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    1. Introdução

    A função social do contrato é um dosinstitutos que melhor refletem a idéia desocialidade no Código Civil brasileiro de2002.

    A socialidade é, ao lado da eticidade eoperabilidade, um dos valores que nortea-ram a elaboração do novo Código. SegundoMiguel Reale (2003), essa consiste no pre-valecimento dos valores coletivos sobre osvalores individuais, sem, no entanto, supri-mir a idéia de que o ser humano é o valor-fonte da hierarquia dos valores.

    No presente texto, serão traçados os sig-nificados do termo “função social”, e qual oalcance dos efeitos desse instituto jurídiconas relações privadas.

    2. Histórico da função social

    A idéia de função social foi formulada

    pela primeira vez por São Tomás de Aquino,quando afirmou que os bens apropriadosindividualmente teriam um destino comum,que o homem deveria respeitar.

    A função social do contratoConceito e critérios de aplicação

    Eduardo Tomasevicius Filho

    Eduardo Tomasevicius Filho é Doutoran-do em Direito Civil da Universidade de SãoPaulo.

    Sumário

    1. Introdução. 2. Histórico da função social.3. Significados de função social. 4. A funçãosocial do contrato. 5. A função social do contra-to em sentido amplo. 6. A função social do con-trato em sentido estrito. 7. A função social docontrato em sentido amplo na jurisprudênciapaulista. 8. Precauções e critérios para a aplica-ção da função social do contrato. 9. Conclusão.

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    Essa idéia, no entanto, ganhou força ape-nas no século 19, devido às profundas alte-rações econômicas e sociais que ocorreramnaquele período. No entanto, como sempre

    ocorre na história, as idéias filosóficas sur-gem com bastante antecedência em relaçãoao período em que as mudanças ocorrem.

    Uma das doutrinas filosóficas que fun-damentou as mudanças do século 19 foi oracionalismo, concepção segundo a qual arazão era o centro de todas as ações huma-nas. A expressão “penso, logo existo” ilus-tra bem essa visão de ser humano.

    No campo econômico, a Revolução In-

    dustrial caracterizou-se pela liberdade comofundamento da organização econômica,deixando a “mão invisível” do mercado re-gular o funcionamento da economia noâmbito interno e internacional. (SMITH,1981). Em conseqüência, surgiram altera-ções na ordem social, formando-se novasclasses sociais: a burguesia, detentora docapital, e os trabalhadores.

    Em vista dessas transformações, os ins-

    titutos jurídicos daquela época foram forte-mente marcados por um espírito de liberda-de ilimitada.

     No direito civil, o pressuposto de que oser humano tem uma racionalidade ilimita-da acarretou a igualdade formal entre aspartes contratantes; todos os seres huma-nos são dotados de razão, sendo plenamen-te capazes de cuidarem da sua própria vidapor meio da deliberação racional. Afinal,

    ninguém em sã consciência procura o piorpara si mesmo.Contudo, essa liberdade conferida pela

    pressuposição da racionalidade ilimitada,quando exercida em matéria contratual, re-velou-se insuportável para o convívio soci-al, porque muitos abusos foram praticadospelo exercício estrito da mesma. O exemplomais marcante desse período foi o modocomo eram celebrados os contratos de em-

    prego, por meio dos quais se escravizavamos trabalhadores com jornadas enormes abaixíssimos salários e condições insalubresde trabalho.

    Pouco tempo depois, reações surgiram atodos esses abusos praticados em confor-midade com o direito. O socialismo foi a prin-cipal doutrina nesse sentido. Mas como esse

    era o “fantasma que rondava a Europa”, epropugnava a destruição da classe domi-nante e apropriação dos meios de produçãopelos trabalhadores, buscou-se uma conci-liação entre os interesses do capital e do tra-balho.

    O documento mais conhecido nesse sen-tido foi a encíclica Rerum Novarum, de LeãoXIII, escrita em 1891, na qual estão retrata-das as condições de miséria e escravidão

    em que se encontravam os trabalhadores,devido à exploração que sofriam pelos de-tentores do capital. A idéia central dessaencíclica é que era conveniente promovermelhores condições de trabalho, do que cor-rer-se o risco de a classe trabalhadora insti-tuir o socialismo.

    De acordo com Leão XIII, o socialismoinsuflava o ódio dos trabalhadores contraos patrões; e, ao pregarem o fim da proprie-

    dade privada, iam contra a ordem naturaldas coisas, pois a propriedade seria um di-reito natural. O fato de uma pessoa ser pa-trão e outra, operário devia-se à diferençanatural de uma pessoa para outra. Por issomesmo, Deus não impôs a distribuição dosbens entre as pessoas: que cada um, de acor-do com suas habilidades e talentos, obtives-se mais ou menos bens.

    No item 16 da Encíclica, Leão XIII pro-

    punha o seguinte aos trabalhadores:“(...) cumprir integral e fielmente o quepor própria liberdade e com apoio da

     justiça se estipulou sobre o trabalho;não causar dano algum ao capital; nãoofendam a pessoa de seus patrões;abster-se de toda violência ao defen-der seus direitos e não promover sedi-ções; não mesclar-se com homens de-pravados, que alimentam pretensões

    imoderadas e prometem artificiosa-mente grandes coisas, o que leva con-sigo arrependimentos estéreis e asconseqüentes perdas de fortuna”.

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    Para os patrões, propunha-se o seguinte:“(...) não considerar os trabalhadorescomo escravos; respeitá-los, como é

     justo, a dignidade da pessoa huma-

    na, sobretudo enobrecida pelo que sechama de caráter cristão. (...) Tampou-co deve impor-lhes mais trabalho doque podem suportar suas forças, nemde uma classe que não seja condizen-te com sua idade e sexo”.

    A importância da encíclica RerumNovarum não está em falar de função social– afinal nenhuma referência a esse termo éfeita – mas, sim, de reclamar melhorias nas

    condições de vida dos trabalhadores comfundamento na dignidade da pessoa huma-na: “A ninguém está permitido violar impu-nemente a dignidade humana, da que Deusmesmo dispõe com grande reverência”. 1

    Anos mais tarde, o jurista e político KarlRenner2, influenciado pelo marxismo, ela-borou o conceito de função social. Com basena idéia de Marx de que a economia era aestrutura da sociedade, e o direito, a supe-

    restrutura que garantia o funcionamento daeconomia, Renner definiu que a função so-cial de um instituto seria o reflexo da funçãoeconômica no âmbito econômico (RENNER,1981, p. 49).

     “Qualquer processo econômicoque observo isoladamente do ponto devista técnico é por sua vez uma parteda totalidade do processo social deprodução e reprodução, separado pelo

    pensamento. Se esse processo for vis-to em conjunto, a função econômicatorna-se função social do instituto ju-rídico.”

    Portanto, para Renner, função significa-va finalidade. Ou seja, a função social deum instituto jurídico consistiria na finali-dade desse instituto na economia. Contu-do, na Constituição da Alemanha de 1919,da qual Karl Renner participou como

    constituinte, o conceito de função socialassumiu outra proporção. O art. 153 daConstituição Alemã de 1919 dispunha oseguinte:

    “Art. 153. A Constituição garante apropriedade, cujo conteúdo e limitesserão fixados pela lei. (...) A proprie-dade obriga. Seu uso constituirá, tam-

    bém, um serviço para o bem comum.”Ao falar-se que “a propriedade obriga”,estabeleceu-se ao proprietário a obediênciaa determinados deveres – no caso, um servi-ço – em face da sociedade. O direito não podeser um fim em si mesmo; está a serviço daproteção da dignidade da pessoa humana.

    Outro jurista que estudou a função soci-al foi Leon Duguit, expoente do sociologis-mo jurídico. De acordo com Miguel Reale

    (1998, p. 441), Duguit encontrava na solida-riedade a explicação de todos os fenômenosde convivência. O ser humano não seriaauto-suficiente, o que ensejaria uma inter-dependência inevitável. A atividade parti-cular de cada ser humano deveria harmoni-zar-se com as atividades dos demais, resul-tando numa divisão geral do trabalho.

    Duguit sustentava que as transformaçõespelas quais o direito civil passa, levariam a

    uma alteração dos conceitos jurídicos tradi-cionais. O direito subjetivo, por exemplo,seria um conceito metafísico, porque teriapor base a vontade humana, a qual não podeser analisada objetivamente e seria substi-tuído pela idéia de função social.

    Influenciado pelo Positivismo de Comte,Duguit afirmava que todo ser humano teriauma função social a desempenhar e deveriadesenvolver sua individualidade física,

    moral e intelectual o máximo possível. Nomesmo sentido, ao falar da propriedade,disse que essa não seria um direito absolu-to. Ao contrário, a propriedade seria condi-ção indispensável para a prosperidade egrandeza da sociedade e, portanto, a pro-priedade não seria um direito, mas uma fun-ção social:

    “Pero la propriedad no es un dere-cho; es una función social. El propie-

    tario, es decir, el poseedor de una ri-queza tiene, por el hecho de poseeresta riqueza, una función social quecumplir; mientras cumple esta misi-

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    ón sus actos de propietario están pro-tegidos. Si no la cumple o la cumplemal si por ejemplo no cultiva su tierrao deja arruinarse su casa, la interven-

    ción de los gubernantes es legítimapara obligarle a cumplir su funciónsocial de propietario, que consiste enassegurar el empleo de las riquezasque posée conforme su destino”.(DUGUIT, 1975, p. 179).

    Ele também criticava a forma pela qual odireito protegia a propriedade, extremamen-te individualista e que não se preocupavacom o exercício legítimo desse direito, o que

    provocava um uso pouco evoluído da pro-priedade na sociedade, permitindo-se a exis-tência de propriedades meramente usadaspara especulação comercial.

    Porém, ao definir o conteúdo da funçãosocial da propriedade, houve um exageropara o outro extremo da problemática da li-berdade: praticamente suprimiu-a. O con-ceito de propriedade seria transformado empropriedade-função e o direito não protege-

    ria o direito subjetivo de ser proprietário,mas apenas garantiria a liberdade de o pro-prietário fazer com que sua riqueza cumpraa sua função social, o que levaria a uma so-cialização da propriedade, tomada no sen-tido de produção de efeitos para toda a soci-edade. (DUGUIT, 1975, p. 240).

    Nessa perspectiva, o conteúdo do direi-to de propriedade, por ser conferido peloEstado, poderia ficar sujeito à consecução

    de determinados fins definidos pela ordem jurídica. Por essa razão, é possível exigir dotitular desse direito o atendimento a um con-

     junto de deveres positivos e negativos emface da comunidade. Dessa maneira, “o pro-prietário não tem o direito subjetivo de usara coisa segundo o arbítrio exclusivo de suavontade, mas o dever de empregá-la de acor-do com a finalidade assumida pela normade direito objetivo”. (COSTA, 1997, p. 32).

    Porém, surge a dificuldade de determi-nar o conteúdo dos deveres positivos, de-correntes da função social do instituto jurí-dico. Porém, como assevera Orlando Gomes

    (1975, p. 73), “sob o ponto de vista jurídico,o exercício de acordo com o bem comum éinsuficiente para a caracterização da fun-ção social”.

    O constitucionalista italiano SantiRomano (1975, p. 142-143) desenvolveu oconceito de função a partir da conexão en-tre poderes, direitos e deveres. Além disso,foi ele quem estabeleceu a idéia de funçãosocial como “poder-dever”, que significa oexercício de um direito subjetivo, de tal modoque o mesmo não contrarie o interesse pú-blico.

    3. Significados de função social

    Podem-se identificar três significadospara o termo “função social”.

    O primeiro significado de função social,usado em sentido amplo, é o de “finalida-de”3, ou “papel”.

    Esse significado de função social refere-se à idéia de Karl Renner sobre a função so-cial, como imagem da função econômica de

    determinado instituto. Nesse sentido, todosos institutos jurídicos têm função social.A propriedade, por exemplo, tem diver-

    sas funções ou papéis. Pode funcionar comoum bem destinado à moradia, ou para a sub-sistência de quem mora no campo, ou parao exercício de atividade econômica. Tambémfunciona como reserva de valor, como ocor-re nos países de tradição ibérica, nos quaisas pessoas adquirem “bens de raiz” para

    investirem suas economias.O significado de função social como fi-nalidade social está caracterizado no art. 5 o

    da Lei de Introdução ao Código Civil (Dec-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942), oqual estabelece que “na aplicação da lei, o

     juiz atenderá aos fins sociais a que ela sedirige e às exigências do bem comum”.

    O Código Civil de 2002 estabelece no art.187 o seguinte: “Também comete ato ilícito

    o titular de um direito que, ao exercê-lo, ex-cede manifestamente os limites impostospelo seu fim econômico e social, pela boa-féou pelos bons costumes”. E o art. 1.228, § 1 o,

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    primeira parte, estabelece que “o direito depropriedade deve ser exercido em conso-nância com as suas finalidades econômi-cas e sociais”.

    O segundo significado, usado em senti-do estrito, é o de serviço realizado em bene-fício de outrem. A função indica relação en-tre duas pessoas, sendo que uma delas ageou presta um serviço em benefício da outra.Nesse sentido, o termo “função social” rela-ciona-se com o seu sentido etimológico, dolatim  functio, de  fungi  (exercer, desempe-nhar), que significa o direito ou dever de agir ,atribuído ou conferido por lei a uma pes-

    soa, para assegurar o preenchimento de umamissão. (SILVA , 1963, p. 722-723). Na tute-la, por exemplo, o tutor exerce uma função,que é a de agir no interesse do tutelado. Oadministrador de uma empresa exerce seucargo em benefício dos sócios ou dos acio-nistas. O funcionário público é uma pessoacuja profissão é prestar um serviço em nomedo Estado.

    No caso da função social, o “funcioná-

    rio” é o titular do direito; o beneficiário darelação funcional é a sociedade. Consiste naexigência de que o exercício de seu direitoseja também uma prestação de serviço embenefício da sociedade, ou ainda, consistena imposição de deveres para quem exercedeterminado direito; daí falar-se que a fun-ção social é um “poder-dever”. De um lado,o titular do direito subjetivo tem direito –isto é, tem um poder, uma faculdade – em

    face de uma pessoa, da sociedade ou do pró-prio Estado. Estes têm a obrigação de sujei-tar-se a esse poder, de respeitar esse espaçode liberdade do titular do direito subjetivo.De outro lado, o titular do direito subjetivotambém é obrigado a cumprir com determi-nados deveres de ação e abstenção em facede terceiros. Surge, pois, para o indivíduo,um feixe de deveres que devem ser observa-dos no exercício de determinado direito.

    Em relação ao direito de propriedade, oproprietário tem o poder de usar, fruir e dis-por de um bem, bem como não ser impedidode exercer aqueles direitos. Ou seja, todas

    as demais pessoas, que não sejam proprie-tárias desse bem, devem sujeitar-se a essefato.

    Como aponta Harold Demsetz (p. 354-

    357), o direito de propriedade existe paraque os recursos sejam usados de forma efi-ciente. Ele dá o exemplo de uma área desti-nada à agricultura. Uma pessoa prepara aterra, semeia e aguarda por meses o momen-to da colheita. Se não houvesse direitos depropriedade, qualquer um poderia apare-cer na época da colheita e levar embora todaa produção. Em vista disso, o agricultor nãotem garantias de que vai encontrar sua la-

    voura incólume. O risco de usar a terra paraa agricultura será alto demais. Desse modo,direitos de propriedade fracos geram inefi-ciência na utilização de recursos.

    Por outro lado, a exclusão de todas aspessoas do acesso aos bens do titular dodireito de propriedade pode causar uma si-tuação injusta. Enquanto uma pessoa sebeneficia do uso, ainda que não esteja cau-sando dano a outrem, muitas outras pesso-

    as podem estar sendo privadas do acessoaos bens, como alimentação, moradia e ves-tuário.

    O instituto da função social constituiuma “solução de compromisso” entre essesinteresses em conflito. Permite-se o exercí-cio de determinado direito, mas pode-se exi-gir que esse exercício seja socialmente útil.Portanto, nesse sentido, a essência do termo“função social” implica compensação, a

    qual se dá por meio da realização de deve-res de ação ou de abstenção por parte dotitular de um direito subjetivo.

    O uso de uma propriedade rural, porexemplo, como reserva de valor não atendeà função social, enquanto o seu emprego noexercício de atividade econômica, ao pro-duzir alimentos, atende à função social. Porisso, a Constituição Federal tem normas queestabelecem qual o conteúdo da função so-

    cial da propriedade urbana e rural:“Art. 186. A função social é cumpridaquando a propriedade rural atende,simultaneamente, segundo critérios e

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    graus de exigência estabelecidos emlei, aos seguintes requisitos:

    I – aproveitamento racional e ade-quado;

    II – utilização adequada dos recur-sos naturais disponíveis e preserva-ção do meio ambiente;

    III – observância das disposiçõesque regulam as relações de trabalho;

    IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalha-dores.”

    O Código Civil, ao tratar da função soci-al da propriedade, exige que o exercício do

    direito de propriedade seja compatível coma preservação da flora, fauna, belezas natu-rais, equilíbrio ecológico, patrimônio histó-rico e artístico, bem como evitada a polui-ção do ar e das águas. (CC, art. 1228, § 1 o).

    Em relação à empresa, ao mesmo tempoem que a livre iniciativa é um valor funda-mental da ordem econômica (CF, art. 170),porque seu exercício é socialmente útil, exi-ge-se do empresário o exercício da ativida-

    de econômica de forma não nociva à comu-nidade. Impõem-se limites a esse direito,como o dever de não ferir a dignidade dostrabalhadores, nem prejudicar a concorrên-cia, o consumidor ou o meio ambiente deforma indiscriminada.

    Um problema do conceito de função so-cial em sentido estrito está em estabelecer setodos os bens teriam função social – e, comoserá posteriormente discutido, se todos os

    contratos têm função social. Isso porque,sobretudo em relação à propriedade, encon-tram-se dificuldades em visualizar uma fun-ção social para com bens de uso pessoal,duráveis ou consumíveis. Por exemplo, édifícil apontar qual a função social do imó-vel usado para sua moradia e de sua famí-lia, do automóvel, das roupas, dos eletrodo-mésticos. Tanto que a Constituição Federalde 1988 não foi capaz de dizer qual é a fun-

    ção social da propriedade urbana. O art. 182,§ 2o, tem a seguinte redação: “A proprieda-de urbana cumpre sua função social quan-do atende às exigências fundamentais de

    ordenação da cidade expressas no planodiretor”.

    Por isso, Stefano Rodotà (apud ALPA;BESSONE, 1980, 243-244) sustenta que nem

    todos os bens teriam função social. Ele faz adistinção entre bens de consumo e bens deprodução, e que somente estes últimos teri-am função social. Assim, objetos de uso pes-soal, ou o imóvel destinado à moradia, nãoteriam função social, enquanto o maquiná-rio de uma indústria teria função social.4 Oconceito de função social da propriedadefica, pois, absorvido pelo conceito de fun-ção social da empresa.

    O terceiro significado de função social,usado de maneira imprópria, é o de “res-ponsabilidade social”. Nesse caso, que apa-rece relacionado à função social da empre-sa, é o de atribuição de deveres não relacio-nados com a atividade da empresa, taiscomo auxiliar na preservação da natureza,no financiamento de atividades culturais,ou no combate de problemas sociais, comoo trabalho e prostituição infantis.

    4. A função social do contrato

    A função social do contrato consiste emuma transposição do instituto da funçãosocial da propriedade para o âmbito con-tratual. A função social do contrato recebeudestaque dentro do título que cuida dos con-tratos em geral. Está prevista no art. 421 doCódigo Civil:

    “Art. 421. A liberdade de contratarserá exercida em razão e nos limitesda função social do contrato.”

    Parece ser uma criação do direito brasi-leiro, porque nem os códigos civis europeusnem os códigos civis latino-americanos têmdisposição semelhante. O único código ci-vil que tem uma regra cuja estrutura lembrao art. 421 do Código Civil é o Código Civilitaliano de 1942, cujo art. 1.322 tem a se-

    guinte redação: “As partes podem livremen-te determinar o conteúdo do contrato den-tro dos limites impostos pela lei (e das nor-mas corporativistas)”. O controle da liber-

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    dade contratual é feito apenas pela lei, pos-to que foram abolidas do direito italiano asnormas corporativistas do regime fascis-ta. A função social do contrato, portanto,

    tem por objeto restringir a liberdade decontratar.O fundamento da existência da função

    social do contrato é a dignidade da pessoahumana. No entanto, essa afirmação nãopassa de mera tautologia, porque é mais queevidente que os institutos jurídicos têm fun-damento na dignidade da pessoa humana.Com efeito, a função social do contrato éapenas mais um instrumento de aplicação

    de justiça ao caso concreto, conforme se veráabaixo.Assim, para compreender a função soci-

    al do contrato, é preciso analisar quais sãoas visões existentes sobre a liberdade decontratar, para, em seguida, compreenderde que maneira a função social agirá so-bre a mesma.

    Existem duas visões sobre a liberdadecontratual: a visão realista, e a visão legalis-

    ta. A visão realista da liberdade contratualé aquela segundo a qual a liberdade de con-tratar é inerente ao indivíduo. Nessa visão,o indivíduo é capaz de se autodeterminar,no sentido de estabelecer para si mesmo umaconduta determinada e cumpri-la. Foi Kant(2003, p. 79) quem sustentou o fundamentoda obrigação da conduta ética ser a autono-mia da vontade, a qual, por sua vez, decor-ria da liberdade humana.

    Nessa perspectiva, o direito pode ape-nas reconhecer que a vontade humana é fon-te de direito objetivo. (D’EUFEMIA, 1942, p.12). Resta ao direito apenas tutelá-la, garan-tindo-a, como no caso do ato jurídico perfei-to, ou então, assegurando exeqüibilidade àpromessa feita por meio da vontade livre.Nessa perspectiva, o direito contratual é odireito que tem por objeto a promessa, ga-rantindo coercitivamente o cumprimento do

    que foi prometido.Por sua vez, a visão legalista da liberda-de de contratar consiste no fato de que essasomente existe porque o direito a confere.

    Essa se torna uma concessão do Estado parao indivíduo. Fala-se em autonomia priva-da, no sentido de ser uma espécie de “com-petência legislativa” conferida aos indiví-

    duos para que celebrem negócios jurídicos,no sentido de ato capaz de criar, modificar eextinguir direitos. Por isso, o Estado pode,em tese, não conferir nenhuma autonomiaao indivíduo. Pode ocorrer de o Estado con-ceder a liberdade de forma controlada, dan-do ao indivíduo a opção de escolher umaentre várias normas previamente estabele-cidas pelo direito. Por exemplo, poder-se-iaestabelecer que somente são válidos os con-

    tratos típicos.Numa concepção ampla da autonomiaprivada, o Estado pode conferir liberdadede contratar os indivíduos; porém pode im-por determinados “encargos” ao exercíciodessa liberdade. Nesse caso, o conteúdo daliberdade seria “positivo”. Os Estados queestabeleciam como um de seus fins a solida-riedade social optavam por esse tipo deautonomia privada. Na explicação de

    Giuseppe D’Eufemia (1942, p. 10-11): “No Estado corporativo, a auto-nomia privada é portanto conforma-da de modo que esta se manifeste emfunção dos interesses nacionais: a ini-ciativa individual e a capacidade deauto-regramento dos próprios interes-ses são reconhecidos aos privados,mas ao mesmo tempo são predispos-tos limites de controle que rendem a

    autonomia privada um instrumentode consecução de determinados finsdo Estado”.

    Por fim, o Estado pode conferir aos indi-víduos poder para se auto-regrarem, con-tanto que não estejam em contradição comdeterminados preceitos estabelecidos pelopróprio direito, ou seja, uma liberdade “ne-gativa”. Nesse sentido, o art. 1.322 do Códi-go Civil italiano e o art. 187 do Código Civil

    brasileiro.De acordo com essas perspectivas de li-berdade, conclui-se que a função social, nosentido de finalidade social, corresponde à

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    concepção negativa de liberdade de contra-tar; se o instituto jurídico for usado da for-ma como foi criado e produzir os efeitos quedele se espera, sem causar dano a outrem,

    cumpre-se a função social.Por sua vez, a função social em sentidoestrito corresponde à visão positiva da li-berdade de contratar, porque essa impõe abusca de determinados fins. Não basta queo instituto jurídico produza os efeitos quedele se espera, e que não cause dano a ou-trem. Requer-se, além de tudo isso, a conse-cução de determinados resultados ou devantagens concretas para a sociedade.

    Assim, na concepção negativa de liber-dade, tem-se que a liberdade de contratar éexercida nos limites da função social do con-trato. Na concepção positiva de liberdade, aliberdade de contratar é exercida em razãoda função social do contrato.

    No direito brasileiro, o art. 421 tem umaredação contraditória, pois estabelece, aomesmo tempo, tanto a concepção negativa,quanto a concepção positiva de liberdade,

     já que a liberdade de contratar será exercidanos limites (concepção negativa) e em razão(concepção positiva) da função social docontrato.

    O art. 421 foi objeto de crítica durante afase de tramitação do projeto de lei que re-sultou no Código Civil. O então deputadoTancredo Neves propôs a Emenda no  371,que sugeria a alteração da redação desteartigo, a seguir: “Ao interpretar o contra-

    to e disciplinar a sua execução, o juiz aten-derá à sua função social”. (IMPRENSANACIONAL, 1983, p. 254).

    A razão apontada por Tancredo Nevesfoi a de que, “fora dos limites da função so-cial do contrato, não pode ser exercida a li-berdade de contratar”. Isso porque “o con-ceito de função social do contrato é impreci-so”, afetando fundamente a liberdade decontratar e causando insegurança aos ne-

    gócios. A emenda no

     371 foi rejeitada por-que o art. 421 seria correspondente à funçãosocial da propriedade, prevista no art. 160,III, da então Constituição de 1969, bem como

    a redação sugerida não seria capaz de solu-cionar o problema decorrente da impreci-são do termo. (IMPRENSA NACIONAL,1983, p. 637). 5

    Em junho de 2002, a Câmara dos Depu-tados organizou o Seminário “Novo Códi-go Civil Brasileiro – O que muda na vida docidadão”. Nessa ocasião, o ProfessorAntonio Junqueira de Azevedo apontou fa-lhas na redação do art. 421, no sentido deser indesejável estabelecer que a liberdadede contratar será exercida em razão da fun-ção social do contrato. Para ele, a redaçãoatual permite entender que a liberdade será

    exercida não em razão dos interesses docontratante limitado pela função social,transformando essa liberdade numa espé-cie de dever de funcionário.

    O Conselho da Justiça Federal organi-zou em setembro de 2002 a I Jornada de Di-reito Civil, na qual foram proferidos 137enunciados para a interpretação do CódigoCivil de 2002. Em relação à função social docontrato, foram proferidos os enunciados n o

    21, 22 e 23:“21 – Art. 421: a função social do con-trato, prevista no art. 421 do novo Có-digo Civil, constitui cláusula geral, aimpor a revisão do princípio da rela-tividade dos efeitos do contrato emrelação a terceiros, implicando a tute-la externa do crédito.22 – Art. 421: a função social do con-trato, prevista no art. 421 do novo Có-

    digo Civil, constitui cláusula geral, quereforça o princípio de conservação docontrato, assegurando trocas úteis e

     justas.23 – Art. 421: a função social do con-trato, prevista no art. 421 do novo Có-digo Civil, não elimina o princípio daautonomia contratual, mas atenua oureduz o alcance desse princípio quan-do presentes interesses metaindividu-

    ais ou interesse individual relativoà dignidade da pessoa humana.”Por meio desses três enunciados, cons-

    tata-se que ora se entende a função social

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    como finalidade social, ora como funçãosocial em sentido estrito, tal como a funçãosocial da propriedade.

    É preciso, pois, esclarecer em que casos

    a função social do contrato manifesta-secomo finalidade social, e em que casos elase manifesta como “poder-dever” do con-tratante.

    5. A função social do contratoem sentido amplo

    Como mencionado acima, a função soci-al do contrato como finalidade social relaci-

    ona-se com a concepção negativa de liber-dade de contratar.O direito procura assegurar que o uso

    correto da disciplina da liberdade é neces-sário por dois motivos. O primeiro deles éque o exercício da liberdade pode ser abusi-vo, e causar danos aos demais indivíduos,o que é socialmente indesejável. O segundomotivo é que os recursos materiais não es-tão disponibilizados igualmente para todos,

    o que requer um equilíbrio de interesses entrequem tem acesso aos bens e quem não temacesso aos mesmos por meio do contrato.

    O contrato é um instituto jurídico cujafunção – entendida como finalidade – é a depromover a circulação e distribuição dosdireitos de propriedade entre os indivíduosde uma sociedade. Tanto em contratos deinteresses contrapostos, como é o caso dacompra-e-venda, quanto nos contratos de

    interesses convergentes, como no contratode sociedade, ocorrerá a circulação e distri-buição de bens de acordo com o estipuladopelos indivíduos ou pelo direito. A razão éque uma eficaz circulação de direitos de pro-priedade entre as pessoas é socialmente de-sejável, pois esse fenômeno é que produz asriquezas em uma determinada sociedade.Quando a circulação dos direitos é feitade forma inadequada, o direito fornece

    “remédios” para que se possa corrigir essasituação.Os códigos civis estabelecem como requi-

    sito de validade do negócio jurídico a exis-

    tência de objeto lícito, ou, em determinadoscódigos, que o objeto também não seja imo-ral ou ofenda os bons costumes.

    O primeiro exemplo de ilicitude do obje-

    to (que também é caso de objeto imoral) é aproibição da venda de sangue e órgãos hu-manos. O Estado não admite a compra-e-venda; somente a doação. Essa proibiçãovisa evitar que pessoas morram por não te-rem dinheiro para adquirirem um órgão, oque seria uma afronta à dignidade da pes-soa humana. Por isso, caso ocorra uma com-pra-e-venda de órgãos, a circulação destanão ocorre da forma que se esperava; daí a

    nulidade do negócio, ou, em outros termos, odireito não atribui a esse negócio os efeitos jurídicos necessários à sua concretização.

    Outra forma de controle do contrato pormeio do objeto do negócio consiste no usode normas de ordem pública.

    A ordem pública consiste no conjuntode valores necessários à manutenção dasociedade. (FARIA, 1980, p. 11). As normasde ordem pública são aquelas que ora im-

    põem uma conduta por parte do indivíduo,ora impõem uma proibição a esse, conformeo caso, de modo a assegurar a ordem públi-ca. (SANTOS, [19 - -?], p. 247). Por essa ca-racterística, não podem ter sua eficácia afas-tada por disposição das partes.

    O contrato de trabalho subordinado,antigamente sujeito às normas do contratode locação de serviços, tornara-se um ins-trumento de escravização das pessoas. Com

    o passar do tempo, inúmeras normas de or-dem pública surgiram para a proteção dotrabalhador, como o estabelecimento de sa-lário mínimo, oferecimento de condiçõessalubres de trabalho, entre outros. Foramtantas normas nesse sentido, que surgiu umnovo ramo do direito: o direito do trabalho.

    Outro exemplo é a compra-e-venda. Sealguém vende uma casa para outra pessoa,o único interesse social envolvido nesse ne-

    gócio é que ocorra uma boa circulação dodireito de propriedade. Mas, se uma compra-e-venda de uma casa for entre ascendente edescendente sem a concordância dos demais

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    descendentes e do cônjuge, aí sim o Estadointerfere na relação, por meio do direito, per-mitindo a anulação do contrato ao descen-dente que se sentir prejudicado (CC, art.

    496). Pois, ao negar-se a possibilidade dosdemais descendentes de impedir um negó-cio que lhes será desfavorável no futuro,impede-se a melhor circulação do direito depropriedade.

    A recusa de contratar e a venda casadasão exemplos em que uma das partes abusada liberdade de contratar, seja ao impedir acirculação de bens e serviços, seja ao impora circulação dos mesmos. Afinal, não se de-

    seja que existam dificuldades de circulaçãode bens ou serviços, ou que se impeça o aces-so a estes; ademais, não se deseja que essacirculação seja feita em sacrifício da vonta-de da outra parte. As cláusulas abusivas doscontratos são exemplos de violação da fun-ção social do contrato, porque consistem emdistorções do modo por que circulam os di-reitos entre as pessoas. Essas cláusulas cos-tumam exigir mais vantagens para uma das

    partes, em prejuízo da outra, devido à desi-gualdade de poderes na relação contratual.Pelo fato de que essa vantagem obtida é“anormal”, pois um contrato não é instru-mento de enriquecimento sem que tenhasido realizada uma contrapartida. Nessesentido, o direito brasileiro tem os institutosda lesão (CC, art. 157) e da resolução poronerosidade excessiva (CC, arts. 478-480).

    A função social do contrato, entendida

    como finalidade social, está presente em to-dos os institutos jurídicos. Existem diver-sos “remédios” jurídicos que asseguram ocumprimento da função social do contrato.Por isso, a função social do contrato, previs-ta no art 421 do Código Civil brasileiro, apli-ca-se de forma residual, nos casos em quenão previsto um determinado remédio parao problema de má circulação dos direitos depropriedade entre partes. Aliás, esse é o es-

    pírito das cláusulas gerais do Código Civil.Um exemplo é a concessão de crédito àspessoas de baixa renda por instituições fi-nanceiras privadas no Brasil. O acesso ao

    crédito por essas pessoas é extremamenteoneroso. Diversas estatísticas publicadasdemonstram que o índice de inadimplemen-to entre essas pessoas é muito baixo, ou seja,

    pagam-se rigorosamente em dia as suas obri-gações. No entanto, a taxa de juros cobradadessas pessoas é muito alta, em torno de 10%a 15% ao mês. A situação normal é que quan-to maior o risco, maior o lucro; quando hábaixo risco e altos lucros, é indicação de quehá anormalidade no contrato. Logo, essescontratos não cumprem sua função social.

    6. A função social do contrato

    em sentido estrito

    A função social do contrato em sentidoestrito está diretamente relacionada com aprodução de externalidades no exercício dedeterminado direito. A ciência econômicausa o termo “externalidades” para desig-nar as perturbações causadas a terceiros,pela impossibilidade de definir exatamenteos limites de um determinado direito, isto é,

    não é possível impedir que o exercício deum direito interfira no direito das demaispessoas.

    Imagine-se um imóvel que tenha no pisotérreo uma oficina mecânica, e no primeiroandar, um consultório médico. (COASE,1960). A oficina produz uma quantidade deruído que atrapalha a concentração do mé-dico no atendimento aos pacientes. A ativi-dade do mecânico é uma externalidade para

    o médico, assim como a exigência do médi-co de obrigar o mecânico não produzir ruí-do é uma externalidade para este. Ou aindaa poluição gerada por uma indústria nasredondezas. Pode ocorrer de ser impossívela não produção de poluição, de tal modoque o uso máximo dos atributos de um bemcausará uma redução das qualidades deoutros bens. A solução adotada pelo direitoé impor compensações aos prejudicados

    pelo exercício do direito do causador da ex-ternalidade.Como se pode perceber nos exemplos

    acima, a provocação de externalidades de-

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    correntes do exercício de um direito se dácom freqüência no caso dos direitos absolu-tos, exercidos erga omnes. No entanto, isso émais difícil ocorrer com o contrato, porque

    sua estrutura se desenvolveu para que so-mente as partes que o celebram obtenhamefeitos jurídicos decorrentes do mesmo. Nãoé um instituto jurídico destinado à produ-ção de efeitos para terceiros. Isso porque ofundamento da liberdade de contratar é aautonomia da vontade, isto é, só é possívela existência de obrigação quando a própriapessoa se impõe esse compromisso, o qual,se não cumprido, pode ser exigido coerciti-

    vamente com fundamento em uma norma jurídica a qual estabelece a obrigação decumprir os compromissos que assumiu pe-rante a outra parte. Dessa forma, quem nãoparticipa da relação contratual não se com-prometeu a nada, e, por isso, não está sujei-to a quaisquer efeitos jurídicos decorren-tes dessa relação contratual. A isso se dáo nome de princípio da relatividade dasobrigações.

    No entanto, há situações em que o exer-cício de um direito relativo, como o direitode celebrar contratos, pode produzir exter-nalidades à comunidade. No direito brasi-leiro, o direito concorrencial e o direito agrá-rio têm essa função.

    O direito concorrencial, entre outras coi-sas, zela para que a celebração de determi-nados contratos entre empresas que afetama organização dos mercados, tais como a

    aquisição de uma empresa por outra,  jointventures, franchising  e sociedades cooperati-vas, não produza externalidades no mer-cado.

    A Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994,prevê dois tipos de controle para a preser-vação da concorrência: o controle de con-dutas e o controle da organização industrial.

    O controle de condutas que constitueminfração à ordem econômica é feito em con-

     junto pelos arts. 20 e 21 da Lei no

     8.884.O art. 20 estabelece que “constituem in-fração da ordem econômica, independente-mente de culpa, os atos sob qualquer forma

    manifestados, que tenham por objeto oupossam produzir os seguintes efeitos, ain-da que não sejam alcançados: I – limitar,falsear ou de qualquer forma prejudicar a

    livre concorrência ou a livre iniciativa; II –dominar mercado relevante de bens ou ser-viços; III – aumentar arbitrariamente os lu-cros; IV – exercer de forma abusiva posiçãodominante”. O art. 21 discrimina as condu-tas que configuram infração à ordem econô-mica, caso produza qualquer dos efeitos ti-pificados no art. 20 e seus incisos. Algumasdessas condutas previstas no art. 21 visamassegurar a função social do contrato.

    Isso porque a lei não admite que a liber-dade de contratar seja feita em prejuízoda sociedade.

    Por exemplo, a formação de acordo paraa obtenção de conduta comercial uniformeou concertada entre concorrentes, tal comoprevista no inciso II do art. 21, pode ser ummeio para a obtenção de melhores resulta-dos econômicos para as partes do mesmo.O franchising  consiste em uma rede de con-

    tratos entre o franqueador e o franqueado,por meio dos quais o franqueador, detentorde uma tecnologia própria para a fabrica-ção de produtos ou prestação de serviços, ede uma marca com boa reputação no merca-do, permite ao franqueado beneficiar-se des-ses bens, mediante remuneração e exclusi-vidade na comercialização dos produtos eserviços relacionados ao objeto do contrato.Dessa maneira, surge uma cooperação en-

    tre diversos agentes econômicos. As socie-dades cooperativas também podem produ-zir o mesmo efeito econômico, de ação con-certada entre concorrentes. Contudo, quan-do a ação concertada produzir efeitos pre-

     judiciais à concorrência ou aos consumido-res, a Lei veda a continuação desse acordo,ainda que não haja dolo por parte das par-tes do mesmo.

    O exemplo mais interessante é o contro-

    le prévio da organização econômica de umdeterminado mercado. O art. 54 da Lei no

    8.884 impõe, ao Conselho Administrativode Defesa Econômica – CADE, o julgamen-

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    to dos “(...) atos, sob qualquer forma mani-festados, que possam limitar ou de qualquerforma prejudicar a livre concorrência, ouresultar na dominação de mercados relevan-

    tes de bens ou serviços”.Nesse caso, a aquisição de uma empresaou por sua concorrente, ou por seu fornece-dor ou de quem é fornecedora, ou a forma-ção de uma empresa em que figure comosócios concorrentes em um determinadomercado (p. ex. joint ventures) somente poderáocorrer se as externalidades produzidas nomercado forem aceitáveis nos termos da lei.

    Tendo em vista a idéia de função social

    como “compensação”, o § 1o

     do art. 54 daLei no 8.884 permite ao CADE autorizar es-ses atos de concentração previstos no caputdo art. 54, desde que atendam as seguintescondições: I – tenham por objetivo, cumula-da ou alternativamente: a) aumentar a pro-dutividade; b) melhorar a qualidade de bensou serviços; c) propiciar a eficiência e o de-senvolvimento tecnológico ou econômico; II– os benefícios decorrentes sejam distribuí-

    dos eqüitativamente entre os seus partici-pantes, de um lado, e os consumidores ouusuários finais, de outro; III – não impliquemeliminação da concorrência de parte subs-tancial de mercado relevante de bens e ser-viços; IV – sejam observados os limites estri-tamente necessários para atingir os objeti-vos visados. O § 2 o do art. 54 permite a apro-vação de atos de concentração, desde queatendidas pelo menos três das condições

    previstas nos incisos do § 1o

    , quando neces-sários por motivos preponderantes da eco-nomia nacional e do bem comum, e desdeque não impliquem prejuízo ao consumidorou usuário final.

    Assim, o direito permite que contratosde aquisição, fusão, joint ventures, coopera-tivas e franchising sejam realizados. Mas, poroutro lado, quando esses contratos produ-zem externalidades, exige-se que a socieda-

    de não seja prejudicada, ou, em determina-dos casos, que a sociedade participe dasvantagens da celebração desses contratos,como forma de compensação pelas perdas

    que sofrerá por força das externalidades. Nes-sa perspectiva, a liberdade de contratar seráexercida na acepção “positiva” do termo.

    O segundo exemplo, lembrado durante

    os trabalhos do 1o

     Congresso Ítalo-Luso-Bra-sileiro de Direito Civil Comparado, é o di-reito agrário brasileiro. Tendo em vista quea exploração de atividade agropecuáriapode comprometer a preservação ambien-tal, a Lei no 4.504, de 30 de novembro de1964 (Estatuto da Terra), e o Decreto no

    59.566, de 14 de novembro de 1966, impõema conservação dos recursos naturais comoobjeto dos contratos agrários:

    Lei no

     4.504“Art. 13 – Os contratos agrários regu-lam-se pelos princípios gerais que re-gem os contratos de Direito comum,no que concerne ao acordo de vonta-de e ao objeto, observados os seguin-tes preceitos de Direito Agrário:

    (...)III – obrigatoriedade de cláusulas

    irrevogáveis, estabelecidas pelo IBRA,

    que visem à conservação de recursosnaturais;”Decreto no 59.566

    “Art 13. Nos contratos agrários, qual-quer que seja a sua forma, contarãoobrigatoriamente cláusulas que asse-gurem a conservação dos recursosnaturais e a proteção social e econô-mica dos arrendatários e dos parcei-ros-outorgados a saber (Art. 13, inci-

    sos III e V da Lei no

     4.947-66);”Pode-se concluir que a função social docontrato, tomada em sentido estrito, não estápresente em todos os contratos. Somente épossível falar em função social quando acelebração de determinado contrato produ-zir externalidades à sociedade. A compra-e-venda de um chocolate, ou de um automó-vel, não tem função social, porque terceirosnão sofrerão efeitos desse contrato, mas a

    compra-e-venda de uma empresa tem fun-ção social, porque isso pode afetar a organi-zação dos mercados, e a vida das pessoasem geral.

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    7. A função social docontrato em sentido amplona jurisprudência paulista

    Foi visto acima a previsão legal da fun-ção social do contrato. Agora resta analisara aplicação jurisprudencial desse instituto,e será a forma pela qual será dada a concre-tude ao art. 421 do Código Civil. A jurispru-dência, sobretudo no Estado de São Paulo,vem enfrentando a questão da função soci-al do contrato nos contratos em matéria deplanos de saúde. Entre 1998 a 2004, foramproferidos mais de cinqüenta acórdãos so-

    bre a mesma matéria. O problema enfrenta-do pelos tribunais é o seguinte: a pessoacontrata um plano de saúde, que exclui porvia contratual a cobertura de tratamento decirurgias de redução de estômago, displa-sia mamária e AIDS, entre outros.

    Trata-se da contratação6 de um plano deseguro-saúde, cujo contrato previa expres-samente a exclusão do tratamento de dis-plasia mamária. A esposa do segurado ti-

    nha esse problema de saúde e foi operada.A companhia de seguros, sem saber que omotivo da cirurgia era a doença excluídacontratualmente, pagou pela mesma. Poste-riormente, ingressou com ação contra o se-gurado, para reaver o dinheiro pago ao hos-pital. O Tribunal condenou o segurado arestituir à companhia de seguros o valorpago pela cirurgia, com fundamento de queprevalecia a livre autonomia das partes de

    excluir contratualmente a cobertura de de-terminadas doenças, posto que, em matériade seguros, é lícita a exclusão de determina-dos riscos, por serem tão graves ou exten-sos, que podem comprometer o equilíbrio damutualidade do seguro.

    Referência expressa à função social docontrato foi feita, mas, mesmo assim, não foiaplicada ao caso concreto:

    “A Turma Julgadora não está

    alheia a doutrina atual que prega umanova função social do contrato, umtema sedutor e muito bem analisadopor Orlando Gomes e Antunes Varela

    (‘Direito Econômico’, Saraiva, 1977).A inalteralidade das convenções( pacta sunt servanda) continua comofator de segurança, mas a boa-fé con-

    tratual obriga o juiz a buscar o equilí-brio pela finalidade do contrato, coma sua adaptação às necessidades re-ais do contratante socialmente maisfraco. (...) Rejeitar a exigibilidade dacobrança seria transformar o segurode natureza privada em assistênciasocial, agindo o Judiciário como in-terventor nas relações econômicaspara colocar empresas particulares no

    exercício de funções que são própriasdo Estado”.Porém, nos últimos anos, houve uma

    mudança de entendimento, no sentido detutelar o contrato com base na função socialdo contrato.

    Nesse caso a ser analisado 7, que ilustraa mudança de entendimento sobre o tema, aautora da ação tinha obesidade mórbida(seu índice de massa corpórea era superior

    a 43) e processou o plano de saúde para au-torizar a cirurgia de redução de estômago.Essa cirurgia não era cadastrada pela AMB– Associação de Médicos Brasileiros, e ocontrato entre a autora e o plano de saúdeexcluía a cobertura de procedimentos cirúr-gicos não classificados nos catálogos médi-cos. O plano de saúde foi obrigado a autori-zar a cirurgia, com base na função socialdos contratos de planos de saúde:

    “A autora, ora agravada, aderiu aoplano com a agravante quando me-nor, o que afasta a idéia de estar agin-do com má-fé (como hipóteses de do-enças pré-existentes ou de procedi-mentos cirúrgicos de alto custo, comotransplante de medula óssea, porexemplo). Sempre pagou as presta-ções para manter hígido o sistemaequilibado e o regime de custo benefí-

    cio. Agora, quando a urgência clamapela ‘gastrologia redutora’, uma chan-ce real de combate à obesidade mórbi-da, a recusa ao financiamento deve ser

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    preponderante ao fator utilidade mé-dica e social da medida médica quese pretende realizar. Caso contrário,não cumpre o contrato sua função

    social”.Ainda em casos de planos de saúde, tem-se proibido a rescisão unilateral de contra-tos cujo segurado seja pessoa com mais desessente anos, porque o risco faz partedesses contratos, e a rescisão consiste emviolação da função social do contrato:

    “O pressuposto ideológico do con-trato não é uma matriz vulnerável. Aocontrário: a base da operacionalida-

    de é justamente o cumprimento daassistência médica sem discriminaçãodo conveniado, sem o que o ajuste per-de sua função social e passa a ser ca-tegorizado como instrumento rentáveldas entidades que exploram tais seg-mentos. O risco integra a comutativi-dade, de sorte que é impossível res-cindir o contrato pela presunção deque pessoa velha não oferece lucros,

    um absurdo que cumpre reprimir comrigor”. (TJSP. Ap. Cível n o 82.043-4/0.3a Câmara de Direito Privado. Rel. Des.Enio Santarelli Zuliani. j. 01/02/2000).

    Nesse caso, a rescisão unilateral do con-trato viola a função social do contrato, poisse o segurado idoso realiza sua contraparti-da, pagando as mensalidades do plano desaúde, não há por que interromper o contra-

    to. Permitir a interrupção do contratoimplicaria uma má circulação dos serviçosde atendimento médico. Por isso, nesse caso,a função social do contrato, aplicada resi-dualmente, pode ser um instrumento útilpara corrigir essa situação, tendo em vistaque não se pode falar em objeto ilícito, ouser possível aplicar outros institutos

     jurídicos. Porém, o aplicador da norma jurí-dica deve ficar atento à existência de

    institutos jurídicos já previstos no direitopara a solução do caso concreto, e nãoaplicar o art. 421 em toda e qualquersituação.

    8. Precauções e critérios para aaplicação da função social do contrato

    Por fim, é preciso refletir sobre o alcance

    dos efeitos da função social do contrato, afim de evitar que a aplicação desse institutopossa-se revelar injusta, ainda que bem in-tencionada.

    Constata-se que, na aplicação do concei-to de função social do contrato, e em atendi-mento à solidariedade social, a empresaadministradora do seguro-saúde e os demaissegurados foram obrigados a socorrer a umadas seguradas, estendendo-se a cobertura

    do plano para a operação de obesidademórbida. Em outras palavras, enquanto umdos segurados se beneficiou da cirurgia semcontrapartida financeira, a empresa admi-nistradora e os outros segurados (que nãotiveram acesso a esse benefício) tiveram quearcar para que apenas um dos seguradostivesse acesso à mesma.

    Dessa forma, a aplicação do conceito defunção social do contrato sem qualquer cri-

    tério faz com que esse instituto se convertaem responsabilidade social da empresa (edas demais pessoas). É um fato esse que con-vém ao Estado, pois esse, por meio do usode um termo carregado de significado (afi-nal quem é contra a função social do contra-to?) poderá deixar de cumprir com suas obri-gações, no sentido de não disponibilizardeterminados serviços públicos. Se o Esta-do não existe para servir, então só se pode

    concluir que este se tornou um fim em simesmo.No caso das autorizações para a reali-

    zação das cirurgias, verifica-se que a em-presa de seguro-saúde, ao não cobrir deter-minadas doenças, não está, dessa forma,obtendo mais vantagens em prejuízo dossegurados. Ao contrário, a concessão des-sas cirurgias a um dos segurados represen-tará uma desvantagem para a empresa, e

    para os demais segurados. Assim, estendera cobertura a apenas um segurado consisteem enriquecimento sem causa, já que os de-mais segurados da mesma faixa etária esta-

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    rão financiando um dos segurados, sem queessa possibilidade lhes seja facultada. Aocontrário, ainda que imbuído de boas inten-ções, pode-se fazer justiça em um caso me-

    diante a provocação de injustiça às demaispessoas na mesma situação. Por isso mes-mo, como medida de atendimento às neces-sidades dos segurados e preservação doequilíbrio contratual, promoveu-se a rees-truturação do setor.

    É possível, a partir dos exemplos acima,estabelecer um critério para a aplicação dafunção social do contrato em sentido am-plo: quando um dos contratantes obtiver

    vantagens injustificadas em um contrato,que implicar uma má circulação dos direi-tos de propriedade, e não houver um insti-tuto jurídico próprio para a correção dessaanomalia, aí sim se aplica a função socialdo contrato. Do contrário, a aplicação dafunção social do contrato implicará enrique-cimento sem causa para a outra parte.

    Nos contratos analisados pelo CADE,verifica-se a imposição de função social,

    quando o contratante, ao exercer sua liber-dade, estiver obtendo uma vantagem des-proporcional em prejuízo da sociedade. Porexemplo, a constituição de uma joint ventureque configure cartel e fixe os preços de de-terminado produto ou serviço no valor maisalto possível. Fica evidente que haverá umaumento injustificado dos lucros em prejuí-zo dos consumidores. Por isso, a lei autori-za o CADE aprovar essa joint venture, con-

    tanto que a sociedade possa-se beneficiardesse contrato, como medida de justiça. Ou,quando isso não for possível, vetar a consti-tuição da mesma.

    Logo, o critério para a aplicação da fun-ção social do contrato em sentido estrito é oseguinte: a liberdade de contratar deve aten-der à função social do contrato, somentequando o contratante estiver obtendo van-tagens injustificadas, porém lícitas, ou à

    custa da produção de externalidades. As-sim, para compensar a sociedade pelas per-das que sofre, a função social do contratoimpõe deveres no exercício dessa liberdade

    contratual, a fim de compensar a sociedadedos efeitos que sofre decorrentes do contrato.

     Assim, propõe-se um esquema de apli-cação do princípio da função social do con-

    trato:1. O exercício da liberdade de contratarprovoca externalidade à sociedade? Se nãohá, o contrato não tem função social; se sim,impõe-se o dever de compensar a sociedadecom fundamento na função social do con-trato.

    2. Verificar se o contrato está desequili-brado para uma das partes.

    3. Verificar se o reequilíbrio da relação

    contratual implicará sacrifícios não relaci-onados com o contrato para a outra parte(responsabilidade social da empresa, enri-quecimento sem causa). Se causar sacrifíci-os, o contrato já cumpre sua função social.

    4. Verificar se existe instituto jurídicodestinado a corrigir o desequilíbrio contra-tual. Se não houver instituto, aplica-se a fun-ção social do contrato.

    9. Conclusão

    A função social do contrato é um institu-to jurídico destinado à realização de justiçaao caso concreto. Trata-se de uma limitaçãoà liberdade de contratar, para que, em senti-do amplo, os institutos jurídicos produzamseus efeitos regulares; em sentido estrito,impõe deveres à liberdade de contratar,quando o seu exercício provocar externali-

    dades à sociedade.Existem diversos institutos jurídicos queasseguram a função social do contrato emsentido amplo, entendida como finalidadesocial, como a lesão, a resolução por onero-sidade excessiva, bem como as normas deordem pública e a análise do objeto do con-trato. Por isso a aplicação do art. 421 doCódigo Civil é residual.

    A função social do contrato em sentido

    estrito está consagrada no direito concor-rencial e no direito agrário, que são ramosdo direito que tratam de relações jurídicascujo objeto é do interesse da coletividade,

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    como o mercado e a exploração econômicado ambiente. Sua aplicação visa a compen-sar a sociedade dos efeitos que o contratopode causar a terceiros. Deve-se atentar para

    o fato de que a maior partes dos contratosnão causa externalidades a terceiros; masquando isso ocorrer, aí sim se aplica o art.421 do Código Civil.

     Colocada como princípio de direito con-tratual no Código Civil, deve ser aplicadacom cautela, pois a falta de critérios de suaaplicação pode implicar responsabilidadesocial do indivíduo e das pessoas jurídicas,a qual, do ponto de vista jurídico, compete

    ao Estado, bem como enriquecimento semcausa para quem da aplicação desse artigose beneficiar.

    Referências

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    Notas

    1  Em 1931, o Papa Pio XI lançou a EncíclicaQuadragesimo Anno, a qual celebra os quarenta anosda Encíclica Rerum Novarum, e na qual se fazuma reinterpretação dessa última, de modo a

    evidenciar que o Papa Leão XIII já falava emfunção social.

    2 Karl Renner (1870-1950) formou-se em direi-to, mas se tornou bibliotecário do Parlamento Aus-tríaco em 1896, ocasião em que escreveu a obrasobre a função social dos institutos jurídicos. Pos-teriormente, tornou-se deputado, Chanceler e Mi-nistro das Relações Exteriores da Áustria entre 1918e 1920. Foi Presidente da Assembléia de Deputa-dos da Áustria em 1933. Com o fim do III ReichAlemão, organizou o governo provisório da Áus-tria. Novamente foi Chanceler, e em 1945 tornou-se

    Presidente da Áustria.3 O Código Civil de 2002 usa uma única vez o

    termo “função” como finalidade: “Art. 420. Se nocontrato for estipulado o direito de arrependimen-to para qualquer das partes, as arras ou sinal terão função unicamente indenizatória. Nesse caso, quemas deu perdê-las-á em benefício da outra parte; equem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente.Em ambos os casos, não haverá direito a indeniza-ção suplementar”. (grifos nossos)

    4 Anos mais tarde, essa distinção entre bens deprodução e bens de consumo para a atribuição de

    função social foi sutentada por Fábio KonderComparato (1986, p. 71-79).

    5 Ao contrário da função social da propriedade,cujo conteúdo mínimo dos deveres está indicado

    explicitamente na Constituição e no Código Civil, otermo “função social do contrato” não foi especifi-cado. Essa indeterminação de significado decorredo fato de se ter consubstanciado a função socialno Código Civil mediante o uso de uma cláusula

    geral. Essa opção pelo uso de cláusulas gerais é asegunda característica do texto do Código Civil de2002. (REALE, 2003, p. 17).

    6 TJSP. Ap. Cível no 27.433-4/8. 1a Câmara deFérias. Rel. Des. Enio Santarelli Zuliani.Comarca deSão Paulo J. 06/03/1998, Rel. Des. Enio SantarelliZuliani.

    7 TJSP, Ag. Instrumento no 233.379-4/8. 3a Câ-mara de Direito Privado. Rel. Des. Enio SantarelliZuliani. Comarca de S. Paulo. J. 26.02.2002.

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