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A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Bruno Haack Vilar
SUMÁRIO: Introdução - 1. A empresa: 1.1. A empresa como atividade;
1.2. A empresa como poder - 2. A função social: 2.1. A socialização
da economia; 2.2. A recepção da função social pelo Direito; 2.3. A
concretização da função social da empresa - Conclusão - Bibliografia.
RESUMO: O presente artigo trata da função social da empresa sob
uma óptica interdisciplinar, buscando subsídios na Administração, no
Direito, na Economia e na Sociologia. Na primeira parte, caracteriza a
empresa do ponto de vista jurídico, trazendo a perspectiva de
empresa como liame entre empresário e estabelecimento. Na segunda
parte, trata da função social, primeiro do ponto de vista da Sociologia
e, após, do Direito, trazendo também considerações de caráter
econômico e gerencial para estabelecer seu conteúdo jurídico.
PALAVRAS-CHAVE: empresa; função social; interesses institucionais;
stakeholder theory.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho procura esclarecer o que significa dizer que
a empresa deve observar sua função social e quais as consequências
desse dever. Na primeira parte, trata-se do conceito de empresa, sob
duas ópticas: a da atividade e a da relação entre o empresário e seus
bens. A segunda parte trata da evolução histórica que fez com que o
exercício de determinados direitos adquirisse função social, como o
Direito recebeu isso e como isso influi no direito de empresa. Ao final,
conclui-se, tratando da extração imediata de consequências
normativas do dever geral de observância da função social.
2
1. A EMPRESA
Neste capítulo, tratar-se-á de dois conceitos complementares de
empresa: aquele que a define como atividade e aquele que a define
como poder. A compreensão da relação entre os dois conceitos
permite melhor compreender o que é a função social da empresa.
1.1. A Empresa como Atividade
A empresa, enquanto fenômeno jurídico, é pensada e estudada
pela doutrina mais difundida como uma atividade. A forma como ela,
historicamente, vem prevista nos textos legais contribuiu imensamente
para que seja assim.
O Código de Comércio francês de 1807 reputava como atos de
comércio “as empresas de manufatura, de comissão, de transporte por
terra ou por água” e outras.1 Embora não definisse o significado do
termo empresa, pelo teor do dispositivo, deixava entrever que se
tratava de certo tipo de atividade.
Da mesma forma, o Decreto nº 737, de 1850, que regulava o
Código Comercial brasileiro, promulgado no mesmo ano, elencava, em
seu artigo 19, como atos de comércio “as emprezas de fabricas; de
commissões; de depositos; de expedição, consignação, e transporte
de mercadorias; de espectaculos publicos”,2 em redação muito
1 FRANÇA. Loi 1807-09-14 promulguée le 24 septembre 1807. Disponível em: <http://www.legifrance.gouv.fr/aff ichCodeArticle.do;jsessionid=C5865A5D9FB42F10D3EE38C916CF4109.tpdjo07v_3?idArticle=LEGIARTI000006283613&cidTexte=LEGITEXT000006069441&dateTexte=19700709>. Acesso em: 04 mar. 2009. O art. 632, a que se faz referência, está revogado e substituído hoje pelo art. L110-1, com conteúdo idêntico no que tange à citação feita. 2 BRASIL. Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=64752>. Acesso em: 05 mar. 2009.
3
semelhante à do Código de Comércio francês, se não no conteúdo, na
forma.
Foi com o Codice Civile italiano de 1942, porém, que a empresa
tornou-se central para o Direito comercial e passou a receber maior
atenção dos juristas. E esse diploma reforçou a ideia de que a
empresa é uma atividade.
Segundo esse código, empresário é “quem exercita
profissionalmente uma atividade econômica organizada com fim de
produção ou de troca de bens ou serviços”.3 Esse artigo abre o Título
II do Livro Quinto do Código Civil italiano, cujas disposições (e
também as dos títulos seguintes) revolvem, em grande parte, em torno
da empresa, o que exigiu uma abordagem mais profunda do conceito
por parte da doutrina peninsular.
Asquini talvez tenha sido o primeiro a enfrentar esse desafio,
afirmando que a empresa possuiria quatro perfis: subjetivo, funcional,
objetivo e corporativo, aos quais corresponderiam, respectivamente,
empresário, atividade empresarial, estabelecimento e organização do
trabalho.4
Após Asquini, juristas, como Ascarelli, concentraram-se no
chamado perfil funcional da empresa - a atividade. Estabelecimento e
3 ITÁLIA. Regio Decreto 16 marzo 1942, n. 262. Disponível em: <http://www.altalex.com/index.php?idnot=34794>. Acesso em: 13 maio 2008. V. art. 2.082. 4 ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro: Nova Série, ano XXXV, n. 104, p. 108-126, out./dez. 2006. Nicolò questiona a existência de um perfil corporativo, afirmando que ele não possui, no estado atual, consistência e, “se um dia se tornará indubitavelmente signif icativo, como fato normativo, terá acabado por substituir o atual aspecto subjetivo do fenômeno, ou seja o empresário”. V. NICOLÒ, Rosario. Reflexões sobre o tema da empresa e sobre algumas exigências de uma moderna Doutrina do direito civil. Tradução Cássio Machado Cavalli. p. 11. (Acervo particular). O original pode ser encontrado na Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, ano LIC, Dott. Milano: Francesco Vallari, p. 177-195, 1956.
4
empresário deixaram de ser tratados como perfis da empresa e
passaram a ser vistos como fenômenos normativos a ela conectados,
e o perfil institucional - cujo destaque por Asquini se deve muito ao
momento histórico em que vivia a Itália, então sob o jugo do fascismo
- não se tornou juridicamente significativo, pelo menos do ponto de
vista do Direito privado.5
No Brasil, a empresa perdera importância do ponto de vista do
Direito devido à fragmentação do Direito comercial, com a paulatina
substituição do Código Comercial por legislação esparsa. O principal
motivo dessa perda de relevância, contudo, foi a extinção da
jurisdição comercial, cuja competência era definida principalmente
pela verificação ou não da qualidade de comerciante de pelo menos
uma das partes e de um ato de comércio (entre os quais se
encontravam as empresas do art. 19 do Decreto nº 737, acima citado).
O Código Civil de 2002, porém, reintroduziu a empresa no
Direito brasileiro, definindo o empresário nos mesmos termos do
Codice Civile em seu art. 966: “Considera-se empresário quem exerce
profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou
a circulação de bens ou de serviços”.6 A marcada influência italiana na
redação do dispositivo fez com que os juristas brasileiros buscassem
subsídios na doutrina peninsular, o que os levou a Asquini, Ascarelli e
a outros autores dessa tradição e fez com que, também no Brasil, a
empresa fosse estudada principalmente como atividade.
Esse não é, porém, o único caminho possível de ser percorrido.
5 V. comentário de Nicolò, reproduzido na nota anterior. 6 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 06 mar. 2009.
5
1.2. A Empresa como Poder
Rosario Nicolò vê a empresa como um liame entre empresário e
estabelecimento. Como ele reconhece, suas observações, com
relação à visão da empresa como atividade, “possuem somente o
valor de uma especificação conceitual, até mesmo se de notável
momento”.7 Seu objetivo é situar a empresa nos esquemas conceituais
tradicionais do Direito civil.
O autor identifica a seguinte dicotomia:
O empresário pode ser tal ou porque desenvolveu e desenvolve
uma certa atividade, ou porque torna-se titular de uma nova posição
jurídica em relação àquele complexo dos bens que preliminarmente
receberam do sujeito aquela particular destinação. Na primeira
configuração, a atividade do empresário seria uma pura e simples
projeção da pessoa, um modo de ser de sua autonomia subjetiva; na
segunda, a atividade mesma constituiria o exercício dos poderes e
das faculdades (e também dos deveres), que se colocam como
conteúdo daquela nova posição jurídica subjetiva.8
Para o autor, os profissionais intelectuais enquadram-se no
primeiro caso, ou seja, adquirem um status profissional e nada mais;
os empresários, por sua vez, adquirem um direito subjetivo novo, mais
precisamente um poder:
A preexistência daqueles direitos sobre bens singulares constitui
por essa razão o pressuposto que justifica, juntamente com o
certificar-se dos outros elementos da fattispecie, o surgimento de um
poder jurídico novo (aqui a novidade concerne ao poder, não ao
7 NICOLÒ, op. cit., p. 11. 8 Ibidem, p. 8.
6
objeto, como ao invés é sustentado por aqueles que na organização
dos bens a uma finalidade produtiva vendem a criação de um novo
bem imaterial, ou seja, da organização, sobre a qual surge um direito
de propriedade análogo a este que tem por objeto os bens imateriais)
que possui como seu conteúdo essencial a gestão do complexo (ou
seja, um gozo qualificado da função), mas o conteúdo daqueles
direitos não se confunde e não se identifica com o conteúdo deste.9
E segue, aprofundando a ideia:
A aquisição da qualidade de empresário possui, em sede
construtiva, o significado de aquisição por parte do sujeito de uma
complexa situação jurídica ativa que tem por objeto o
estabelecimento e por conteúdo o poder de gestão. Essa situação
jurídica ativa, perfeitamente ajustável ao conceito de direito subjetivo
(ao menos como o é aquela situação jurídica, igualmente complexa e
uniforme, que é a propriedade), é, a meu modo de ver, aquela que se
esconde sob a denominação empresa. A empresa, considerada como
direito subjetivo, torna-se consequentemente a ponte de ligação
entre o sujeito (empresário) e o objeto (estabelecimento). O
empresário não é senão o sujeito titular do direito de empresa
(expressão que não se confunde com aquela noção, um pouco
evanescente, e relevante, se for o caso, sobre um outro plano, de
direito à empresa), assim como o proprietário é o sujeito titular do
direito de propriedade.10
Esse poder de gestão, que Nicolò afirma ser o conteúdo do
direito de empresa, pode ser equiparado ao poder de controle, tal
como analisado por Fábio Konder Comparato em sua clássica obra “O
poder de controle na sociedade anônima”. O professor paulista afirma,
9 Ibidem, p. 9. 10 Ibidem, p. 10-11.
7
de forma quase casual, que “o controle não é um bem da empresa e,
sim, um poder sobre ela”,11 e se aproxima ainda mais de Nicolò ao
dizer que o controle só pode ser definido em função do direito de
propriedade.12 Não à toa, Comparato afirma que “[s]e faz algum
sentido introduzir o conceito legal de ‘empresário’, em substituição ao
‘comerciante’ do direito tradicional, deve-se reconhecer que ele se
aplica ao titular do poder de controle sobre bens de produção”.13 Se o
controlador é o empresário, que dirige os bens de produção, o poder
de controle se equipara à empresa, tal como definida por Nicolò.
Assim, direito de empresa, no sentido de Nicolò, e controle, no
sentido de Fábio Konder Comparato, se confundem.
Uma das principais preocupações de Comparato é justamente o
“controle do controle”, pois, segundo ele, “perante uma propriedade
desse tipo [a empresa], a problemática fundamental não é a proteção
e a tutela contra turbações externas, mas sim a de fiscalização e
disciplina do seu exercício a fim de se evitar abuso ou desvio de
poder”.14
Embora faça menção expressa à função social, a preocupação
declarada do autor no trecho citado é com o abuso de poder do
controlador relativamente aos demais acionistas e ao interesse
social.15 Calixto Salomão, porém, adverte logo em seguida que,
na verdade, pode-se sustentar que a função social da empresa e
do empresário que exercita o controle é muito mais e na verdade até
mesmo algo diferente dos deveres com os demais sócios. Trata-se de
11 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 119. 12 Ibidem, p. 121. 13 Ibidem, p. 130. 14 Ibidem, p. 130. 15 V. p. 131 da mesma obra
8
impor deveres positivos perante terceiros (não sócios) afetados pela
atividade empresarial.16
A visão acerca da função social que Calixto Salomão expressa
rudimentarmente nessas linhas corresponde àquela da maioria dos
doutrinadores. Todavia, grande parte dos estudos que tratam do tema
têm certa dificuldade em definir o conteúdo material do princípio em
questão e os deveres que dele decorrem para o titular de um
determinado direito subjetivo. Tentar-se-á, a seguir, superar essas
dificuldades.
2. A FUNÇÃO SOCIAL
Este capítulo iniciar-se-á indagando o que significa dizer que um
determinado instituto jurídico exerce função social, para em seguida
tratar dos reflexos disso no Direito. Na última parte, serão abordadas
as instituições criadas pela sociedade para garantir que as empresas,
efetivamente, exerçam função social.
2.1. A Socialização da Economia
Karl Renner ilustra como o processo de produção, distribuição e
consumo era eminentemente privado durante a Idade Média:
O patrimônio de uma pessoa fornece o local da produção para o
mestre e os membros de sua casa, ele contém oficina e armazém,
cômodo para fiar e tecer, uma horta e outra área para cultivos e
comumente uma participação no bosque comunitário. Ele fornece, na
forma da pequena loja de rua, o espaço para a troca de bens. Como o
artesão produz diretamente para um consumidor, uma transação cobre
16 Ibidem, p. 131.
9
venda, compra, resumidamente, toda a distribuição, a realização de
valor e valor excedente. Ao mesmo tempo, o patrimônio serve ainda
como o lugar e a estrutura de consumo, como lar e fogão,17 porão e
despensa.18
Embora houvesse trocas, elas ocorriam entre seres que viviam
uma vida privada (da perspectiva econômica), e não social.
O capitalismo, porém, modifica essa realidade:
Que tomou o lugar da casa familiar? Uma de suas partes, a
oficina, se perdeu. [...] de regra, as muitas pequenas oficinas
fundiram-se em grandes fábricas. O mesmo aplica-se ao local para
armazenagem e ao cômodo para fiar e tecer, que foram reunidos em
grandes fábricas têxteis. As pequenas hortas cederam ao
estabelecimento de fazendeiros profissionais nos limites da cidade
[...].19
Esse movimento leva Renner a afirmar que “de repente torna-se
aparente para nós que a propriedade tornou-se uma utilidade
pública”,20 pois
se o camponês individual deixasse sua terra descansar, ele não
causava prejuízo a ninguém e apenas reduzia seu próprio sustento.
Mas o dono de mina que a fecha corta o combustível de todos, priva
17 A palavra no original é hearth, que, numa tradução literal, corresponderia à lareira. É preciso, todavia, ter em mente a estrutura de uma típica casa medieval, em que a lareira e o fogão se confundiam - ali se cozinhava e se fazia fogo para esquentar a casa. O termo fogão foi preferido em virtude do contexto. 18 RENNER, Karl. The institutions of private Law and their social functions. Introdução Otto Kahn-Freund. London: Routledge & Kegan Paul Limited, 1949. p. 84. 19 Ibidem, p. 87. 20 Ibidem, p. 120.
10
seus trabalhadores de seu meio de vida e talvez aumente seus
rendimentos com o aumento no preço do carvão.21
A socialização da economia, calcada na divisão do trabalho e na
publicização do consumo, faz com que a propriedade adquira uma
função social - ou seja, um papel no processo social de produção e
reprodução -, transcendendo o âmbito privado, que a caracterizava na
Antiguidade Clássica e Idade Média, e tornando-se pública. Nem toda
propriedade, porém, passa por essa transformação. Como afirma Eros
Grau:
Enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e
familiar - a dignidade da pessoa humana, pois -, a propriedade
consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre função
individual. [...] A essa propriedade não é imputável função social;
apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação,
adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de
polícia estatal.22
Por isso afirma o autor que, “incidindo pronunciadamente sobre
a propriedade dos bens de produção, é que se realiza a função social
da propriedade”.23
Essas transformações, ocorridas no plano dos fatos, acabaram
por gerar reflexos no Direito.
21 Ibidem, p. 267. 22 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 235. 23 Ibidem, p. 237.
11
2.2. A Recepção da Função Social pelo Direito
Foi Duguit a introduzir a ideia de função social entre os juristas.
Desenvolveu-a em contraposição à noção de direito subjetivo, que
assim apresenta:
Tomad lo que se ha convenido en llamar derechos [...]; veréis
fácilmente que se traducen siempre de hecho en el poder que tengo
de imponer, incluso por la fuerza, a otros individuos mi propia
voluntad.24
Em seguida, nega a ideia de direito subjetivo, afirmando a
função social:
El hombre no tiene derechos; la colectividad tampoco. Pero todo
individuo tiene en la sociedad una cierta función que cumplir, una
cierta tarea que ejecutar. Y ese es precisamente el fundamento de la
regla de Derecho que se impone a todos.25
Segundo o autor:
La regla jurídica, que se impone a los hombres, no tiene por
fundamento el respeto y la protección de derechos individuales que no
existen, de una manifestación de voluntad individual que por si misma
no puede producir ningún efecto social. Descansa en el fundamento
de la estructura social, la necesidad de mantener coherentes entre sí
los diferentes elementos sociales por el cumplimiento de la función
social que incumbe a cada individuo, a cada grupo.26
24 DUGUIT, León. Las transformaciones del Derecho publico y privado. Buenos Aires: Heliasta S. R. L. p. 175. 25 Ibidem, p. 178 26 Ibidem, p. 181.
12
A proposta de abdicar-se do conceito de direito subjetivo, por
ser incompatível com o liberalismo então reinante, não foi bem
recebida entre os juristas. É de se reconhecer que ainda hoje
permanece essa incompatibilidade com o sistema jurídico dos países
ocidentais, baseado no Estado Democrático de Direito, em que se
reconhece e valoriza a capacidade de autodeterminação das pessoas.
No entanto, as transformações narradas por Renner se impuseram e,
com o tempo, obrigaram a uma revisão da estrutura do direito
subjetivo para nela incluir-se a função social.
Como afirma Eros Grau:
A transformação da faculdade em ato, quando juridicamente
autorizada - e aí o direito subjetivo -, deve ser exercida dentro dos
limites da autorização. [...] O Direito pode, coerentemente, introduzir
como elementos integrantes da autorização a alguém para o exercício
de uma faculdade inúmeros requisitos, inclusive criando obrigações e
ônus para o titular do direito subjetivo.27
Historicamente, o exercício dos direitos subjetivos sempre foi
limitado por normas, como a tradicional neminem laedere. A função
social trouxe um novo tipo de limitação, fundada no valor que o
exercício de um direito tem para a coletividade. Uma de suas
características mais destacadas pela doutrina é assim descrita por
Eros Grau:
O princípio da função social da propriedade impõe ao
proprietário - ou a quem detém o poder de controle, na empresa - o
dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o
exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da
propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos
27 GRAU, op. cit., p. 242.
13
positivos - prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não
fazer - ao detentor do poder que deflui da propriedade.28
Essa compreensão baseia-se naquilo que observou Renner ao
fazer seu comentário sobre o fechamento de uma mina - o não
exercício de um direito pode ter sérias consequências sociais.
A principal característica a diferenciar a função social de outras
limitações ao exercício de um direito, entretanto, está nos interesses
a que visa proteger. Sua normatividade provém do fato de que o
exercício de certos direitos tem impacto social, e não apenas privado.
Assim, se a boa-fé objetiva, por exemplo, protege as partes em um
negócio, a função social protege a sociedade, ou sua fatia relevante
em cada caso - e sobre a empresa, que, invariavelmente e com
grande frequência, atinge de diversas formas diversas fatias da
sociedade, a função social acaba por incidir determinantemente.
Mas, como afirma Calixto Salomão Filho, “não se pode
evidentemente imaginar que o contrato fique subordinado a qualquer
grupo social cujos interesses são por ele afetados”.29
Calixto Salomão Filho busca um critério para determinar que
tipo de interesse externo poderia então subordinar o exercício de um
direito com base na função social e o encontra nos interesses
institucionais, “em que a proteção do interesse coletivo e a do
individual convivem - e são praticamente indivisíveis”.30 Para que se
28 Ibidem, p. 245. 29 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de Direito Mercantil, Econômico e Financeiro: Nova Série, ano XXXXII, v. 132, p. 7-24, out./dez. 2003. Como indica o título do artigo aqui citado, o estudo do autor concentra-se na função social do contrato. No entanto, entende-se que o trecho ora citado e os que seguem podem ser aplicados ao instituto da função social em geral. 30 Idem, loc. cit.
14
configure um determinado interesse como institucional, devem ser
preenchidos três requisitos:
a. Presença de interesse individual e coletivo, cumulativamente:
As garantias institucionais têm características bem distintivas.
Em primeiro lugar, todas elas são a um tempo destinadas à proteção
do interesse de cada indivíduo e de sua coletividade, seja ela
numericamente determinável ou não.31
b. Interesse coletivo jurídica e economicamente destacável do
individual:
Mais ainda, em todas elas o interesse institucional é jurídica e
economicamente destacável do interesse individual. Juridicamente, na
medida em que a lei ou a doutrina se encarregam de estabelecer
instrumentos protetores especiais e diversos dos instrumentos
protetores dos interesses privados para esses especiais interesses
[...]. Economicamente, porque a proteção da referida garantia
institucional deve representar uma utilidade para a coletividade que
não se confunda com a utilidade individual e também inconfundível
com a utilidade pública.32
Reconhecimento legal:
Finalmente, os interesses institucionais devem ser dotados de
reconhecimento jurídico e social. Basta o reconhecimento
constitucional dos interesses (ex.: meio ambiente, defesa da
concorrência) para que sua proteção como garantia institucional seja
31 Ibidem, p. 17. 32 Ibidem, p. 17.
15
imperiosa (desde que obviamente presentes os requisitos
mencionados anteriormente).33
Presentes esses três requisitos, incide a função social, e
deverão surgir obrigações para os responsáveis pelo seu cumprimento
- se houver, concretamente, um interesse que demande proteção.
Calixto Salomão cita o Direito ambiental e o Direito concorrencial
como áreas em que se fazem presentes, com grande frequência,
interesses institucionais - e, portanto, fortemente orientadas pela
função social.34
Ainda que se conte com os esclarecimentos e os parâmetros até
aqui desenvolvidos, pode ser - e geralmente é - muito difícil
identificar, em um caso, o que exige a função social. Esse problema é
contornado pela criação de algumas instituições, por meio das quais
os interesses institucionais possam se expressar.
2.3. A Concretização da Função Social da Empresa
Segundo Karl Renner (v. item 2.1), a propriedade torna-se uma
utilidade pública - e, portanto, adquire função social - quando o
processo de produção, distribuição e consumo de bens passa a
ocorrer na sociedade, e não mais no interior do lar. Em um sistema
capitalista, os principais agentes desse processo são as empresas,
que por meio de suas atividades exercem função social. Pode-se até
mesmo dizer que a função social do direito de empresa é exercer
atividade empresária.
Essa atividade, contudo, deve atender aos interesses
institucionais que a cercam e que, como parte da autorização
33 Ibidem, loc. cit. 34 Ibidem, p. 8
16
concedida pelo Direito, lhe impõem limites, estabelecendo condições
para que o exercício do direito de empresa seja considerado legítimo.
Esses interesses são extremamente variados, além de amplos; logo,
difíceis de serem identificados e terem seu conteúdo determinado.
Para resolver esse problema, a sociedade cria diversas instituições. A
maior e mais importante delas talvez seja o mercado.
Michael Jensen explica como, em condições normais, a busca
do lucro, mediada pelo mercado, é socialmente eficiente:
Considere agora os efeitos no bem-estar social da decisão de
uma firma de tomar recursos da economia na forma de horas de
trabalho, capital, ou material adquirido voluntariamente de seus donos
em mercados de preço competitivo. A firma usa esses inputs para
produzir outputs,35 bens ou serviços, que então são vendidos para
consumidores através de transações voluntárias em mercados de
preço competitivo.36
E segue:
Nessa situação simples, uma firma tomando inputs da economia
e colocando seus outputs, bens ou serviços, de volta na economia
aumenta o bem-estar agregado se os preços pelos quais vende os
bens mais do que cobrem os custos em que incorre ao adquirir os
inputs. Claramente a firma deveria expandir seus outputs enquanto um
35 Os termos input e output foram deixados no idioma original por serem geralmente usados dessa maneira mesmo em escritos em português, até por não possuírem tradução adequada. O termo input refere-se àquilo que entra na empresa, e o exemplo mais plástico é a matéria-prima; já o termo output refere-se àquilo que sai da empresa, ou seja, os bens ou serviços que ela oferece. 36 JENSEN, Michael C. Value maximization, stakeholder theory, and the corporate objective function. Business Ethics Quarterly, v. 12, n. 2, p. 235-256, Apr. 2002. Disponível em: <http://vnweb.hwwilsonweb.com/hww/jumpstart.jhtml?recid=0bc05f7a67b1790ef409bfd03ef7308db53321785ebc7a499be3a6ee54414904e61f907c736a7858&fmt=H>. Acesso em: 08 abr. 2008.
17
dólar adicional de recursos tomado da economia for avaliado pelos
consumidores do produto com valor agregado em mais de um dólar.
Note que a diferença entre essas rendas e custos são os lucros. Essa
é a razão (sob a presunção de que não há externalidades ou
monopólios) pela qual a maximização de lucros leva a um resultado
socialmente eficiente.37
Adicionando-se o fator tempo, pouco muda:
O valor em um ano de um dólar poupado hoje para ser usado
daqui um ano é então $1x(1+t), em que t é a taxa de juros.
Alternativamente, o valor hoje de um dólar de recursos a serem
recebidos daqui um ano é seu valor presente de $1/(1+t). Nesse
mundo um indivíduo está tão bem quanto possível se sua riqueza,
medida pelo valor presente descontado de todas suas pretensões
futuras, é maximizada. Quando adicionamos incerteza, nada de muito
importante muda nessa proposição desde que haja mercados de
capitais nos quais o indivíduo possa comprar e vender risco a
determinado preço. Nesse caso é a taxa de juros ajustada pelo risco
que é usada para calcular o valor de mercado de pretensões futuras
arriscadas. A função objetiva da companhia que maximiza o bem-estar
social então torna-se “maximizar o valor de mercado total de firma”.
Ela determina que as firmas expandam seus produtos e investimentos
até o ponto em que o valor de mercado da firma esteja no máximo.38
É interessante perceber que esse processo leva a um “resultado
socialmente eficiente” - usando a expressão de Jensen -, que não se
limita a um aspecto econômico, pois sobre as decisões dos agentes
não influem apenas considerações estreitas de utilidade, mas um
amplo espectro de valores. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos da
37 Ibidem. 38 Ibidem.
18
América comprovou que fatores como a responsabilidade ambiental da
empresa influem no preço de seus produtos:
Nosso primeiro experimento fez duas perguntas. Quanto a mais
as pessoas pagarão por produtos eticamente produzidos? E quanto a
menos elas estão dispostas a gastar por um produto que acreditam
ser antiético?
Para testar essas perguntas, reunimos aleatoriamente 97
adultos consumidores de café e perguntamos a eles quanto pagariam
por 1 libra, ou 454 gramas, de café de uma certa companhia. Nós
utilizamos uma marca que não é comercializada nos EUA, de forma
que nenhum dos participantes estivesse familiarizado com o produto.
Antes de as pessoas responderem, pedimos a elas que lessem
algumas informações sobre os padrões de produção adotados pela
companhia. Um grupo teve acesso a informação positiva e outro a
informação negativa; o grupo de controle teve acesso a informação
neutra, parecido com o que os compradores normalmente teriam em
um supermercado.
Depois de ler sobre a empresa e o café produzido por ela, as
pessoas nos contaram o preço que estariam dispostas a pagar,
segundo uma escala de 11 pontos, de US$ 5 a US$ 15. O resultado?
O preço médio para o grupo ético (US$ 9,71 por 454 gramas) foi
significativamente maior do que o obtido pelo grupo de controle (US$
8,31) ou pelo grupo antiético (US$ 5,89).
[...]
Nosso próximo teste olhou para os graus de comportamento
ético. Será que os consumidores estão dispostos a pagar mais por um
produto 100% eticamente manufaturado contra outro que é 50% ou
25% eticamente produzido?
Para descobrir isso, testamos as respostas dos consumidores
para camisetas produzidas por uma fábrica fictícia. Dividimos 218
pessoas em cinco grupos e apresentamos a empresa e seu produto.
19
Um grupo foi informado que as camisetas eram feitas de 100% de
algodão orgânico, outro de 50% de algodão orgânico e o terceiro de
25%. Um outro grupo - o antiético - foi informado de que não havia o
componente orgânico. O grupo de controle não teve informação
nenhuma. Exceto este, todos os grupos foram informados dos efeitos
malignos do algodão não orgânico ao meio ambiente.
Os participantes foram perguntados quanto estariam dispostos a
pagar pelas camisetas numa escala de 16 pontos, com preços
variando de US$ 15 a US$ 30. Descobrimos que as pessoas estariam
dispostas a pagar um adicional para qualquer nível de produção ética,
e elas descontariam um produto antiético mais agressivamente do que
recompensariam um produto ético.39
Embora a pesquisa tenha sido direcionada a consumidores, não
há motivos para supor que trabalhadores e fornecedores, que também
negociam seus preços, não ajam da mesma forma. Aliás, se não o
fazem, a reprovação moral deve recair sobre eles, e não sobre as
empresas, como bem destaca Sternberg:
Quaisquer que sejam as opiniões de uma pessoa, a integridade
moral demanda consistência entre essas opiniões e suas ações;
quando as ações de um indivíduo não estão de acordo com suas
crenças morais, então normalmente elas são frágeis ou ele é fraco. Da
mesma forma, se - por qualquer razão - um indivíduo acredita que a
venda de um determinado produto é moralmente errada, então, as
demais condições permanecendo iguais, será igualmente errado que
ele apóie negócios que vendam esse produto.40
39 TRUDEL, Remi; COTTE, June. Até que ponto vale a pena ser uma empresa ética. Valor Econômico, São Paulo, 12 maio 2008. Disponível em: <http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/empresaetecnologia/empresas/Ate+que+ponto+vale+a+pena+ser+uma+empresa+etica,08125,,51,4924166.html>. Acesso em: 12 maio 2008. 40 STERNBERG, Elaine. The stakeholder concept: a mistaken doctrine. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=263144>. Acesso em: 12 jun. 2008.
20
Seria ingenuidade, porém, acreditar que o mercado possa
abarcar todos os aspectos da atividade empresária e transmitir todos
os anseios da sociedade. A pobreza, por exemplo, impede que
algumas pessoas possam manifestar-se no mercado, e a ocorrência
de externalidades - situações em que os agentes não arcam com
todos os custos de seus atos ou não recebem toda a recompensa por
eles, havendo uma espécie de “vazamento” dos efeitos - faz com que
os interesses da empresa e da sociedade saiam de alinhamento.
Em alguns casos, os próprios agentes podem resolver isso por
meio de compensações financeiras. Mas nem sempre isso é possível,
devido ao que Ronald Coase chamou de custos de transação:
Uma vez que os custos de levar a cabo transações através do
mercado sejam levados em conta fica claro que tal reorganização de
direitos só acontecerá quando o aumento no valor de produção
consequente à reorganização for maior que os custos envolvidos em
fazê-la.41
Exemplos de situações em que os custos de transação impedem
uma resolução do conflito por meio do mercado são as atividades
poluentes (pois o número de envolvidos é muito elevado) e as
relações negociais duradouras (em que seria impossível prever todos
os possíveis conflitos futuros).42
Para resolver essas situações, a sociedade cria mecanismos
que substituam, de forma tão eficiente quanto possível, o mercado.
Mecanismos de incentivo, como a concessão de descontos fiscais e
41 COASE, Ronald. The problem of social costs. Disponível em: <http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2009. 42 Nesse segundo caso não há, a princípio, qualquer questão atinente a interesses institucionais. O exemplo visa apenas a ilustrar a ideia de custos de transação.
21
prêmios (privados ou públicos, pecuniários ou não). Mecanismos de
monitoração, em que há grande riqueza de alternativas:
A resposta ao problema de monitoração tem sido a evolução de
uma larga variedade de estruturas institucionais que servem para
economizar nos custos de coleta e análise de informações. Algumas
dessas estruturas são protegidas na legislação (e.g., a exigência de
que sociedades de capital aberto publiquem demonstrativos contábeis
consolidados anualmente). Outras instituições evoluíram numa
tentativa de explorar as oportunidades de lucro em coletar, analisar e
então vender informações a acionistas (e.g., serviços de analistas de
mercado, serviços de informação ao consumidor, etc.). Outros ainda
surgiram como organizações sem fins lucrativos que existem em parte
para monitorar o grau com que administradores atuam no melhor
interesse de certas partes interessadas (e.g., Consumer Watch,
Infact,43 sindicatos).44
E mecanismos de enforcement,45 que visam a desencorajar ou a
evitar determinados atos, como as penas administrativas e criminais.46
Um dos mecanismos mais baratos para realizar esses objetivos
é a imprensa - muitas vezes o temor de publicidade negativa é
suficiente para convencer os administradores de uma determinada
empresa a fazerem ou deixarem de fazer algo.47
43 Consumer Watch é uma organização não governamental de proteção aos consumidores, como seu nome deixa claro; quanto à Infact, não fica claro a que organização se refere o autor, e há entidades com esse nome no Canadá, Reino Unido e Nova Zelândia, entre outros países, cada uma com características e objetivos diferentes. 44 HILL, C. W. L.; JONES, T. M. Stakeholder-agency theory. Journal of Management Studies, v. 29, n. 2, p. 131-154, 1992. 45 O termo é intraduzível; refere-se à capacidade de alguém para compelir outrem. 46 HILL; JONES, op. cit., p. 141. 47 Ibidem, p. 142.
22
Mas, muitas vezes, a publicidade não basta. A perspectiva de
obter uma maior satisfação de suas necessidades fornece um
incentivo aos interessados para que criem instituições mais eficientes,
por meio das quais possam expressar suas preferências:
Entretanto, em sentido dinâmico a existência de d - b [diferença
entre utilidade presente e utilidade que pode ser obtida
desenvolvendo mecanismos de controle mais complexos] pode ser
vista como fornecendo um incentivo às partes interessadas para
encontrar novas maneiras de economizar com custos de contratos
(para desenvolver novas estruturas institucionais). [...] A evolução de
sindicatos de trabalhadores, organizações de consumidores, grupos
de pressão, mecanismos de incentivos e comprometimento confiável,
regulação de companhias, entre outros, pode ser creditada a esses
incentivos.48
Em outros casos, ainda, devido à impossibilidade de se criar
esse tipo de estrutura, e se a comunidade política considerar o
problema relevante, o Estado assume esse papel. É o caso, p.ex., da
poluição, em que os interessados são, potencialmente, todos em uma
determinada área (que pode até mesmo ser o globo terrestre), o que
tornaria impeditiva a resolução privada; e dos monopólios naturais
(como os serviços de trens metropolitanos), em que o poder de
mercado é incontornável de outra maneira. Por fim, em muitos casos -
talvez na maioria deles - vários sistemas convivem: nas relações
trabalhistas, p.ex., há regulação e fiscalização estatal, presença de
mercado e estruturas privadas (os sindicatos).
48 Ibidem, p. 150.
23
CONCLUSÃO
Tem-se, assim, que a função social da empresa realiza-se de
diversas maneiras, inclusive por meio do Direito: diante de um
interesse institucional que julgue relevante, a comunidade política
produz normas e cria mecanismos que o protejam.
A dificuldade surge quando se procura extrair do dever de
observância da função social, sem intermédio de outra norma ou
instituição, uma obrigação concreta. Os interesses institucionais são
variados e amplos e, muitas vezes, entram em conflito - o interesse
em um meio ambiente equilibrado pode contrastar, por exemplo, com
o interesse em um mercado competitivo, uma vez que certas
exigências tornam necessários maiores investimentos, elevando os
custos de entrada e afastando potenciais competidores. Determinar o
que eles exigem requer a identificação dos valores socialmente
compartilhados relevantes para o caso e, principalmente, sua relação
recíproca, que varia no tempo e no espaço. Basta lembrar a ideia de
sustentabilidade, que hoje, em maior ou menor grau, influencia a
visão das pessoas a respeito das organizações e que era
desconhecida há cerca de 20 anos, para que a contingência dessa
relação seja evidenciada. Não bastasse ser contingente, a solução
para essa equação é ainda uma resposta que, por definição, se
encontra sempre dispersa entre os membros da sociedade,
dificultando sua cognição.
De fato, é mesmo de se duvidar que, na ausência de uma norma
ou outro mecanismo que concretize a função social, haja qualquer
interesse institucional em jogo. Segundo Hill e Jones, a existência de
uma diferença entre a utilidade que o exercício de um direito
proporciona a alguém (no caso que interessa a este artigo, que uma
empresa proporciona a certo interesse institucional) e a utilidade que
24
ele poderia proporcionar funciona como incentivo para a criação de
mecanismos de governança mais complexos, que economizem nos
custos de transação e permitam obter o resultado desejado. Como
apontado pelos autores, surgem as mais diversas organizações, como
grupos de pressão, sindicatos, órgãos estatais, etc.
Não surgindo esses mecanismos, ou não atuando os existentes
em um determinado momento, são somente duas as conclusões
possíveis: ou não incide, no caso, um interesse institucional, ou os
custos para protegê-lo são mais altos que a utilidade esperada.
A primeira hipótese é a mais provável na maioria dos casos.
Isso porque grande parte dos mecanismos de governança são
organizações perenes e criadas não para lidar com questões pontuais,
mas com grandes áreas de interesse - como sindicatos de
trabalhadores, por exemplo -, o que lhes permite atuar em temas das
mais diversas magnitudes e enfrentar novos problemas tão logo
quanto surjam.
A polêmica dos organismos geneticamente modificados (OGM)
ilustra como isso funciona. Na medida em que se ampliava seu uso,
diversas organizações - empresas, governos (seguindo a orientação
política dos grupos no poder) e organizações não governamentais
(principalmente ambientalistas) -, a imensa maioria já existente, e não
criada para lidar especificamente com esse tema, passaram a exercer
pressão em diversos sentidos (liberação ou não do uso comercial de
OGM, com ou sem restrições). Passado algum tempo, a polêmica
permanece em novo ambiente (o uso de OGM foi permitido, com
restrições), envolvendo novos atores (como consumidores, que antes
da liberação da venda de produtos que contivessem OGM não podiam
se manifestar diretamente) e ocupando novos fóruns (como a
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, criada pela Lei 11.105,
25
de 24 de março de 2005, e integrada por especialistas em diversas
áreas do conhecimento e representantes de alguns ministérios).
O uso de OGM tem incontestável impacto sobre certos
interesses institucionais (notadamente a saúde pública e o meio
ambiente). Seria impossível, contudo, determinar o que esses
interesses institucionais exigem sem o intermédio de instituições que
traduzam os anseios da sociedade e concretizem esses interesses. Se
essas instituições não surgem ou, existindo, não se manifestam,
presume-se que, embora abstratamente, haja um interesse
institucional em jogo, ele não exige nada em concreto naquele caso. A
sociedade manifesta-se no sentido da plena aceitação de uma
determinada conduta.
Quanto à segunda hipótese aventada acima - de que os custos
para a proteção de um determinado interesse institucional em um
determinado caso sejam altos o suficiente para impedir que se
desenvolva um mecanismo de governança -, tem-se que ela possui
caráter residual, dificilmente verificando-se na prática. O principal
motivo é que, mesmo nos casos em que o custo seja superior aos
ganhos esperados, a sociedade pode atribuir a proteção de certos
interesses individuais ao Estado, subsidiando-o por meio de tributos.
Isso sem levar em conta que às vezes esse interesse será tão
comezinho (e justamente por isso os custos para protegê-lo serão
superiores à utilidade esperada por sua satisfação) que a falta de
atuação de mecanismos de governança se dará justamente por falta
de interesse dos que presumidamente interessar-se-iam.
Há, contudo, duas exceções ao raciocínio aqui defendido.
Nenhuma atuação de qualquer instituição pode contrariar o
Direito. As normas jurídicas, num Estado Democrático e de Direito,
26
são de observância obrigatória, por serem consideradas a mais alta
manifestação da vontade do povo. Assim, qualquer manifestação de
vontade que contrarie o Direito é nula. Da mesma forma, e pelas
mesmas razões, qualquer norma jurídica deve adequar-se àquelas
que lhe são hierarquicamente superiores. Portanto, uma manifestação
de um determinado grupo no sentido da não aplicação de uma norma
é ilegítima, por já ter se manifestado, sobre a mesma matéria, um
grupo considerado, de certa maneira, hierarquicamente superior - a
comunidade de cidadãos.
A segunda exceção é menos prosaica. Quando se trata de
questões muito incipientes - como tecnologias extremamente
inovadoras e ainda pouquíssimo conhecidas -, é possível que nenhum
mecanismo de governança tenha condições (principalmente em
termos de conhecimento) para concretizar satisfatoriamente os
interesses institucionais. É evidente que dessa situação não surge
uma carta branca para aqueles cuja conduta seja potencialmente
danosa a um interesse institucional agirem, pois, como ressaltou
Calixto Salomão,49 basta o reconhecimento constitucional de um
interesse para que sua proteção seja imperiosa. A função social irá
impor, nesses casos, um dever de cautela, determinando o uso
moderado da nova tecnologia ou maiores pesquisas, por exemplo.
Cumpridos todos esses deveres, conforme as exigências do
caso, pode-se dizer que uma empresa cumpre sua função social.
BIBLIOGRAFIA
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Industrial, Econômico e Financeiro: Nova Série, ano XXXV, n. 104,
out./dez. 2006.
49 Op. cit., p. 17.
27
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28
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