essas

    linguagens so trabalhadas de forma separada, desenvolvendo qualidades particulares no

    exerccio de cada um desses cmicos. Para o pedagogo, o palhao filho de Deus, ao passo

    que o bufo filho do diabo (In BARBOZA, 2001; BURNIER, 2001; KASPER, 2004).

    Gaulier, ainda que em sua escola desenvolva um processo de formao para cada um desses

    dois cmicos em mdulos distintos e especficos, refere-se ao bufo como um dos

    antepassados do palhao.

    Na escola de Jacques Lecoq 13 (1997), que tambm aborda ambos os cmicos em

    mdulos separados, os alunos, aps trabalharem as especificidades de seu prprio bufo,

    exploram as possibilidades advindas do encontro de bufes, formando colnias ou bandos.

    Como nas gangs, sempre existe nessas colnias um bufo que lidera o bando, podendo-se

    destacar, tambm, a figura do bufo inocente: diferente dos demais bufes esse uma espcie

    de desvio indispensvel que se ope aos movimentos subversivos e coletivos da gag.

    Em seu processo pedaggico, Lecoq (1997) trabalha sobre trs distintos territrios de

    atuao dessas gangs: o mystre, o grotesque e o fantastique. O grupo mystre parti de

    crenas religiosas, e seus bufes ostentam atitudes de profetas e videntes, prevendo inclusive

    o fim dos tempos e do mundo. O grotesque aproxima-se das caricaturas e dos desenhos

    cmicos, explorando a dimenso das funes sociais. Para Lecoq, o personagem Ubu, de

    12 Embora tenha trabalhado por longa data na Inglaterra, Philippe Gaulier atualmente tem sua escola de formao de ator localizada na Frana. Ex-aluno de Jacques Lecoq e ex-professor da escola deste (a cole Internationale de Theatre), Gaulier instrumentalizou grande parte dos pesquisadores de teatro no Brasil que desenvolveram ou desenvolvem um trabalho artstico e/ou pedaggico com o bufo. Dentre eles destacamos Daniela Carmona, Elisabeth Lopes da Silva, Juliana Jardins e Luiz Otvio Burnier, sendo este ltimo responsvel pela iniciao de diversos artistas na linguagem. Informaes sobre a escola no site . 13 O Parisiense Jacque Lecoq foi o fundador da cole Internationale de Thtre. Lecoq desde cedo se interessou pelo movimento, o que o levou a estudar e lecionar Educao Fsica. Descobre o teatro durante o perodo da Segunda Guerra com um grupo de jovens refugiados. Passa a estudar no teatro a improvisao, a mmica, a dana, investigando a todo tempo o trabalho sobre o jogo fsico do ator. Na Itlia estudou a commedia dellarte. Em 1956 funda sua escola. At a sua morte em 1999, Lecoq foi mentor, diretor e professor da escola. Com nfase ao trabalho fsico do ator-criador, a cole Internationale de Thtre atualmente uma das escolas de formao e treinamento de ator de grande influncia e referncia em todo mundo. Informaes no site

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 23

    Alfred Jarry, encontra nessa gang seu habitat. E por fim, o fantastique apia-se na eletrnica e

    na cincia, como tambm na mais selvagem fantasia, para construir seu jogo e suas dinmicas

    coletivas de manifestao.

    A loucura, desenvolvida na perspectiva do bufo, ingrediente que proporciona ao

    trabalho do artista liberdade e beleza. Por meio do treinamento com o bufo, o artista tende a

    adquirir uma percepo alterada, conferindo aos seus sentidos uma atitude menos repressiva.

    Valoriza-se, com isso, o prazer pela brincadeira e a animalidade das relaes.

    O prazer pela brincadeira e o estado de liberdade do artista so importantes

    fundamentos prtica de atuao desses histries. O artista desprovido de uma represso

    moral ou conceitual, coloca-se livre para relacionar-se com o meio, uma relao guiada pela

    exposio exagerada de aspectos animalescos, das paixes e dos vcios humanos. Livre, o

    cmico se move por seu instinto de prazer e divertimento. Segundo Burnier (2001, p. 216), o

    bufo no tem vergonha e, assim, desde suas necessidades fisiolgicas bsicas at o sexo, ele

    os faz em pblico de maneira descompromissada e provocadora.

    Conforme Daniela Carmona, o bufo comprometido com a verdade. 14 Ele s a

    renunciaria para salvar a prpria vida. S h uma coisa que o bufo ame mais do que a

    verdade: a prpria vida. O que o bufo jamais critica a beleza, ele ama a vida e, se preciso,

    mente para viver, sem, entretanto jamais mentir a si mesmo. (CONSENTINO, 2008, p. 65).

    Na prtica do bufo, trabalha-se sobre o exagero e a criao de um gestual marcado

    pela sensualidade exacerbada, o instinto animalesco, a atitude agressiva e provocadora,

    caractersticas essas desenvolvidas num aspecto extrovertido e jocoso de representao.

    Marginalizado e disforme, ao bufo permitida a palavra para falar com escrnio de temas

    delicados; fala do que proibido. Provido de extrema liberdade e de uma postura jocosa, ele

    nos faz rir ao mesmo tempo em que nos revela nossas prprias dores. O aspecto grotesco

    trabalhado pela mscara do Bufo pode, muitas vezes, ultrapassar o universo cmico,

    explorando os aspectos mais terrveis do homem, de sua tragdia. (BARBOZA, 2001, p. 75).

    Herdeiro direto do Bufo, o palhao apresenta ao espectador um olhar particularizado

    e crtico da sociedade em que se insere. Os traos essenciais desenvolvidos no trabalho com o

    bufo, tambm, aparecem no palhao, entretanto, o palhao expressa de uma forma mais sutil

    os aspectos animalescos manifestados no bufo: o bufo como se fosse uma pedra preciosa

    14 Relatos coletados no Workshop O Ator Bufo ministrado por Daniela Carmona (atriz, diretora e professora de teatro do TEPA - Teatro Escola de Porto Alegre) durante o I Circunlquio Encontro de Artes da UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina, em setembro de 2001.

    AdemirHighlight

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    em estado bruto. O clown uma pedra lapidada. (BURNIER, 2001: 216). Barboza

    complementa: Os contedos treinados com o Palhao aproximam-se da presena Anima, do que leve, delicado, gentil. Em contrapartida, os contedos treinados com o Bufo esto mais prximos de Animus, do que forte, agitado, vigoroso. Os estados e as temperaturas de energia no so, porm, excludentes (BARBOZA, 2001, p. 84, grifo nosso).

    Os estudos que direcionaram essa etapa da investigao afirmam que tanto o palhao

    quanto o bufo no se configuram enquanto personagens, levando-se em conta que ambos no

    apresentam uma lgica psquica estruturada e pr-definida. Diferente disso, indicam a

    presena de uma lgica corprea prpria e peculiar a cada artista. Numa dimenso individual

    e humana, eles podem ultrapassar o espao da representao e transcender a manifestao da

    arte para os territrios da vida.

    Observaremos, nos captulos subsequentes, durante a apreciao desenvolvida sobre

    os princpios criativos e procedimentos pedaggicos dos trs palhaos selecionados ao corpo

    desse estudo, especialmente na performance de Chacovachi, que as caractersticas

    pertencentes manifestao do bufo demonstram semelhanas e complementaridade ao

    trabalho do palhao ainda nos dias de hoje. Conforme Burnier (2001, p. 216), Esta relao de parentesco entre o bufo e o clown deve ser mantida no aprendizado prtico. Encontrar o prprio bufo, as deformaes fsicas e comportamentais capazes de revelar o avesso do ator, importante no processo de busca do prprio clown. Como no bufo tudo muito sem-vergonhamente mostrado e praticamente tudo pode ser feito, por meio dele o ator entra em contato, de maneira extrovertida e jocosa, com aspectos primrios de seu ridculo.

    Vivendo em colnias, o Bufo em seu jogo reproduz o arcabouo social, espelhando

    as relaes de poder: existe aquele que manda e aqueles que obedecem, aqueles que aoitam e

    os que so aoitados. As famlias de bufes, na medida em que vo sofrendo inmeros

    desdobramentos, migram em sentido imagem do bobo do rei, um bufo solitrio.

    O bufo solitrio, ou o bobo da corte, ou ainda o louco do rei, visto frequentemente

    como uma personificao da imagem invertida do prprio rei. 15 Trata-se de um tipo cmico

    15 As fontes bibliogrficas levam a uma intensa aproximao, e talvez comunho, entre a manifestao dos bobos com a dos jograis, bufes, loucos e anes, sendo, portanto, poucos os estudos que se dedicam sobre as especificidades dos aspectos que define o bobo da corte: sua peculiaridade de ao e seus elementos de representao. Informaes so encontradas nos estudos de Bakhtin, 2002; Castro, 2005; Cirlot, 1984; Chevalier, 2005; Frye, 1992; Hans, 1993; Lopes, 2001; Lurker, 2003; Martins, 2004. Tais autores direcionaram um pequeno fragmento de seus estudos manifestao do bobo da corte, deixando pistas sobre particularidades e aproximaes deste tipo com os demais histries cmicos.

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    que representa a duplicao grotesca da efgie de seu nobre soberano. Sua profisso era,

    comumente, associada de um servo. Figura ridcula e incomum era, ao mesmo tempo,

    dotada de uma extraordinria astcia, podendo dizer verdades, muitas vezes ocultas, aos reis

    ou faras. essencialmente no perodo medieval que esse tipo cmico vive seu apogeu. Durante a Idade Mdia, onde houvesse um senhor, um poderoso, fosse ele um conde, baro, bispo, abade, prncipe ou rei, haveria um bobo. Uma corte que se prezasse deveria ter pelo menos um bobo para divertir o senhor e seus convidados (CASTRO, 2005, p.32-33). 16

    Enquanto o rei representava a manuteno de uma tradio, o bobo simbolizava a

    inverso das normas, estando sempre disposto a estorvar os valores morais, as regras sociais e

    os padres de conduta. De impressionante perspiccia alguns bobos eram, nas cortes,

    poderosos como poucos. Agiam com demasiada esquisitice, mas suas atitudes eram,

    frequentemente, aceitas e bem recebidas. Embora submissos s vontades de seu senhor, agiam

    com insolncia e atrevimento.

    Uma passagem apresentada por Castro (2005, p. 33-34) nos revela a petulncia

    licenciada a um bobo de talento excepcional, como o exemplo de Triboulet, bobo da corte de

    Luiz XII e que posteriormente serviu a Francisco I. Conta a pesquisadora que, em 1524,

    Francisco I reunido com seu Conselho, no objetivo de organizar uma expedio a Milo,

    investigava a estratgia mais eficaz para invadir a Itlia. Triboulet, bobo do Rei que estava

    presente a todas as reunies do Conselho, dirige-se ao rei com a sua costumeira irreverncia

    dizendo-lhe: Primo, voc quer ficar na Itlia? No! reponde o Rei. Ento, prosseguiu o

    bobo: Pois esta reunio est muito aborrecida, meu primo. Vocs s falam em como entrar na

    Itlia, quando o mais importante saber como sair de l... Tempos depois as sbias palavras

    do bobo foram duramente lembradas em decorrncia do fracasso da expedio e da

    dificuldade que o Rei enfrentou para sair da Itlia aps ser feito de refm.

    Registros mostram a presena de mulheres que desempenhavam o ofcio do bobo da

    corte, como o caso de Mathurine. Segundo Castro, foi a mais famosa de todas as bobas de

    que se tem registro. Serviu corte de Henrique III, Henrique IV e fez parte da folha de

    pagamento de Luiz XIII. Mathurine revelava-se uma mulher de modos repugnantes, que

    falava tudo o que os outros pensavam, mas no tinham coragem de expressar. (CASTRO,

    2005, p. 34-35). 16 Castro em O Elogio da Bobagem (2005, p. 32-36) desenrola um breve apanhado histrico sobre os bobos que serviram a cortes como a de Carlos V, Luiz XII, Henrique IV entre outros, lanando alguns dos nomes que ficaram mais marcados na histria.

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    Os bobos trajavam roupas grotescas e multicoloridas. Usavam um chapu cheio de

    guizos e carregavam na mo um cetro como smbolo da loucura. Sob a mscara da loucura e

    da comicidade, os bobos manifestavam verdades ocultas sem correrem o risco de uma

    punio. Com frequncia, dispunham da liberdade do bufo, dizendo verdades mascaradas

    em forma de gracejo, stira ou brincadeira. (HANS, 1993, p.59-60).

    Assumiam a funo de espies dos seus senhores. Por sua facilidade em deslocarem-se

    e misturarem-se entre qualquer grupo social, o bobo, por onde transitava, mesclava-se s

    pessoas levando ao rei as informaes colhidas. Anes tambm atuavam como bobos da corte

    servindo a nobres e damas. O ano um guardio tagarela, segundo as tradies, um

    tagarela, verdade, que se exprime de preferncia por enigma. (CHEVALIER, 2005, p. 49).

    Esse cmico vale-se dos acontecimentos do dia-a-dia, personificando a arte na vida.

    Seu ofcio prescinde de um texto dramtico ou espao ficcional. As aes situam-se num

    territrio compartilhado pela arte e pela vida, pela fico e pela realidade, pela verdade e pela

    mentira. A expressividade , ao mesmo tempo, direta e misteriosa, ausente e onipresente. O

    gestual harmoniza a crueldade e a pureza, o trgico e o cmico, o preciso e o enigmtico. Suas

    caractersticas so compartilhadas por entre as figuras pertencentes tipologia da mscara

    cmica, podendo permanecer, ainda hoje, presentes na prtica de atuao do palhao.

    O bobo da corte, em francs, traduzido por fou (louco). Em ingls, fool (louco). De

    acordo com o pequeno dicionrio Michaelis, a palavra inglesa Fool tem por significado louco,

    bobo, bufo, ingnuo, ridculo, designando aquele que graceja. Entretanto, a expresso fool

    atualmente recebe sentido pejorativo, estando vinculado a termos chulos e ofensivos. No lugar

    de fool, utiliza-se tambm a palavra jester que melhor traduzida como jogral.

    Na cena teatral, o bobo viveu seu auge nos textos de Willian Shakespeare

    configurando-se como personagem de uma fico dramatrgica. Segundo Elisabete Vitria

    Dorgam Martins (2004, p. 34), o palhao desenvolvido nos textos do dramaturgo ingls

    transformado de forma a caminhar em direo ao bobo da corte. Embora a pesquisadora

    afirme que no h longa distino entre o palhao e o bobo, uma vez que ambos agem com

    liberdade, construindo um dilogo direto e um canal de conexo entre o palco e a plateia, o

    bobo passa a apresentar caractersticas mais sutis, assumindo uma atitude mais elegante do

    que a do rstico palhao.

    Os bobos Shakespearianos so marcados pela capacidade de deslizarem por toda

    extenso do palco, aparecendo sbita e inesperadamente ora aqui, ora ali, e depois

    desaparecendo antes que pudssemos agarr-lo. (NICHOLS, 1997, p. 40). Representam

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    tambm uma sabedoria real, como o caso do bobo da corte do Rei Lear, smbolo da

    sabedoria real no alcanada pelo prprio Rei.

    Shakespeare utilizava-se da expresso Fool para se referir ao Bobo do Rei Lear. 17

    Todavia, Fool no texto Rei Lear empregado no sentido de um idiota natural: sendo um

    idiota, dono de uma deformidade, ao bobo outorgado o direito de dizer o que quiser. Trata-

    se, sobretudo de uma idiotice marcada por uma reminiscncia de uma ordem da natureza

    ainda coerente e divinamente projetada, de um mundo em que ningum pode deixar de contar

    a verdade. Como consequncia, tal privilgio compe uma de suas principais caractersticas:

    o bobo torna-se espirituoso, uma vez que no h nada mais engraado do que uma

    declarao sincera e repentina da verdade. (FRYE, 1992, p. 140).

    Como os bufes, o bobo um tipo cmico ambivalente e assume um carter

    tragicmico de representao. Ao expor o ridculo, revelando-se uma figura inslita e astuta, o

    bobo pode falar o que quiser: basta uma palavra simples e bem colocada para transform-lo

    num sbio. Caracterizado por uma liberdade de linguagem, gestos e expresses, esse cmico

    um portador do riso. Por todos eram ouvidos, provocando um sorriso largo por sua aparente

    alienao, ou um sorriso amargo por sua extrema franqueza. Apresentavam uma lgica que

    comumente transcendia o raciocnio convencional e encontravam vigor na fora do instinto e

    da intuio.

    Sem uma narrativa fixa e razes sociais, eram livres para transitar entre diversos

    mundos, sem a nenhum deles pertencer. Eram loucos e lcidos, crticos e bajuladores,

    gracejavam verdades e exaltavam mentiras. Utilizavam-se do gestual grotesco, do vocbulo

    enigmtico e da atitude onipresente, assumindo uma postura tragicmica de expresso. Tais

    caractersticas os inserem no registro dessa tipologia cmica, auxiliando o levantamento das

    premissas que circulam por entre a manifestao do palhao, tema desta investigao.

    Outro tipo cmico que quase sempre transita pelos territrios (in)definidos dos bobos

    e bufes so os jograis ou giullare: comediantes donos de uma variedade de denominaes

    que, ainda nos dias de hoje, resvalam-se umas sobre as outras. 18

    17 A palavra Fool aparece no texto de Shakespeare assumindo uma diversidade de sentidos (FRYE, 1992, p. 140). Contudo, interessa para esta pesquisa o estudo do bobo enquanto um tipo cmico na busca de identificar os elementos que ajudam a caracterizar a matriz tipolgica composta por bobos, palhao, bufes. 18 Jogral ou Jester a traduo da palavra Italiana giullare, que, de acordo com Fo (1999, p. 135), originada da expresso ciullare, cuja traduo exata "foder", palavra empregada tanto com conotao sexual quanto no sentido de "zombar de algum". Entretanto, alerta o autor que as escolas preferiram relacionar o jogral (giullare) expresso cielo (cu), distanciando o jogral das praas e elevando-o restritamente ao ttulo de poeta.

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 28

    O termo jogral um bom exemplo dos inmeros tipos de cmico que podem se abrigar sobre um mesmo nome. Jogral vem do latim jocus, brincadeira, diverso. Em portugus jocus a origem de jogo e jocoso, em ingls, joke (piada, brincadeira e tambm o coringa do baralho, que um bobo da corte), e tanto em ingls como em francs a origem do malabarista: jongleur e juggler (CASTRO, 2005, p. 29).

    Cmicos e frequentemente nmades, eram capazes de exercer grande influncia nas

    sociedades em que atuavam. Em suas formas de teatro marginalizado, eles combinavam

    mmica, pantomima, msica, canto, dana, ladainhas, manipulao de animais e de tteres. Por

    sua aprecivel aptido persuasiva, os jograis ganhavam a vida atuando como contadores de

    estria, trovadores, recitadores, ou at mesmo como vendedores de quinquilharias.

    O rei de Castela, D. Afonso X, estruturou, em 1274, seis diferentes tipos de jograis. O

    primeiro, o jogral propriamente dito, possua habilidades musicais, trovejava, cantava e

    declamava versos de outros autores. O segundo era conhecido como Cazurro, que na poca

    significava uma espcie de cmico chulo, considerado idiota e grosseiro. Declamava pelas

    ruas textos sem nexo, visando ganhar algum dinheiro a qualquer custo. O bufon era o terceiro

    tipo de jogral e caracterizava-se por manipular animais e tteres junto s classes subalternas.

    Existia, ainda, o remedador, que era um excelente imitador e contorcionista; o segrier, em

    geral um nobre arruinado que vagueava pelos palcios; e por fim, o trovador, que lanava

    versos e toadas com apuro e maestria, capaz de compor poesias de valor (CASTRO, 2005, p.

    29). Embora a segregao de diferentes tipos de jograis no funcione com diviso categrica

    na prtica, esse estudo apontado por Castro nos ajuda a compreender as multiplicidades que

    formam o arcabouo desses artistas populares, bem como os nveis de miscigenao que

    envolvem os tipos representantes da comicidade medieval e renascentista. Numerosas, variadas e contraditrias so essas figuras histricas, ou essa profisses marginais e divertidas, que durante sculos, ficaram conhecidas na Itlia como giullare: bufes, menestris, trovadores, histries, mimos, saltimbancos, cantrastorie, acrobata, atores ambulantes, cuspidores de fogo, prestidigitadores, palhaos, mgicos, bobos da corte. Com certeza, na maioria das vezes, o giullare reunia em si mais de uma dessas funes, sobretudo em pocas muito remotas, quando ele poderia, ao mesmo tempo contar e cantar histrias, fazer malabarismos e compor seus prprios versos (VENEZIANO, 2002, p. 168).

    Neide Veneziano (2002) destaca, tambm, a atitude consciente de alguns desses

    profissionais que no simpatizavam com a ideia de serem confundidos com uma miscelnea

    formada por amestradores de animais, imitadores de pssaros ou at mesmo charlates. Sendo

    a arte dos jograis de grande amplitude, manifestada por uma diversidade de formas e

    procedimento e em diferentes momentos histricos e territoriais, no procuramos aqui

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 29

    apresentar e conceituar a prtica do jogral em sua complexidade, por no ser esse o foco de

    investigao. Buscamos apenas identificar caractersticas pertencentes a essa prtica artstica,

    que auxiliam a compreender a manifestao da tipologia cmica e suas heranas legadas

    arte do palhao.

    De acordo com Drio Fo, um eminente jogral era capacitado a exercer funes como:

    cortejar, cantar, pegar no ar, zombar dos elegantes, trapacear nas cartas e nos dados, jurar em

    falso, fazer serenata ofensiva e para flerte, [...] fazer o falso parecer verdadeiro e quase falso o

    verdadeiro. (FO, 1999, p. 142). Sua teatralidade edificada na destreza de tcnicas

    elementares do teatro popular e marginalizado como a mmica, a pantomima, a acrobacia, a

    dana, o canto. O exerccio de tais faculdades permitia aos histries grande mobilidade.

    Frequentemente trabalhavam em feiras e ruas, espaos que lhes conferiam um gestual

    expansivo, exacerbado e de grande teatralidade, numa expressividade prpria da esttica

    popular. Sua gestualidade era caracterizada pela necessidade de sobrevivncia. Em grande

    maioria, atuavam como representantes da comicidade popular. Como um jornal falado, eram

    os grandes responsveis pela transmisso e crtica das notcias que circulavam no perodo

    medieval, funo que cumpriam por meio de extraordinria perspiccia e da promoo do

    divertimento. Entretanto, havia tambm jograis que atuavam junto aos palacianos, satirizando

    o rei e seus cortesos por meio da pardia e de expressividade exasperada, grotesca e irnica.

    Pela diversidade de linguagens e inmeros jogos cnicos facilmente deslocavam-se

    entre diferentes naes, chegando e se estabelecendo em inmeros povoados. Levavam a vida

    nos palcios, servindo nobres senhores ou nos vilarejos, onde transitavam junto plebe.

    Atuavam ainda em cerimoniais solenes, festejos populares, feiras e ruas, abrangendo uma

    variedade de intervenes sob o respaldo de mltiplas tcnicas.

    Alvos de grande censura na sociedade medieval, desenvolviam ladainhas

    simultaneamente divertidas e trgicas, muito prximo aos modos de vida e perseguies a que

    estavam expostos. Frequentemente, tinham a palavra sentenciada censura. Adquiriam uma

    notria expressividade corprea e gestual, aptido que exerciam com grande apuro tcnico.

    No entanto, a mesma condio que lhes habilitava a um gestual expansivo e uma

    manifestao carregada de teatralidade lhes condenava a uma diligncia considerada, por

    muitos, lasciva, estril e vulgar.

    Num aspecto romntico, o jogral era uma figura do povo, representado-o por meio de

    um manifesto ldico e revolucionrio. Contudo, Fo (1999, p. 142) alerta que esses cmicos

    no tinham a funo estrita de subverter o poder, servir de guia tomada de conscincia das

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 30

    camadas populares ou mesmo atuar como um intelectual s ordens de uma educao cultural

    dirigida plebe. Havia tantos histries movidos pela emancipao do povo, quantos os que

    agiam de forma reacionria ao lado dos grandes senhores, dedicados manuteno do poder.

    Servindo-se do grotesco, da composio de um tipo jocoso, da manifestao ldica, da

    teatralidade e de uma relao direta com a plateia encontravam no teatro marginalizado seus

    modos de subsistncia e desabafo. Sob o respaldo de uma arquitetura gestual e da aquisio

    de habilidades tcnicas, os jograis improvisavam, criticavam, provocavam, trovejavam,

    recitavam, relacionando-se com o meio de forma a incorporar cena elementos externos e

    acidentais. Donos de uma gestualidade exacerbada, harmonizavam a verdade e a mentira, a

    inocncia e a crueldade numa atitude tragicmica de representao. Esses elementos so

    legados absorvidos pela prtica artstica do palhao. Tais histries, marginalizados, batalham

    firmemente pela sobrevivncia, mesclando em seus jogos as necessidades de subsistncia e

    suas lutas ideolgicas, num constante entrelaar entre vida e arte.

    Os comediantes dellarte so, tambm, representantes da tipologia da mscara cmica

    e, como os demais apresentados, vm contribuir com o estudo dos tipos cmicos e seus

    legados arte do palhao. Esses cmicos so representados pela meia mscara, embora nem

    todos os seus personagens-tipos utilizassem mscaras. Em seu jogo de cena, seus personagens

    so movidos pela realizao dos desejos imediatos e seus tipos-fixos satirizavam sua

    sociedade. A qualidade moral das relaes, amorosa e familiar, realada, desvelando a

    legitimidade dos interesses pessoais. (LOPES, 2001, p. 66). Dinamizada pelo jogo de

    trapaas pertencentes natureza humana a commedia dellarte foi rebatizada, por Jacques

    Lecoq (1997), como comdia humana. Ao vestirem trajes que ostentam graciosidade e

    nobreza, seus personagens persuadem, logram e ludibriam-se uns aos outros na busca de tirar

    vantagens. Suas tcnicas so as mesmas do teatro cmico popular: o mimo, a acrobacia, a

    msica, a dana, a comicidade.

    Na simbiose da multiplicidade de artistas do teatro popular nasce a Commedia

    dellarte. 19 Surge na Itlia, em meados dos sculos XVI e ao que tudo indica descendente

    direta da farsa Atelana, registrada no sculo II a.c.. 20 A expresso dellarte originria de um

    italiano arcaico e designava oficio, arteso, especialista. A commedia dellarte era encenada

    19 Sobre a commedia dellarte recomendamos a leitura dos estudos de Fo, 1999; Lecoq, 1997; Lopes, 2001; Miotello, 2006; Scala, 2003. 20 Farsa de carter bufnico, recebeu este nome em decorrncia da cidade onde se originou: Atela, na Campnia. Estruturada com personagens tipos, acredita-se que a farsa Atelana tenha exercido grande influncia desde os comediantes romanos, passando pela Commedia dellarte e, mais tarde, chegando at o Teatro Musicado, com destaque ao Teatro de Revista.

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 31

    por atores profissionais, providos de um estatuto prprio com regulamentos, por meio do

    qual os cmicos se comprometiam a proteger-se e respeitar-se reciprocamente. (FO 1999, p.

    20). reconhecida como a primeira forma de teatro profissional, tendo em vista que suas

    companhias j apresentavam caractersticas de uma empresa comercial.

    Dos festejos carnavalescos medievais e renascentistas, a commedia dellarte herda

    mscaras e vestimentas, bem como a criao de seus tipos, suas relaes e situaes

    encenadas. Por se caracterizar como uma farsa extrada diretamente da prpria vida popular

    (COPEAU, 1941, p. 27), o fenmeno da commedia dellarte expandiu-se rapidamente

    ganhando a simpatia no apenas das camadas populares, como tambm dos palacianos e, mais

    tarde, da alta burguesia. Esse fenmeno foi definido por Jacques Copeau, como uma espcie

    de milagre teatral. Permaneceu (e permanece) influenciando o fazer teatral ao longo desses

    anos (Shakespeare, Molire, Meyehold, Copeau, Dullin, Mnouchkine).

    Sua estrutura era composta por um quadro de personagens fixos, que poderiam variar

    (seus nomes, pequenas caractersticas ou a prpria mscara e vestimenta) conforme cada

    regio. Cada personagem desfrutava de uma mscara prpria a qual suas linhas revelam o

    carter pessoal de cada tipo (BURNIER, 2001, p. 207). Recorrentemente, os atores

    representavam um mesmo personagem por toda vida profissional, garantindo, com isso, a

    construo de um arsenal criativo e a formao de um repertrio tcnico de atuao.

    Para essa investigao, sero abordados dois aspectos da commedia dellarte que se

    mostram pertinentes a esse estudo: os procedimentos utilizados pelos atores em seus

    processos criativos, e a relao estabelecida entre os servos da commedia dellarte, que mais

    tarde vem a ser aperfeioada na prtica de atuao do palhao.

    O servo, ou Zanni, movido por seu instinto de sobrevivncia. Sua comicidade

    desenvolvida principalmente nas trapaas e trejeitos com que seus representantes buscam

    satisfazer seu insacivel apetite. Frequentemente, as tramas da commedia dellarte traziam

    cena uma dupla de servos e a eles era atribuda a tarefa de realizar o maior nmero das cenas

    cmicas, por meio do confronto de dois tipos distintos e contrastantes, suas artimanhas e

    trejeitos. O confronto entre o primeiro e o segundo criado, entre o trapaceiro e o estpido, o

    carrasco e a vtima, o astuto e o tolo, o engenhoso e o insensato, eram responsveis por grande

    parte das intrigas nas tramas encenadas.

    O primeiro zanni provocava o riso por sua engenhosidade, maquinava as intrigas,

    blasfemava e lograva o patro. J o segundo, estpido e ingnuo, criava o contraposto na

    dupla. Em prtica, as caractersticas de cada servo no podem ser vistas com extrema

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 32

    categorizao devido existncia de certa contaminao entre os dois tipos apresentados.

    Eles eram movidos por uma insacivel fome e pelas necessidades mais elementares do ser

    humano (o alimento, o descanso, a procriao).

    O jogo de cena estabelecido pela dupla de servos j se fazia presente de diferentes

    formas e em diversas manifestaes do teatro popular, adquirindo na commedia dellarte uma

    estruturao bem desenvolvida. A relao estabelecida entre os servos reaparecer e se

    aperfeioar no jogo do palhao branco e augusto (que, respectivamente, podem ser

    associados ao primeiro e segundo Zanni). 21 Para Martins (2004, p. 37), no apenas na

    relao de jogo da dupla de cmicos que a commedia deixa seus vestgios na prtica do

    palhao. Os criados (Brighella e Arlequim, por exemplo) renem a complexidade do esprito do clown, a autentica sntese de tudo o que habita o interior do ser humano grandeza e simplicidade, aventura e razes, sentimento e razo e, ao mesmo tempo, so seres em constante contradio com as normas sociais, com a lgica do mundo dos demais, da comunidade e de sua inrcia de comportamento.

    Tanto as relaes estabelecidas entre a dupla dos servos, quanto suas atitudes frente s

    normativas morais e sociais, suas formas de relao contraditrias lgica convencional, bem

    como a complexa juno de estados to contrapostos e ao mesmo tempo complementares, so

    legados acolhidos, desdobrados e reacomodados na prtica do palhao.

    Dos procedimentos de cena recorrentemente utilizados pelos cmicos dellarte que

    auxiliam esse estudos, enfatizaremos, num primeiro momento, os lazzi, cujos mecanismos

    sobreviveram na prtica do palhao, assumindo diferentes configuraes. Os lazzi esto na base das gags de palhao, especialmente nas chamadas gags fsicas. Todas as cenas de p na bunda, tapas, trambolhes, perseguies e esconde-esconde que encontramos no picadeiro e palcos de hoje tm sua origem em tempos imemorveis, e foram reelaboradas e transformadas com apuro tcnico e maestria, durante os sculos XVI, XVII e XVIII, pelos mestres dellArtes (CASTRO, 2005, p. 44).

    21 De acordo com Gilberto Icle, certamente uma figura desse gnero popular (que foi a commedia dellarte) se desenvolveria no palhao moderno: o zanni (o servo). Da dupla de servos o palhao herda os confrontos de dois tipos contrastantes. O palhao branco simboliza o dominador, a elegncia, a moral, a astcia. O palhao augusto representa o dominado, o estpido, o desajustado, aquele que embora sucumba ao encanto da perfeio [do palhao branco] frequentemente a ela se rebela. Assim, o palhao branco em contraposio ao palhao augusto representam juntos microestruturalmente as relaes de toda a sociedade contempornea. (ICLE, 2006, p. 14-15). Federico Felini vai mais a fundo ao afirmar que os confrontos estabelecidos pelos palhaos branco e augusto propem a encarnao de um mito que est dentro de cada um de ns a reconciliao dos opostos, a unidade do ser. ("Fellini por Fellini", L&PM Editores Ltda., Porto Alegre, 1974, pgs. 1-7. Traduo de Paulo Hecker Filho. Disponvel em: . Acesso em: 14 ago. 2008.

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 33

    De carter ldico, o lazzi 22 corresponde a um artifcio cnico usado para apresentar as

    caractersticas atribudas aos personagens-tipos e engrandecer os jogos de cena. Ao mesmo

    tempo, revelavam o desempenho criativo e a habilidade corprea de seus atores. Segundo

    Pavis (2003, p. 226), os lazzi eram momentos de bravura dos atores, conhecidos e esperados

    pela grande maioria do pblico. Composto por nmeros de cantos, danas, contores,

    acrobacias, msicas, pantomima, incalculveis jogos de cena e comportamentos burlescos, os

    lazzi eram elementos criativos que se tornavam independentes das cenas.

    Os jogos desses histries eram levados aos extremos, chegando s acrobacias. Sendo

    jogos autnomos e completos, os lazzi facilmente se deslocavam por entre a encenao, sem,

    com isso, interferir no desenrolar da trama. Mostravam-se como verdadeiros suplementos

    cena e s aes dos personagens. Este procedimento , ainda, frequentemente utilizado na

    cena do teatro contemporneo, cumprindo funo importante no aspecto visual das montagens

    cnicas, em especial aquelas que se apiam na pardia e na teatralidade como elementos

    cnicos (PAVIS, 2003, p. 226-227).

    Junto aos lazzi, o canovaccio outro procedimento de criao e representao dos

    cmicos dellarte capaz de auxiliar o estudo sobre o palhao. Roteiro que promovia suporte

    ao trabalho de representao dos atores, o canovaccio pr-estabelecia as aes e relaes dos

    personagens-tipos. Indicavam situaes j conhecidas pelos atores, servindo de base ao jogo

    espontneo e improvisao. Os canovaccio eram utilizados para resumir a intriga, fixar os

    jogos de cena, os efeitos especiais ou os lazzi, guiando os atores como uma partitura

    constituda de pontos de referncias. (PAVIS, 2003, p. 38).

    Os lazzi e os canovacci so importantes ferramentas na construo do suporte tcnico

    performance desse tipo cmico. Trabalhando sobre a criao dos tipos fixos, as situaes

    codificadas, a improvisao e o contato direto com a plateia, o cmico dellarte desenvolvia

    ao longo de sua trajetria artstica um repertrio tcnico de atuao. Os cmicos possuam uma bagagem incalculvel de situaes, dilogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memria, as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, dando a impresso de estar improvisando a cada instante. Era uma bagagem construda e assimilada com a prtica de infinitas rplicas, de diferentes espetculos, situaes acontecidas tambm no contato direto com o pblico, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exerccio e estudo. [...] aprendiam dezenas de tiradas sobre os vrios temas relacionados com o papel ou a mscara que interpretavam (FO, 1999, p. 17).

    22 A palavra Lazzi em italiano pode ser traduzida por piada, brincadeira, jogos de cena. Lecoq (1997, p. 124) diferencia um lazzi de uma gag afirmando que esta pode ser executada de forma mecnica ou mesmo absurda, podendo ser iniciada por meio de certo tipo de lgica e sugerir outra, enquanto que aquela necessita impreterivelmente que seja evidenciada a humanidade do personagem.

  • 1. A Arte da Palhaaria: heranas de uma tipologia cmica 34

    A commedia dellarte configurou-se como um teatro de ator. A comicidade e a

    qualidade das cenas no estavam sustentadas nos textos, mas principalmente no ritmo, no

    timing com que os atores desenvolviam suas performances. Seus cmicos agiam com

    autonomia, construindo seu arsenal criativo e formando seu repertrio tcnico. Todo o jogo teatral se apia em suas costas: o ator histrio autor, diretor, montador, fabulista. Passa indiferentemente do papel de protagonista para o de