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SUSTENTABILIDADE EM DEBATE | nº 2 | Dezembro 2015 A FUNCIONALIDADE DA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA (1975 A 2020) The functionality of Brazilian agriculture (1975 to 2020) Vinicius Guidotti 1 , Felipe Cerignoni 1 , Gerd Sparovek 2 , Luís Fernando Guedes Pinto 1* , Alberto Barreto 3 1 – Pesquisadores do Imaflora 2 – Professor Titular da Esalq/USP 3 – Consultor *contato: [email protected] PRINCIPAIS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES 1. Pela primeira vez a safra brasileira foi analisada com uma abordagem funcional. A funcionalidade foi definida pela importância dos produtos agropecuários em prover proteína, energia metabolizável e energia não metabolizável. Estes três componentes são os elementos básicos para a alimentação humana e animal e a geração de energia. Isolando-se os elementos básicos de cada produto, é possível somá-los, agregá-los e compará-los, mantendo uma coerência analítica. Isto permite comparar o valor funcional de culturas e produtos distintos, como soja, banana, mandioca e boi. 2. Utilizando dados dos censos agropecuários do IBGE de 1975, 1985, 1996 e 2006 e projetando para 2014 e 2020; transformamos a produção agrícola e pecuária em proteína, energia aproveitável para a alimentação humana e animal e energia disponível, mas não aproveitável para a alimentação humana. 3. Verificamos que a agricultura produz uma quantidade muito maior de proteína e energia do que a pecuária e com eficiência muito superior. Em 2006 a produção total de proteína da agricultura foi 25 vezes maior do que da pecuária, ocupando uma área 2,6 vezes menor que a de pastagem. As projeções para 2020 indicam que esta diferença deve se acentuar. 4. Em 2006 a agricultura produziu 38,5 milhões de toneladas (Mton) de proteínas em 60 milhões de hectares (Mha), enquanto a pecuária produziu 1,5 Mton de proteínas em 160 Mha. Em 2006 a eficiência de produção de proteína na agricultura foi de 0,60 ton/ha e na pecuária foi de 0,01 ton/ha. 5. Adicionalmente, em 2006 a agricultura produziu 2,5 x 10 9 Giga joules (2,5 Exa joules) de energia metabolizável (aproveitável para a alimentação humana e animal), enquanto a pecuária produziu 0,1 x 10 9 Giga joules. Segundo as necessidades de consumo per capita de 3,82 Giga joules por ano (2.500 kcal dia) e de 18 kg de proteínas por ano (50g dia), a safra agrícola de 2006 foi suficiente para alimentar 641 milhões de pessoas com energia ou 2,1 bilhões de pessoas com proteínas. Por sua vez, a safra pecuária foi suficiente para alimentar 17 milhões de pessoas com energia ou 85 milhões de pessoas com proteínas. 6. Em 2006 a agricultura ainda forneceu 5,3 x 10 9 Giga joules de energia não aproveitável para a alimentação (duas vezes mais que a energia aproveitável para a alimentação), revelando o alto potencial energético da agricultura para ser convertida em combustíveis, eletricidade ou utilizada em outros processos de pós-colheita industrial, ou até mesmo permanecendo como resíduo no campo.

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SUSTENTABILIDADE EM DEBATE | nº 2 | Dezembro 2015

A FUNCIONALIDADE DA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA (1975 A 2020) The functionality of Brazilian agriculture (1975 to 2020)

Vinicius Guidotti1, Felipe Cerignoni1, Gerd Sparovek2, Luís Fernando Guedes Pinto1*, Alberto Barreto3

1 – Pesquisadores do Imaflora 2 – Professor Titular da Esalq/USP 3 – Consultor *contato: [email protected]

PRINCIPAIS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES

1. Pela primeira vez a safra brasileira foi analisada com uma abordagem funcional. A funcionalidade foi definida pela

importância dos produtos agropecuários em prover proteína, energia metabolizável e energia não metabolizável.

Estes três componentes são os elementos básicos para a alimentação humana e animal e a geração de energia.

Isolando-se os elementos básicos de cada produto, é possível somá-los, agregá-los e compará-los, mantendo uma

coerência analítica. Isto permite comparar o valor funcional de culturas e produtos distintos, como soja, banana,

mandioca e boi.

2. Utilizando dados dos censos agropecuários do IBGE de 1975, 1985, 1996 e 2006 e projetando para 2014 e 2020;

transformamos a produção agrícola e pecuária em proteína, energia aproveitável para a alimentação humana e

animal e energia disponível, mas não aproveitável para a alimentação humana.

3. Verificamos que a agricultura produz uma quantidade muito maior de proteína e energia do que a pecuária e com

eficiência muito superior. Em 2006 a produção total de proteína da agricultura foi 25 vezes maior do que da pecuária,

ocupando uma área 2,6 vezes menor que a de pastagem. As projeções para 2020 indicam que esta diferença deve se

acentuar.

4. Em 2006 a agricultura produziu 38,5 milhões de toneladas (Mton) de proteínas em 60 milhões de hectares (Mha),

enquanto a pecuária produziu 1,5 Mton de proteínas em 160 Mha. Em 2006 a eficiência de produção de proteína na

agricultura foi de 0,60 ton/ha e na pecuária foi de 0,01 ton/ha.

5. Adicionalmente, em 2006 a agricultura produziu 2,5 x 109 Giga joules (2,5 Exa joules) de energia metabolizável

(aproveitável para a alimentação humana e animal), enquanto a pecuária produziu 0,1 x 109 Giga joules. Segundo as necessidades de consumo per capita de 3,82 Giga joules por ano (2.500 kcal dia) e de 18 kg de proteínas por ano (50g dia), a safra agrícola de 2006 foi suficiente para alimentar 641 milhões de pessoas com energia ou 2,1 bilhões de pessoas com proteínas. Por sua vez, a safra pecuária foi suficiente para alimentar 17 milhões de pessoas com energia ou 85 milhões de pessoas com proteínas.

6. Em 2006 a agricultura ainda forneceu 5,3 x 109 Giga joules de energia não aproveitável para a alimentação (duas vezes

mais que a energia aproveitável para a alimentação), revelando o alto potencial energético da agricultura para ser

convertida em combustíveis, eletricidade ou utilizada em outros processos de pós-colheita industrial, ou até mesmo

permanecendo como resíduo no campo.

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7. Entre 1975 e 2006 a produção de proteínas nacional da agricultura aumentou 3,5 vezes enquanto a da pecuária

aumentou 1,7 vezes.

8. A produção de proteína da agricultura é feita com uma emissão relativa de gases de efeito estufa muito menor que a

de pecuária. Em 2006 a produção agrícola resultou em emissões de 1,4 ton GHG / ton de proteína produzida,

enquanto as emissões da pecuária foram de 220 ton GHG / ton de proteína produzida.

9. Entre 1975 e 2006 a produção agrícola aumentou em todas as regiões, tanto em áreas consolidadas (sul e sudeste),

como em áreas em expansão (centro-oeste e nordeste). Neste período a participação da região norte na agricultura

foi muito pequena. Entre 1975 e 2006 a eficiência (produtividade) aumentou continuamente em todas as regiões, em

taxas maiores que da pecuária.

10. Entre 1975 e 2006 a produção pecuária total diminuiu nas regiões sul e sudeste e aumentou de forma importante no

centro-oeste e na região norte. A eficiência da pecuária (produtividade) também aumentou continuamente em todas

as regiões entre 1975 e 2006, mas com taxas menores que da agricultura.

11. O valor da produção da agricultura é apenas duas vezes maior do que da pecuária, mesmo produzindo 25 vezes mais

proteína e 37 vezes mais energia. Isto indica que o mercado não reflete adequadamente a funcionalidade, eficiência e

o impacto destas atividades.

12. Além dos ajustes necessários no mercado, uma intervenção pública é imprescindível para induzir mudanças de uso da

terra e produção, visando otimizar a eficiência funcional da agropecuária brasileira e com isto contribuir para

minimizar seus impactos ambientais e sociais.

13. Estimamos uma diminuição da área de pastagens de 160 Mha em 2006 para 153 Mha em 2020 e um aumento da área

de agricultura de 60 para 67 Mha. Isto corresponderá a um acréscimo (entre 2006 e 2020) de 0,2 Mton de proteínas

da pecuária e 8 Mton de proteína da agricultura; com aumento contínuo da quantidade e da eficiência dos dois

setores em todas as regiões do Brasil.

14. Nossas projeções não consideram importantes iniciativas públicas e privadas que têm influenciado a dinâmica de

expansão e intensificação da agropecuária brasileira desde a publicação do último censo agropecuário em 2006.

Exemplos são as moratórias da soja e da carne, o novo código florestal, o Plano ABC, a INDC brasileira de 2015, os

compromissos do Tropical Forest Alliance, entre outros. Estas iniciativas visam estimular a expansão da agricultura

pela substituição de pastagens, restringir a expansão da pecuária e acelerar a sua intensificação. A intensidade do

efeito destas inciativas ainda é incerto. Estimativas mais precisas dependem de estudos mais específicos.

15. A abordagem funcional tornou comparáveis coisas diferentes e simplificou a análise da safra nacional. Assim, permitiu

isolar fatores que determinam os resultados quantitativos e qualitativos da agropecuária e as suas consequências

econômicas e socioambientais, como as tomadas de decisão do produtor e de toda a cadeia produtiva (incluindo o

consumidor). Justamente por isolar estes fatores, esta abordagem reducionista e sem julgamento permitiu visualizar

os resultados e as consequências das decisões de maneira mais explícita e objetiva.

MAIN FINDINGS AND REMARKS

1. For the first time the Brazilian harvest was analyzed with a functional approach. Functionality was defined by the

importance of agricultural products in providing protein, metabolizable energy and not metabolizable energy. These

three components are the building blocks for food and feed and energy generation. By isolating the basic elements of

each product, it became possible to sum, aggregate and compare them, reaching an analytical consistency. It allows

us to compare the functional value of crops and different products, such as soy, banana, cassava and cattle.

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2. Using data from the IBGE agricultural census from 1975, 1985, 1996 and 2006 and projecting for 2014 and 2020; we

transformed the crops and cattle production in protein, usable energy for human and livestock consumption and

available energy, but not usable for human or livestock consumption.

3. We found that crops produced a much higher amount of protein and energy than cattle and with much higher

efficiency. In 2006 the total amount of protein from crops was 25 times higher than from cattle, while occupying an

area 2.6 times smaller than pastures. Projections for 2020 indicate that this difference should increase overtime.

4. In 2006 crops produced 38.5 million tons (Mton) of protein in 60 million hectares (Mha), while cattle produced 1.5

Mton of protein in 160 Mha. In 2006 efficiency of protein production from crops was 0.60 ton / ha, while cattle

was 0.01 ton / ha.

5. In addition, in 2006 crops produced 2.5 x 109 Giga joules (2.5 Exa joules) of metabolizable energy (usable for food and

feed), while cattle produced 0.1 x 109 Giga joules. Following the per capita consumption needs of 3.82 Giga joules per

year of energy (2.500 kcal per day) and 18 kg per year of proteins (50g daily), the harvest of 2006 was enough to feed

641 million people with energy or 2.1 billion people with proteins. In turn, livestock harvest was enough to feed 17

million people with energy or 85 million people with proteins.

6. In 2006 crops also provided 5.3 x 109 Giga joules of energy no usable for food and feed (twice more than the usable

energy to food and feed), revealing the high energy potential of crops to be converted into fuels, electricity or used in

other post-harvest industrial processes or even remain as residue in the field.

7. Between 1975 and 2014 the production of proteins from crops increased 3.5 times while the one from cattle

increased 1.7 times.

8. Protein from crop production is made with a much smaller relative emission of greenhouse gases than cattle. In 2006

crop production resulted in emissions 1.4 ton GHG / protein ton, while for cattle it was 220 ton GHG / protein ton.

9. Between 1975 and 2006 crop production increased in all regions, both in consolidated areas (south and southeast)

and in expanding areas (midwest and northeast). During this period the share of crops in the northern region was very

small. Between 1975 and 2006 the efficiency (productivity) increased steadily in all regions, but in higher rates than

cattle.

10. Between 1975 and 2006 total cattle production declined in the south and southeast regions and increased

significantly in the midwest and the northern regions. Cattle efficiency (productivity) also steadily increased in all

regions between 1975 and 2006, but with lower rates than crops.

11. The value of agricultural production is only twice higher than cattle, even producing 25 times more protein and 37

times more energy. It indicates that the market does not adequately reflect the functionality, efficiency and impact of

such activities.

12. In addition to the necessary adjustments in the market, public intervention is essential to induce land use changes and

production to optimize the functional efficiency of Brazilian agriculture and thus contribute to minimize its

environmental and social impacts.

13. We estimate a reduction from 160 Mha of pasture in 2006 to 153 Mha in 2020 and an increase in the area of crops

from 60 to 67 Mha. It will mean an increase (from 2006 to 2020) of 0.2 Mton of protein from cattle and 8 Mton of

protein from crops. It will happen with continuous increase in the amount and efficiency of both sectors in all regions

of Brazil.

14. Our projections do not consider important public and private initiatives that have influenced the dynamics of

expansion and intensification of Brazilian agriculture since the publication of the last agricultural census in 2006.

Examples are the soy and beef moratoriums, the new Forest Code, the ABC Plan, the Brazilian 2015 INDC, the

commitments of the Tropical Forest Alliance, among others. These initiatives aim to encourage the expansion of crops

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SUSTENTABILIDADE EM DEBATE | nº 2 | Dezembro 2015

over pastures, restrict the expansion of cattle and accelerate its intensification. However, the intensity of the effects

of these initiatives is uncertain and more accurate estimates rely on future more specific studies.

15. The functional approach was capable to compare different things and simplify the analysis of the national crop and

cattle production. Thus, it allowed to isolate factors that determine the quantitative and qualitative results of

agriculture and its economic, social and environmental consequences, as the decision-making of the producer and of

the entire production chain (including consumers). Since these factors were isolated, this reductionist approach and

without judgement, allowed to visualize the results and consequences of the decisions in a more explicit and objective

manner.

INTRODUÇÃO A agropecuária é uma das principais atividades da economia brasileira, sendo a produção no campo responsável por volta de 10% do PIB nacional. A contribuição para o PIB chega próximo de 25% quando agregam-se as etapas anteriores e posteriores ao campo. O setor ocupa 32% do território nacional, num total de 275 milhões de hectares distribuídos em todos os biomas do país. O tamanho e a importância econômica, ambiental e social deste setor são globais. Nas últimas décadas o Brasil passou de importador para um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. A produção do país tem crescido substancialmente devido a uma combinação de expansão (aumento de área) e intensificação (aumento da produtividade). As projeções preveem continuidade do aumento da produção brasileira, mantendo a tendência de expansão e intensificação. O aumento da safra nacional está associado a diversos trade-offs de geração de riqueza e impactos ambientais (desmatamento, emissões de gases de efeito estufa, agrotóxicos, consumo de água) e sociais (concentração da terra e riqueza, emprego, condições de trabalho, renda no campo, gênero). Vários esforços têm sido realizados para entender o histórico e projetar o futuro da produção agropecuária nacional. Todavia, até agora, uma dificuldade metodológica tem limitado a nossa capacidade para organizar, analisar e interpretar a safra. Esta é composta de grande diversidade de produtos, o que faz com que a soma de seus volumes e o significado de sua produtividade sejam muito diversos. Isto leva a uma dificuldade metodológica na utilização direta dos dados que reportam a safra, como, por exemplo, somar a quantidade de cabeças de boi com toneladas de soja. Existe a mesma dificuldade em comparar somente os produtos da agricultura, como a produção de um hectare de milho e um hectare de banana ou um canavial e um pasto. Cada um tem uma função diferente para o resultado final e o papel da agropecuária para fornecer proteína e energia para a humanidade.

A SOLUÇÃO METODOLÓGICA – UM OLHAR FUNCIONAL PARA A SAFRA BRASILEIRA Desenvolvemos um método analítico que permite entender a funcionalidade da safra brasileira. Assim, a produção agropecuária foi expressa em três componentes funcionais: proteína, energia metabolizável (aproveitável para a alimentação humana e animal) e energia não metabolizável (não aproveitável para a alimentação humana ou animal; mas aproveitável para a produção de energia ou para outros usos não alimentares, ou permanecendo no campo como resíduo). Com este método, convertemos os dados dos censos agropecuários do IBGE de 1975, 1985, 1996 e 2006 (base estadual para os dois primeiros anos e municipal para os dois últimos) em componentes funcionais (proteínas, energia metabolizável e não metabolizável). Usando essa série histórica, por meio de modelos de regressões, projetamos estes valores para a safra 2104 e

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2020. A descrição detalhada do método para a organização dos dados censitários nas 12 principais culturas, estimativa da área de pastagens e agrícola, conversão da safra para proteínas e energia e modelagem das estimativas para 2014 e 2020 encontra-

se anexa - http://migre.me/sJh1w Para complementar a nossa análise, usamos os dados do SEEG Brasil (http://seeg.eco.br/) para as estimativas de emissões diretas de gases de efeito estufa da agropecuária (emissões diretas não incluem desmatamento) e do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) para o valor da produção - http://www.agricultura.gov.br/politica-

agricola/noticias/2015/09/valor-da-producao-agropecuaria-de-2015-e-de-rs-473-bilhoes.

RESULTADO – CONTRASTE ENTRE PRODUÇÃO, EFICIÊNCIA, IMPACTO AMBIENTAL E VALOR DA AGRICULTURA E DA PECUÁRIA A primeira análise organiza dados gerais da safra nacional, agregados para o país (Figura 1), com destaque para os seguintes resultados:

• Ocupando uma área 2,6 vezes menor que a pecuária (60 Mha para culturas e 160 Mha para pastagens em 2006), a

contribuição da agricultura (produção vegetal) é muito maior que a da pecuária para proteína e energia. Até para

proteína, a contribuição da agricultura é 25 vezes maior que a da pecuária em volume (38,5 Mton de proteínas de

origem vegetal contra 1,5 Mton de proteínas de carne bovina em 2006).

• Adicionalmente, em 2006 a agricultura produziu 2,5 x 109 Giga joules (2,5 Exa joules) de energia metabolizável

(aproveitável para a alimentação humana e animal), enquanto a pecuária produziu 0,1 x 109 Giga joules. Segundo as

necessidades de consumo per capita de 3,82 Giga joules por ano (2.500 kcal dia) e de 18 kg de proteínas por ano (50g

dia), a safra agrícola de 2006 foi suficiente para alimentar 641 milhões de pessoas com energia ou 2,1 bilhões de

pessoas com proteínas. Por sua vez, a safra pecuária foi suficiente para alimentar 17 milhões de pessoas com energia

ou 85 milhões de pessoas com proteínas.

• O aumento da produção vegetal ocorreu em taxas maiores que a produção animal. Como exemplo, a produção de

proteína vegetal aumentou de 11 para 38 Mton de 1975 a 2006 (3,5 vezes mais), enquanto a produção de proteína de

origem bovina aumentou de 905 mil para 1,5 Mton no mesmo período (1,7 vezes mais).

• A maior produção vegetal ocorre com uma emissão relativa de gases de efeito estufa muito menor que da produção

animal. Em 2006 foram emitidas 52 Mton de GHG para produzir 38 Mton de proteína de origem vegetal

(1,4 ton GHG / ton de proteína produzida). Por outro lado, foram emitidas 339 Mton para produzir as 1,5 milhões de

toneladas de proteína de origem de carne bovina (220 ton GHG / ton de proteína produzida).

• Em 2006 a produção vegetal ainda nos forneceu 5,3 x 109 Giga joules de energia não metabolizável, o que é

aproximadamente duas vezes maior do que a energia metabolizável (2,5 x 109 Giga joules). Portanto, embora já seja

parcialmente utilizada, o potencial energético da agricultura é enorme e sub-utilizado.

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Figura 1. Evolução e estimativas da safra nacional de agricultura e pecuária entre 1975 e 2020, agregando a produção de cada setor em proteínas e energia metabolizável - em barras. As linhas representam a estimativa da evolução das emissões diretas de gases de efeito estufa para cada setor (agricultura e pecuária) até 2014. Fonte dos dados de emissões: SEEG Brasil 2014. A principal razão para a diferença entre a agricultura e a pecuária está na eficiência (produtividade) de cada setor. A eficiência da agricultura foi muito maior que a da pecuária, mesmo para produzir proteínas, entre 1975 e 2006 e nas projeções para 2020. Em 2006 a eficiência de produção de proteína na agricultura foi de 0,60 ton / ha e na pecuária foi de 0,01 ton / ha. (Figura 2). As projeções indicam um aumento da diferença de eficiência para o futuro, com ganhos maiores da agricultura em relação à pecuária. A eficiência da produção por emissão de gases de efeito estufa segue o mesmo padrão histórico e de projeções, com grandes vantagens para a produção de proteína pela agricultura (Figura 2).

Figura 2. Evolução e estimativas da eficiência da produção de proteína da agricultura e pecuária entre 1975 e 2020. As linhas representam a evolução da eficiência em relação a estimativa das emissões diretas de gases de efeito estufa para cada setor (agricultura e pecuária) até 2014.

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No entanto, verificamos que o mercado não regula o valor da produção em função da sua funcionalidade, eficiência e seu impacto ambiental (tendo as emissões como primeira aproximação de impacto ambiental) – Figura 3, com destaque para:

• Enquanto a produção agrícola de proteínas é 25 vezes maior e 60 vezes mais eficiente que a da pecuária, o seu valor

total é somente duas vezes maior que o da pecuária de corte (R$ 180,9 bilhões para a agricultura contra R$ 93 bilhões

para a pecuária de corte em 2006). Considere-se que o valor da produção da agricultura já incorpora a energia para

alimentação, exaltando uma diferença relativa ainda maior de valor frente à pecuária.

• O valor relativo (que considera a eficiência) atenua a discrepância, aumentando o valor da agricultura para 6,4 vezes

maior que da pecuária (R$ 3.762 /ha para a agricultura, contra R$ 586 /ha para a pecuária de corte em 2006). Mesmo

assim, este valor ainda não reflete adequadamente a grande diferença de função, eficiência e impacto entre os

setores.

Figura 3. Evolução do valor bruto da produção total (R$) e relativo (R$/ha) da agricultura e da pecuária brasileira entre 2006 e 2014. Fonte do Valor da produção MAPA (2015). Finalmente, verificamos que estas variações não tem somente ocorrido ao longo das últimas décadas, mas há também uma variação no território, o que verificamos na agregação dos dados por região do país (Figura 4). Estes resultados corroboram com estudos similares sobre a expansão da agropecuária nacional, com destaque para:

• A produção vegetal tem aumentado em todas as regiões, tanto em áreas consolidadas (sul e sudeste), como em áreas

em expansão (centro-oeste e nordeste). Ressaltamos o grande aumento no centro-oeste em 40 anos e a participação

atual ainda marginal na região norte.

• O aumento da produtividade da produção vegetal ocorreu em todas as regiões, com destaque para o centro-oeste.

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SUSTENTABILIDADE EM DEBATE | nº 2 | Dezembro 2015

• A produção animal total diminuiu nas regiões sul e sudeste, enquanto aumentou sensivelmente no centro-oeste e na

região norte. Ao contrário da produção vegetal, a produção pecuária é relevante na região norte, tendo em quatro

décadas partido de um valor marginal para superar a produção do sul e do sudeste em volume.

• O aumento da produtividade da produção pecuária ocorreu em todas as regiões, com destaque para o centro-oeste e

a região norte.

• Os resultados confirmam estudos anteriores que identificaram a substituição da pecuária pela agricultura em regiões

consolidadas (sul e sudestes) e seu avanço para o centro-oeste e o norte do país. Diversos estudos associaram este

avanço ao desmatamento do Cerrado e da Amazônia e a emissões indiretas de gases de efeito estufa da agropecuária.

Estes estudos também mostram que o desmatamento do cerrado está relacionado ao aumento da produção vegetal

nas duas últimas décadas, tanto no centro-oeste como no nordeste, o que nossos resultados também indicaram.

Figura 4. Evolução e estimativas da área ocupada, produção de proteínas e sua eficiência para a agricultura e a pecuária por região do Brasil entre 1975 e 2020.

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SUSTENTABILIDADE EM DEBATE | nº 2 | Dezembro 2015

CONSIDERAÇÕES FINAIS, PROJEÇÕES E PRÓXIMOS PASSOS A análise funcional da safra brasileira revelou aspectos que não são evidentes pela análise apenas dos números de produção. A comparação da evolução histórica entre setores e regiões ganhou objetividade, principalmente em relação à relevância e impactos decorrentes da atividade agropecuária. A abordagem funcional tornou comparáveis coisas diferentes e simplificou a análise da safra nacional. Com esta simplificação ignora-se o efeito dos diversos fatores que determinam os resultados quantitativos e qualitativos da agropecuária e as suas consequências econômicas e socioambientais, como as tomadas de decisão do produtor, de toda a cadeia produtiva e do consumidor. Estes fatores e decisões nem sempre se alinham à essência funcional da safra, ou seja, seu objetivo primário de prover alimento e energia da forma mais eficiente e com menor impacto possível. O desalinhamento é justificado por preferências, resultado econômico ou por outras funções que a atividade agropecuária exerce, como a valorização imobiliária na abertura de novas terras. Justamente por ignorar estes fatores, a abordagem funcional (teológica ou com base na “ciência dos primeiros princípios”) exclui os julgamentos não-essenciais, permitindo assim visualizar seu o efeito de maneira explícita e objetiva. Esta primeira análise da produção agrícola e pecuária brasileira evidenciou uma evolução, com contínuo aumento da produção e produtividade de ambos. Apesar da melhoria contínua, os resultados mostraram as discrepâncias de eficiência entre os dois setores, com grandes desafios para a contribuição da pecuária do ponto de vista funcional e uma consequente desproporção dos seus impactos ambientais. Porém, o estudo apresenta dados agregados e sua interpretação não permite concluir que a agricultura não deva ser mais eficiente para algumas culturas ou regiões. Também não permite concluir que não exista pecuária eficiente em algumas situações. Os resultados também sugerem que o mercado é insuficiente para corrigir as discrepâncias entre setores e que o valor da produção não corresponde à funcionalidade, eficiência e impacto ambiental da agricultura e da pecuária. Além dos ajustes necessários no mercado, uma intervenção pública é imprescindível para induzir mudanças de uso da terra e produção, visando otimizar a eficiência funcional da agropecuária brasileira e com isto contribuir para minimizar seus impactos ambientais e sociais. Estimamos uma diminuição da área de pastagens para 153 Mha e um aumento da área de culturas agrícolas para 67 Mha em 2020. Isto corresponderá a uma produção de 1,72 Mton de proteínas bovina e 46,81 Mton de proteína vegetal; com aumento contínuo da eficiência dos dois setores em todas as regiões do Brasil. Nossas projeções não consideram importantes iniciativas públicas e privadas que têm influenciado a dinâmica de expansão e intensificação da agropecuária brasileira desde a publicação do último censo agropecuário em 2006. Exemplos são as moratórias da soja e da carne, o novo código florestal, o Plano ABC, a INDC brasileira de 2015, os compromissos do Tropical Forest Alliance, entre outros. Estas iniciativas visam estimular a expansão da agricultura pela substituição de pastagens, restringir a expansão da pecuária e acelerar a sua intensificação. A intensidade do efeito destas inciativas ainda é incerto. Estimativas mais precisas dependem de estudos mais específicos. Finalmente, este primeiro estudo apenas aponta um novo método e os primeiros resultados da análise funcional da safra nacional. A partir de 2016 lançaremos novos estudos acadêmicos e de políticas públicas, analisando com maior profundidade a evolução desse setor com a nova abordagem. Analisaremos o processo de expansão e intensificação da agropecuária brasileira, estudando cenários e propondo políticas públicas e privadas para a otimização da produção e da sua sustentabilidade. Além de combinar análise de quantidade, eficiência e funcionalidade deste setor; aos poucos iremos também tratar da qualidade do processo produtivo e sua interação com outros processos ambientais, sociais e econômicos; que também tem enorme consequência para a sustentabilidade do setor regional, nacional e globalmente.

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SUSTENTABILIDADE EM DEBATE | nº 2 | Dezembro 2015 RR

A sustentabilidade é um bom negócio para a agricultura

Ficha catalográfica:A FUNCIONALIDADE DA AGROPECUÁRIA BRA-SILEIRA (1975 A 2020) |Vinicius Guidotti, Felipe Cerignoni, Gerd Sparovek, Luís Fernando Guedes Pinto, Alberto Barreto | Sustentabilidade em debate, Número 2 - Piracicaba, SP: Imaflora, 2015. 10 p.

ISBN: 978-85-98081-95-3

1. Agropecuária, 2. Agricultura, 3. Brasil.

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