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A fuga de Sidney

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Você estará prestes a ler alguns dos capítulos do livro “A Fuga de Sidney”. Este livro está em processo de conclusão e conta com pequenos capítulos, o que originou a ideia de realizar este e-book. A história foi escrita pelo aluno de Produção Editorial-UFSM, Pedro Barcellos e o livro digital surgiu da parceria com outra aluna do curso, Indira Maronez. É com satisfação que realizamos este trabalho, buscando brincar na experimentação e nas novas formas de contar histórias.

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    Introduo

    Voc estar prestes a ler alguns dos

    captulos do livro A Fuga de Sidney. Este livro

    est em processo de concluso e conta com

    pequenos captulos, o que originou a ideia de

    realizar este e-book. A histria foi escrita pelo

    aluno de Produo Editorial-UFSM, Pedro

    Barcellos e o livro digital surgiu da parceria

    com outra aluna do curso, Indira Maronez.

    com satisfao que realizamos este trabalho,

    buscando brincar na experimentao e nas

    novas formas de contar histrias.

    Gostaramos de agradecer

    aqueles que leram a histria e

    nos incentivaram a continuar

    produzindo, ao curso de

    Comunicao Social- Produo

    Editorial, que nos

    disponibilizou os laboratrios

    de informtica, ao Professor

    Cesio Mller que nos orientou

    no trabalho.

    Muito obrigado!

    Pedro Barcellos e Indira Maronez

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    Sumrio Introduo .................................................................................................................... 2

    Cap.1 - Overdose de Caf ................................................................................. 4

    Cap.2 - Ranhento fica bem de azul .................................................. 11

    Cap. 3 - Meu amigo Tobby ...................................................................... 16

    Cap. 4- Eba, somos famosos! No. ................................................ 21

    Cap. 5- Vanessa Brinhol no gosta de vaga-lumes 23

    Cap. 6- Primeira vez, no sto. ......................................................... 27

    Cap. 7- Gatos no sorriem ........................................................................ 31

    Cap. 8 - Mos obra .................................................................................. 35

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    Cap.1 - Overdose de Caf

    -Arthuro,espere!Termine seu

    jantar...-ralhou uma voz

    feminina para a criana

    outrora em sua

    frente.Embora seus esforos

    tenham sido louvveis, os

    braos alvos agarraram

    apenas ar. O amontoado de

    cachos dourados,j havia

    descido em disparada

    frentica,rumo ao som de passos leves,divertidos que danavam no mrmore

    molhado.

    Mame levantara-se com feies aborrecidas da cadeira de

    madeira.Largara o restante da sopa alaranjada,que j no parecia to apetitosa

    quanto antes,no aparador de palha e soltara um suspiro lento,o qual no me

    intimidou.

    -Voc no terminou seu jantar- repetiu ela,o tom de voz calmo

    porm firme e no me pediu para levantar da mesa-,apontou para o objeto de

    madeira enegrecida e revestida de vidro polido- por isso,eu acho melhor voc...

    Ela parou de falar, ao ver que minha ateno no estava

    concentrada nas palavras de repreenso e sim no vitral colorido que adornava a

    porta de entrada de minha antiga casa. A silhueta multicolorida recortada

    contra os riscos chuvosos,era alta e magra.E mesmo com a chuva torrencial que

    desabava em espiral do cu,pude ver que ela sorria alegremente para mim.Tive

    de retribuir da forma mais singela e maravilhosa que apenas as crianas de 3

    anos sabem fazer.Sorri mostrando dois dentinhos brancos,que despontavam

    entre baba e gengiva vermelha.

    Meus olhos azuis se arregalaram ao ver a maaneta girando lentamente,

    enquanto o homem alto apertava seus dedes nas bochechas,fazendo uma

    careta engraada.Era incrvel,ser que usava os ps?O vidro vermelho amarelo e

    verde do vitral tornou-se claro como gua,quando um relmpago seguido de

    um trovo despontou no cu de chumbo derretido,e ento reconheci por entre

    os fragmentos coloridos, com espanto, os mesmos olhos azuis que me

    pertenciam. O homem parou de fazer caretas, pareceu colocar algo no bolso e

    deu um passo frente.Sem timidez,ou aviso,a porta abriu-se

    silenciosamente.Dei um passo para trs,maravilhado.Uma baforada quente de

    vento molhado fez meus cachos voarem e minha testa se envergar.Havia gelo

    grudado no umbral,contudo,a entrada um tanto quanto teatral de vov,fizera

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    surtir o efeito contrrio em minha pele.Era calor morno que descia suave pelos

    meus olhos,e antes que pudesse me conter,ou explicar para mame o que

    acontecera,j estava abraado,envolvendo meus braos gordos facilmente por

    suas pernas finas, com a bochecha enterrada na cala de risca de giz.

    Mame parecia ter levado um soco poderoso de esquerda, bem entre o

    nariz e o olho mbar direito. Sua expresso de transe, choque, incredulidade,

    no era o tipo de olhar que ela apresentaria nem mesmo se um polvo gigante

    irrompesse pela pacata cidade de Bag ou se castores falantes cantassem pera

    no principal ginsio da cidade. Era algo maior e mais poderoso que isso e

    mesmo que eu no fosse uma criana com alto poder de observao,o que eu

    modestamente era,teria entendido facilmente que era hora de tirar as mos de

    vov e deix-lo entrar.Com um movimento rpido ele pegou uma bengala de

    couro estonado e deu mais passos em direo da luz suave emanada pelo

    lustre.

    -Ol, gda. Espero no estar incomodando o jantar de vocs nessa noite.

    -Sua voz firme e grossa retumbou de leve os copos de cristal em cima da mesa-

    Pensei em apenas espiar, aproveitar que estava por perto, mas o pequenino

    aqui percebeu minha chegada quando eu estava dobrando a esquina da casa

    da velha Carmem!-Afagou meus cabelos e sorriu- Que os deuses tenham

    piedade dela.

    -Papai ela falou em tom rspido-aqui no! Seu olhar fixou em um

    ponto abaixo da cintura daquele senhor e aguou minha genuna curiosidade. -

    Tenho duas coisas srias pra lhe dizer- A boca torceu,como se feita de fu.

    Primeira: Dona Carmem, embora tivesse desafetos com gatos, cachorros,

    crianas, cortadores de grama, relgios de parede e... parou, pois a defesa da

    falecida estava saindo pior do que o plano requeria ,bem, tinha um timo

    gosto para cortinas e anes de jardim.E...hm,uma vez me deu um belo flamingo.

    - Concluiu aliviada em defesa de sua ex vizinha.

    - Ele estava com a asa quebrada em cinco pontos, parecia mais um

    morcego pintado em um tom pssimo de rosa e acredito fielmente que

    estivesse amaldioado.Todas as plantas morreram no mesmo dia em que ele foi

    fincado no seu jardim...querida- acrescentou em tom de quem se divertia com

    os infortnios da vida.

    Mame torceu o nariz e logo seu rosto inteiro parecia ter sido modelado

    cera derretida. Estava engraada. Quis rir. Vov virou-se pra mim como que

    tivesse lido meus pensamentos e concordou levemente com a cabea.Eu

    ri.Mame me fuzilou com os olhos.

    -E segundo... -Continuou, como se seu pai no tivesse pronunciado uma

    palavra sequer, fazendo fora para encarar aqueles olhos azuis brilhantes- essa

    maravilhosa sopa de abbora vai esfriar, senhor Fausto. E se eu vir uma mosca

    sequer voando por aqui,bem,voc no come hoje.

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    Arregalei os olhos. Ela

    terminou de torcer o ltimo

    pedao de pele na posio

    original e no conteve o riso. O

    ar escapou, e logo, os dois

    estavam gargalhando

    gostosamente, encolhidos no

    cho acarpetado. Choraram de

    tanto rir e ento entendi que

    no passava de uma cena.

    Mame sempre dizia que vov

    tinha o dom do riso e do encanto, mas que no sabia levar nada a

    srio.Ridicularizava as dores e as fazia sumir,como mgica.Batia palma quando

    algum querido morria,pois estaria melhor num tal de campo de Elseos,do que

    caminhando nesse cho duro...cho que era algodo,pedras que eram de

    sabo...vov cantava,mame ria,eu batia palmas com o barulho de falao.A

    madrugada transcorria sem percebermos e mesmo sendo criana,quando vov

    vinha, o tempo no existia.Podia-se queimar todos os relgios,nascer e morrer

    quantos sis fossem necessrios,ns ficvamos em xtase.Pena que ele s

    aparecia uma vez por ano,em qualquer estao que escolhesse,nunca

    avisava.Naquele ano ele escolhera o inverno. Sua voz trovejava e dava vida s

    incrveis histrias sobre um lugar onde tudo era mais diferente na aparncia e

    igual na essncia do que eu poderia imaginar. Os Espritos de luz e trevas

    buscavam eternamente aliados para apoi-los, enlouqueciam vilarejos, curavam

    doentes, impediam e criavam guerras como se fossem um s...gesticulava com

    sua bengala coricea,movimentos errantes no ar.Mame gostava de ouvir essas

    histrias mgicas,e deitava,cabelos negros espalhados pelo cho de carpete

    claro,como se fosse criana outra vez.

    Enquanto via vov demonstrando corajosamente um luta entre

    espadachins renomados desse lugar, que eu rezava todas as noite no piso

    gelado de meu quarto para ele existir, meus olhos queimavam mais que o fogo

    da lareira entre ns. Ervas especficas, queimadas corretamente, invocavam

    encantamentos mais antigos que as prprias palavras, seres no auxlio luta...

    Luta pela liberdade de ser quem se .

    Eu fui uma criana muito feliz. Minha poca favorita do ano no era o

    natal,a Pscoa ou o Ano Novo.Era simplesmente quando meu av cruzava a

    porta e meu corao saltava pela boca,agradecendo a todos os seres que

    conhecia por ele ter vindo.Sua presena era uma viagem onde as cores saiam

    de dentro de ns mesmos,mesclando os cheiros que eu nunca conheceria em

    outro lugar se no em...qual era o nome mesmo?Eu amava essas histrias. Os

    dois fechavam os olhos sincronizadamente, o corpo espalhado entre as

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    almofadas em frente lareira. Quando as risadas paravam,as histrias iam

    findando,era quando o fogo enfim rendia-se s cinzas, e a noite descia. Quando

    a areia do sono no caia nos meus olhos e o corpo retesava de algum tipo de

    preocupao, bastava eu lembrar do som da madeira estalando,e das espirais

    de fumaa que imitavam o padro de cair das gotas de gua l fora,que eu era

    abenoado com um sono,um sono mgico,assim como meu av.

    Nossa casa grande e fria, virava por algumas maravilhosas e indescritveis

    horas,o Chal de vov Fausto.Ele ficava na beira de uma praia que ventava

    tanto,mas tanto,que o som do vento fazia sentido s vezes,nas tardes mais

    abafadas.Eram mais que vozes sussurradas,era o som do lamento do mar.O

    Chal beira-mar ficava no Cassino, em algum lugar entre os montes brancos e o

    navio naufrago.Ento eu acordava,com o gosto do acar grudado no cu da

    boca e eu sabia que estavam fazendo gemada,e na medida que me

    levantava,ainda meio sonolento para longe das cinzas,o cheiro de erva mate,tal

    qual o amargo ardido do gosto do caf passado em toalha de pano branco

    vinha tona,e meus ps corriam para cozinha apenas para ter certeza que l

    estariam minha me e meu av,com xcaras decoradas nos lbios

    finos,engolindo e se aquecendo com o lquido de um dourado to intenso,to

    escuro...to forte.

    Caf. Uma colher de acar cristal, duas de caf granulado e gua

    fervente. Era assim que sempre gostara do seu caf. O cheiro forte arrombou

    minhas narinas e me desafogou das memrias juvenis. Levantei os olhos de

    minha xcara fumegante, para as outras mesas quadradas da cafeteria.Fiquei

    rubro no mesmo instante. Uma senhora a duas mesas de distncia olhava

    horrorizada para mim, tapando os olhos da filha. Meu Deus! Eu estava entrando

    em transe mais seguido e de formas mais diferentes do que eu podia imaginar.

    Os olhos vermelhos e parados, boca aberta e mos apertando a quina da mesa

    no um comportamento comum ou sequer incentivado. Ela devia ter pensado

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    que eu estava drogado! O que acontecia, que quando me esforava muito

    para lembrar de algo,ou as memrias vinham apagadas,como se uma nvoa

    encobrisse com fins de eu esquecer para sempre minhas prprias lembranas

    ou vinha essa enxurrada de detalhes,sabores e cores...mas eu precisava usar

    uma tcnica de concentrao indiana para que acontecesse.Mas no nos

    ltimos cinco dias.Quanto tempo teria ficado recordando as lembranas de meu

    v? Sua imagem estava ficando mais constante em minha cabea com o passar

    dos dias e me pergunto se meu crebro no estaria pifando.

    - Mais alguma coisa para o senhor?- Uma garonete de pele morena e

    cabelos crespos apareceu sem que eu percebesse.

    -Uma xcara de caf, por favor. - eu disse automaticamente.

    -Outra?- sua voz se alterou incredulamente.

    Olhei com ar de choque para ela. Porque estava usando um tom to

    insolente?E ento eu vi que alm de minha mochila de sarja em um canto da

    mesa, o restante estava coberto de xcaras de caf usadas. Engoli fundo e

    percebi ento, minha lngua dormente.

    -Vou trazer uma gua pra voc- ela disse.

    -No, por favor fiz questo de me levantar, mas minha voz soou grogue

    por causa da lngua dormente e a mo que levantara para cham-la, teve de

    descer. Eu ia cair.

    - por conta da casa, ns j vamos fechar mesmo.

    -Que horas so?-perguntei desorientado.

    Ela sorriu.

    -Hora de fechar.

    Logo ela voltou com uma garrafa azul e um copo decorado com gira-

    sis.

    - o copo para empregados, espero que no se importe. ela disse

    baixinho.

    -Claro que no, disse meio sem saber se era verdade. - Eu agradeo a

    ateno,mas no quero atrapalhar vocs mais. hora de fechar.

    -Voc j me atrapalhou bastante-ela disse a voz clara.

    -Como ?

    -No consegui fazer meu trabalho direito, com voc a, parado como um

    zumbi!

    -Eu, eu... No sei o que dizer.

    -No diga, beba. ela serviu o copo at a gua quase transbordar as

    hastes do gira-sol do meio.

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    Me senti muito melhor.A gua limpou o acar e o gosto de caf

    antigo,grudado nos dentes.Entreguei o copo,mais consciente agora do rosto

    dela.Era muito mais bonita do que eu havia percebido meia luz do

    ambiente.Os funcionrios ligaram as lmpadas artificiais e quebraram o clima

    nostlgico que eu tanto gostava naquele lugar.A mulher,embora confiante de

    si,parecia muito preocupada com algo.Com algum.Eu tinha duas grandes

    qualidades.Admito.Primeira:tima memria e segunda ( e no menos

    importante),conseguia ler as pessoas com muita facilidade.Mas minha cabea

    estava um caos,um turbilho com todas as coisas que j passaram por essa

    massa cinzenta.Elas chocavam-se,esfacelavam e por fim,faziam com que eu no

    pensasse em nada alm do vazio.

    O copo estava cheio de novo,e antes que percebesse,estava me abrindo

    para aquela mulher, contando como pensar no crepitar da madeira no me

    deixa dormir mais. Da presso por ser um adulto, quando mal havia completado

    dezoito anos. E o pior, a mais vil coisa de todos os tempos, estava dentro

    daquela bolsa de sarja,no canto extremo direito da mesinha de lanches.

    A garonete recuou instintivamente, mas logo lhe lancei um olhar de

    soslaio

    - s um papel- disse, irritado. - O que est escrito nele so s palavras

    pra voc.Tinta,smbolos e papel,nada alm disso.

    Ela pegou minha bolsa sem convite, puxou o zper cromado e tirou um

    envelope azul de dentro dele. Senti nuseas. Tomei mais um gole. Ela reabriu

    sem rasgar o envelope amassado, sujo de caf e lgrimas,sem

    acreditar.Releu,como eu fizera inmeras vezes.

    Meus olhos estavam inchados. Mais duas pesadas lgrimas pingaram

    ruidosas sobre a toalha plstica. Ela virou, leu o nome do endereado e calou-

    se.

    -Sinto muito pela morte da sua famlia, Arthuro Braz.

    Ela largou a folha no lado das vrias xcaras. Olhei para seu crach.

    -Obrigado pelo seu apoio, Isadora Martins. sorri de leve.

    -Me chame de Dora. Os amigos me chamam assim- ela justificou.

    Me permiti sorrir hoje,o que sequer pensei ser possvel fazer em qualquer

    outro dia semana.

    Foram tragados pelo mar. O avio em que estavam explodiu.E eu era um

    menino sozinho no mundo,com cinco xcaras vazias,uma conta pra pagar,uma

    nova amiga a qual tudo o que sei que tem os olhos do mesmo tom de mbar

    dos de minha me.

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    Voltar ao Sumrio

  • 11

    Cap.2 - Ranhento fica bem de azul

    - Voc muito bonita- minhas palavras

    saram apressadas, tropeando em algum canto da

    lngua porosa- quer dizer, isso no uma cantada,

    s um comentrio- apressei-me a dizer,ao ver as

    sobrancelhas desenhadas de Dora elevando-se

    incrdulas.

    Ela lanou mais um olhar de no acredito

    que disse isso e levantou-se rpido, seu avental

    azul danando com o movimento. Que garoto

    estpido, ralhei!A nica pessoa que parece se

    importar e voc de uma forma surpreendentemente

    ridcula consegue afast-la. Mas fora um comentrio

    inocente. Okay, quase inocente. At ento eu no

    havia visto direito seu rosto suave,nem a pele

    morena,apenas aquelas grandes olhos mbares,

    meia luz, que fizeram meu corpo ardem pela

    memria de minha me.Voc apenas uma criancinha chorona, hora de crescer

    moleque! Acho que ela percebeu meu conflito interno.No era necessrio super

    poderes pra perceber o quanto eu era mimado,egosta e perdido em meu

    prprio mundo,cego pra tudo que me rodeava.Ela deve ter apiedado-se de

    mim,porque to silenciosamente como antes,ou talvez eu estivesse em um

    estado de concentrao muito elevado,ela materializou-se a centmetros do

    meu rosto.

    -Obrigada. Disse com a voz embargada.

    -Eu, hm, de nada assustei-me com a aproximao e pelo tom de voz de

    Dora.

    Mexi-me desconfortvel na cadeira de madeira. Ela se afastou, pegando a

    nota com minhas xcaras de caf bem aproveitadas e uma gua mineral

    Sarandi.A luz artificial branca,que fazia tudo brilhar intensamente, ajudou-me a

    ver algo que gelara meu estmago.Uma mancha roxa esverdeada descia rente

    ao lado esquerdo do olho de Dora,fazendo dele,um amontoado de carne

    torcida.Fiz meno de me levantar,completamente desperto do transe em que

    me encontrara,mas ela fez que no com a cabea.Vendo meus olhos azuis

    injetados de pavor,ela falou alto,enquanto pegava a caderneta da toalha

    plstica.

  • 12

    -Dez reais, moo.

    Eu a olhei confuso. Ela engoliu em seco.

    -Muito obrigada- disse em tom simptico, ao retirar um dinheiro que no

    existia de cima da mesa. -Nos j vamos fechar. Gostaria de algo para viagem?

    -Apenas uma coisa.

    Ela mordeu os lbios. A notcia da morte de minha me e av parecia

    estar viva em sua memria ainda.

    -Claro. O que deseja?

    -Sou novo aqui, senhora. Preciso de uma informao, que me situe e me

    diga alguns nomes de ruas, apenas isso. Sorri.

    Fui caminhando lentamente at a porta de vidro eltrica, com Dora em

    meu encalo, ainda sem entender o que estava acontecendo conosco. Quando

    a porta fechou-se nas nossas costas e senti o ar frio de inverno rasgar meus

    pulmes, gritei.

    -Como pode deixar esse homem bater em voc?!

    -Tu no sabes nada da minha vida, guri. s um menino grande. No

    devia ter te dado intimidade alguma. Se acha no direito de vir no meu trabalho

    e acabar com a minha paz assim?

  • 13

    -Paz?Por favor, voc no parece ser algum em paz!- toquei seu rosto

    machucado, com a palma virada.

    -Por que se importa?

    -Fao a mesma pergunta!

    -Dora!-Uma voz alta e catarrenta grunhiu de algum lugar ao fundo da

    cafeteria.

    -Preciso ir! -Ela disse, os olhos torturados.

    -Voc ainda no me respondeu. Por que se importa?

    -Vai achar bobagem!

    -Voc no tem idia das coisas a meu respeito que pensaria ser a maior

    maluquice.

    -Ela me olhou sria. Acho que tenho. Voc no normal.

    O vento estava cortando meus lbios,e mesmo com o bluso de l escura

    que usava,sentia meu corpo todo vibrar em contestao.

    Um homem barbudo, corpulento e com cara de fuinha se arrastava pelo

    cho de cermica branca, a pana chegando antes dos ps,na rua molhada.

    - Hey, vocs dois!- ele gritou. O que pensam que esto fazendo?-seus

    olhos midos estavam enraivecidos. Aquele moleque estava sendo insolente o

    suficiente para atrapalhar o fechamento da cafeteria assim como aquela puta

    estava pensando que era gente... Batendo papo com o primeiro pirralho

    bonitinho que aparecia pra tomar caf. Ele parou e nos olhou novamente.O guri

    era baixo,de pele clara e cabelos emaranhados,talvez meio dourados,segurando

    as mos da garonete sete anos mais velha.Metade do rosto dela estava

    embolorado em machucados. Caramba,achei que mal tinha encostado nela- ele

    pensou.

    Isadora. - falou rispidamente. -Voc ainda est trabalhando, v para

    cozinha... Depois cuido de voc, vadia. Ele sorriu maldosamente, os lbios

    umedecidos.

    - No fale assim com ela, seu porco de calas! minha voz soou dbil,

    fraca e covarde. timo comeo, Arthuro, muito bom, uma voz disse com

    sarcasmo na minha cabea. Mas no me intimidei, mesmo minha cabea

    estando na mesma altura do ombro dele. Tu um covarde!Tire essas mos de

    presunto de perto dela! Sorri triunfalmente, quase sem me reconhecer. Dessa

    vez a voz saiu muito melhor e audvel. Na realidade, limpa e grossa, um tanto

    quanto retumbante, quase como um reflexo distante da de meu av.

    O dono apertou os olhos, como se formando uma nova idia da criana.

    Ou era muito corajoso e imprudente, ou simplesmente dotado de uma burrice

    sobre-humana.

  • 14

    Seus braos se estenderam lentamente, em direo parede dos

    fundos.Antes que pudesse entender o que ele estava planejando,uma barra

    grande de ferro cortou o ar. Minha testa tambm foi cortada, pra ser sincero.

    - Quem porco agora, fedelho?

    - No!- Gritou uma voz feminina de algum lugar cima. Eu estava cado,

    com o rosto em uma poa quente. Era uma sensao boa. A dor, os piscos e os

    sons deram lugar apenas ao silncio e ao fluxo de sangue que corria de minhas

    tmporas.

    - Aiii, pra. Pra, por favor! T doendo! A voz gritava e chorava do

    meu lado, agora. Talvez compartilhando da minha poa, talvez criando sua

    prpria.

    Eu e Dora, esticados de uma forma engraada, no cho. Era inverno,

    estava escuro e eu no me importava mais com nada. Um som de engasgue,

    gorgolejo e morte surgiram no ar. Eu vou pro inferno, pensei. Eu a matei. Mas a

    medida que o som crescia e grunhidos estrangulados escapavam,gritando

    pare, por favor, percebi que quem morria era o gordo. timo, iramos os

    trs morrer belamente e irmos para o inferno de mos dadas. Mas quem

    estava fazendo isso?Meus ouvidos estavam recuperando a capacidade

    lentamente e minha mente trabalhando, depois do curto que sofreu.

    - No, talvez outra noite. Minha voz trovejou respondendo ao homem.

    -Pare, est me matando!No toque em mim!

    - Eu sei, por isso o estou fazendo. Ah, eu no preciso tocar em voc-

    disse, calmamente.

    - O moleque no vai morrer, pode levar ele, mas no me machuque mais!

    - J te disseram como voc fica bem de azul?

    - Pare!

    - Bela cor de pele. - Minha voz trovejou mais uma vez.

    Depois disso no houve mais nenhum grunhido, apenas um choro

    baixinho ao meu lado.

    Vamos aos fatos:

    - Primeiro. Eu no disse nada disso ao homem. Nada de nada

    ningum.A no ser que tenha a capacidade de falar,sem mexer as cordas

    vocais.Mas algum o fez...a voz que debochava e matava era claramente a

    minha.

  • 15

    - Segundo: Eu no morri congelado na calada, nem Dora. Ns no

    morremos, eu acho. Eu consigo ouvir meus pensamentos e se fizer esforo,

    sinto meus dedos.

    - Terceiro e mais reconfortante. Estava sentindo cheiro de gemada,

    fumaa e gatos. Eu no gosto de gatos, mas o gosto do acar j estava

    grudando em minha garganta. Acho que foi assim que adormeci numa cama

    qualquer, de um lugar em algum lugar...

    - Ele voltou a dormir.

    - Fico feliz. Quando abrir novamente os olhos, ficar mais confuso ainda.

    - No deveramos dizer qual a sua misso?Pouparia muito mais

    tempo!E quanto a garota?Devemos mand-la de volta pra casa?

    - O destino no algo para se brincar. Ela deve ir junto.

    - Ela no pode! Ela humana!

    - Acho que ela tem sorte, amigo. Disse a voz, pesarosamente.

    O quarto caiu em sombras e a lareira, deu seu ultimo suspiro.

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  • 16

    Cap. 3 - Meu amigo Tobby

    Abri meus olhos

    dodos e mirei o mesmo

    velho teto de vigas escuras

    de sempre. Podia ouvir o

    som das ondas batendo na

    pedra, sentir o cheiro de

    gemada, de madeira, de

    areia molhada, de

    pssaros distantes, de

    passos. Mame veio me

    acordar para no perder

    essa manh incrvel de

    praia. Vov fez suas

    aparies poucas vezes no vero, quem sabe ele aparea hoje para tomar

    sorvete de maracuj comigo, exibindo seu mai listrado de vermelho e branco,

    to cmico!Cassino, a maior praia em extenso do mundo, claramente muito

    ventosa. Se formos para a concentrao de guardassis usual ento, ouviremos

    madames reclamando, arrepiadas, correndo para o carro. O barulho do motor

    fundindo-se com o das ondas, o pr-do-sol e a noite. Mame prefere ir de noite

    para praia, deve ser por isso que ela to branca! Ela senta, de pernas cruzadas

    para leste e comea a cantar, ela diz que divertido. Pouco tempo depois

    globos de luz verde iluminam a gua e assim, os vaga-lumes brincam de pega-

    pega. Uma vez, em uma noite dessas de praia e areia giz, um vagalume, que

    chamei de Tobby, ficou no meu ombro. E quando o dia, tarde e noite

    novamente vieram, ele continuou ali. Ele iluminou mais forte meu quarto

    quando achei que havia monstros no armrio e eu nunca quis ver ele preso.

    Acho que por isso, por vontade prpria de inseto brilhante, que ele ficou

    comigo por trs dias. Ele tinha opo e me escolheu. Eu fui a criana mais

    solitria e feliz. Ento Tobby partiu. Abriu suas asas,como se tirasse a poeira das

    costas,deu um impulso de leve e voltou pra alm das guas martimas. Chorei

    ta bom? Mas mame disse que tudo regido por leis, Leis Naturais, deu nfase,

    ela. E que Tobby,as rvores,as pessoas e at o planeta um dia no seriam mais

    como conhecemos. Exceto a parte do choro por Tobby,eu no era to

    inocente.Por isso logo disse assim:- Voc est querendo dizer que todos

    morremos,certo? E ela com um sorriso tnue, disse:

    - No querido, estou dizendo que todos mudamos. Ora estamos tristes,

    ora estamos extremamente felizes. Vivos e mortos. Somos humanos e depois

    lobos, ou os dois ao mesmo tempo (piscou o olho). s vezes vagalumes,depois

    poeira,depois estrelas. assim que funciona. No estou falando de morte,

  • 17

    Arthuro, estou falando de partidas. Nunca mais chore quando algum der

    adeus. Bata palmas e faa uma grande festa, okay? Agora me d um beijo que j

    est tarde. Vou fechar a janela pra no entrar frio.

    - Mas o Tobby pode voltar! Disse. E ela me lanou seu olhar de no

    repita isso, depois gentilmente passou o edredom marrom at meu queijo.

    Quando seu vestido azul estava dobrando a porta ela voltou. Inclinando seu

    corpo delicado, cravou seus olhos mbares nos meus azuis e falou baixinho,

    confidenciando algo por entrelinhas: quando acordar, no se esquea de limpar

    o sto. Te amo, Tuco.

    Pisquei mais uma vez. Uma aranha j estava terminando seu ardoroso

    traado de teias no teto de vigas escuras, quando percebi onde estava. a casa

    de vov, a casa de praia. Fiz questo de levantar, mas minha cabea pesou de

    volta para o travesseiro branco. O cheiro de gemada molestou minhas narinas e

    ento percebi a caneca amarela, ao lado da cama.

    - Nem que fosse o mais habilidoso de todos os mgicos conseguiria

    fazer essa caneca parar em suas mos, Arthuro. Uma voz descansada, gostosa,

    riu baixinho. Fico feliz em te ver acordado.

    - Dora! gritei mais feliz do que poderia imaginar ficar em ver algum-

    Como voc chegou aqui? Alis, pode me explicar o que aconteceu?

    - No sou boa com explicaes, ainda mais sobre o que no entendo,

    mas vou tentar dizer o que eu acho que aconteceu.

    Ela pegou um banco de trs patas e sentou sobre ele. Seu rosto moreno,

    seus cabelos selvagens roando no meu rosto, suas palavras narrando o que

    acontecera:

    - Eu logo percebi que voc no teria dinheiro depois de todas as xcaras

    que tomaste. Eu realmente achei que estava drogado, l na lanchonete, mas

    agora vejo que normal esse estado de Nirvana constante. Sabe Nirvana, a

    busca budista pela libertao.

    Acenei positivamente com a cabea, sabia muito bem. Vinha praticando

    at a exausto, tudo para no perder detalhes dos rostos deles. At

    inconscientemente, eu no estava pronto para esquecer. Ela continuou.

    - Eu ia pedir que fosse embora, porque duas senhoras j haviam se

    retirado e se negado a pagar a conta. Bando de velhas picaretas o que penso.

    O Ranhento no estava feliz, digo, o patro. Disse que se eu no tirasse voc de

    l ele chamaria a polcia. Mas acho que estava s blefando, digamos que ele

    no amigo da lei. Mas ento, eu realmente vi voc. Era uma pessoa to

    pura,to perdida em dor, que no me permiti te expulsar, em vez disso,lhe dei

    gua. Achei que limpando a garganta, limparia a mente e lhe faria melhor. J

    no pensava mais que tivesses tomado alguma droga,mas simplesmente no

  • 18

    conseguia saber o que havia de errado contigo. Ento eu li a carta. Depois reli e

    no acreditei. Voc estava sozinho, toda a famlia morta no mesmo vo, todos

    os noticirios falavam de como as buscas pelos corpos continuariam, mas at

    aquele momento, nada se sabia do vo 474. Precisava tirar voc dali antes que

    Ele o fizesse. Fingi receber o pagamento pelos cafs, porque naquele momento

    eu sabia que havia encontrado algum mais na lama que eu. Mas voc no quis

    ir sozinho, voc tinha visto meu rosto, assim que a meia luz fora substituda pela

    luz artificial. Voc no sabe como me senti, envergonhada, brava, queria sair dali

    e nunca mais te ver. Mas voc me atraiu para fora da lanchonete, no frio da rua

    e gritou comigo. Sem escrpulos, como se falasse com a irm mais nova, me

    chingou. Gritei de volta e ento s queria um abrao. Voc disse que eu era

    bonita, voc se importou comigo. Eu j no sabia o que era um toque amoroso.

    Toda a vez que vejo uma mo levantada em minha direo fecho os olhos,

    tranco a respirao, porque sei que vou sentir a mo pesada, o anel do dedo

    mdio rasgando a minha pele em meio a muitos palavres.

    - Por que voc ainda estava com ele? perguntei timidamente, frente s

    revelaes to cruas e sinceras dela.

    - Ele era tudo o que eu tinha. Ele me deu casa, comida, abrigo. Mas

    nunca segurana, sabor e bem-estar. Ele meu tio, Arthur. Eu fui criado por ele

    desde sempre, no conheo meus pais. Nunca passei da filha bastarda do irmo

    dele, uma empregada de graa e prostituta nos finais de semana. Ah, sinto

    muito, to difcil falar sobre isso. lgrimas pesadas caram e ela sucumbiu no

    cho, ao lado da cama desfeita.

    Pulei de forma mais gil que pude, apesar da dor na tmpora e segurei

    ela em meus braos finos. Ela continuou.

    - Foi to rpido. No deu tempo nem de voc reagir. Voc estava

    diferente. A voz ficou firme, spera, nada como a sua voz. No era voz de

    garoto e sim, de algum muito antigo, algum que no tinha a sua vivacidade

    ou amor, era como se voc tivesse se transformado em um antnimo vivo.

    Ranhento pegou aquela barra de ferro ao lado das latas de lixo. Ele mantm

    elas ali para bater nos cachorros que reviram o nosso lixo, sabe. Ento sua testa

    estava aberta, escarlate e voc no cho. A sua posio era terrvel! Quase como

    se tivesse cado do 10 andar e se estatelado no cho,quebrado e sem vida. Eu

    me joguei contra ele, mas ele conseguiu ser mais rpido. Eu estava ao seu lado

    antes que percebesse. Agora a parte estranha e eu no sei se foi por causa da

    pancada, mas meus olhos ainda estavam abertos. Eu vi voc...

    - No tenha medo. - peguei firme na mo dela, mas ela puxou de volta

    rapidamente.

  • 19

    - Desculpa apressou-se logo a dizer. que eu vi voc transtornado,

    puro dio e maldade.

    Engoli em seco. No lembrava nada disso. Pensei estar cado o tempo

    todo. disse.

    - E estava. Eu no sei explicar, como se voc estivesse no cho e em p

    ao mesmo tempo, uma luz azulada ao seu redor, ela ficava mudando e voc

    falava de uma forma to fria, calculista e m. Voc estendeu seu brao maior

    que o normal, com mos mais fortes e azuladas que o normal e ento ele estava

    longe do cho, apenas grunhindo e pedindo que parasse. Ento voc largou ele,

    mas seus ps continuaram suspensos,como se ele estivesse sendo sufocado

    sozinho, falou algo sobre como ele ficava bem com a pele azul e ento eu no

    lembro. Voc acordou e eu no vi o que aconteceu com o outro voc,

    desculpa, se algum dia eu entender isso melhor, prometo te explicar.

    - Isso mais do que a minha cabea consegue processar. disse, sem

    emoo alguma. Mas ento olhando em volta, ainda no havia entendido como

    fui aparar aqui. Perguntei com um tom de sarcasmo muito desnecessrio. Ela

    pareceu ferida, mas me respondeu.

    - Meu carro estava apenas a alguns passos da calada. Tnhamos um

    homem morto em frente e voc muito ferido. Eu no pude ir para o hospital.

    Passei teus braos em volta do meu pescoo e te coloquei na Braslia azul.

    Chaves, ignio,estrada e no tnhamos rumo. Ento eu me lembrei que tinhas

    uma casa aqui. Aps sondar um pouco, chegamos. Perguntei para uma menina,

    ela se apresentou como neta da Dona Carmem, e eu juramos que no entendi o

    porqu, ento ela apontou em direo a esta casa, perto do per. A menina me

    olhou com um olhar muito curioso e sem dizer nada, me deu as costas. O carro

    atolou na areia e deixei ele ali. A porta estava aberta, as camas feitas, lenha e

    gemadas prontas. Ento voltamos ao presente, porque faz apenas duas horas

    que acordei. O carro ainda est ali e eu no sei como cheguei na cama na qual

    estava. Isso to misterioso para ti quanto para mim, Arthuro. Mas uma coisa

    certa, no temos muito tempo.

    Levantei-me, agora me sentindo melhor. No temos muito tempo, ela

    havia dito. Isso soou agourento.

    - Por que no? Perguntei.

    - Cara, voc no v? Somos criminosos foragidos e mal nos conhecemos!

    Essa a viagem mais louca da minha vida!

    - Acho que j estava na hora de sentir alguma adrenalina na veia, algo

    quase saudvel, certo? Brinquei.

    - Beba a gemada, no tem veneno. Quem quer que tenha deixado isso a,

    nos quer bem.

    - Como voc sabe que no est envenenado?

  • 20

    - Meu bem, eu trabalho em uma lanchonete. Nunca brinque com quem

    faz a sua comida. com um sorriso macabro ela encaminhou-se em direo

    cozinha. Temos de parar com o acar, sabia?! disse por fim.

    Voltar ao Sumrio

  • 21

    Cap. 4- Eba, somos famosos! No.

    - Dora, vem rpida

    aqui! disse, passando os

    dedos de forma distrada no

    lenol branco. Alguns passos

    rpidos pela escada e

    segundos depois uma silhueta

    surgiu.

    -O qu?- ela parecia

    preocupada. - Acenei com a

    cabea em direo ao suporte preto que segurava uma televiso Phillips, antiga.

    A apresentadora do jornal do almoo, morena e com ar preocupado,

    anunciava:

    Dois adolescentes esto foragidos, naturais das cidades de Rio Grande e

    Bag. Arthuro Braz e Isadora Martins (fotos muito antigas apareceram na parte

    de cima da tela), so acusados de matar o dono da tradicional cafeteria, Pane

    Marcio. Temos um perito que nos ajudar a entender o caso. Muito obrigado

    por vir, senhor Carlos. Um homem barrigudo, vestindo camisa listrada e cala

    preta, agradeceu.

    -Se formos analisar cuidadosamente a gravao feita pela cmera,

    podemos ver o momento em que o dono parte para cima do jovem com uma

    barra de ferro.

    - Mas eu no entendo, foi uma tentativa de assalto mo armada?-

    perguntou ela.

    -No Gabriela, estamos inclinamos para a possibilidade de extorso.

    A imagem, em preto e branco, distante, em algum canto invisvel, filmava

    o gorducho atacando o menino, a moa jogando-se contra ele e sendo atingida

    tambm. Ento vemos um brilho leve, perolado, e o homem parece ser

    levantado do cho. Riscos brancos fazem a imagem distorcer-se,como uma

    interferncia eletromagntica...- e depois a imagem pula direto para essa

    cena,Gabriela,o homem cado,s. Os outros dois no esto mais ali. O nosso

    tcnico afirmou que a fita no foi alterada. Acreditamos que tenha sido utilizada

    uma arma de choque eltrico, o que explicaria a luz e o impulso forte da vtima.

    - Mas h realmente vtimas nessa histria? Ou estamos falando

    puramente de agresses marginais?

    - Estamos tentando apurar. Mas percebemos ligaes entre essas trs

    pessoas. Todos tinham parentes no vo 474.

  • 22

    - Sim, estamos acompanhando desde o ltimo ms, sem trguas. O avio

    caiu devido uma turbulncia e falha eltrica, na faixa subtropical da costa

    brasileira,ou seja, entre o litoral norte do rio de janeiro e do rio grande do sul.

    - Isadora trabalhava para a vtima e era sua sobrinha, mas no temos

    conexes entre Isadora e Arthuro antes desse dia. No cremos que tenha sido

    premeditado. O curioso, que a me e o av do rapaz estavam no vo,assim

    como a irm mais velha de Isadora,Cntia. At mesmo a vtima, Carlos

    Nascimento, tinha a tia fazendo o trajeto. Devido s fortes exploses, nenhum

    corpo foi achado. Mas, diga-me,a polcia j tem pistas de onde esses dois

    criminosos esto?

    - Desculpa Gabriela, eu sei que seu trabalho,mas temos que manter

    nossos interesses em sigilo. Contudo, posso afirmar que a populao est cada

    vez mais interessada nos assuntos de segurana e percebendo que no adianta

    apenas reclamar, temos de fazer nossa parte tambm.

    - Est certo, Carlos. No prximo bloco vamos discutir como a polcia vem

    combatendo o trfico nas fronteiras com o Uruguay, e a incrvel histria de uma

    cadelinha que adotou trs gatinhos rfos. No saia da, voltamos j!

    Desliguei a televiso. Voc est certa, j somos procurados!- gritei.

    - Ela me olhou com tristeza. - sim, precisamos sair o quanto antes.

    questo de tempo at que algum nos reconhea e avise a polcia. Acho que

    esto blefando, eles no sabem para onde vamos.

    - Eles j esto perto, Dora. Perto demais!

    - Como voc sabe?

    - Voc no percebeu? Algum j ligou! Ele falou assim: posso afirmar que

    a populao est cada vez mais interessada... Tipo bvio que nos

    denunciaram!

    - Mas ningum nos viu chegar. No... Tem uma menina que viu. Filha da

    Dona Carmem, ela disse.

    - Dona Carmem, esse nome me familiar e de boa,no muito positivo.

    Vamos juntar um pouco de comida e sair daqui.

    - Mas o carro est...

    - Hey, psssiuu. Acho que ouvi alguma coisa.

    Seus coraes pararam. O quarto morto em sombras, logo assumiu cores

    berrantes,cores de fazer gritar e silenciar. Vemelho e azul piscavam.

    A voz anunciou: Rendam-se, vocs esto cercados!

    Voltar ao Sumrio

  • 23

    Cap. 5- Vanessa Brinhol no gosta de vaga-lumes

    Dois carros locais da polcia de Rio

    Grande haviam cercado o pequeno chal

    com vista para o mar. As luzes danavam

    alegres na gua escura, nas janelas sujas

    e nos prprios pra-brisas das viaturas.

    Armas em riste, os policiais estavam

    prontos. O delegado falara em alto e

    bom som, com seu megafone branco:

    Rendam-se, vocs esto cercados. Essa

    frase, clich, era a mais assustadora que

    algum poderia ouvir.

    - Ao seu comando, delegado. - Dissera o mais bem treinado policial.

    -Claro, j darei a ordem. Mas tenho certeza que eles no fugiro para

    lugar nenhum, esto cercados e o carro azul ainda est ali, como a pequena

    Nessa havia nos prometido. Sorriu afetuoso, para uma menina dentro do carro.

    Ela retribura o sorriso.

    - Eu sei o quanto vocs eram amigos. Minha v e voc, delegado. Tendo

    uma informao valiosa como essa, era o mnimo que poderia fazer. Sei como

    essas coisas mudam vidas.

    -E lhe agradeo muito querida. Carmem era encantadora. uma pena

    que tenha ficado, voc sabe, doente. Mas tenho certeza que o Sanatrio

    Drummond um lugar apropriado e que as pacientes recebam muito suporte.

    Eu teria passado para v-la, mas sabe como ,muito trabalho e tem a minha

    mulher...

    - Tudo bem, senhor Mauro. Ningum gosta de estar em um lugar para

    loucos, todos os gritos e a indecncia. Agora concentre-se em pegar esses

    criminosos e limpar nossa cidade desse tipo de gente.Sempre soube que essa

    famlia no prestava,no era a toa que tnhamos uma rixa. Os Braz e os Brinhol.

    Ele lanou um olhar demorado para a menina.

    - Sim sim, temos trabalho a fazer. Espere aqui.

    Mauro, com todos os anos que teve de polcia, havia sentido vrios

    calafrios na espinha, anteriormente. Mas nada havia sido parecido com o que

    sentira vendo aquela menina falar, com um dio to antigo, nada condizente

    com seu rosto claro, olhos negros e cabelos escuros, cabelos lisos e lustrosos.

    Ela era adorvel, educada, sempre fora. Esse caso estava pesando sua

    conscincia e o fato de terem feito uma ligao para ele, especialmente para

    ele, poderia mudar o rumo de sua vida. Todos os jornais narravam

  • 24

    exaustivamente como aquela mulher e o menino haviam fugido, simulavam

    acontecimentos que s alimentavam a imaginao alheia. E se ele os pegasse,

    poderia finalmente viajar com sua mulher, comprar o carro para o filho. Era hora

    de agir, cuidar do que se propusera.

    - Ao meu comando- disse sua voz firme. Fez uma pequena orao e

    continuou...

    - Agora! Sua voz ressoou.

    Os homens, convictos na histria que havia nos coletes pesados e

    munidos de capacetes, avanaram com os escudos quadrados para as janelas

    da cozinha,que explodiram em vrios pedaos brilhantes.

    As luzes estavam apagadas, os azulejos cravados de ps... Ps na areia.

    como se a praia fosse dentro de casa. As cortinas tremuliam

    fantasmagoricamente.

    O homem, o que falara com o delegado antes, fizera um sinal para

    subirem as escadas. Eles o fizeram silenciosamente, armas em punho. Ele suava

    um pouco, estavam tratando de crianas, por assim dizer. E com crianas, pelo o

    que viu l fora. Isso era muito incomum.

    O vento estava soprando mais forte agora, acompanhando o ranger

    doentio da madeira. Era isso, deviam estar no quarto, escondidos em baixo da

    cama ou dentro do armrio. No faam nada que vocs no fariam para seus

    filhos, repetiu para o grupo, atrs dele. Era isso, dois degraus. Um, e a porta

  • 25

    escura, de madeira riscada. Ele acenou com a cabea, e com um chute firme, a

    porte veio baixo,como se feita de isopor.

    Por um instante seus olhos perderam o foco. O quarto estava

    esverdeado, como radiao, como esmeraldas queimando. Aquela luz, aquele

    som. Era um zumbido agressivo, era uma luz dolorosa. Esqueceu quem era, seu

    treinamento cansativo, seus abdominais no sol de fevereiro. Abaixou a guarda e

    protegeu os olhos.

    - So vaga-lumes!-uma voz exclamou logo atrs da sua orelha.

    Foi ento que ele viu o exrcito de insetos, voando baixo e alto,

    ordenadamente, alto e baixo, como uma cerimnia indgena, l estavam eles.

    Grudados na cama, paredes, voando rente taboa do cho.

    Um barulho forte de madeira batendo e ento eles pararam de brilhar. As

    retinas dos seis policiais pareciam ter queimado esfarelando-se e ento voltado

    ao normal. Os vaga-lumes voaram apagados, em nmeros incontveis e sem

    ordem alguma. Partiram sem aviso para a noite fria, espalhando-se com o vento

    que misteriosamente parara de soprar.

    - Merda! O que Diabos foi isso?- pegou-se gritando, segundos depois

    que ltimo vaga-lume riscou o ar.

    - No sei, mas temos um trabalho a fazer.

    - Vamos revistar cada centmetro dessa casa. Eles no saram!No

    podem!

    E assim o fizeram. Rasgaram travesseiros, viraram a cama. Abriram

    guarda-roupas. Tudo ficou de cabea pra baixo. Mas nada acharam. Era uma

    casa vazia.

    Vanessa Brinhol abriu a porta da viatura acinzentada. Seu p fincou firme

    na areia. Quando os vaga-lumes haviam cruzado o cu, mesmo que apagados

    na tentativa de no chamarem a ateno, ela sabia. As coisas estavam

    acontecendo rpido demais.

    O vento fazia seus cabelos serpentearem e o luar no parecia gostar de

    acariciar sua pele, pois estava tomada de sombras, enquanto o mar brilhava

    alegre.

    Ela caminhou lentamente em direo a casa, at chegar s fitas

    grosseiras, que isolavam o lugar. Ouviu a voz do delegado, impaciente,

    querendo informaes, mas ela j sabia. Todos deveriam saber.

    Levantou a fita e cruzou o ptio da casa. Sua mo avanou centmetros

    da maaneta, seu calor embaara a prata, seu sorriso se desfez.

  • 26

    - Voc no pode entrar aqui! um jovem policial segurava seu brao, o

    rosto era de choque. - Apenas autorizados!

    Ento ela se virou e disse, com raiva, como que para um demente.

    - Eles ainda esto na casa.

    Seus olhos encontraram o luar, e o homem encontrou uma dvida.

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  • 27

    Cap. 6- Primeira vez, no sto.

    - Ai! Essa a minha perna!- Exclamou Arthuro, o cheiro do mofo

    pinicando o nariz.

    - Fica quieto! Srio, cala boca. Eu no agento mais te ouvir reclamar,

    Arthuro. Isadora retrucou, aos cochichos para a figura humana mais prxima

    que seus olhos conseguiram reconhecer no escuro.

    - Eu s to pedindo que tome cuidado, s isso. Voc enorme, sabia?

    - O qu? Tu ta me chamando de gorda? S pode ser isso. Alis, alm de

    gorda eu sou louca. Pode dizer! Acolhi um merdinha, fui cmplice num crime

    contra meu prprio tio. Ai meu Deus, estou escondida num sto como um

    animal, com vrios policiais esperando para arrancar meu couro. Sou comeou

    a soluar- muito louca. E gorda!

    Um terrvel silncio, marcado por alguns soluos e lgrimas pesadas,

    instaurou-se. Venenoso. O sto era muito apertado. Entre vrias caixas de

    papelo, livros antigos e muito mofo,estavam Isadora Martins em prantos e

    Arthuro Brs,em posio fetal. Ambos cheios de confiana e amor recproco.

    No, era assim que eles queriam que acontecesse. Estes ltimos dias eram os

    piores dias de suas vidas. No que estas fossem maravilhosas. Dora nunca

    conheceu o pai e assim como muitas moas bonitas e carentes, a vida lhe deu

    muito sexo forado e desprezo. Arthuro vivera em uma perfeita bolha de sabo

    durante sua vida. Nada no mundo inteiro era bom o suficiente para sua me e

    av. Sem dvida eram imagens caricatas, amveis, mas esse protecionismo

    exagerado fizera com que o garoto nunca se sentisse pronto para voar sozinho.

    Mas se por um lado as suas asas foram cortadas pela famlia, o destino cortou

    as deles. O avio entrara em pane e explodira. Contudo, algo ligava essas duas

    criaturas solitrias. Ambos tinham familiares, talvez sentados lado a lado. A irm

    mais nova, Cntia, cheia de vida e expectativas, havia passado recentemente no

    vestibular. Cntia fizera tudo certo na sua vida. Estudara incansavelmente, tivera

    os namorados mais bonitos, enquanto Dora fora contemplada com a ignorncia

    e m sorte. Sua me casara-se de novo aps a morte prematura do pai das

    meninas, com um homem abastado de dinheiro e muito caridoso. Era

    extremamente caridoso. At mesmo esquivava-se da cama da mulher para

    aquecer a filha postia mais velha durante os invernos. Era seu joguinho

    preferido. Escorregar de leve para o lado esquerdo, calar as pantufas e ir tocar

    na menina. Quando rangia a porta, o arrastar dos chinelos enervava-a. Ela sabia

    que ele ia subir em cima dela, investir com seu pnis contra ela. Alis, ela no

    sabia o nome. S sabia o quanto doa, o quanto era vergonhoso ver aquele

    homem manh aps manh, passando o leite para me, que sorria agradecida

    por ter um homem decente dentro de casa. At mesmo assumiu as crianas do

  • 28

    falecido. Esses pensamentos estavam contaminando a mente de Dora,seu

    passado nojento. Sua vida infeliz. Talvez priso fosse o caminho que a vida

    sempre lhe reservara. O rosto de raiva da me ainda lhe tirava o sono quase

    todas as noites. Porque Isadora no ficou quieta, no podia mentir mais. A

    verdade sempre fora a melhor soluo. Ela abriu o jogo, apontou para o marido

    perfeito. A casa caiu. Todos, sua me, o queridinho e at mesmo sua irm a

    acusaram de mentir. Dedos apontavam para seu rosto e os gritos ecoavam por

    todo quarteiro. Disseram que queria chamar a ateno inventando histrias.

    Ela estava na quinta srie quando abandonou o colgio, pegou sua mochila e

    saiu de casa.Esta fora a primeira vez de muitas,na qual homens arrancaram o

    gosto de decncia dela e cuspiram na sua cara. Dora no mulher de grandes

    felicidades. E todos esses acontecimentos pairaram enquanto o ar pesava.

    Ainda podiam ouvir os policiais vasculhando, nervosos, a cozinha, os

    corredores e alguns no quarto,centmetros baixo de seus ps.

    - Dora.

    - Oi?

    - Desculpa.

    - Por me xingar com razo? No, no desculpo. Talvez algum dia voc

    me desculpe por jogar frustrao em cima de algum to puro quanto voc.

    - Pessoas puras matam Dora?

    - Eu no sei querido. Talvez sim. Talvez matem e roubem. No nos cabe

    mais nem um fio de julgamento. Isso que voc fez foi fantstico, sabia? O

    negcio com os vagalumes.

    - Eu s repeti o que minha me me disse. Na realidade, eu tenho feito

    isso desde que chegamos aqui. A imagem dela, danando na praia, envolta de

    vagalumes, era perfeita demais para nunca ser usada algum dia.

    - Acho que no final somos um bom time, no ? Voc lembranas e

    idias. Eu sou ao e remrcio.

    - Foi to estranho,quando chegamos aqui, eu deitei naquela mesma

    cama branca e lembrei. A voz dela, todo o conselho sobre Tobby, o vagalume.

    Era igualzinho,ela me tapava,beijava e saia rodopiando a saia azul. Mas na

    minha lembrana, a mais recente, havia mais uma passagem. Nela ela, dizia que

    me ama muito e que eu limpasse o sto. Acredita nisso? Ela nunca me pediu

    que limpasse o sto e eu nem lembrava que tnhamos um. Muito conveniente,

    quando se tem vrios homens armados e sua casa cercada. Mas voc agiu bem

    rpido.

    - Tnhamos de fazer isso. Destravei a madeirinha, escondida entre as

    vigas, exatamente onde voc apontou. Quando uma escada de cordas caiu, eu

    finalmente senti uma pitada de sorte na vida. Mas acho que minha idia de

  • 29

    sorte est muito desfigurada. Embolotada no sto, fugindo da polcia, no

    exatamente perfeito. ela riu de leve.

    - Ser que no? Pode parecer a maior besteira que voc j ouviu,mas eu

    nunca me senti to vivo. Alis, eu no sei se alguma vez me senti to humano.

    - Acho que somos remotamente parecidos ento, Tuca. Ah, posso te

    chamar assim, n?

    - Claro.

    - como se fizssemos parte de algo maior. De algo muito importante.

    - Ns fazemos, eu tenho certeza. Mas no tenho nem idia de que possa

    ser.

    - Tuca?

    - Sim?

    - Me beija?

    As luzes, as vozes, o vento, tudo e todos desapareceram. Eu nunca havia

    provado algo to doce. Os lbios dela eram fortes e macios. A lngua dela lisa e

    quente. Ela era to linda, como uma gazela ferida: corre longas distncias,mas

    deixa o sangue pelo caminho.Eu sentia o contraste da experincia,mas sabia

    que ela sentia algo novo tambm.Quando minhas mos traaram o caminho

    pelo rosto e cabelo,minha boca encontrou o pescoo e o peito aberto de uma

    mulher. O mofo agora eram rosas e toda a poeira,purpurina. Foi apenas um

    beijo. Um toque. Mas fora mais forte que qualquer devaneio. Era um sopro de

    vida.

    - Obrigado. Disse.

    - No favor.

    - Quando se ganha um presente, devemos agradecer. S isso.

    Isadora sorriu. Um movimento rpido e ela tinha um objeto nas mos. O

    lascar seco e uma chama rompeu. O sto tremeluzia em laranja, com grandes

    sombras projetadas no teto, to prximo da cabea deles. Meu Deus, aqueles

    olhos. Eram grandes, eram mbar, sedutores. Eles brilhavam com a chama. Eram

    a chama. Ela podia ver meu rosto do mesmo jeito, atravs de gs azulado e

    labareda alaranjada. Meus cabelos encaracolados, minha pele clara. Contraste

    grande entre ns. Eram alm do que sentamos, beirava aparncia. E isso me

    deixava feliz. Esse momento fora o mais feliz de minha vida. Enquanto

    estvamos de mos dadas eu no senti medo. Durou to pouco, mas foi o

    suficiente para clarear minha cabea.

  • 30

    Uma sombra negra correra sorrateira,pulando entre vigas e me colocara

    em estado de alerta. O meu nariz protestara,ento entendi. No estvamos

    sozinhos no sto. E no era o mofo que coava todo o meu corpo. Era plo de

    gato. Plo de gato preto.

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  • 31

    Cap. 7- Gatos no sorriem

    O gato mirava intensos olhos amarelados em nossa direo. No piscava

    ou ronronava to furtivo quanto qualquer amigo sorrateiro ou assassino frio.

    Seu corpo esguio e negro se fundia com o fundo em puro breu. A chama do

    isqueiro que Dora segurava to poeticamente apagou-se, fazendo-me por

    alguns instantes, sentir-me frente a frente com o Gato sorridente de Alice no

    Pas das Maravilhas. Aquele que desaparecia, deixando mostra seus olhos

    amarelados e sorriso de escrnio. A diferena que meu gato annimo era mais

    antiptico. No sorria ou falava, ou lambia-se. Sequer desaparecer ele fazia,

    mumificou-se por momento infinito at dar tmidos passos em nossa direo.

    Quietinhos no cho, como crianas que fizeram artes, estvamos. Ora sim, ora

    no, o silncio era quebrado pela raiva do comandante, que aos berros, xingava

    seus bons subordinados de incompetentes e mentirosos,alguns metros baixo

    de ns no quarto.

    O felino, diferente de seus iguais, no fugia assustado, no piscava ou

    miava. Irritantemente continuava sua interminvel desconfiada marcha rumo a

    ns. To perto, mas to perto, que meu nariz estava colorado, maldito seja. Foi

    ento que Dora acendeu novamente a chama alaranjada e eu juro que

    vislumbrei algo de humano nesse ser. Um sorriso torto, puxado para esquerda,

    ou talvez tenha sido apenas a tenso do momento e a luz, sem foco certo. O

    que acontece, entretanto, que o gato finalmente fez algo interessante. Ele

    colocou a sua pata almofadada na minha testa, sem cravar-me aquelas unhas...

    Unhas de gato. Me fazendo desgostar um pouco menos dessas criaturas. Seu

    corpo deu meia volta e fugiu,pulando leve e correndo rpido,entre as vigas que

    sustentavam o teto da casa.

    - Vamos atrs dele! Dora disse, segundos depois do movimento

    repentino.

    - Pra qu? desdenhei. - s um gato completei rpido.

    - Tobby era s um vagalume, mas hoje eles nos salvaram. Suas memrias

    eram apenas memrias, at sua me caridosamente citar esse sto. Aquela

    menina era s uma menina, at trazer...

    - T bom, t bom! Voc provou seu ponto. Mas vai na frente e cuidado

    pra no fazer barulho.

    Dora saiu do lugar mais ao fundo em que se encontrava e deslizou entre

    a viga baixa e meu corpo. Roou sua pele na minha,fazendo-me arrepiar cada

    fio de cabelo do corpo e da alma. A viga no pareceu ser problema e a

  • 32

    proximidade deu cor s minhas bochechas. Sorriu. Ri baixinho. Tnhamos que

    descobrir uma forma de fugir da casa.

    Na teoria, Chals so pequenos. E o meu era tambm. Mas andar pelo

    sto,alis,forro,f-lo parecer um enorme labirinto de possibilidades.Fomos

    arrastando-nos pela poeira e seguindo as patinhas que o peso dele deixava.

    Pulando de Alice para Joo e Maria, assim seguimos as pistas. Qualquer

    caldeiro de bruxa era melhor do que o inferno de ser preso por algo que no

    se sabe ao certo como cometeu. Mas no, minto. Um ano atrs a priso me faria

    bem, ao tornar-me mal, para que a vida, mesmo que cida, corresse por essas

    veias secas em um corpo novo. Mas agora o sangue azul, refresco para os

    sentidos, que no cansam de surpreender-me.

    - Tuco, no tenho ideia de onde estamos mais! Isadora comeou a

    falar,crescendo o tom histrico que vinha se apoderando dela,com o passar do

    caminho. As marcas terminam aqui!- disse, derrotada.

    - Deixa eu ver. A chama jogou suas tranas sob a madeira e vi, com

    tristeza, que at mesmo o gato achara algo melhor para fazer do que brincar de

    pega pega conosco.

    Levantei a cabea, nesse momento apropriadamente j ajoelhado, para

    rezar pela boa vontade de algum ser superior para que pudssemos achar uma

    soluo. E eu vi, to discreta quanto a do meu quarto,a pequena alavanca que

    solta a escada de corda,fortemente amarrada. Levei minha mo, incrdulo, e

    com um leve crack a corda caiu para uma abertura centmetros frente,por

    onde,aparentemente o gato escapara.

    - O que voc acha que isso? Isadora sibilou assustada.

    - Uma passagem secreta. - minha voz transbordava sentimentos.

    - No! Eles vo nos ver!

    - Aparentemente, a est toda a mgica, Dora. Ela secreta!- Estava

    sorrindo sozinho. Logo, postei-me a descer neste novo ambiente.

    Era um quarto. Suas luzes estavam acesas e o gato preto encontrava-se

    sobre uma cama muito grande, adornada com dossel prpura. Os lenis eram

    de linho branco e a madeira que dava sustentao ao dossel, de mogno.

    medida que meus olhos foram acostumando-se luz e meus pensamentos

    igualmente sendo clareados, entendi,que esse era o quarto de vov Fausto.

    -Estamos seguros aqui, Dora. disse.

    Seus olhos encheram-se de lgrimas e bastou isso para jogar-se na cama.

    Admito que meu ego cresceu e eu quase gritei para que sasse dali,mas ela

  • 33

    estava exausta e era tudo minha culpa. Olhando-a dessa forma, percebi, o

    quanto sabia de meu av. Nunca o vira deitado, porque sequer seu quarto eu

    conhecia. No sabia em que trabalhara se era aposentado, se era rico ou

    formado em alguma faculdade importante. Pensei em vasculhar o quarto, nessa

    oportunidade nica, de conhecer quem era realmente Fausto Braz era.

    Um guarda-roupa de madeira pequeno, entalhado com smbolos

    estranhos, seria minha primeira vtima. Violei toda e qualquer intimidade de

    meu v. Vi suas capas coloridas, os maios de banho hilrios. Contudo, no achei

    correto mexer nas suas jias, ento deixei a caixinha que vira l mesmo.

    - Arthuro, no faria tanto mal assim dar uma espiadinha, n?- mostrou

    curiosidade Dora.

    - No acho uma boa ideia. Eu estou atrs de valores sentimentais, ou

    algo que nos mostre para onde seguir,no coisas materiais,Dora.- terminei.

    Dei uma olhada nos livros da prateleira, cada um mais fantstico que o

    outro.Livros de ervas medicinais,livros de animais extintos,livros de culinria

    egpcia e at mesmo mitologia africana. Suas capas couraais eram sortidas em

    cores desgastadas diversas, assim como as letras que davam tom aos ttulos. Fui

    passando minha mo ao longo da prateleira, at mais um pouco da metade,

    quando parei. Havia um livro faltando. Entre alquimia antiga e runas, um espao

    mostrava-se gritantemente.

    - Dora, voc pegou algum livro daqui? Perguntei.

    No obtive resposta. Girei meu pescoo curioso para ver qual era o livro

    que faltava, quando percebi que ela mexia nas jias de vov.

    - Droga! Eu te disse pra deixar isso a!- comecei a avanar com passos

    largos at aquela mulher de cabelos crespos, agachada, frente ao guarda-roupa

    e ento parei. Ela no fora pega de surpresa, estava impressionada demais para

    virar-se.

    Uma caixinha de ferro fundido estava entre suas mos, aberta. L,

    acomodados no fundo de veludo, estavam dois anis. Ambos de prata, a nica

    mudana era a pedra embutida em cada um. Esmeralda era a cor do primeiro,

    enquanto a segunda era vermelho sangue.

    - O que isso? perguntei.

    - No o que que realmente importa Arthuro, e sim o que est escrito

    em cada um.

    Aproximei-me mais um pouco e percebi, em letra fina e deitada, os

    nomes: Isadora Martins, gravado no primeiro anel, e Arthuro Braz, no segundo.

  • 34

    Meu estmago gelou, assim como meu sangue.

    - Isso no possvel!- exclamei.

    - Arthuro, s vezes voc me deixa triste com sua mesquinhez. - ela me

    respondeu.

    - Eu... Apenas no entendo.

    - Tudo o que eu sei que meu.

    - No! S porque tem seu nome, no lhe d o direito de retirar daqui

    sem permisso.

    - Voc quer maior permisso do que meu nome gravado aqui?

    - Pra, me d ele.

    - No.

    Comeamos a puxar a joia com fora, cada um para o seu lado. Eu no

    entendia porque estava fazendo isso, mas ela no era digna de pegar no anel.

    Eu sabia o quo doce era aquele beijo, e aqueles olhos, mas algo me deixava

    furioso ao perceber a profanao de algum do tipo dela, tocar em algo do meu

    tipo. No sabia de onde vinha esse desejo de repulsa repentino, mas era algo

    antigo, entranhado na pele. Algo que eu repudio. Seus olhos chocaram-se com

    os meus e eu percebi como era imaturo, preconceituoso e diferente de todos.

    Ela no merecia algum to vil quanto eu podia ser. Ela no entendia,assim

    como eu, o porque minha voz estava cortante e minha testa curvada em raiva.

    Quando a primeira lgrima caiu foi ento que meu transe impiedoso, terminou.

    - Oh, desculpa, Dora.

    - Agora voc entende o porque do medo que s vezes toma conta de

    mim,ao estar perto de ti, no ?

    - Sim. Eu tive medo de mim mesmo.

    - Eu nunca ganhei nada e esse anel claramente um presente para mim,

    ento, por favor, no me impea de us-lo. dizendo isso, colocou a pedra

    esmeralda no dedo indicador. Alis... continuou-... Estava surpresa mesmo

    com isto aqui.

    Suas mos, agora mais brilhantes, seguravam duas tirinhas compridas de

    papel azul. Meus olhos pularam fora quando percebi o que eram.

    - Hey, calma. Calma. Isadora me afogou em abraos e beijos, sufocando

    minhas lgrimas que j estavam perdidas do porque caiam. Deitamo-nos na

    cama e eu queria esquecer tudo. As passagens de avio no nome de meu av e

    minha me continuaram bem apertadas, na minha mo esquerda.

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  • 35

    Cap. 8 - Mos obra

    - Ento, vai ficar o dia inteiro parado a?- Vanessa Brinhol gritou para o

    homem que a impedira de chegar porta.

    - Tenho ordens restritas de impedir a sua passagem, garota. ele

    disse,um tanto duvidoso das palavras que saiam da sua prpria boca.

    - Eu sei onde eles se esconderam oficial. Eu posso responder todas as

    suas dvidas e um pouco mais. ela mostrou os dentes. Senhor Mauro, acho

    que temos um problema aqui!- ela disse.

    Mauro ouvira a discusso e em solavancos, aproximava-se da dupla.

    Enterrou seus sapatos na areia; o rosto lvido. As coisas no estavam dando

    certo. De alguma forma os criminosos eram mais ardilosos do que ele previra.

    Os jornais relatavam, excitados, como os jovens, versados em fugas fantsticas,

    causaram um curto-circuito no sistema eltrico do chal, cegando os oficiais

    momentaneamente. Nada de vagalumes foi citado, graas a Deus. Caso

    contrrio a polcia seria alvo de chacota em todos os meios de comunicao.

    Derrotados por crianas ajudadas por vagalumes. Isso soava grotesco e

    totalmente sem sentido lgico. Uma pane eltrica fora o que acontecera, sem

    dvidas. Era uma casa antiga. Ela estava vazia e pelo pouco que ouvira, aquela

    menina tinha alguma informao importante para dar. Ele tinha de se agarrar a

    tudo que podia, antes que vazasse o mico da incapacidade da polcia gacha.

    - Eu assumo partir daqui,oficial. Disse o delegado, resignado.

    - Obrigada- agradeceu aliviada, Vanessa.

    - Oua, eu tenho informaes importantes e voc no est me ajudando,

    Mauro. Eu primeiro denuncio eles, pois sem a minha ajuda tenho certeza que

    nunca achariam eles, e agora isso... Mas no tem problema, eu sei onde eles se

    esconderam.

    - Como sabes? Seus olhos castanhos miraram a menina de forma

    engraada.

    - Porque eu sempre fui vizinha deles, porque eu conheo a regio e a

    casa melhor do que qualquer um de vocs. Ah, e por ltimo... porque eu tenho

    a planta da casa.

    - Oh! E porque no me destes antes?

    - Pensei que eles no conseguiriam chegar to longe. H uma passagem

    a mais na casa, que a princpio no consta na planta original, mas digamos que

    a casa bem conhecida da minha famlia. Sabes por qu? Eu lhe respondo,

    senhor Mauro. Porque j nos pertenceu.

  • 36

    O delegado cansara desse joguinho e a menina parecia realmente feliz

    por ter cartas na manga. Por fim resolveu mostrar sua autoridade, ou a falta

    dela como percebeu mais tarde.

    - Eu exijo que me d essa planta agora mesmo, Vanessa! Como pode

    usar deste tom comigo! Eu lhe vi nascer!

    - Que bom, que bom. Mas eu s entregarei a planta da casa se me

    permitirem ir junto!

    - No!

    - Ento nada feito. uma pena que no sejas um homem inteligente,

    delegado.

    Ela virou-se, deixando a maaneta e o chal para trs. Em uma ltima

    tentativa, Mauro agiu apontando uma arma para ela e com a outra mo,seu

    distintivo dourado. Ela virou-se sombriamente.

    - Eu lhe recomendo que abaixe essa arma. ela disse.

    - Voc est agindo contra os interesses da polcia e terei de prend-la se

    no me passar a planta agora mesmo!|

    - Pois bem, aqui est. ela entregou o papel amarelado e continuou

    caminhando em direo ao mar.

    O delegado, insultado, abriu a planta. Seu corao murchou. Havia

    rabiscos enormes, tintas coloridas, nmeros invertidos e at mesmo latim, ali.

    Ele no entendera uma vrgula e certamente no podia envolver mais ningum

    nessa operao.

    - O quanto voc entende? falou deprimido.

    - Cada palavra. ela ficara radiante. Agora venha aqui.

    Caminhou at a viatura mais prxima e abriu o papel sob o cap do

    carro. Este o quarto em que estavam, quando seus comandados entraram na

    casa.

    - Sim. ele concordou baixinho.

    - H uma passagem em cada quarto da casa, uma entrada no forro, que

    d para um pequeno labirinto. ento ela apontou as linhas azuis que riscavam

    a planta. A estrutura simples. Linhas negras marcam os quartos, vermelhas

    os encanamentos e azuis as passagens pelo teto.

    - Meu Deus! Pensamos o tempo todo que estivessem encurralados.

    Agora voc me diz que eles podem passear por toda a casa sem que vejamos!

    - por isso que insisto que me deixem ir!

    - Est bem, mas ficars atrs da linha de fogo.

  • 37

    - Por hora... tudo bem. Ah, isso aqui deve servir. ela pegou um capacete

    cinzento e um colete azul, dentro da viatura aberta. Ficara grande e

    provavelmente pesado, mas ela no reclamara. Perfeito. dissera.

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  • 38

    Dados da Publicao

    Autor da Obra: Pedro Barcellos

    Publicao: Livro digital produzido por Indira Maronez e Pedro Barcellos

    Ano: 2013

    Local: Santa Maria, Rio Grande do Sul (Brasil)