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DOUTRINA ESTRANGEIRA A Garantia Jurisdicional da Constituição (A Justiça Constitucional) *1 Hans Kelsen Professor de Direito Público da Universidade de Viena, Áustria. Tradução: Jean François Cleaver – Tradutor do Senado Federal. SUMÁRIO: Introdução; I – O problema jurídico da regularidade; II – A noção de constituição; III – As garantias de regularidade; IV – As garantias de constitucionalidade; IV.1 A jurisdição constitucional; IV.2 O objeto do controle jurisdicional de constitucionalidade; IV.3 O critério do controle jurisdicional de constitucionalidade; IV.4 O resultado do controle jurisdicional de constitucionalidade; IV.5 O processo do controle jurisdicional de constitucionalidade; V – A significação jurídica e política da justiça constitucional. INTRODUÇÃO O presente estudo trata do problema da garantia jurisdicional da Constituição, geralmente denominada justiça constitucional, sob dois aspectos. Primeiramente, e sob o aspecto teórico, este estudo expõe a natureza jurídica dessa garantia, fundamentando-se, em última análise, no sistema globalmente descrito pelo autor em sua “Teoria geral do Estado” (Allgemeine Staatslehre, Berlim, 1925). 2 Em segundo lugar, e sob o aspecto prático, procura-se identificar os meios mais aptos à efetivação da justiça constitucional. Para tanto, apoiou- se o autor nas experiências que vem realizando há vários anos como membro e relator permanente da Alta Corte Constitucional da Áustria. De fato, a * Artigo publicado com autorização do Instituto Hans Kelsen (Hans Kelsen – Institut) – www.univie.ac.at/ staatsrecht-kelsen. 1 NdT: O título do texto-fonte é La garantie juridictionnelle de la Constitution (la Justice constitutionnelle). A presente tradução foi realizada por Jean François Cleaver, a partir de tradução intermediária efetuada por Ch. Eisenmann, publicada na Revue de Droit public et de la Science politique en France et à l’Étranger, Paris, v. XLV, n. 2, avril-mai-juin 1928, p. 197-257. Existem outras edições, entre as quais a francesa do Annuaire de l’Institut du Droit public, Paris: PUF, 1929, p. 52-143, e a tradução castelhana realizada pelo Dr. Rolando Tamayo y Salmorán, da Universidade Nacional Autônoma do México, publicada no Anuario Jurídico, 1974, v. 1. 2 NdT: KELSEN, H. Teoría General del Estado. Trad. de Legas Lacambra. Barcelona: Labor, 1934; idem, México: Fondo de Cultura Económica, 1948; idem, México: Edinal, 1959.

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  • DOUTRINA ESTRANGEIRA

    A Garantia Jurisdicional da Constituio(A Justia Constitucional)*1

    Hans KelsenProfessor de Direito Pblico da Universidade de Viena, ustria.Traduo: Jean Franois Cleaver Tradutor do Senado Federal.

    SUMRIO: Introduo; I O problema jurdico da regularidade;II A noo de constituio; III As garantias de regularidade;IV As garantias de constitucionalidade; IV.1 A jurisdioconstitucional; IV.2 O objeto do controle jurisdicional deconstitucionalidade; IV.3 O critrio do controle jurisdicional deconstitucionalidade; IV.4 O resultado do controle jurisdicionalde constitucionalidade; IV.5 O processo do controle jurisdicionalde constitucionalidade; V A significao jurdica e poltica dajustia constitucional.

    INTRODUO

    O presente estudo trata do problema da garantia jurisdicional daConstituio, geralmente denominada justia constitucional, sob doisaspectos.

    Primeiramente, e sob o aspecto terico, este estudo expe a naturezajurdica dessa garantia, fundamentando-se, em ltima anlise, no sistemaglobalmente descrito pelo autor em sua Teoria geral do Estado (AllgemeineStaatslehre, Berlim, 1925).2

    Em segundo lugar, e sob o aspecto prtico, procura-se identificar osmeios mais aptos efetivao da justia constitucional. Para tanto, apoiou-se o autor nas experincias que vem realizando h vrios anos como membroe relator permanente da Alta Corte Constitucional da ustria. De fato, a

    * Artigo publicado com autorizao do Instituto Hans Kelsen (Hans Kelsen Institut) www.univie.ac.at/staatsrecht-kelsen.

    1 NdT: O ttulo do texto-fonte La garantie juridictionnelle de la Constitution (la Justice constitutionnelle).A presente traduo foi realizada por Jean Franois Cleaver, a partir de traduo intermediria efetuadapor Ch. Eisenmann, publicada na Revue de Droit public et de la Science politique en France et ltranger,Paris, v. XLV, n. 2, avril-mai-juin 1928, p. 197-257. Existem outras edies, entre as quais a francesa doAnnuaire de lInstitut du Droit public, Paris: PUF, 1929, p. 52-143, e a traduo castelhana realizada peloDr. Rolando Tamayo y Salmorn, da Universidade Nacional Autnoma do Mxico, publicada no AnuarioJurdico, 1974, v. 1.

    2 NdT: KELSEN, H. Teora General del Estado. Trad. de Legas Lacambra. Barcelona: Labor, 1934; idem,Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1948; idem, Mxico: Edinal, 1959.

    IsadoraTypewriterDOI: 10.11117/22361766.01.01.05

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    Constituio austraca, aprovada em 1920 a partir de projeto por ele elaboradoa pedido do governo desse pas, conferiu ao instituto da justia constitucionalum desenvolvimento mais amplo do que o dado por qualquer outraConstituio anterior.

    I O PROBLEMA JURDICO DA REGULARIDADE

    1. A garantia jurisdicional da Constituio i.e., a justia constitucional um elemento do sistema de medidas tcnicas que visam assegurar oexerccio regular das funes estatais. Tais funes possuem carter jurdicoinerente: consistem em atos jurdicos. So eles atos de criao de Direito, i.e.,de normas jurdicas, ou atos de execuo de Direito j criado, ou seja, denormas jurdicas j estatudas. Conseqentemente, costuma-se distinguir duasclasses de funes do Estado: a legiferao e a execuo. Esta distino opea criao ou produo de Direito aplicao desse, considerada merareproduo.

    O problema da regularidade da execuo, de sua conformidade com alei e, em conseqncia, o problema das garantias dessa regularidade sofreqentemente examinados. Ao contrrio, a questo da regularidade dalegislao, i.e., da criao do Direito, e a idia de garantias desta regularidadeesbarram em certas dificuldades tericas. No haver petio de princpioem pretender avaliar a criao de Direito usando um padro criado juntocom o objeto avaliado? O paradoxo que existe na idia de conformidade doDireito com o Direito refora-se ainda mais quando conforme a concepotradicional se identifica simplesmente a legiferao como criao de Direitoe, a seguir, a lei como Direito; destarte, as funes designadas como deexecuo, a justia e, de forma ainda mais especfica, a administrao,parecem ser, por assim dizer, externas ao Direito, parecem no gerar Direitopropriamente falando, parecem apenas aplicar, reproduzir um Direito cujacriao j se teria concludo antes de elas serem desempenhadas. Seadmitirmos que a lei o Direito em sua totalidade, a regularidade equivale legalidade. Assim sendo, no lquido e certo que se possa ampliar a noode regularidade.

    Acontece, no entanto, que inexata essa noo da relao existenteentre a legiferao e a execuo. No h entre as duas funes uma oposioabsoluta, como entre a criao e a aplicao do Direito, mas antes umaoposio meramente relativa. Um exame mais apurado mostra que ambasas funes so um ato de criao e, ao mesmo tempo, de aplicao do Direito.A legiferao e a execuo no so duas funes estatais coordenadas; soduas etapas hierarquizadas do processo de criao do Direito e, tambm,duas etapas intermedirias. Tal processo no se limita legiferao: comeana esfera da ordem jurdica internacional, superior a todas as ordens estatais,prossegue com a Constituio e, vencidas as etapas sucessivas da lei, doregulamento, do julgamento e do ato administrativo, termina com os atos

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    de execuo material (Vollstreckungsakte) desses ltimos. Esta enumerao,na qual s nos debruamos sobre as fases intra-estatais, s citada aquipara mostrar resumidamente as principais etapas do processo no qual oDireito regula sua prpria criao e o Estado se cria e se recriaconstantemente com o Direito. A Constituio, a lei, o regulamento, o atoadministrativo, o julgamento e o ato da execuo so, simplesmente, estgiostpicos da formao da vontade coletiva no mbito do Estado moderno.Certamente, pode ocorrer que a realidade se afaste desse tipo ideal. Entreas possveis modificaes do processo-padro de criao do Direito, porexemplo, pode ocorrer que no seja necessria a insero de um regulamento,i.e., de uma norma geral emanada das autoridades administrativas, entre alei e o ato individual; ou, ainda, que o regulamento seja expedido ao amparodireto da Constituio, em vez de s-lo em execuo de uma lei. No entanto,adotaremos aqui, em princpio, a hiptese do processo-padro acima descrito.

    Uma vez que, no essencial, a Constituio rege a feitura da lei, alegiferao , em relao Carta Suprema, aplicao do Direito. Ao contrrio,em relao ao regulamento e outros atos subordinados lei, a legiferao criao de Direito. Da mesma maneira, o regulamento aplicao do Direitoem relao lei e criao de Direito em relao ao julgamento e ao atoadministrativo, que o aplicam. Esses so, por sua vez, aplicao do Direito,se olharmos para cima, e criao de Direito, se olharmos para baixo, ou seja,em relao aos atos pelos quais so executados (vollstreckt).

    O Direito, ao longo de seu percurso entre a Constituio e os atos deexecuo material (Vollstreckungsakte), vai concretizando-se continuamente.A Constituio, a lei e o regulamento so normas jurdicas gerais, mas ojulgamento e o ato administrativo constituem normas jurdicas individuais.

    A liberdade do legislador, subordinado apenas Constituio, sconhece limitaes relativamente inexpressivas, o que lhe d um poder decriao relativamente amplo. E, a cada escalo transposto ao descer na ordemjurdica, vai modificando-se a relao liberdade/limitao, em favor desta:vai aumentando o grau de aplicao e minguando o de liberdade.

    2. Destarte, cada escalo da ordem jurdica tanto uma produo deDireito, em relao ao escalo imediatamente inferior, quanto uma reproduodo Direito, em relao ao escalo imediatamente superior.

    A idia de regularidade aplica-se a cada escalo, na medida em queesse aplicao ou reproduo do Direito, uma vez que a regularidade apenas a relao de correspondncia entre um escalo inferior e outro escalosuperior na ordem jurdica. No somente na relao existente entre atosde execuo material (Vollstreckungsakte) e normas individuais decisoadministrativa e julgamento ou entre esses atos de execuo (Vollziehungsakte)e as normas gerais, legais ou regulamentares, que se pode postular aregularidade e garantias tcnicas capazes de assegur-la, como tambmnas relaes existentes entre o regulamento e a lei e, ainda, entre a lei e aConstituio. Por isso, garantias de legalidade dos regulamentos e de

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    constitucionalidade das leis so to concebveis quanto garantias deregularidade dos atos jurdicos individuais.

    Garantias da Constituio so, portanto, garantias de regularidadedas regras imediatamente subordinadas Constituio, ou seja, no essencial,garantias de constitucionalidade das leis.

    3. O fato de garantias constitucionais serem almejadas e de que essaquesto seja debatida cientificamente ainda hoje ou, melhor dito, apenashoje se deve a razes tericas e, tambm, a razes polticas. Por um lado,h pouco tempo que apareceu na doutrina a idia de estrutura hierrquicado Direito ou, o que vem a ser o mesmo, da natureza jurdica de todas asfunes estatais e de suas relaes recprocas. Por outro lado, decorre demotivos polticos o fato de o Direito dos Estados modernos, que possuinumerosos institutos destinados a assegurar a legalidade da execuo, sadotar medidas muito limitadas para garantir a constitucionalidade das leise a legalidade dos regulamentos. Esses motivos, por sua vez, no deixam deinfluenciar a formao da doutrina, doutrina essa que deveria ser a primeiraa prestar esclarecimentos sobre a possibilidade e a necessidade de taisgarantias.

    Tal fenmeno ocorre, particularmente, nas democracias parlamentaresda Europa que se originaram de monarquias constitucionais. A teoria jurdicada monarquia constitucional, neste momento em que essa forma de Estadoest passando para o segundo plano, ainda exerce forte influncia. Seja demaneira consciente nos casos em que se deseja organizar a Repblicasegundo o modelo da monarquia, com um poder presidencial forte , seja deforma inconsciente, a doutrina do constitucionalismo determina, em largamedida, a teoria do Estado. Como a monarquia constitucional nasceu damonarquia absoluta, em muitos pontos sua doutrina norteada pelo desejode apresentar a reduo de poder imposta ao monarca, outrora absoluto,como algo mnimo, to insignificante quanto possvel, ou at de escamote-la por inteiro. Na monarquia absoluta, a distino entre o nvel da Constituioe o da lei pode existir, em teoria; mas, na prtica, ela no desempenhaqualquer funo, pois a Constituio se limita ao preceito de que qualquermanifestao da vontade do monarca uma norma jurdica compulsria.Com isso, no existe forma constitucional particular, i.e., normas jurdicasque sujeitem a regras diferentes a feitura da lei e a reviso da Constituio.Nesse tipo de Estado, o problema da constitucionalidade das leissimplesmente carece de sentido. A transio para a monarquia constitucionalacarreta uma modificao decisiva a esse respeito, expressa de forma muitocaracterstica na designao monarquia constitucional. A nova e maiorimportncia de que se reveste a noo de Constituio, a existncia de umaregra a prpria Constituio impondo certa maneira de fazer as leis com a colaborao dos representantes da Nao , o fato de que essa regrano pode ser alterada to facilmente como outras regras gerais de direito as leis , havendo assim, ao lado da forma legal ordinria, uma forma especial

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    mais difcil a forma constitucional, com maioria qualificada, aprovaomediante mltiplas votaes, assemblia constituinte especial, tudo isso manifestao de um deslocamento do poder de deciso. Poder-se-ia pensar,com isso, que a monarquia constitucional seria um terreno de eleio para aafirmao enrgica do problema da constitucionalidade das leis e, da, dasgarantias da Constituio. O que se viu foi exatamente o oposto. A doutrinaconstitucionalista jogou um vu sobre o novo estado de coisas que ameaavao poder do monarca. Em contraste com a realidade constitucional, essadoutrina apresenta o monarca como o fator nico ou, no mnimo, como ofator verdadeiro da legiferao, declarando que a lei no seno expressode sua vontade e que a funo do Parlamento se reduz a uma adeso maisou menos necessria, secundria, no essencial. Exemplo disso a famosatese do princpio monrquico elaborada por essa doutrina, que no sededuz da Constituio mas , por assim dizer, introduzida nessa desde forapara permitir que a Lei Suprema seja interpretada em certo sentido polticoou, para ser mais exato, para adulterar o Direito positivo graas a umaideologia a ele alheia. Outro exemplo a famosa distino entre omandamento inerente lei, que emanaria apenas do monarca, e o contedoda lei, que resultaria de acordo entre o monarca e os representantes da Nao.Em decorrncia desse mtodo, no se considera imperfeio tcnica daConstituio mas, ao contrrio, interpretao correta de seu sentido profundoo fato de que uma lei tenha que ser considerada eficaz apenas porque foipublicada no Boletim das Leis com a assinatura do monarca,independentemente de terem sido atendidas ou no as prescries relativasa sua aprovao pelo Parlamento. Assim fazendo, reduz-se para quase nada ao menos, em teoria o progresso capital que a passagem da monarquiaabsoluta para a monarquia constitucional e, em todo caso, tambm se reduzo problema da constitucionalidade das leis e das garantias dessaconstitucionalidade. A inconstitucionalidade de uma lei assinada pelomonarca ou, a fortiori, sua anulao por esse motivo no podemabsolutamente aparecer conscincia jurdica como questes de interessena prtica. Alm disso, a doutrina constitucionalista apoiando-se muitomenos no texto da Constituio do que na referida ideologia reivindicapara o monarca no s o poder de sancionar os diplomas legais como tambm com esse poder e dentro desse poder a exclusividade da promulgaodas leis. Ao assinar a lei aprovada pelo Parlamento, estaria o monarcaatestando a constitucionalidade da feitura da lei. Existiria assim, segundoessa doutrina, certa garantia, ao menos quanto a uma parte do processolegislativo; mas a funo de controle caberia, justamente, instncia quedeveria ser controlada. A referenda aposta pelo ministro, sem dvida,acrescenta mais uma responsabilidade ao ato do monarca. Mas, namonarquia constitucional, a responsabilidade ministerial, se dirigida contraatos do monarca, carece de interesse prtico; e um ministro no pode serresponsabilizado por vcios do processo legislativo, que compete ao

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    Parlamento, uma vez que foi esse mesmo Parlamento que realizou o processolegislativo.

    A teoria, ainda muito difundida e defendida sob os mais diversosargumentos, segundo a qual preciso retirar dos rgos de aplicao doDireito o exame da constitucionalidade das leis, incumbindo os tribunais deverificar, quando muito, a regularidade da publicao, teoria segundo a qualo poder de promulgao do chefe do Estado garantia suficiente daconstitucionalidade da feitura das leis, essa teoria e a consagrao dessasidias polticas pelo Direito positivo, nas prprias constituies dasRepblicas de hoje, no se devem, por fim, doutrina constitucionalista,cujas idias influenciaram, de forma mais ou menos consciente, a organizaodas democracias modernas.

    II A NOO DE CONSTITUIO

    4. A questo da garantia e do modo de garantia da Constituio, i.e.,da regularidade dos escales da ordem jurdica a ela imediatamentesubordinados, s pode ser resolvida por quem tenha uma noo clara do que uma Constituio. Essa noo s pode ser fornecida pela teoria, que aquidesenvolvemos, da estrutura hierrquica (Stufenbau) da ordem jurdica. Noh exagero, inclusive, em afirmar que s ela permite entender o sentidoimanente dessa noo fundamental de Constituio, j divisada pela teoriado Estado da Antigidade, porquanto essa noo implica a idia de hierarquiadas formas jurdicas.

    Um ncleo permanente perspassa as mltiplas transformaes sofridaspela noo de Constituio: a idia de um princpio supremo, que determinaa ordem estatal em sua totalidade e a essncia da comunidade constitudapor essa ordem. Qualquer que seja a definio da Constituio, essa sempreo alicerce do Estado, a base da ordem jurdica que se pretende abarcar. Oque sempre, e em primeiro lugar, se entende por Constituio nissocoincidindo essa noo com a de forma do Estado um princpio em que seexpressa juridicamente o equilbrio das foras polticas do momento, umanorma que regula a elaborao das leis, das normas gerais em execuo dasquais atuam os rgos estatais tribunais e autoridades administrativas.Essa regra da criao das normas jurdicas essenciais do Estado, dadeterminao dos rgos e do processo legislativo forma a Constituio, nosentido prprio, original e estrito do termo. a base indispensvel das normasjurdicas que regulam a conduta recproca dos membros da comunidadeestatal e das normas que determinam os rgos encarregados de aplic-lase imp-las, assim como a forma de atuao desses rgos; em suma, aConstituio a base fundamental da ordem estatal.

    Da que se deseje dar-lhe a maior estabilidade possvel, distinguir asnormas constitucionais das normas legais, sujeitando sua reviso a

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    procedimento especial, que comporta requisitos de mais difcil atendimento.Assim que aparece uma distino entre a forma constitucional e a formalegal ordinria. Pode-se dizer, inclusive, que apenas a Constituio, no sentidoestrito e prprio do termo, se reveste dessa forma especial ou como se dizhabitualmente, se no acertadamente que a Constituio no sentido materialcoincide com a Constituio no sentido formal.

    Se o Direito positivo conhece uma forma constitucional especial,distinta da forma legal, nada se ope a que essa forma constitucional tambmseja usada para normas que no fazem parte da Constituio no sentidoestrito, em primeiro lugar para normas reguladoras, no da criao, mas docontedo das leis. Disso resulta a noo de Constituio no sentido lato. anoo a que se recorre quando as Constituies modernas contm, almdas regras relativas aos rgos e ao processo legislativo, uma enumeraode direitos fundamentais da pessoa ou de liberdades individuais. Com isso este o sentido primordial, embora no exclusivo, dessa prtica aConstituio define princpios, orientaes e limites para o contedo dasleis que se venham a fazer. Ao proclamar a igualdade dos cidados perantea lei, a liberdade de opinio, a liberdade de conscincia, a inviolabilidade dapropriedade, sob a forma habitual de garantia, dada aos sujeitos, de umdireito subjetivo igualdade, liberdade, propriedade etc., a Constituiodispe, no fundo, que as leis, alm de serem elaboradas da maneira por elaprescrita, no podero conter qualquer disposio que atente contra aigualdade, a liberdade, a propriedade etc. Destarte, a Constituio no apenas regra processual, tambm regra de fundo. Em conseqncia, umalei pode ser inconstitucional em razo de alguma irregularidade processualcometida em sua feitura ou porque seu contedo contraria os princpios ouorientaes formulados na Constituio, extrapolando os limites nelaestabelecidos.

    Por isso, distingue-se amide a inconstitucionalidade formal dainconstitucionalidade material das leis. Tal distino s pode ser aceita coma ressalva de que a chamada inconstitucionalidade material , em ltimaanlise, uma inconstitucionalidade formal: uma lei cujo contedo fere asprescries da Constituio deixaria de ser inconstitucional se fosse aprovadacomo uma lei de natureza constitucional. A nica questo real, portanto, saber se preciso observar a forma legal ou a forma constitucional. Se oDireito positivo no fizer distino entre essas, o estabelecimento deprincpios, orientaes e limites para o contedo das leis no tem sentidojurdico, apenas uma aparncia motivada por razes polticas, como so,alis, as liberdades constitucionalmente garantidas nos casos no raros em que a Constituio permite que sejam restritas pela legislao ordinria.

    5. As disposies constitucionais relativas ao processo e ao contedodas leis s podem ser precisadas em leis. Assim sendo, as garantias daConstituio no so seno meios de evitar leis inconstitucionais. Masquando valendo-se da idia de forma constitucional a noo de

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    Constituio passa a abranger outros objetos alm do processo legislativoou princpios relativos ao contedo das leis, possibilita-se que a Constituiose concretize em formas jurdicas outras que no as leis, particularmenteem regulamentos ou, at, em atos jurdicos individuais. O contedo daConstituio pode tornar uma lei intil, assim como uma lei pode ser tal quepossa ser aplicada mediante atos administrativos ou jurisdicionais sem quehaja necessidade de um regulamento. Por exemplo, pode a Constituiodispor que, dentro de condies exatamente determinadas, normas geraissejam editadas no por uma votao do Parlamento, mas por um ato dogoverno; so os regulamentos de necessidade, que ficam no mesmo escaloque as leis, tm a mesma fora que as leis, as substituem e as alteram eficam imediatamente subordinados Constituio, o que no se d com osmeros regulamentos complementares, que podem, como as leis, serimediatamente inconstitucionais e contra os quais devem,conseqentemente, atuar as garantias constitucionais, como o fazem contraas leis inconstitucionais.

    Nada se ope, por outro lado, a que sejam expedidas na formaconstitucional normas que contenham no apenas princpios, orientaes,limites para o contedo das leis a serem editadas, por isso suscetveis deserem concretizadas somente por leis, mas que, ao contrrio, regulem amatria de forma to completa que sejam imediatamente aplicveis aos casosconcretos mediante atos jurisdicionais e, mais ainda, atos administrativos.Assim ocorre quando a Constituio nesse sentido ampliado determinao modo pelo qual se designam certos rgos executivos supremos Chefedo Estado, Ministros, Tribunais superiores etc. de tal forma que possamesses rgos ser criados sem interveno de qualquer regra de detalhecomplementar Constituio seja lei ou regulamento em aplicaoimediata da prpria Constituio. Essa matria, de fato, parece estar inseridana noo corrente de Constituio. Tradicionalmente, entende-se porConstituio no sentido material no somente as regras relativas aosrgos e processo legislativos, como tambm as que dizem respeito aosrgos executivos supremos e, outrossim, determinao das relaes deprincpio entre o Estado e seus sditos pelo que se designa simplesmentea enumerao dos direitos fundamentais, i.e., para usar uma expressojuridicamente correta, certos princpios relativos ao contedo das leis. Aprtica dos Estados modernos tambm coincide com esta noo e essastrs partes soem constar de suas Constituies.

    Se for o caso, no apenas normas gerais leis ou regulamentos mas,tambm, atos individuais ficam imediatamente subordinados Constituioe podem, por isso, ser imediatamente inconstitucionais. Naturalmente, pode-se ampliar vontade o nmero de atos individuais imediatamentesubordinados Constituio; para tanto, basta revestir da formaconstitucional, por quaisquer razes polticas, normas jurdicas diretamenteaplicveis aos casos concretos, por exemplo, votar as leis relativas s

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    associaes ou s igrejas como leis constitucionais. Embora uma garantiada regularidade dos atos de execuo dessas leis tenha, formalmente, carterde garantia constitucional, evidente que, por ter sido a noo deConstituio estendida excessivamente alm de seu domnio original e, porassim dizer, natural domnio esse resultante da teoria da estruturahierrquica do Direito , a garantia especfica da Constituio, cujaorganizao tcnica a justia constitucional estudaremos mais adiante,no pode inserir-se simplesmente neste contexto, porquanto o carterindividual do ato inconstitucional embasaria evidente concurso da justiaconstitucional com a justia administrativa, sistema de medidas destinadasa garantir a legalidade da execuo e, particularmente, da administrao.

    6. Em todos os casos examinados at aqui tratamos de atosimediatamente subordinados Constituio e, portanto, de fatos deinconstitucionalidade imediata. De tais atos, distinguem-se nitidamenteaqueles que j no so imediatamente subordinados Constituio e, porisso, s podem ser mediatamente inconstitucionais.

    Quando a Constituio estabelece expressamente o preceito dalegalidade da execuo (Vollziehung) em geral e dos regulamentos emparticular, essa legalidade significa ao mesmo tempo de forma indireta constitucionalidade, e vice-versa. Assinalemos aqui, em particular, por tratar-se de norma geral, o regulamento complementar, cuja funo de garantia dalegalidade tambm pode ser colocado, por motivos que examinaremos maisadiante, entre as funes da justia constitucional. Tambm cumpre assinalarque a inconstitucionalidade direta nem sempre facilmente distinguvel dainconstitucionalidade indireta: entre os dois tipos, podem existir formasmistas ou intermedirias. o que ocorre, por exemplo, quando a Constituioautoriza imediatamente, diretamente, todas as autoridades administrativas,ou algumas delas, nos limites de sua competncia, a expedir regulamentosde execuo das leis que devem aplicar. Neste caso, as autoridades possuemum poder regulamentar imediatamente conferido pela prpria Constituio.Entretanto, a matria a ser ordenada por elas, ou seja, o contedo dosregulamentos por elas expedidos, determinada pelas leis, que se situamentre essas autoridades e a Constituio. Evidentemente, tais regulamentoscomplementares devem ser distinguidos, justamente pelo grau deproximidade da Constituio, daquele outro tipo de regulamentos a que nosreferimos acima, os que derrogam leis ou as substituem, os que soimediatamente subordinados Constituio e, portanto, s podem serinconstitucionais, jamais ilegais.

    Outro caso: quando a Constituio edita princpios relativos aocontedo das leis, por exemplo, enumerando direitos fundamentais, os atosadministrativos realizados em aplicao dessas leis podem ser incons-titucionais, mas no no sentido em que pode s-lo um ato administrativoilegal. Se, por exemplo, a Constituio dispuser que a desapropriao spoder ser realizada com plena e inteira indenizao e se, num caso concreto,

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    for realizada uma desapropriao ao amparo de uma lei perfeitamenteconstitucional que, ela tambm, estabelea o princpio de plena indenizao, mas deixando de cumprir o disposto nessa lei ou seja, sem pagarindenizao , o ato administrativo no ser ilegal e, em conseqncia,indiretamente inconstitucional no sentido ordinrio: esse ato ter sidorealizado no apenas de forma contrria lei e, da, ao princpio constitucionalgeral da legalidade da execuo, como tambm de forma contrria a umprincpio especial expressamente estabelecido pela Constituio o de quetoda desapropriao deve ser acompanhada de plena e inteira indenizao extrapolando assim esse limite especial imposto ao legislador pelaConstituio. Nessas condies, seria compreensvel que se mobilizasse,contra os atos ilegais dessa natureza, algum instituto com funo de garantiaconstitucional.

    O princpio constitucional da legalidade da execuo no significaapenas que todo ato de execuo deve guardar conformidade com a lei mastambm, essencialmente, que esse ato s pode ser praticado em virtude deuma lei, se for autorizado por uma lei. Conseqentemente, se uma autoridadeestatal seja ela tribunal ou agente administrativo praticar um ato semqualquer base legal, tal ato no propriamente ilegal, porquanto no h leipela qual se possa apreciar sua legalidade: esse um ato sem lei e, comotal, imediatamente inconstitucional. No importa que esse ato sem leideixe de referir-se a alguma lei, ou que se refira a uma lei meramente fictcia,como por exemplo no caso de uma administrao que desapropriaria umimvel urbano invocando uma lei que autoriza desapropriar imveis ruraispara fins de reforma agrria. Embora este caso se distinga nitidamente docaso, acima examinado, de desapropriao ilegal por falta de indenizao,convm no esquecer que, em geral, no muito clara a fronteira entre atossem lei, por isso imediatamente inconstitucionais, e atos ilegais,conseqentemente eivados de inconstitucionalidade apenas mediata.

    7. Alm das leis, de certos regulamentos e dos atos individuais deexecuo que apresentam os caracteres acima referidos, devemos consideraros tratados internacionais como outra forma jurdica imediatamentesubordinada Constituio. As Constituies soem conter prescriesrelativas feitura dos tratados: autorizam o chefe do Estado a celebr-los,conferem ao Parlamento o direito de aprov-los, exigem que sejamtransformados em lei para ter validade interna etc. Os princpiosconstitucionais relativos ao contedo das leis tambm valem para os tratadosinternacionais ou, pelo menos, podero valer para eles pode-se imaginarque o Direito positivo os exclua dessas disposies. Deve-se considerar queos tratados internacionais mantm com a Constituio exatamente a mesmarelao que as leis. Podem ser imediatamente inconstitucionais, sejaformalmente devido a sua feitura , seja materialmente devido a seucontedo. Alis, no importa o tratado ter carter geral ou individual.

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    Entretanto, no se pode determinar de forma perfeitamente unvoca olugar ocupado pelo tratado internacional no edifcio da ordem jurdica. S sepode interpret-lo como norma imediatamente subordinada Constituio,por ela determinada, supondo que essa Constituio seja o escalo supremo,vale dizer, adotando o ponto de vista da primazia do Direito interno. Porm,se superarmos tal ponto de vista e adotarmos a idia da superioridade doDireito internacional sobre as diversas ordens estatais, ou seja, da primaziada ordem jurdica internacional, o tratado internacional passa a ser uma ordemjurdica superior aos Estados signatrios, criada em conformidade com umaregra do Direito das gentes, por um rgo prprio da comunidadeinternacional, formado por representantes desses Estados. Quanto determinao dos membros desse rgo (chefes de Estado, ministros derelaes exteriores, Parlamentos etc.), o Direito internacional delega asdiversas ordens estatais ou sua Constituio. Nesse aspecto, o tratado tempreeminncia sobre a lei e, inclusive, sobre a Constituio, porquanto podederrogar uma lei ordinria ou constitucional, sendo impossvel o contrrio.Pelas regras do Direito internacional, um tratado s pode perder sua foraobrigatria em virtude de outro tratado ou de certos fatos por ele definidos;no a perde em virtude de ato unilateral de uma das partes contratantes,como uma lei. Se uma lei, lei constitucional inclusive, for contrria a umtratado, ela irregular, ou seja, contrria ao Direito internacional. Ope-seimediatamente ao tratado e, mediatamente, ao princpio do pacta suntservanda.

    Naturalmente, outros atos estatais, alm de leis, podem ser contrriosao Direito internacional, por violarem, mediata ou imediatamente, o princpiode observncia das convenes ou das outras regras do Direito internacionalgeral. Por exemplo, se admitirmos que existe uma regra de Direito internacionalpela qual os estrangeiros s podem sofrer desapropriao mediante plena einteira indenizao, toda e qualquer lei constitucional, lei ordinria, atoadministrativo estatal ou deciso judicial que determine a desapropriao debens de estrangeiro sem indenizao ferir o Direito internacional. Cumpreassinalar, alis, que o prprio Direito internacional no proclama a nulidadedos atos estatais a ele contrrios e ainda no elaborou procedimento para suaanulao por um tribunal internacional. Por isso, esses atos permanecemvlidos at serem anulados mediante processo estatal. Em ltima anlise, oDireito internacional no dispe de outra sano que a guerra, sano essaque no faz desaparecer o ato contrrio a suas regras. Mas isso no impedeque o Direito internacional, se admitirmos sua supremacia, possa constituirum padro de avaliao da regularidade de todas as normas estatais, inclusiveda norma suprema, a Constituio.

    III AS GARANTIAS DE REGULARIDADE

    8. Suficientemente esclarecida a noo de Constituio e, com isso, aprpria natureza da constitucionalidade e da inconstitucionalidade, podemos

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    examinar a questo das garantias que podem ser empregadas para protegera Constituio.

    So elas as garantias gerais desenvolvidas pela tcnica jurdica noque diz respeito regularidade dos atos estatais em geral. Podem serpreventivas ou repressivas, pessoais ou objetivas.

    a) As garantias preventivas tendem a prevenir a elaborao de atosirregulares. As garantias repressivas reagem contra o ato irregularj realizado; tendem a impedir sua reiterao, reparar o dano porele causado e, eventualmente, substitu-lo por um ato regular.

    Naturalmente, esses dois elementos tambm podem ficar reunidosem uma medida nica de garantia.

    Entre as numerosssimas garantias meramente preventivas que podemexistir, destaca-se e deve ser mencionada em primeiro lugar a organizaoem forma de tribunal da autoridade criadora do Direito, garantindo aindependncia desse rgo, por exemplo, mediante a inamovibilidade deseus membros. Tal independncia consiste em que o rgo no possa serjuridicamente constrangido, no exerccio de suas funes, por qualquernorma individual (ordem) emanada de outro rgo ou, em especial, de umrgo superior ou pertencente a outro grupo de autoridades. Com isso, orgo s tem que submeter-se s normas gerais, principalmente s leis eregulamentos legais. Outra questo o poder de controlar as leis e osregulamentos que se outorga ao tribunal. A idia, muito difundida ainda, deque a regularidade da jurisdio pode ser assegurada desta maneira assentana hiptese, errnea, de que do ponto de vista jurdico, ou seja, da teoria eda tcnica jurdica, haveria uma diferena de natureza entre a justia e aadministrao. Ora, acontece que do ponto de vista de sua relao com asnormas dos escales superiores relao essa que decisiva para opostulado da regularidade do exerccio da funo , no se distingue tantadiferena assim entre administrao e jurisdio nem, inclusive, entreexecuo e legiferao. A distino entre jurisdio e administrao reside,nica e exclusivamente, no modo de organizao dos tribunais. Prova de tal a existncia da justia administrativa, que consiste em que atosadministrativos, normalmente realizados por autoridades administrativas,sejam efetuados por tribunais; ou, ainda, em que a regularidade dos atosrealizados pelas autoridades administrativas seja controlada por um tribunal,sendo esses atos anulados quando considerados irregulares ou,eventualmente, reformados, i.e., substitudos por um ato regular. A tradicionaloposio entre justia e administrao e o conseqente dualismo da mquinaestatal de execuo s podem ser explicados por motivos histricos e estofadados a desaparecer, segundo apontam, salvo engano, indcios de umatendncia unificao dessa mquina. Do mesmo modo, s a Histria podeexplicar que se enxergue, na independncia de um rgo em relao sordens de outro rgo, uma garantia de exerccio regular de suas funes.

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    A organizao sob forma de tribunal do rgo de criao do Direito no somente a garantia preventiva mais caracterstica da regularidade dosatos a serem realizados, como tambm a primeira do grupo daquelas quedenominamos garantias pessoais. As outras garantias so a responsabilidadepenal, disciplinar, assim como a responsabilidade cvel do rgo que tenhaelaborado um ato irregular.

    b) As garantias objetivas, dotadas de acentuado carter repressivo,so a nulidade ou a anulabilidade do ato irregular.

    A nulidade consiste em que um ato, que pretende ser um ato jurdicoe, em especial, um ato estatal, no o objetivamente, por ser irregular, i.e.,por no satisfazer s condies prescritas por uma norma jurdica de escalosuperior. No ato nulo h, de sada, carncia de qualquer carter jurdico:assim sendo, no h necessidade de outro ato jurdico para priv-lo daqualidade, usurpada, de ato jurdico. Se houvesse tal necessidade, noestaramos lidando com nulidade, mas com anulabilidade. facultado aqualquer pessoa, seja ela autoridade pblica ou simples sujeito, examinar,em quaisquer circunstncias, a regularidade do ato nulo, declar-lo irregulare, em conseqncia, trat-lo como algo no vlido, no obrigatrio. S namedida em que o Direito positivo limita esse poder de examinar qualquerato pretensamente jurdico e decidir quanto a sua regularidade, reservandotal poder para certas instncias, atuantes em certas condies, que umato eivado de qualquer vcio jurdico pode no ser considerado nulo, a priori,mas apenas anulvel. Se no existisse essa limitao, qualquer ato jurdicoeivado de vcio deveria ser considerado nulo, ou seja, como no sendo atojurdico. De fato, os diversos Direitos positivos pem restries muito severasa esse poder, em princpio pertencente a qualquer do povo, de tratar comonulos os atos irregulares. Em geral, os atos dos particulares e os dasautoridades no so tratados da mesma maneira no que tange a esse poder.A grosso modo, constata-se certa tendncia a tratar os atos das autoridadespblicas, ainda que irregulares, como atos vlidos e obrigatrios at que osapague outro ato, emanado de outra autoridade. A questo da regularidadeou irregularidade dos atos das autoridades no deve ser decidida, sem mais,pelo sujeito ou rgo estatal a que se destinam, no intuito de seremcumpridos, mas sim pela prpria autoridade de que emana o ato cujaregularidade se contesta ou, ainda, por outra autoridade, cuja deliberao provocada mediante determinado procedimento.

    Este princpio, acolhido em maior ou menor medida pelos diversosDireitos, que podemos denominar princpio de autolegitimao(Selbstlegitimation) dos atos das autoridades pblicas, comporta certoslimites. No pode o Direito positivo decidir que qualquer ato que se apresentacomo ato de autoridade pblica ser indistintamente considerado como talat que seja anulado, como irregular, por ato emanado de outra autoridade.Seria evidentemente absurdo impor semelhante procedimento para aanulao, verbi gratia, de ato emanado de pessoa totalmente desprovida da

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    qualidade de autoridade pblica. Mas, por outro lado, tampouco se podeconsiderar nulo a priori qualquer ato emanado de autoridade incompetente,ou composta de maneira irregular ou, ainda, mediante processo irregular. Oproblema dificlimo, tanto terica quanto tecnicamente, da nulidade absoluta,s se insere na questo das garantias constitucionais na medida em que preciso afirmar que a nulidade que no pode nunca ser totalmente excludapelo Direito positivo tambm pode existir em atos imediatamentesubordinados Constituio e que, por isso, a nulidade desses atos tambm, de certa maneira, uma garantia da Constituio.

    Nem os sujeitos, nem as autoridades pblicas devem considerar comolei qualquer ato que assim se intitule. inegvel que podem existir atosque, de lei, s tenham a aparncia. Mas no se pode definir com uma frmulaterica geral o limite a separar o ato nulo a priori, que uma pseudolei, doato legislativo eivado de algum vcio, porm vlido como uma leiinconstitucional. S o Direito positivo poderia empreender essa tarefa; masno o faz, em geral, ou pelo menos no o faz de forma consciente ou precisa.As mais vezes, transfere o nus de responder a questo para a autoridadeincumbida de deliberar quando algum indivduo sujeito ou rgo estatal se recusa a observar o ato, argumentando tratar-se de pseudolei. Basta essatransferncia de competncia para que o ato impugnado passe da esfera danulidade absoluta da simples anulabilidade. Pois, a deciso da autoridadede que um ato, que no se quis observar, no era de fato um ato jurdico, spode ser considerada uma anulao desse ato, com certo efeito retroativo.As coisas no so diferentes quando o Direito positivo estabelece um mnimode condies a serem satisfeitas para que o ato jurdico no seja nulo apriori; este o caso, por exemplo, quando a Constituio assenta que terfora de lei tudo aquilo que for publicado no Dirio Oficial com o ttulo de lei,independentemente de outras irregularidades porventura presentes, at queseja anulado por uma instncia habilitada para tal. Afinal, sempre temosuma autoridade pblica encarregada de declarar, de forma autntica, queas condies mnimas foram ou no foram satisfeitas; do contrrio, todomundo poderia furtar-se a obedecer as leis com a simples alegao de queessas no so leis.

    Desde o ponto de vista do Direito positivo, a situao daquele a quemse dirige um ato com a pretenso de ser obedecido , sem exceo, a seguinte:se o tiver por nulo, pode deixar de observ-lo, mas sempre por conta e riscoprprios. Ou seja, corre ele o risco de que, sendo processado pordesobedincia, a autoridade julgadora no considere nulo o ato, ou declareque foram satisfeitas as condies impostas pelo Direito positivo para suavalidade, sem prejuzo da possibilidade de anul-lo mais tarde. Do contrrio,a deciso da autoridade importa cassao do ato, com efeito retroativo aomomento de sua realizao. Impe-se essa interpretao porque a decisoresulta de um processo em que est em jogo a nulidade do ato, de inciosimplesmente afirmada pelo ru, no havendo assim como admitir a nulidade

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    antes da concluso do processo, que pode deneg-la. Impe-se, outrossim,porque essa deciso ter necessariamente carter constitutivo, ainda quandoo acrdo pronuncie a nulidade do ato. Desde o ponto de vista do Direitopositivo, ou seja, da autoridade que se pronuncia sobre o ato alegadamentenulo, s existe anulabilidade, at porque se pode apresentar a nulidade comoum caso extremo de anulabilidade, uma anulao com efeito retroativo.

    A anulabilidade do ato irregular significa que possvel apag-lo,assim como suas conseqncias jurdicas. Na verdade, a anulao comportadiversos graus de alcance e de efeito no tempo.

    Sob o primeiro desses aspectos, pode a anulabilidade como primeirasoluo limitar-se a um caso concreto. No caso de um ato individual, isso bvio. O mesmo no se d no caso de uma norma geral. A anulao de umanorma geral restringe-se ao caso concreto quando as autoridades sejamelas tribunais ou autoridades administrativas que deveriam aplicar a normapodem ou devem negar-se a aplic-la em determinado caso porque a julgamirregular. Em conseqncia, podem ou devem atuar, no caso, como se a normano estivesse em vigor e, quanto ao resto, considerar que a mesma normaest em vigor e deve ser aplicada, em outros casos, por outras autoridadesse estas no tiverem competncia para examinar sua regularidade ou ajulgarem regular. Se a autoridade encarregada de aplicar a norma geral poderetirar sua validade para o caso concreto, quando reconhece suairregularidade, ela dispe efetivamente do poder de anul-la pois queapagar a validade de uma norma e anul-la so a mesma coisa , mas estaanulao meramente parcial e limitada espcie. Essa a situao dostribunais no das autoridades administrativas no que tange aosregulamentos, nos termos de muitas Constituies modernas. Os tribunais,no entanto, nem de longe possuem poderes de controle to extensos emrelao s leis. As mais vezes, no podem julgar da regularidade, i.e., daconstitucionalidade das leis sob todos os aspectos, mas apenas verificar aregularidade de sua publicao; em conseqncia, s podem denegar suaaplicao em concreto devido a alguma irregularidade nessa publicao.So evidentes os defeitos e a insuficincia de uma anulao desse tipo, quese limita espcie. O primeiro resultado disso so a falta de unidade dassolues e a insegurana do direito; essa insegurana percebida, de formamuito desagradvel, quando um tribunal deixa de aplicar um regulamentoou, at, uma lei, julgada irregular, e outro tribunal faz o oposto, sendo aindavedado s autoridades administrativas negar-se a aplicar essa norma setiverem que intervir no caso. Certamente, justifica-se sob todos os aspectosa centralizao do poder de examinar a regularidade das normas gerais.Mas, uma vez entregue esse controle a uma autoridade nica, pode-se trocaro sistema da anulao em concreto pelo da anulao total, ou seja, paratodos os casos em que se deveria aplicar a norma. Escusado dizer que toconsidervel poder s deve ser entregue a uma instncia central suprema.

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    Quanto ao alcance no tempo, pode a anulao limitar-se ao futuro ou,ao contrrio, abranger tambm o passado, i.e., retroagir ou no.Naturalmente, essa diferena s faz sentido para os atos que tmconseqncias jurdicas duradouras, sendo significativa sobretudo para aanulao de normas gerais. O ideal da seguridade jurdica exige que, emgeral, s se atribua efeito pro futuro anulao de uma norma geral irregular,ou seja, a partir dessa anulao. H que estudar a possibilidade, inclusive,de a anulao s entrar em vigor ao termo de determinado prazo. Assimcomo podem existir razes vlidas para antepor uma vacatio legis entradaem vigor de uma norma geral lei ou regulamento, por exemplo , podehaver bons motivos para que uma norma geral, j anulada, s deixe de vigerdecorrido certo prazo depois de sua anulao. No entanto, certascircunstncias podem tornar necessria uma anulao retroativa. E nodevemos pensar somente no caso limite, j considerado, de umaretroatividade ilimitada em que a anulao do ato equivale sua nulidade,quando o ato irregular deve, na apreciao soberana da autoridadecompetente para anul-lo ou em virtude da exigncia, pelo Direito positivo,de condies mnimas para sua validade, ser reconhecido como sendo, merae simplesmente, um pseudo-ato jurdico; devemos sobretudo considerar apossibilidade de haver um efeito retroativo excepcional, limitado a certasespcies ou a determinada categoria de casos.

    Para a organizao tcnica da anulao de um ato, tambm importa,e muito, saber se a anulao s poder emanar do prprio rgo que orealizou, ou se ficar a cargo de outro rgo. Consideraes de prestgioso, sobretudo, o que leva a optar pela primeira soluo. Deseja-se evitarque a autoridade do rgo responsvel pela criao da norma irregular, rgoconsiderado supremo ou que, pelo menos, atua sob o controle e aresponsabilidade de um rgo supremo, seja arranhada sobretudo no casode uma norma geral pelo fato de outro rgo ser autorizado a anular umato seu, sobrepondo-se ao rgo autor, que deveria ser considerado supremo.O que se alega para evitar a anulao dos atos de uma autoridade por outrano apenas a soberania da primeira como, tambm, o dogma daseparao dos poderes. Tal situao ocorre, por exemplo, no controle deatos das autoridades administrativas supremas por uma instncia que poderser levada a anul-los e dever ser alheia organizao administrativa, tendo,por sua funo e sua organizao, carter de autoridade jurisdicionalindependente, ou seja, de tribunal. Em vista do carter sobremaneiraproblemtico da distino entre justia e administrao, o argumento daseparao dos poderes, neste caso, to falho quanto o da soberania dorgo. Ambos os argumentos, alis, desempenham papel particular naquesto das garantias da Constituio. Sob o pretexto de que se deverespeitar a soberania do rgo autor de um ato irregular ou a separao dospoderes, deixa-se a anulao ao arbtrio desse mesmo rgo, dando aosinteressados apenas o direito de apresentar um requerimento de anulao

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    desprovido de qualquer fora obrigatria, um mero direito de petio. Emoutros sistemas, quando existe algum procedimento regular que deve levar revogao do ato irregular por seu autor, a impetrao da demanda sobriga a autoridade a dar incio ao processo, no a conclu-lo de determinadamaneira, ou seja, anulando o ato impugnado. Essa anulao, assim, cabe aopoder discricionrio, embora legalmente vinculado, do prprio rgo querealizou o ato irregular, sem que tal rgo seja controlado por qualquerautoridade superior. Podemos considerar, ainda, um terceiro sistema que,alis, constitui uma transio para o segundo tipo referido: o mrito daregularidade do ato julgado por outra autoridade, mas a anulao do ato competncia exclusiva do rgo que o realizou. Esse rgo pode serjuridicamente obrigado, pela deciso do outro rgo, a anular o ato julgadoirregular; pode at existir prazo para que execute tal obrigao. Mas estavariante tambm no oferece garantia suficiente, no necessrio prov-lode forma mais detalhada. Essa garantia s existe se a anulao do atoirregular for pronunciada imediatamente por um rgo totalmente distintoe independente daquele que fez o ato irregular. Atendo-se tradicionaldiviso das funes estatais em legiferao, jurisdio e administrao, bemcomo diviso conexa do aparelho das autoridades estatais em trs gruposde rgos um aparelho legislativo, um jurisdicional e um administrativo preciso distinguir situaes em que a anulao dos atos irregulares ocorredentro do mesmo aparelho de autoridades por exemplo, os atosadministrativos ou as sentenas irregulares so anuladas por um novo atoadministrativo ou um novo juzo, i.e., por um ato emanado de uma autoridadedo mesmo grupo de rgos, autoridade administrativa superior no primeirocaso, autoridade judiciria superior no segundo, de situaes em que aautoridade incumbida de anular pertence a outro grupo de rgos. O recursohierrquico pertence ao primeiro tipo de situaes, a justia administrativa exemplo do segundo. trao caracterstico dos sistemas jurdicos modernosa regularidade dos atos jurisdicionais ser garantida, quase sem exceo,por meios do primeiro tipo. Considera-se que a independncia dos tribunaisbasta para assegurar a regularidade de seus atos.

    A anulao do ato irregular faz surgir a questo da substituio dessepor um ato regular. Quanto a isso, h que distinguir duas possibilidadestcnicas: a autoridade competente para anular pode ter o poder de substituiro ato anulado por um ato regular, tendo assim competncia no apenas paraanular, como tambm para reformar. Ou, ao contrrio, a elaborao do atoregular pode incumbir autoridade cujo ato irregular foi anulado. Se essaautoridade ficar sujeita soluo de direito formulada no acrdo anulatrio nos considerandos, por exemplo , sua independncia sofre uma restrio,fato esse que, em caso de anulao de um juzo, no irrelevante naapreciao da independncia dos juzes como garantia especfica daregularidade da execuo.

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    IV AS GARANTIAS DE CONSTITUCIONALIDADE

    Entre as medidas tcnicas aqui referidas, que tm por objeto garantira regularidade das funes estatais, a anulao do ato inconstitucionalconstitui a principal e mais eficaz garantia da Constituio. Tal no significa,entretanto, que no se possa imaginar outros meios de assegurar a garantiados atos a ela subordinados.

    Sem dvida, a garantia preventiva, pessoal a organizao em formade tribunal do rgo que realiza o ato est, de sada, fora de cogitao. Alegiferao, que do que se trata aqui em primeiro lugar, no pode ficar acargo de um tribunal; nem tanto por causa da diversidade das funeslegislativa e juridiscional mas, antes, porque a organizao do rgolegislativo essencialmente dominada por outros pontos de vista que o daconstitucionalidade de seu funcionamento. O que aqui decide a grandeanttese entre democracia e autocracia.

    Ao contrrio, as garantias repressivas a responsabilidadeconstitucional e a responsabilidade civil dos rgos que por ventura faamatos irregulares so perfeitamente possveis; no que diz respeito legiferao, no possvel responsabilizar o Parlamento em si ou seusmembros, posto que um colegiado, por diversas razes, no sujeitoapropriado de responsabilidade penal ou cvel. Mas os indivduos associados legiferao chefe do Estado, ministros podem ser responsabilizadospela inconstitucionalidade das leis, mormente quando a Constituio dispeque, com a promulgao ou sua referenda, eles assumem a responsabilidadepela constitucionalidade do processo legislativo. De fato, o instituto daresponsabilidade ministerial, caracterstico das Constituies modernas,tambm tem a funo de garantir a constitucionalidade das leis;desnecessrio dizer que essa responsabilidade pessoal do rgo tambmpode ser empregada para garantir a legalidade dos regulamentos e, emparticular, a regularidade dos atos individuais imediatamente subordinados Constituio.

    No que concerne a esse ltimo quesito, pode-se, outrossim, aventar apossibilidade de existir responsabilidade pecuniria pelos danos decorrentesdos atos irregulares. A histria constitucional, entretanto, demonstra que aresponsabilidade ministerial no um instrumento muito eficaz; at as outrasgarantias pessoais so insuficientes, por no afetarem a fora obrigatria doato irregular, particularmente, a da lei inconstitucional. Em vista desemelhante estado de coisas, at difcil afirmar que a Constituio estejaassegurada: isso s se pode afianar quando possvel a anulao dos atosinconstitucionais.

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    IV.1 A jurisdio constitucional

    9. A garantia constitucional , de todas as hipteses de garantia daregularidade, aquela em que maior a tentao de encarregar da anulaodos atos irregulares o prprio rgo que os produziu. Mas , tambm, asituao em que tal procedimento parece ser mais contra-indicado: comefeito, a nica forma em que esse procedimento parece suscetvel de ofereceralguma garantia eficaz de constitucionalidade declarao da irregularidadedo ato por um terceiro rgo e obrigao, imposta ao rgo autor, de anul-lo impraticvel, pois o Parlamento no pode, por natureza, ser obrigadode forma eficaz. Haveria ingenuidade poltica em supor que anularia umalei por ele aprovada apenas porque outra instncia a teria declaradoinconstitucional. De fato, o rgo legislativo se considera um livre criadorde Direito, no um rgo de aplicao do Direito, vinculado Constituio,embora o seja teoricamente, ainda que em medida relativamente restrita.Assim que no se deve contar com o Parlamento para implementar suaprpria subordinao Constituio. O rgo que convm incumbir de anularseus atos inconstitucionais deve ser distinto dele, independente dele e,portanto, de qualquer outra autoridade estatal: esse rgo deve ser umajurisdio ou um tribunal constitucional.

    Esse sistema suscita, geralmente, algumas objees. A primeira,naturalmente, que semelhante instituto seria incompatvel com a soberaniado Parlamento. Mas alm de que no cabe preocupar-se com a soberaniade determinado rgo estatal, pois a soberania pertence, no mximo, prpria ordem estatal esse argumento no se sustenta: foroso reconhecerque, em suma, a Constituio rege o processo legislativo, exatamente comoas leis regem os procedimentos dos tribunais e das autoridadesadministrativas. A legiferao subordinada Constituio, exatamentecomo a justia e a administrao o so legislao; por isso, o postulado daconstitucionalidade das leis , terica e tecnicamente, absolutamenteidntico ao postulado da legalidade da jurisdio e da administrao. Aquelesque, pelo contrrio, persistem em afirmar que a justia constitucional incompatvel com a soberania do legislador, apenas desejam dissimular odesejo de potncia poltica do rgo legislativo que, em bvia contradiocom o Direito positivo, no quer ser tolhido pelas normas da Constituio.Ainda quando se aprove essa tendncia por razes de oportunidade, noexiste argumento jurdico que a possa justificar.

    Valor no muito diferente tem a segunda objeo, derivada do princpiode separao dos poderes. A anulao de um ato legislativo por um rgodistinto do rgo legislativo , de fato, uma ingerncia no chamado poderlegislativo. Tal argumento, entretanto, revelar-se- muito problemtico seconsiderarmos que o rgo encarregado de anular as leis inconstitucionais,ainda quando organizado como um tribunal com membros independentes no exerce realmente uma funo jurisdicional. A principal diferena entre

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    a funo jurisdicional e a funo legislativa, na medida em que possam serdistinguidas, que esta cria normas gerais, enquanto aquela s cria normasindividuais.3 E anular uma lei equivale a ditar uma norma geral: a anulaode uma lei possui o mesmo carter de generalidade que sua elaborao,sendo uma elaborao com valor negativo e, portanto, uma funo legislativa.Destarte, o tribunal que tem o poder de anular leis um rgo do poderlegislativo. Assim, pode-se considerar a anulao das leis por um tribunaltanto uma distribuio do poder legislativo entre dois rgos quanto umaingerncia no poder legislativo. Nesse caso, no se costuma apontar umaviolao do princpio de separao dos poderes, como nos casos em que aConstituio de uma monarquia constitucional entrega, em princpio, afuno legislativa ao Parlamento juntamente com o monarca mas, em certashipteses excepcionais, esse tem o direito de, com seus ministros, ditarordenanas que constituem excees s leis. No cabe examinar agora osmotivos polticos que deram origem a toda essa doutrina da separao dospoderes, embora seja essa a nica maneira de revelar o verdadeiro sentidodesse princpio, que de manter o equilbrio das foras polticas namonarquia constitucional. Para mant-lo na Repblica democrtica,4 s razovel levar em conta, entre suas diversas significaes, aquela que bem retratada pela expresso diviso dos poderes, expresso essa maisfiel que separao dos poderes: a idia da repartio do poder entre vriosrgos, antes para que se controlem uns aos outros do que para isol-losuns dos outros. Isso, no apenas para impedir excessiva concentrao depoderes nas mos de determinado rgo o que ameaaria a democracia como tambm para assegurar a regularidade do funcionamento dos diversosrgos. Com isso, o instituto da justia constitucional no contradiz, emabsoluto, o princpio de separao dos poderes, sendo pelo contrrio umaafirmao dele.

    Por isso, intil indagar se o rgo encarregado de anular as leisinconstitucionais pode ser um tribunal.

    A independncia desse rgo em relao ao Parlamento e ao governo um postulado evidente, na medida em que so eles que, por serem rgosparticipantes do processo legislativo, devem ser controlados pela jurisdioconstitucional. Caberia, no mximo, examinar se o fato de a anulao dasleis ser, ela tambm, uma funo legislativa, no poderia acarretar certasconseqncias particulares em relao composio e nomeao dosmembros dessa instncia. Mas, na realidade, tal no ocorre, pois todas asconsideraes polticas que dominam a questo da formao do rgolegislativo praticamente no tm mais peso quando se trata de anulaodas leis. A aparece claramente a distino entre a elaborao das leis e sua

    3 Deixando de atentar para o fato de que a distino aqui apontada no distino de princpio, podendoperfeitamente o legislador em especial, o Parlamento ditar normas individuais.

    4 NdT: Esta traduo reproduz o uso de maisculas do texto-fonte francs, que traduo intermediria.

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    simples anulao. Essa anulao ocorre, no essencial, em aplicao dasnormas da Constituio. Nesse ato est quase totalmente ausente a liberdadede criao que caracteriza a legiferao. Enquanto o legislador s estvinculado Constituio pelas normas processuais e, s excepcionalmente,pelo contedo das leis que deve ditar, devendo observar apenas princpiosou diretrizes gerais, a atuao do legislador da jurisdio constitucional, dolegislador negativo, totalmente determinada pela Constituio. justamente nisso que sua funo se parece, no geral, com a de qualqueroutro tribunal: essencialmente uma aplicao do Direito, criao de Direitoapenas em pequena medida, sendo assim uma funo verdadeiramentejurisdicional. Por isso, os princpios essenciais levados em conta para suaconstituio so os mesmos que o so na organizao dos tribunais e dosrgos executivos.

    Nesse particular, no se pode propor uma soluo uniforme para todasas Constituies possveis, devendo a organizao da jurisdioconstitucional adaptar-se s peculiaridades de cada uma. Entretanto, pode-se tecer algumas consideraes de alcance e valor gerais: o nmero de seusmembros no dever ser muito grande, pois dever deliberar sobre questesde direito, cumprindo uma misso puramente jurdica de interpretao daConstituio. Entre as modalidades de recrutamento mais tpicas, no hcomo advogar sem ressalvas a eleio pura e simples pelo Parlamento, nemtampouco a nomeao de responsabilidade exclusiva do chefe do Estado oudo governo. Talvez se possa conjug-las, por exemplo fazendo com que osjuzes sejam eleitos pelo Parlamento em lista elaborada pelo governo, o qualdeveria designar vrios candidatos para cada vaga a preencher, sendotambm possvel o inverso. de suma importncia dar, na composio dajurisdio constitucional, o devido lugar a juristas profissionais. Umprocedimento interessante para tal seria outorgar s Faculdades de Direitoou a uma comisso de que todas participem o direito de apresentarcandidatos para, pelo menos, parte dos cargos ou, ainda, outorgar ao prpriotribunal o direito de apresentar candidatos para cada vaga, que seria providamediante eleio, i.e., mediante cooptao. Pois o tribunal tem o maiorinteresse em reforar sua autoridade, chamando eminentes especialistas.Outrossim, importante excluir da jurisdio constitucional os membros doParlamento e do governo, pois so justamente seus atos os que serocontrolados por ela. Manter a jurisprudncia do tribunal a salvo de todainfluncia poltica ser uma tarefa to difcil quanto desejvel. No se podenegar que especialistas tambm possam consciente ou inconscientemente deixar que consideraes polticas determinem sua atuao. E, caso sejaparticularmente srio esse perigo, ser quase prefervel aceitar, em vez deuma influncia oculta portanto incontrolvel dos partidos polticos, suaparticipao legtima na formao do tribunal, por exemplo prevendo queparte dos cargos sejam providos pelo Parlamento mediante eleio,proporcionalmente representao partidria. Se os outros cargos forematribudos a especialistas, esses ficaro livres para ater-se muito mais a

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    consideraes meramente tcnicas, sabendo que a defesa dos interessespropriamente polticos est a cargo de outros membros.

    IV.2 O objeto do controle jurisdicional de constitucionalidade

    10.I As leis argidas de inconstitucionais so o principal objeto dajustia constitucional.

    H que entender por leis os atos assim denominados que emanamdos rgos legislativos, ou seja, nas democracias modernas, dos Parlamentoscentrais e no caso de um Estado federal locais.

    Devem ser submetidos ao controle da jurisdio constitucional todosos atos em forma de lei, inclusive os que s contm normas individuais e,por exemplo, o oramento e todos aqueles que, por alguma razo, tendem aser vistos como meros atos administrativos pela doutrina tradicional, adespeito de terem forma de lei. O controle de sua regularidade no pode serentregue a qualquer outra instncia que no a jurisdio constitucional. Essadeve dispor do poder de verificar, inclusive, outros atos do Parlamento que,sem terem necessariamente forma de lei no sendo exigida sua publicaono Dirio Oficial , tm carter obrigatrio nos termos da Constituio, porexemplo o regimento interno do Parlamento, a matria oramentria (se essano for aprovada em forma de lei) e outros atos semelhantes.

    Esse poder de verificao tambm deve exercer-se em todos os atosque pretendem valer como leis mas no so leis, por falta de qualquerrequisito essencial, desde que no eivados de nulidade absoluta, caso noqual nem poderiam ser objeto de processo de controle , bem como nos atosque no pretendem ser leis mas deveriam s-lo, nos termos da Constituio,e que para furtar-se ao controle de constitucionalidade, qui foraminconstitucionalmente revestidos de outra forma, sendo aprovados peloParlamento na forma de resoluo no publicada, ou foram publicados apenascomo regulamento. Por exemplo, se a jurisdio constitucional tiver o poderde controlar a constitucionalidade somente das leis e o governo, incapaz deconseguir que se aprove uma lei, disciplinar por via regulamentar umamatria que, nos termos da Constituio, s poderia s-lo pela via legislativa,esse regulamento destinado inconstitucionalmente a fazer as vezes delei deve poder ser argido na jurisdio constitucional.

    Esses exemplos no so imaginrios: j se viu, na ustria, o Parlamentode um Estado dessa confederao procurar disciplinar certa matria em umasimples resoluo, no publicada, sabendo que uma lei seria anulada pelajurisdio constitucional. Se desejarmos impedir que o controle jurisdicionalseja contornado, atos como esse devem poder ser submetidos a essajurisdio. E esse princpio deve aplicar-se, por analogia, a todos os outrosobjetos do controle de constitucionalidade.

    11.II A competncia da jurisdio constitucional no deve limitar-seao controle de constitucionalidade das leis.

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    Essa competncia deve ser estendida, primeiramente, aos regulamen-tos com fora de lei, atos esses imediatamente subordinados Constituio,cuja regularidade consiste exclusivamente como j vimos em suaconstitucionalidade. Este o caso, em particular, dos regulamentos denecessidade. O controle de sua constitucionalidade reveste-se de particularimportncia porque qualquer violao da Constituio, neste caso, afeta afronteira, to importante politicamente, entre a esfera governamental e a doParlamento. Quanto mais estritos forem os requisitos impostos pelaConstituio para sua adoo, maior ser o risco de aplicao inconstitucionaldessas disposies e mais necessrio um controle jurisdicional de suaregularidade. A experincia revela que, onde quer que a Constituio autorizeesses regulamentos de necessidade, sua constitucionalidade si, com ousem razo, ser impugnada com veemncia. de suma importncia existir,para dirimir tais litgios, uma instncia suprema, cuja autoridade no possaser contestada, especialmente se esses litgios devido s circunstncias ocorrerem em reas importantes.

    O controle, pela jurisdio constitucional, da constitucionalidade dosregulamentos que derrogam s leis, no encerra dificuldades: taisregulamentos ocupam o mesmo escalo que as leis na hierarquia dosfenmenos jurdicos, sendo inclusive denominados, s vezes, leis ouregulamentos com fora de lei. Entretanto, seria conveniente atribuirtambm jurisdio constitucional o controle da constitucionalidade dosregulamentos meramente complementares. verdade que esses regula-mentos no so mais, como j o dissemos, atos imediatamente subordinados Constituio; sua irregularidade consiste, imediatamente, em suailegalidade e, de forma apenas mediata, em sua inconstitucionalidade. Se, adespeito disso, propomos que sejam includos na competncia da jurisdioconstitucional, no tanto em considerao relatividade, acima assinalada,da oposio entre constitucionalidade direta e constitucionalidade indireta;, antes, em ateno fronteira natural entre atos jurdicos gerais e atosjurdicos individuais.

    O ponto essencial para determinar a competncia da justiaconstitucional consiste em delimit-la adequadamente em relao dajustia administrativa, que existe na maior parte dos Estados. Desde umponto de vista meramente terico, poder-se-ia assentar a separao dessasduas competncias na noo de garantia da Constituio, incumbindo ajurisdio constitucional de decidir sobre a regularidade de todos os atosimediatamente subordinados Constituio. Com isso, incluir-se-ia em suacompetncia, sem sombra de dvida, questes que, hoje, em muitos Estados,so da competncia dos tribunais administrativos, como, por exemplo, oslitgios relativos regularidade dos atos administrativos individuaisimediatamente subordinados Constituio. Por outro lado, a competnciada jurisdio constitucional no abrangeria o controle de certos atos jurdicosque, hoje, no si caber justia administrativa, entre eles, os regulamentos.Ora, a jurisdio constitucional certamente a instncia mais qualificada

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    para pronunciar a anulao dos regulamentos ilegais. Isso, no apenas porqueela no entraria em conflito de competncia com os tribunais administrativos,hoje geralmente incumbidos, em princpio, de anular os atos administrativosindividuais, mas tambm por existir uma afinidade ntima entre o controleda constitucionalidade das leis e o da legalidade dos regulamentos, devidoa seu carter geral. Assim, dois pontos de vista concorrem para determinara competncia da jurisdio constitucional: por um lado, a noo pura degarantia da Constituio, que levaria a limit-la ao controle de todos os atosimediatamente subordinados Constituio; por outro lado, a oposio entreatos gerais e atos individuais, que levaria a incluir nessa competncia ocontrole das leis e dos regulamentos. preciso, sem incorrer em qualquerpreconceito doutrinal, conjugar esses dois princpios em funo dasnecessidades da Constituio em questo.

    12.III A incluso dos regulamentos no domnio da justiaconstitucional pode acarretar certas dificuldades de delimitao exata dessa,por existirem certas categorias de normas gerais que no so fceis distinguirdos regulamentos: entre outras, aquelas institudas na esfera da autonomiamunicipal, seja por via de resoluo da cmara de vereadores, seja peloexecutivo municipal ou, ainda, normas contidas em atos jurdicos que s setornam obrigatrios mediante aprovao por uma autoridade pblica (porexemplo, tarifas de transporte ferrovirio, estatutos de sociedades por aes,convenes coletivas do trabalho etc.). Entre as regras de Direito gerais queemanam exclusivamente de uma autoridade administrativa, a saber, oregulamento stricto sensu e os atos jurdicos gerais de direito privado, podemexistir numerosos nveis intermedirios. Qualquer fronteira traada entreeles o ser de forma sempre mais ou menos arbitrria. Com esta ressalva,pode-se recomendar submeter ao controle da jurisdio constitucional,apenas, as normas gerais que emanem exclusivamente de autoridadespblicas, sejam elas autoridades centrais ou locais autoridades essasestaduais, provinciais ou at municipais. O municpio, tambm, apenasum membro do Estado, sendo seus rgos estaduais ou estataisdescentralizados.

    13.IV Conforme j indicamos, tambm os tratados internacionaisdevem sob o ponto de vista da primazia da ordem estatal ser consideradosatos imediatamente subordinados Constituio. Tm, normalmente, carterde regra geral. Caso se julgue necessrio instituir um controle de suaregularidade, pode-se pensar seriamente em atribu-lo jurisdioconstitucional. No h obstculos jurdicos a impedir que a Constituio deum Estado lhe atribua essa competncia, assim como o poder de anular ostratados por ela julgados inconstitucionais. Poder-se-ia recorrer a argumentosconvincentes para defender essa extenso da justia constitucional. Por seruma fonte de direito equivalente lei, pode o tratado internacional derrogars leis; por isso, existe um interesse poltico superior em que o tratado estejaem conformidade com a Constituio e, em particular, com aquelas de suasdisposies que determinam o contedo das leis e dos tratados. No h

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    qualquer regra de Direito internacional que se oponha a esse controle dostratados. Se, como foroso admitir, o Direito internacional autoriza osEstados a definir, em sua Constituio, aqueles de seus rgos que tm opoder exclusivo de celebrar tratados vlidos, capazes de obrigar as partessignatrias, a criao de um instituto destinado a garantir a aplicao dessasnormas, autorizadas pelo Direito internacional, no pode ser consideradacontrria a ele. Nem caberia invocar, aqui, a regra segundo a qual os tratadosno podem ser revogados unilateralmente por um dos Estados signatrios,pois tal regra supe, evidentemente, que o tratado tenha sido celebrado deforma vlida. Um Estado que pretende celebrar algum tratado com outroEstado deve informar-se sobre sua Constituio. Da mesma maneira, se eletiver tratado com um rgo incompetente de outro Estado, s poder culpara si mesmo caso o tratado celebrado esteja em contradio com aConstituio desse, em qualquer aspecto, sendo assim nulo ou anulvel.Ainda que se admitisse que o Direito internacional determine imediatamenteque o chefe do Estado seja o rgo estatal competente para celebrar tratadose que, alm disso, exista uma regra de Direito internacional desobrigandoos Estados de aceitar um controle da regularidade dos tratados celebradoscom Estados estrangeiros, assim como sua anulao total ou parcial poruma autoridade desses Estados, permaneceriam vlidas disposiescontrrias da Constituio; do ponto de vista do Direito internacional, aanulao do tratado constituiria, simplesmente, uma violao desse,suscetvel de ser sancionada pela guerra. Indagar se o interesse que tm osEstados em poder celebrar tratados permite que se exponham aos riscos deanulao pela jurisdio constitucional constitui uma questo absolutamentedistinta, poltica e no jurdica. Se fizermos um balano dos interesses depoltica interior que incitam a incluir os tratados internacionais entre osobjetos da justia constitucional e dos interesses de poltica exterior queadvogam no sentido contrrio, pode ser que ganhem estes ltimos. Do pontode vista dos interesses da comunidade internacional, conviria evidentementeatribuir o controle da regularidade dos tratados internacionais, bem como oconhecimento dos litgios porventura havidos em sua execuo, a umainstncia internacional, excluindo dessas competncias toda jurisdioestatal, por ser unilateral. Mas essa questo foge ao tema deste relatrio eessa soluo talvez ainda no seja exeqvel em vista do grau atual dedesenvolvimento tcnico do direito internacional.

    14.V Finalmente, em que medida se justificaria incluir atos jurdicosindividuais entre os objetos da justia constitucional? Esta questo no seaplica aos atos dos tribunais: o fato de um ato jurdico ser realizado por umtribunal visto como garantia suficiente de regularidade desse ato. E o fatode essa garantia consistir, mediata ou imediatamente, em uma consti-tucionalidade no constitui, em geral, motivo suficiente para subtrair essesatos s jurisdies de direito comum, submetendo-os ao julgamento de umtribunal constitucional especial. Tampouco devem os atos individuais,realizados pelas autoridades administrativas, ainda quando imediatamente

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    subordinados Constituio, ser submetidos ao controle do tribunalconstitucional; ao menos em princpio, devem ser submetidos ao dostribunais administrativos. Isso, antes de tudo, a bem da delimitao clarade suas respectivas competncias, para evitar conflitos de atribuies eduplas competncias que podem ocorrer muito facilmente, devido ao cartermuito relativo da oposio entre constitucionalidade direta e constitu-cionalidade indireta. Assim, os atos jurdicos individuais que poderiam serjulgados pela jurisdio constitucional seriam, apenas, aqueles que emanamdo Parlamento, tenham eles forma de lei ou de tratado internacional; masentram na competncia da jurisdio constitucional por serem leis ouregulamentos. Poder-se-ia, entretanto, estender essa competncia a essesatos, ainda quando desprovidos da forma de lei ou de tratado, ou mesmoquando no imediatamente subordinados Constituio, bastando para issoque tivessem carter obrigatrio, porque essa possibilidade constitui a nicamaneira de controlar sua regularidade. Alis, s pode tratar-se de atos emnmero extremamente modesto. Poder-se-ia, outrossim, atribuir jurisdioconstitucional por razes de prestgio ou por outras razes o poder decontrolar certos atos individuais do chefe do Estado ou do governo desdeque se desejasse, de forma geral, sujeit-los a um controle jurdico.Finalmente, cumpre assinalar que pode ser oportuno fazer do tribunalconstitucional, tambm, uma Alta Corte de Justia, incumbida de julgar osministros porventura acusados, um tribunal central dos conflitos, ou dar-lheoutras competncias ainda, evitando assim instituir jurisdies especiais.Em geral, convm limitar, tanto quanto possvel, o nmero de autoridadessupremas incumbidas de dizer do direito.

    15.VI Parece bvio que o tribunal constitucional s possa julgarnormas ainda vigentes no momento em que d sua sentena. Porque seanularia uma norma que j deixou de viger? No entanto, examinando maisdetidamente a questo, percebe-se que pode haver necessidade de aplicaro controle de constitucionalidade a normas j revogadas. Se uma normageral nisto s interessam as normas gerais revogar outra norma geralsem qualquer retroatividade, as autoridades devero continuar a aplicar anorma revogada a todos os fatos que ocorreram enquanto ela ainda estavaem vigor. Se quisermos descartar essa aplicao por causa da inconsti-tucionalidade da norma revogada supe-se que no foi o tribunalconstitucional que a revogou , preciso que essa inconstitucionalidadeseja estabelecida de forma autntica, retirando-se assim norma o ltimoresto de vigor que ainda tinha. Ora, isso supe que haja um julgamento dotribunal constitucional.

    Em rigor, a anulao de uma norma inconstitucional pela jurisdioconstitucional ainda nos referimos, aqui, a normas gerais s necessriaquando essa norma mais recente que a Constituio. Se essa norma foruma lei anterior Constituio e em contradio com ela, essa Constituioa derroga em virtude do princpio de lex posterior, parecendo assim suprfluae at logicamente impossvel sua anulao. Isso quer dizer que os tribunais

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    e as autoridades administrativas devero salvo em caso de limitao dessepoder pelo Direito positivo verificar se existe uma contradio entre aConstituio, mais recente, e a lei, mais antiga, adotando uma deciso deacordo com os resultados desse exame. Sua situao, em especial a dasautoridades administrativas, difere totalmente, nesse ponto, daquela a queesto habitualmente em relao s leis. Tal fato reveste-se de notvelimportncia em um perodo de revises constitucionais, sobretudo se essasrevises so to profundas quanto o foram as realizadas em numerososEstados aps a Grande Guerra.5 A maioria das Constituies dos novosEstados, por exemplo, receberam o antigo Direito material Direito cvel,Direito penal e Direito administrativo anteriormente em vigor em seuterritrio, mas o acolheram apenas na medida em que esse no estivesseem contradio com sua nova Constituio. Ocorre que por serem amidemuito antigas essas leis, por terem sido adotadas sob o imprio deConstituies muito diferentes, havia muitas vezes contradies entre elase as disposies constitucionais evidentemente relativas, no ao processode elaborao das leis, mas sim a seu contedo. Se, por exemplo, aConstituio dispuser que no pode haver privilgio fundado no sexo, semque se possa interpretar se essa disposio s vale para as leis vindouras eno para as leis anteriores ou para as leis recebidas pela Constituio, sendoforoso admitir que a Constituio derroga imediatamente as leis anteriores,sem necessidade de leis de reviso especiais, a questo da compatibilidadedessas leis antigas com a Constituio pode ser muito difcil de resolver, doponto de vista jurdico, sendo entretanto muito importante faz-lo, do pontode vista poltico. Pode-se julgar que no bom deixar que tal deciso sejatomada pelas mltiplas autoridades incumbidas de aplicar as leis, que terosobre o assunto opinies qui muito vacilantes. Com isso, pode-se indagarse no conviria retirar dessas autoridades, tambm, o exame dacompatibilidade das leis antigas com a Constituio que no as tenharevogado de maneira expressa, confiando essa funo ao tribunalconstitucional central. Isso equivaleria a privar a Constituio do poderderrogatrio em relao s leis mais antigas no expressamente anuladaspor ela, substituindo-o pelo poder de anulao do tribunal constitucional.

    IV.3 O critrio do controle jurisdicional de constitucionalidade

    Qual o critrio a ser adotado pela jurisdio constitucional no exercciode seu controle? Que normas devero pautar suas decises? A resposta aesta pergunta j se depreende, em grande parte, do objeto do controle.

    Evidentemente, o que deve ser verificado , nos atos imediatamentesubordinados Constituio, a constitucionalidade, nos atos mediatamentesubordinados a ela, a legalidade e, em geral, em todo ato, sua conformidade

    5 NdT: O que em 1928 era designado pelo nome de Grande Guerra passou a s-lo pelo nome de PrimeiraGuerra Mundial quando ocorreu a Segunda Guerra Mundial.

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    com as normas do escalo superior. No menos evidente que o controledeve ser relativo tanto ao processo de elaborao do ato quanto ao contedodesse, se as normas do escalo superior tiverem disposies nesse sentido.

    Dois pontos, entretanto, requerem exame mais apurado.

    16. Em primeiro lugar, podem as normas do Direito internacional seradotadas como critrio do controle? Pode ocorrer que um dos atos cujaregularidade est sendo controlada esteja em contradio no com a lei oua Constituio, mas com um tratado internacional ou alguma regra do Direitointernacional geral. Uma lei ordinria que contradiz um tratado internacionalanterior tambm irregular em relao Constituio, pois, ao autorizardeterminados rgos a celebrar tratados internacionais, a Constituio fazdesses tratados um modo de formao da vontade estatal, excluindo assim em coerncia com a noo de tratado a qual aderiu a possibilidade deserem revogados ou modificados por uma lei ordinria. Destarte, uma leicontrria a um tratado pelo menos indiretamente inconstitucional. Mas,para poder afirmar que at uma lei constitucional (Verfassungsgesetz) queviola um tratado irregular, preciso situar-se em um ponto de vista superiorao da Constituio, no ponto de vista da primazia da ordem jurdicainternacional. S esse ponto de vista mostra o tratado internacional comouma ordem parcial superior aos Estados signatrios, mostrando portantoque atos estatais em particular, leis, regulamentos etc. submetidos aocontrole da jurisdio constitucional podem violar no apenas as regrasparticulares de um tratado internacional e, portanto, indiretamente, oprincpio de observncia dos tratados como tambm outros princpios doDireito internacional geral.

    Deve-se permitir, outrossim, que o tribunal constitucional anule osatos estatais submetidos a seu controle, por serem contrrios ao Direitointernacional?

    Contra a anulao das leis ordinrias ou de atos equivalentes ou aelas subordinados contrrias aos tratados, no se pode fazer qualquerobjeo sria. Tal competncia ater-se-ia estritamente ao campo daConstituio, que tambm convm no esquec-lo o da justiaconstitucional. tambm o caso da anulao das leis ou de atos equivalentesou inferiores lei por violao de uma regra do Direito internacional geral,supondo que a Constituio reconhea expressamente essas regrasordinrias, ou seja, que ela as integre ordem estatal, sob a denominaode regras geralmente reconhecidas do Direito internacional, como o fizeramalgumas Constituies recentes. Nesse caso, de fato, da vontade daConstituio que essas normas sejam respeitadas tambm pelo legislador;assim, as leis contrrias ao Direito internacional devem ser totalmenteassimiladas s leis inconstitucionais. E, tenham essas leis sido recebidaspela Constituio como leis constitucionais ou no, a soluo a mesma,uma vez que, em ambos os casos, esta recepo significa que no podemser descartadas por uma lei ordinria. Essa recepo solene deve ser

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    expresso da vontade de garantir o respeito do Direito internacional; chegar-se-ia ao resultado oposto se, a despeito dessa recepo, qualquer lei ordinriapudesse desrespeitar o Direito internacional sem que isso fosse consideradouma irregularidade do ponto de vista da Constituio que a contm.

    Mas as coisas mudam de figura, por um lado, quando a Constituiono contm esse reconhecimento do Direito internacional geral e, de outrolado, ainda que o contenha, quando se trata de leis constitucionais contrriasao Direito internacional geral ou, at, convencional. Para a jurisdioconstitucional, rgo estatal, a validade das normas internacionais a seremaplicadas por ele ao controlar atos estatais s pode existir na forma daConstituio que as recebe, i.e., as pe em vigor no domnio interno doEstado, dessa mesma Constituio que criou o tribunal constitucional e pode,a qualquer momento, suprimi-lo. Embora fosse altamente desejvel que todasas Constituies seguissem o exemplo das Constituies alem e austraca,recebendo as regras do Direito internacional geral de forma a que possamser aplicadas por um tribunal constitucional estatal, h que reconhecer que,na falta de tal reconhecimento, nada autorizaria juridicamente o tribunalconstitucional a declarar uma lei contrria ao Direito internacional; cumprereconhecer, outrossim, que a competncia do tribunal constitucional, aindaquando j exercida, pode esbarrar em uma lei de reviso da Constituio.Certo que uma jurisdio constitucional pode, de fato, aplicar as regras doDireito internacional, inclusive nessas duas hipteses. Mas, ao faz-lo,exerceria uma funo j desprovida de qualquer justificao jurdica interna ordem estatal. Uma lei constitucional no pode atribuir essa competnciaa um tribunal constitucional; um tribunal constitucional que anulasse umalei constitucional ou, at, a despeito da no-recepo das regras do Direitointernacional, uma lei ordinria como contrria a essas regras, no poderiamais ser considerado, juridicamente, um rgo do Estado cuja Constituioo criou mas, apenas, um rgo de uma comunidade jurdica superior a esseEstado. E, ainda, o seria apenas por suas intenes, pois a Constituio dacomunidade jurdica internacional no contm qualquer norma que d a umrgo estatal a faculdade de aplicar as regras do Direito internacional geral.

    17. Embora a aplicao das normas do Direito internacional pelotribunal constitucional esteja sujeita s limitaes que acabamos deassinalar, deve-se descartar liminarmente a possibilidade de aplicao deoutras normas que no as jurdicas, de quaisquer normas superpositivas.V-se asseverar, por vezes, que existem, acima da Constituio de qualquerEstado, certas regras do direito natural que at as autoridades estataisencarregadas da aplicao do Direito deveriam respeitar. Se essas regrasforem princpios realizados na Constituio ou em qualquer outro escaloda ordem jurdica, deduzidos do contedo do Direito positivo por via deabstrao, relativamente incuo formul-los como regras de Direitoindependentes. Nesse caso, so aplicados juntamente com as normasjurdicas em que se encontram realizados, sendo-o apenas assim. Mas, seforem princpios que no foram traduzidos em normas do Direito positivo e

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    somente deveriam s-lo porque tais normas seriam justas muito embora osprotagonistas j os considerem, de forma mais ou menos clara, parteintegrante do direito , trata-se de meros postulados que no sojuridicamente obrigatrios, na realidade s expressam os interesses de certosgrupos e so dirigidos aos rgos encarregados da criao do Direito, noapenas ao legislador, cujo poder de realiz-los quase ilimitado, comotambm aos rgos subordinados, que s detm esse poder em medida tantomais restrita quanto maior seja, em sua funo, a parte de aplicao doDireito; esses rgos, entretanto, possuem esse poder na medida em quedispem de um poder discricionrio, na jurisdio e na administrao, quandodevem optar entre vrias interpretaes igualmente possveis.

    justamente nesse fato de que a considerao ou a realizao dessesprincpios, aos quais ainda no se pde, a despeito de todos os esforosnesse sentido, dar uma determinao um tanto unvoca, no tm nem podemter no processo de criao do Direito pelos motivos assinalados um carterde aplicao do Direito no sentido tcnico, nesse fato que encontramos aresposta questo de saber se podem ser aplicados por uma jurisdioconstitucional. E no passa de aparncia enganosa quando as coisas sodiferentes, como quando, s vezes, a prpria Constituio se refere a essesprincpios ao invocar os ideais de eqidade, justia, liberdade, igualdade,moralidade etc., sem absolutamente especificar o que se deve entender comisso. Se essas frmulas no tm outra significao que a ideologia polticacorrente com que procura adornar-se qualquer ordem jurdica, a delegaoda eqidade, liberdade, justia, moralidade etc. significa apenas, na faltade esclarecimentos sobre esses valores, que o legislador e os rgos deaplicao da lei esto autorizados a lidar de forma discricionria com odomnio a eles confiado pela Constituio e pela lei. Pois essas concepesde justia, liberdade, igualdade, moralidade etc. apresentam tamanhadivergncia conforme o ponto de vista dos interessados que, se o Direitopositivo no consagrar uma delas, qualquer regra de direito pode chegar aser justificada por uma dessas possveis interpretaes. Mas, em todo caso,a delegao dos valores em questo no significa, nem pode significar, quea contrariedade do Direito positivo concepo pessoal de liberdade,igualdade etc. dos rgos de criao do Direito os desobrigue, em qualquerhiptese, de sua aplicao. Destarte, as frmulas em questo no soem tergrande significao. Nada acrescentam ao estado real do Direito.

    No entanto, justamente no domnio da justia constitucional, essasfrmulas podem desempenhar um papel sobremaneira perigoso. Poder-se-ia interpretar as di