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A FUNÇÃO DIDÁTICA DAS TRAGÉDIAS DE SÊNECA Zelia de Almeida Cardoso (USP) Embora inspiradas nas tragédias gregas, principalmente nas de Eurípides, as obras trágicas de Sêneca apresentam traços bastante originais: os mitos, trabalhados de forma especial, perdem em parte seu caráter sagrado; a progressão da ação é regulada sobretudo pelos dramas psicológicos vividos pelas personagens; as figuras são construídas com tal vigor que freqüentemente se assemelham a caricaturas trágicas, desenhadas com traços nítidos e seguros; a linguagem é rica, elaborada e ornamentada, por vezes rebuscada e afetada, própria de uma época de acentuado gosto pela retórica e pela opulência em recursos estilísticos. Ao lado dessas características, verificamos nas tragédias senequianas a presença insistente de elementos filosóficos, o que lhes confere um caráter didático dificilmente contestável 1 . Se na obra de Eurípides já podemos encontrar tais elementos, nos textos trágicos de Sêneca eles se apresentam com mais força e freqüência. Não se pode dizer a rigor que Sêneca tenha sido propriamente um filósofo. As questões referentes à “filosofia de Sêneca”, assim como à de outras figuras do mundo latino, a exemplo de Lucrécio ou Cícero, foram exaustivamente estudadas em todos os tempos. Não se nega, 1 Entre os que discutiram esse caráter lembramos Florence Dupont (Dupont, 1995, p. 9), que, em seu livro intitulado Les monstres de Sénèque, ao propor uma “dramaturgia das tragédias de Sêneca” refuta a idéia de que o teatrólogo tivesse composto textos trágicos apenas para a leitura e neles não vê nenhuma função didática (idem, p. 20). Considera-os como obras que se prestam a espetáculos grandiosos, recheados de todos os ingredientes próprios da cultura romana. Apesar das inovações de leitura que a escritora propõe e de muitos aspectos positivos que podemos detectar no livro, não há dúvida de que ela adota uma postura extremada, apresentando opiniões que podem ser contestadas. O tom filosófico dos textos trágicos, por exemplo, nos parece evidente. Não é apenas a presença de máximas (sententiae) e de algumas digressões o que contribui para o estabelecimento desse tom. Como um dos principais divulgadores da doutrina estóica em Roma, Sêneca deu freqüentemente às tragédias um caráter parabólico, utilizando-as como exempla que ilustram as conseqüências do descontrole dos sentimentos e das paixões. E as peças se prestam realmente a esse tipo de exemplificação.

A Função Didática Das Tragédias de Sêneca

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A FUNO DIDTICA DAS TRAGDIAS DE SNECA

A FUNO DIDTICA DAS TRAGDIAS DE SNECA

Zelia de Almeida Cardoso (USP)

Embora inspiradas nas tragdias gregas, principalmente nas de Eurpides, as obras trgicas de Sneca apresentam traos bastante originais: os mitos, trabalhados de forma especial, perdem em parte seu carter sagrado; a progresso da ao regulada sobretudo pelos dramas psicolgicos vividos pelas personagens; as figuras so construdas com tal vigor que freqentemente se assemelham a caricaturas trgicas, desenhadas com traos ntidos e seguros; a linguagem rica, elaborada e ornamentada, por vezes rebuscada e afetada, prpria de uma poca de acentuado gosto pela retrica e pela opulncia em recursos estilsticos. Ao lado dessas caractersticas, verificamos nas tragdias senequianas a presena insistente de elementos filosficos, o que lhes confere um carter didtico dificilmente contestvel.

Se na obra de Eurpides j podemos encontrar tais elementos, nos textos trgicos de Sneca eles se apresentam com mais fora e freqncia.

No se pode dizer a rigor que Sneca tenha sido propriamente um filsofo. As questes referentes filosofia de Sneca, assim como de outras figuras do mundo latino, a exemplo de Lucrcio ou Ccero, foram exaustivamente estudadas em todos os tempos. No se nega, entretanto, que, embora eles no tenham criado novas doutrinas, foram importantes instrumentos para a divulgao do pensamento grego no mundo romano e, conseqentemente, para sua preservao.

Observemos o caso especial de nosso dramaturgo. Em algumas ocasies e Sneca o afirma , conquanto tenha feito incurses em outros acampamentos, no h dvida de que seja discpulo dos esticos. Assim Sneca se considera a si prprio quando rememora as figuras de talo, Socio e Paprio Fabiano, seus antigos mestres (Sen. Ep. 108, 3-14; 17-20).

O estoicismo no apenas uma postura filosfica de um ou de poucos filsofos; uma verdadeira escola que nasceu em Atenas no sculo III a.C, com Zeno de Ccio, e se desenvolveu nos sculos posteriores, produzindo, em seus diversos perodos, figuras com a estatura de Cleantes, Crisipo, Digenes de Babilnia, Antpatro, Pancio e Posidnio. Chegando a Roma, encontrou terreno adequado a sua expanso, contando-se Sneca entre seus principais seguidores. Bastante complexo em sua estrutura, o estoicismo pretende ensinar as regras da vida e da ao. A felicidade ideal somente pode ser alcanada quando o homem aprende a viver de acordo com a natureza, aceitando com serenidade os acontecimentos da vida. Dividida em trs partes interligadas a fsica, a tica e a lgica , a filosofia estica tem por fundamento a idia de que o universo foi criado por uma entidade inteligente, por um princpio racional ativo, o logos, que, identificando-se com um sopro gneo, ou seja, com o fogo primordial, governa o mundo e determina o equilbrio e a ordem inerentes natureza.

O universo possui, portanto, uma alma racional concretizada no sopro vital , o que explica a unio, a coeso e a interdependncia de todas as suas partes. Tudo que existe, excetuando-se o espao e o vazio, dotado de um corpo material e o prprio sopro gneo, ao identificar-se com o fogo, possui tambm certa materialidade. O logos, comandando a ordem das coisas do universo, as dirige por meio de ciclos que se repetem sucessivamente e correspondem manifestao da racionalidade do princpio csmico. A histria do mundo se compe de fases que se sucedem periodicamente. As coisas se consomem para voltarem ao ponto de partida. O fim o incio de um novo comeo. Um princpio de imutabilidade das leis naturais governa rigorosamente o universo, garantindo sua continuidade.

A natureza uma forma de manifestao do poder que a conduz; o corpo universal cuja alma o sopro gneo que lhe concede a estabilidade. O homem um elemento da natureza, sua alma parte do sopro inteligente, sua vida deve refletir, portanto, a vida do universo. O mesmo acordo que h entre o logos e a matria deve existir entre o esprito do homem e seu corpo.

A partir de tais concepes, se chega proposta de uma postura moral. necessrio viver em conformidade com a natureza. A virtude uma adeso voluntria ordem universal. Os vcios, a maldade, a insensatez e, sobretudo, as paixes so os fatores de desequilbrio da ordem; e o rompimento das leis naturais acarreta conseqncias desastrosas. Quando o homem domina suas paixes, ele se integra natureza, aceita o cumprimento dos ciclos e enfrenta com a mesma tranqilidade aptheia o sofrimento e as alegrias. A felicidade suprema, portanto, consiste em viver em harmonia com a natureza e em aceitar serenamente suas leis e suas vicissitudes. Impregnado do sopro inteligente, o universo forma com o homem um nico ser. No se pode ser contrrio ao ritmo universal. A sabedoria reside na impassibilidade absoluta e permite suportar corajosamente as adversidades. A virtude uma fora ativa e deliberada que no sacrifica a razo s paixes. A paz e a felicidade correspondem indiferena em relao aos prazeres e dores.

Os romanos e Sneca entre eles se interessaram principalmente pela tica estica. Sneca, como dissemos acima, se considerava discpulo dos esticos e, embora procurasse manter sua liberdade de julgar e por vezes se aproveitasse de idias filosficas no esticas que lhe parecessem boas, sua obra marcada pela presena de elementos esticos. Esses elementos, sem dvida, foram elaborados sua maneira. Sneca se preocupou sobretudo com a divulgao de idias prticas, que pudessem ser aproveitadas pelos homens comuns e contribussem para a construo de uma arte de vida.

Sobre as caractersticas do estoicismo senequiano assim se expressa Garca-Borrn (1956: 109):

(Sneca) ha aprendido de los estoicos, ha incorporado a sus obras y a su pensamiento doctrinas de sus principales maestros: pero lo que l ensea no es una repeticin, sino una adaptacin personal, espontnea, hecha con libertad de juicio, de doctrinas de distintos maestros con mayora estoica, desde luego que ha hecho suyas porque le han parecido bene dicta ab ullo. Ms claro: Sneca, de acuerdo con lo que l nos dice de s mismo, no es ni un repetidor del estoicismo ni un arreglador eclctico de doctrinas varias, sino un pensador libre y sin prejuicios educado en el estoicismo y deudor a este sistema de las principales estructuras de su formacin filosfica.

Conhecendo ampla e profundamente a doutrina estica, Sneca no somente a divulgou em seus tratados e cartas como tambm aproveitou todas as oportunidades para apresent-la, de alguma forma, em suas tragdias.

Em Fedra, mais que em algumas outras, as ocasies favorveis explorao do estoicismo se multiplicam pois que o prprio mito contribui para isso. A histria de Fedra essencialmente exemplar. Por seu intermdio podemos verificar como a paixo no dominada, sobrepondo-se razo, determina o desencadeamento de catstrofes e compromete a ordem universal.

O amor da rainha por seu enteado jovem e belo uma transgresso que violenta o equilbrio. Uma vez rompido esse equilbrio, as desgraas se sobrepem umas s outras e no se pode mais interromper a avalanche provocada.

Nas trs aes bsicas que se imbricam, compem a urdidura da tragdia e determinam a ecloso do evento trgico (o amor de Fedra por Hiplito, a calnia, a maldio de Teseu), a paixo domina a razo, a ordem natural transgredida e o mal se instaura de forma irreversvel.

A ama de Fedra, em suas primeiras intervenes, faz grandes esforos para reconduzir o esprito enlouquecido da rainha ao caminho do dever e da razo e evitar que a desgraa se consume. Exerce, portanto, a mesma funo que tantas vezes as nutrizes exerceram nas tragdias clssicas: encarna o bom senso, que se ope ao desenfreamento dos sentimentos, e representa o alter ego da personagem principal, possibilitando a exibio do conflito que se estabelece na mente conturbada, determinado por um dualismo natural.

Nas primeiras palavras que dirige a Fedra, procurando reconduzir a rainha enamorada ao caminho da virtude, a ama emprega uma argumentao de carter estico:

Esposa de Teseu, descendncia ilustre de Jpiter, arranca o mais depressa possvel de teu casto peito esse amor nefasto, extingue as chamas e no te deixes dominar por uma esperana funesta. Quem contraria e combate o amor, desde o incio, tem a segurana da vitria; quem nutre o mal, acarinhando-o docemente, muito tarde se recusa a suportar o jugo que sofre (Phae. 129-135).

No faltam na linguagem da ama nem as mximas morais, nem as reflexes filosficas, nem as ponderaes que encerram um contedo estico: O primeiro grau do pudor desejar coisas honestas: o segundo conhecer a extenso do erro (140-141); O crime maior que a monstruosidade; a monstruosidade imputada ao destino, o crime imoralidade(143-144); H mulheres que cometem crimes impunemente; nenhuma os comete com esprito tranqilo (164).

Tambm apresenta sabor estico a contra-argumentao que utiliza quando se ope ao arrazoado de Fedra que procura atenuar sua culpa, atribuindo aos deuses a maior responsabilidade por seu desvario.

A rainha se desculpa com palavras eloqentes, construindo uma imagem de seu mundo interior, onde se estabelece o conflito entre a paixo e a razo:

Sei que o que lembras verdade, minha nutriz, mas a loucura me faz seguir o caminho pior. Mesmo consciente minha alma se dirige ao abismo e volta, buscando inutilmente uma inspirao saudvel.

[...]

De que adianta a razo? A paixo vence e reina e o deus poderoso domina minha mente (177-185).

A ama, ao responder-lhe, adota uma postura aparentemente irreverente em relao atuao do deus e da deusa do amor sobre os seres humanos:

Foi o desejo culposo, que favorece o vcio, quem inventou que o amor um deus; para ser mais livre, acrescentou paixo o nome de uma falsa divindade: Vnus envia seu filho a vaguear por todas as terras, voando pelo cu! Ele atira com a mo pequena as flechas delicadas e, sendo o menor dos deuses, consegue reinar sobre os maiores! Foi um esprito demente que se atribuiu a criao dessas mentiras e inventou a divindade de Vnus e o arco do deus (195-203).

Negando o poder de Vnus e a divindade de Cupido e considerando-o como fico, a anci assume uma posio curiosa, semelhante das mulheres de Tria, em As Troianas (Tro. 402-406), quando afirmam que Crbero e o Tnaro so palavras sem valor, ou de Jaso, quando se dirige a sua esposa, em Media (Med. 1026-1027), aconselhando-a a comprovar que no h deuses no elevado ter.

curiosa, entretanto, a posio da ama, uma vez que em Fedra os deuses so mencionados ou evocados a todo momento: Diana (72), Atena (103), o Sol (124), Jpiter (300), Netuno (904). A referncia da nutriz ao carter ficcional de Cupido talvez seja apenas mais um recurso utilizado por ela para que a rainha assuma a conscincia de sua culpa e de seus erros.

Para as paixes desvairadas e inconseqentes a ama tem uma explicao racional, no as atribuindo ao divina. No o deus-menino quem atinge as almas e as faz mergulhar na loucura e na cegueira, sem permitir-lhes que meam a extenso e a gravidade de seus crimes. Se algum ou algo deve assumir a responsabilidade, que a assuma a vida fcil e ftil que se leva nos palcios, onde o corpo se acostuma aos vcios decorrentes dos prazeres materiais que debilitam os sentidos e ofuscam a razo:

Quem vive exultante no meio de coisas excessivamente favorveis e se entrega ao luxo, acaba desejando aquilo que inslito. Surgem ento os desejos ilcitos, companheiros da grande riqueza. J no so suficientes os alimentos costumeiros, as saudveis moradias usuais e as taas comuns. Por que razo raramente sobrevm, nos lares modestos, a desgraa que escolhe as casas elegantes? Por que o amor casto habita as moradas humildes e a camada popular tem inclinaes sadias, sabendo conter-se com moderao? Por que, inversamente, aqueles que so ricos e dominam o reino no podem desejar as coisas lcitas? Quem pode muito quer poder tambm o que no pode (204-215).

As palavras da nutriz fazem pensar nas idias expostas por Sneca em De uita beata, um dos tratados em que, com nitidez, se focaliza a questo da felicidade, segundo a ptica do estoicismo. Todos a buscam, diz o escritor, mas a verdadeira felicidade consiste em viver de acordo com a natureza, cultivando-se a virtude e recusando-se os prazeres. No se chega virtude, porm, com facilidade. So muitos os que desejam atingi-la, mas se apegam riqueza e aos bens materiais aos quais ningum deveria submeter-se de forma servil.

A idia de que a felicidade se une frugalidade da vida retomada por Hiplito, na tragdia, um pouco mais adiante, quando o jovem se dirige nutriz, dizendo:

Nenhuma vida mais livre e mais isenta de vcios e mais de acordo com os costumes antigos do que aquela que, deixando para trs as muralhas, oferece o amor aos bosques. A loucura da cobia no inflama aquele que, inocente, se dedica aos cumes das montanhas; no o inflama o favor do povo nem a popularidade, que no fiel aos bons, nem a inveja que traz desgraas nem a frgil alegria (483-489);

ou quando amplia o pensamento, completando-o:

Os frutos tirados das rvores matam-lhe a fome e os morangos colhidos nos pequenos espinheiros oferecem-lhe alimento fcil. Seu desejo fugir do luxo e da realeza. Os soberbos bebem em taas de ouro cheias de inquietaes. Como agradvel beber gua da fonte na concha da mo! Um sono repousante se apossa daquele que estende seus membros num leito rude (515-521).

A vida simples se alia natureza. Homem e universo compartilham do mesmo todo harmonioso e equilibrado, desde que se respeitem as leis concomitantemente naturais e universais.

Em Fedra so numerosos os passos em que h referncias ao ciclo natural das coisas e s foras csmicas que comandam a vida. O que por vezes poderia ser considerado como imagem potica como ocorre no Prlogo (12-13), quando Hiplito se refere ao zfiro que acaricia os prados orvalhados, fazendo brotar as ervas primaveris pode ser tambm uma aluso idia de ciclo temporal: todas as coisas tm seu tempo. Algo se inicia e algo termina constantemente, continuamente.

O segundo canto coral, permeado das idias prprias da fsica estica, um hino natureza, me de todos os deuses, e a Jpiter, regente do universo. Uma pergunta angustiada do coro se segue s referncias aos ciclos regulares e ao equilbrio das massas do universo. a mesma pergunta que o interlocutor de Sobre a providncia formula a Sneca, dando origem exposio filosfica: Por que motivo, existindo uma Providncia, tantos males atingem os homens bons? (Prou. I, 1).

O coro tem a resposta: as coisas humanas so regidas pela Fortuna e no pela Providncia. Diferente do Fatum, princpio determinante, a Fortuna personifica o acaso e se encontra ausente da filosofia estica. A afirmao do coro corresponde, pois, a uma postura humana, prpria do homem comum, que no conhece a doutrina nem as regras e leis da natureza.

So leis que no podem ser modificadas sem que se abale o equilbrio universal. O amor de Fedra por Hiplito antinatural. Por isso a nutriz se atemoriza, interroga e adverte:

Tencionas confundir o leito do pai e o do filho e conceber no mesmo ventre mpio uma prole hbrida? Continua e inverte as leis naturais com o fogo de tua nefasta paixo! Por que os monstros no nascem mais? Por que est desocupado o palcio de teu irmo? O orbe da terra precisar ouvir falar de prodgios inauditos e a natureza precisar mudar suas leis, todas as vezes que uma cretense amar?(171-177).

Em contraposio, o amor legtimo natural. Embora a ama tenha considerado Cupido como fico produzida por um esprito doente, o coro o aclama no primeiro canto coral da tragdia: travesso e sorridente, seu poder se materializa nas flechas que lana e no fogo furtivo que ateia. De um a outro plo, de oriente a ocidente, todos sofrem seu jugo. Sofrem-no os deuses e os homens, os ares, o mar, os animais selvagens e as madrastas incautas (263-356).

Quando a ama se sente fracassada em seu intento de reconduzir Fedra ao caminho da razo e se d conta de que est prestes a presenciar um desenlace fatal, ela abandona sua tese estica e se dirige a Hiplito em nome do amor que dedica a sua filha de leite.

A paixo de Fedra, como todas as paixes desenfreadas, prossegue em sua ao demolidora. Havia vencido inicialmente a rainha, destruindo sua virtude e seu senso de dever. Vence agora as convices da ama, incapaz de suportar a idia de vir a presenciar um final desastrado para o amor proibido e a morte da mulher enamorada. Como ltimo recurso, a anci se aproxima de Hiplito, tentando persuadi-lo da necessidade de amar:

Lembra-te de tua idade e arranca as preocupaes de teu esprito. Ergue tua tocha para participares de festins noturnos. Baco dissipa os cuidados. Aproveita a tua juventude, pois que ela costuma fugir em carreira veloz. Teu corao jovem: agora que os prazeres de Vnus te sero agradveis. Que teu esprito possa alegrar-se com isso. Por que repousas sozinho em teu leito? Pe um fim a essa vida austera, toma teu caminho, solta tuas rdeas, no permitas que se percam os melhores tempos de tua existncia. Um deus estabeleceu o que prprio de cada poca, construindo os diferentes degraus: a alegria se adapta bem ao moo; o rosto severo ao velho. Por que te cobes e matas teus instintos legtimos? (443-454).

Depois de recrimin-lo por malbaratar sua juventude, vivendo com austeridade e desdenhando o amor, a anci constri a imagem de um mundo sem Vnus, desolado e devastado, com o mar sem peixes, o ar sem pssaros, os bosques sem feras e o vento, somente o vento, soprando no ter sem fim (455-480).

A nutriz conclui sua exposio:

Por todas estas razes, segue a natureza que guia da vida; freqenta a cidade; procura a companhia de teus concidados (481-482).

A inteno primeira da anci no , certamente, discutir questes relacionadas com o aproveitamento da vida e da juventude, e, sim, aproximar o jovem da rainha e salv-la, portanto, da morte certa. A finalidade a justificativa para os meios que emprega. A nutriz opera contra sua prpria vontade e suas prprias convices, movida por um amor quase maternal. No lhe importa se pode parecer incoerente: usa os argumentos que considera os melhores.

Embora suas palavras possam inicialmente parecer carregadas de razo, se tomadas em sentido geral, no h como no considerar suas intenes. A velha mulher passa para o lado de Fedra e deixa de ser a voz da conscincia, o bom-senso capaz de conter os freios.

No h mais nada que se possa fazer. Est desencadeada a catstrofe.

Se na tragdia grega o fatum freqentemente responsvel pelo final trgico, nas peas de Sneca a grande responsabilidade cabe aos homens. A vitria das paixes sobre a razo determina a desgraa. Das opes humanas depende o que vir.

Inserindo esses elementos no corpo de seus dramas, Sneca nos faz pensar em uma das metas que talvez tivesse querido alcanar ao comp-los: ao lado de conferir-lhes um carter rigorosamente literrio, de construir personagens bem trabalhadas em suas qualidades psicolgicas e de abordar os mitos de forma original, possvel que haja tambm procurado escrever tragdias didticas, capazes de induzir espectadores e leitores a encontrar nos textos a ilustrao dos princpios bsicos da doutrina estica.

ABREVIATURAS UTILIZADAS

Cic. D.F.

Ccero, Sobre o destino.

Diog. Laerc.

Digenes Larcio.

Hor. Epist.

Horcio, Epstolas.

O. Odes.

Sat.

Stiras.

Luc. R..N.

Lucrcio, Sobre a natureza.

Sen. De Tranq.

Sneca, Sobre a tranqilidade.

Ep

Cartas a Luclio.

Med. Media.

Phae. Fedra.

Prou. Sobre a Providncia.

Tro. As troianas.

Virg. G.

Virglio, Gergicas.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

ARNOLD, E. V. Roman Stoicism. Cambridge: Cambridge University Press, 1911.

BRUN, J. Le stocisme. Paris: PUF, 1976.

CCERO, Sobre o destino. Trad. e notas de J.R. Seabra Fo. So Paulo: Nova Alexandria, 1993.

CROISILLE, J.-M. Lieux communs, sententiae et intentions philosophiques dans la Phdre de Snque, REL 42: 276-301. 1964.

DIGENES LAERCIO/ FILOSTRATO. Vidas de los filsofos ms ilustres/ Vidas de los sofistas. Trad. y prol. de J. Ortiz y Sanz y J.M. Riao. Mxico: Porra,1991.

DUPONT, F. Les monstres de Snque. Paris: Belin, 1995.

ELORDUY, E. Sneca y la filosofa de su tiempo, in Estudios sobre Sneca. Ponencias y comunicaciones. Madrid: CSIC/ Instituto Luis Vives, de Filosofia, 1966.

Estudios sobre Sneca. Ponencias y comunicaciones. Madrid: CSIC/ Instituto Luis Vives, de Filosofia, 1966.

GARCA-BORRN, J.C. Sneca y los estoicos: una contribucin al estudio del senequismo. Barcelona: Marina, 1956.

GRIMAL, P. Loriginalit de Snque dans la tragdie de Phdre, REL 41: 297-314. 1963.

HORACE. Oeuvres. Publ. par F. Plessis et P. Lejay. 7e. d. revue. Paris: Hachette, 1917.

LUCRCE. De la nature. Texte t. et trad. par A. Ernout. 9e. d. rev. et corr. Paris: Les Belles Lettres, 1955.

PIMENTEL, M.C. Quo uerget furor? Aspectos estoicos na Phaedra de Sneca, Lisboa: Colibri,1993.

PROPERCE. legies. Texte t. et trad. par D. Paganelli. 4e. tir. Paris: Les Belles Lettres, 1970.

SENECA, Lucio Anneo. Lettere a Lucilio. 18a. ed. Milano: BUR, 2001.

SNECA. A vida feliz. Trad de A Bartholomeu. Campinas: Pontes, 1991.

_______. Sobre a Providncia Divina/ Sobre a firmeza do homem sbio. Trad. introd. e notas: R. C. Lima. So Paulo: Nova Alexandria, 2000.

_______. Sobre a tranqilidade da alma/ Sobre o cio. Trad. e apres. de J. R. Seabra Fo. So Paulo: Nova Alexandria, 1994.

SNQUE. Tragdies. Texte t. et trad. par L. Herrmann. 5e. tir. Paris: Les Belles Lettres, 1971.

TIBULLE el les auteurs du Corpus Tibullianum. Texte t. et trad. par M. Ponchont. Paris: Les Belles Lettres, 1968.

VIRGILE. Oeuvres. Publ. par F. Plessis et P. Lejay. Paris: Hachette, 1953.

Entre os que discutiram esse carter lembramos Florence Dupont (Dupont, 1995, p. 9), que, em seu livro intitulado Les monstres de Snque, ao propor uma dramaturgia das tragdias de Sneca refuta a idia de que o teatrlogo tivesse composto textos trgicos apenas para a leitura e neles no v nenhuma funo didtica (idem, p. 20). Considera-os como obras que se prestam a espetculos grandiosos, recheados de todos os ingredientes prprios da cultura romana. Apesar das inovaes de leitura que a escritora prope e de muitos aspectos positivos que podemos detectar no livro, no h dvida de que ela adota uma postura extremada, apresentando opinies que podem ser contestadas. O tom filosfico dos textos trgicos, por exemplo, nos parece evidente. No apenas a presena de mximas (sententiae) e de algumas digresses o que contribui para o estabelecimento desse tom. Como um dos principais divulgadores da doutrina estica em Roma, Sneca deu freqentemente s tragdias um carter parablico, utilizando-as como exempla que ilustram as conseqncias do descontrole dos sentimentos e das paixes. E as peas se prestam realmente a esse tipo de exemplificao.

...soleo enim et in aliena castra transire, non tamquam transfuga, sed tamquam explorator (Ep. 2, 5).

Cf. Brun (1976: 9 ss.).

Diog. Laerc. VII, 95-97.

Para maiores informaes sobre o estoicismo sugere-se a leitura da obra de E. V. Arnold, Roman stoicism (1911).

Veja-se tambm o artigo de E. Elorduy, Sneca y la filosofia de su tiempo, inserido em Estudios sobre Sneca. Ponencias y comunicaciones (1966).

Cf. Ep. 33,11; De Tranq. II,3.

Para maiores informaes sobre elementos filosficos na Fedra de Sneca, sugere-se a consulta aos textos de Pierre Grimal (Loriginalit de Snque dans la tragdie de Phdre. REL 41: 297-314. 1963), J. M. Croisille (Lieux communs, sententiae et intentions philosophiques dans la Phdre de Snque. REL 42: 276-301. 1964) e M. C. Pimentel (Quo uerget furor? Aspectos estoicos na Phaedra de Sneca. Lisboa, Colibri, 1993).

Thesea coniunx, clara progenies Iouis,/nefanda casto pectore exturba ocius,/extingue flammas neue te dirae spei/ praebe obsequentem: quisquis in primo obstitit/ pepulitque amorem tutus ac uictor fuit;/qui blandiendo dulce nutriuit malum,/sero recusat ferre quod subiit iugum (As tradues citadas so de nossa responsabilidade).

Honesta primus est uelle nec labi uia,/ pudor; est secundus nosse peccandi modum.

Maius est monstrum nefas:/ nam monstra fato, moribus scelera imputes.

Scelus aliqua tutum, nulla securum tulit.

Quod memoras scio/ uera esse, nutrix; sed furor cogit sequi/ peiora. Vadit animus in praeceps sciens/ remeatque frustra sana consilia appetens./[...] Quid ratio possit? Vicit ac regnat furor/ potensque tota mente dominatur deus.

Os esticos admitem a existncia de um deus principal, vivo, imortal, inteligente e bom, que se identifica com a natureza e faz sua providncia reinar no universo (Diog. Laerc. VII, 147), mas no negam a existncia de deuses menores.

Deum esse amorem turpis et uitio fauens/ finxit libido, quoque liberior foret/ titulum furori numinis falsi addidit./ Natum per omnis scilicet terras uagum/ Erycina mittit, ille per caelum uolans/ proterua tenera tela molitur manu/ regnumque tantum minimus e superis habet;/ uana ista demens animus asciuit sibi/ Venerisque numen finxit atque arcus dei.

Quisquis secundis rebus exultat nimis/ fluitque luxu, semper insolita appetit./ Tunc illa magnae dira fortunae comes/ subit libido: non placent suetae dapes,/ non tecta sani moris aut uilis scyphus./ Cur in penates rarius tenues subit/ haec delicatas eligens pestis domos?/ Cur sancta paruis habitat in tectis Venus/ mediumque sanos uulgus affectus tenet/ et se coercent modica? Contra diuites/ regnoque fulti plura quam faz est petunt?/ Quod non potest uult posse Qui nimium potest.

Non alia magis est libera et uitio carens/ ritusqus melius uita quae priscos colat/ quam quae relictis moenibus siluas amat./ Non illum auarae mentis inflammat furor/ Qui se dicauit montium insontem iugis,/ non aura populi et uulgus infidum bonis,/ non pestilens inuidia, non fragilis fauor.

Excussa siluis poma compescunt famem/ et fraga paruis uulsa dumetis cibos/ faciles ministrant. Regios luxus procul/ est impetus fugisse: sollicito bibunt/ auro superbi; quam iuuat nuda manu/ captasse fontem: certior somnus premit/ secura duro membra uersantem toro. O emprego de um topos alexandrino por Sneca evoca palavras de Lucrcio (Luc. R. N. V), Virglio (Virg. G. II, 438 ss.), Horcio (Hor. O. II, 15; Sat. II, 6; Epist. I, 10), Tibulo (I, 1; II, 3, 4) e Proprcio (II, 19; III, 13).

Para Crisipo (Cic. D.F. XIV, 31), h causas perfeitas e principais, causas imanentes que dependem de ns, e causas prximas, que no dependem de ns e constituem a cadeia do destino.

Miscere thalamos patris et gnati apparas/ uteroque prolem capere confusam impio? Perge et nefandis uerte naturam ignibus./ Cur monstra cessant? Aula cur fratris uacat?/ Prodigia totiens orbis insueta audiet,/ natura totiens legibus cedet suis,/ quotiens amabit Cressa?

Potius annorum memor/ mentem relaxa; noctibus festis facem/ attolle; curas Bacchus exoneret graues;/ aetate fruere: mobili cursu fugit./ Nunc facile pectus, grata nunc iuueni Venus:/ exultet animus. Cur toro uiduo iaces?/ Tristem iuuentam solue; nunc cursus rape,/ effunde habenas, optimos uitae dies/ effluere prohibe. Propria descripsit deus/ officia et aeuum per suos duxit gradus:/ laetitia iuuenem, frons decet tristis senem,/ Quid te coherces et necas rectam indolem?

Proinde uitae sequere naturam ducem:/ urbem frequenta, ciuium coetum cole.