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A garota das cicatrizes de fogo

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Quatro anos após o desaparecimento da filha e a misteriosa morte da esposa, Johnny Falco recebe uma pista que pode ajudá-lo a desvendar o caso. Um homem aparece morto com as mesmas características inexplicáveis de sua mulher: O CORPO NÃO PASSA DE UM ESQUELETO COM PELE. Seis anos após ter oitenta por cento do seu corpo queimado em um atentado, Lisa Gomez acorda em um hospital com uma incontestável diferença: TODAS AS CICATRIZES DE SEU CORPO DESAPARECERAM! E quando o destino dos dois se cruzarem na pequena cidade de Valparaíso, ambos descobrirão que as tragédias que cercam suas vidas estão muito mais interligadas do que poderiam imaginar.

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A Garota das Cicatrizes de Fogo

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A Garota das Cicatrizes de Fogo

R i c a r d o R a g a z z o

São Pau l o 2013

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2013IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO ÀNOVO SÉCULO EDITORA LTDA.

CEA - Centro Empresarial Araguaia IIAlameda Araguaia, 2190 – 11º andar

Bloco A - Conjunto 1111CEP 06455-000 - Alphaville Industrial - SP

Tel. (11) 3699-7107 - Fax (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ragazzo, RicardoA garota das cicatrizes de fogo / Ricardo Ragazzo. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013.

1. Romance brasileiro I. Título.

13-07761 CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:1. Romances : Literatura brasileira 869.93

Copyright © 2013 by Ricardo Ragazzo

Texto de adequado às normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Coordenadora Editorial

Projeto gráfico e Diagramação

Revisão

Capa

imagem da capa

Composição da capa

Leticia Teófilo

Project Nine

Luci Kasai

Mônica Vieira/Project Nine

Carlos Matos

Conrado / Shutterstock

Monalisa Morato

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Ao Dr. Octaviano e equipe médica do HOSPITAL

NOVE DE JULHO e ao Dr. Ariel e equipe médica do ICESP,

por cuidarem do meu corpo; Ao João de Deus e a todos do

Instituto Espírita Allan Kardec, por cuidarem do meu espí-

rito; À família e amigos, por cuidarem da minha cabeça; Aos

meus filhos João Gabriel (O delicinha) e Laura (Constelação

de Sabor), por cuidarem do meu coração; À minha esposa

Renata, por todas as alternativas anteriores (sem você não

teria conseguido!)

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O ú l t i m o d i a d e D e n n i s M a r c o s

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O dia em que Dennis Marcos morreu definitivamente não foi um dos melhores da sua vida.

Os ponteiros do relógio marcavam pouco mais de quatro da tarde quando o consultor financeiro foi arremessado para fora do lobby do prédio onde trabalhava. Algumas pessoas na rua o enca-ravam como se o sol brilhasse apenas sobre ele. Olhares curiosos o perfuravam como as finas agulhas de acupuntura. Exceto que essas agulhas não o deixavam relaxado, pelo contrário, faziam com que seu sangue borbulhasse como água fervente.

Levantou-se da calçada, limpando com as mãos a sujeira da rua grudada ao paletó fora de moda.

– Vocês me pagam! Nem que seja a última coisa que eu faça, vocês vão me pagar! – ele bradou em direção aos dois ursos trajados com ternos pretos e óculos escuros parados em frente à entrada do edifício.

Não sabia como, mas, após meses reformando sua casa com o dinheiro da empresa, seu caixa dois havia sido descoberto. Agora desempregado, sob a iminência de um processo criminal e com alguns últimos trocados no bolso, Dennis decidiu buscar consolo onde todo homem casado há mais de trinta anos deveria ir quando estivesse na fossa: na zona!

Dennis entrou no clube privé observando a decoração clichê repleta de espelhos e luzes coloridas. Sentou-se em frente ao palco central perfurado por postes metálicos onde dançarinas faziam suas exóticas acrobacias sob a torturante luz estroboscópica que deixava os movimentos entrecortados.

Uma garota semiatraente realizava um strip-tease em meio a acrobacias de pole dance. A cada item de roupa tirado do corpo e jogado ao chão, a imagem de quando foi arremessado na calçada voltava à mente de Dennis.

– Maldita vida! – resmungou enquanto degustava a única gar-rafa de cerveja que os trocados em seu bolso podiam comprar.

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Mas aquilo não estava certo. Merecia algo mais. Uma melhor sorte. Recordou-se da frase de seu pai: “Você faz sua própria sorte!”. Levantou-se do banco e subiu no palco. Com o local quase vazio, a menina que dançava de costas não percebeu sua chegada até suas mãos peludas e suadas tocarem seus seios artificiais.

– Tire suas mãos imundas de mim!O grito da garota serviu para alertar dois seguranças nos fun-

dos do bar, mas Dennis sequer os notou. Estava entretido girando aqueles seios em movimentos circulares como se fosse Daniel San encerando carros em “Karatê Kid”.

Inspira... Expira... Esquerda... Direita...Dennis foi decolado para fora do palco como se não existisse gra-

vidade. Aterrizou em cima de uma mesa vazia. A pancada o deixou grogue, mas, mesmo que não tivesse, Dennis seria incapaz de evitar as consequências de sua ousadia. Foi carregado pelo colarinho por um segurança alto, forte, de pele escura e uma enorme cicatriz na testa. Os pés de Dennis patinavam no ar como os de um bebê no colo da mãe.

Outro segurança, um pouco mais baixo e inflado de múscu-los ao ponto de parecer estar prestes a explodir, aproximou-se de Dennis, remexendo seus bolsos.

– Ainda por cima é um pé-rapado! – disse, ao retirar algumas poucas notas de dinheiro da carteira do executivo. – Considere isso um pedido de desculpas à moça!

Antes que pudesse sequer falar algo, Dennis Marcos foi presen-teado com um soco no olho esquerdo capaz de levar a nocaute os maiores pesos-pesados da história do esporte. Depois, foi jogado pela porta dos fundos do clube. Voou longe, batendo as costas na parede e quase acertando um mendigo que dormia nu no chão frio do beco. Ainda tonto, percebeu o mendigo indo embora, enquanto as risadas de seus agressores desapareciam atrás da porta do clube.

A segunda vez em um dia que era arremessado como lixo para fora de um lugar.

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Dennis sentiu o corpo fraquejar, como se suas forças estivessem fugindo pelos poros. Desabou no chão e fechou os olhos por alguns minutos ou teriam sido horas? De uma hora para outra, havia per-dido a noção de tempo por completo.

Juntou os últimos nacos de resistência e, apoiando-se na parede de tijolos, ficou em pé. O corpo todo latejava. Os passos eram cur-tos e dolorosos, como se tivesse bolas de aço amarradas aos pés. Levantou os olhos e avistou uma silhueta. Aproximou-se com lenti-dão, ainda usando a parede como apoio. O olho esquerdo já fechava com o inchaço do golpe, o que o fez ponderar se podia estar enga-nado sobre o que via.

O mendigo nu estava parado bem à sua frente.– Eu não entraria naquela pocilga vestido dessa maneira se eu

fosse você – Dennis avisou com um sorriso que misturava sarcasmo e fraqueza.

O homem nada disse. Permaneceu como uma estátua.– Você está bem, companheiro? – Dennis perguntou sem saber

bem o que dizer.Viu o homem chegar mais perto. Uma fraqueza súbita sugou-lhe

como um aspirador de pó. Esgotamento físico total. A mão tocou--lhe o ombro, levando-o ao chão. De joelhos. Olhou para os pró-prios braços e desesperou-se. A pele começou a borbulhar e a desa-parecer como se estivesse sob o efeito de algum ácido. Um cheiro de carne queimada inebriou-lhe os sentidos. Os braços, agora, não passavam de carne cinzenta e ossos. Podia ver seus ossos! Um jarro de sangue espirrou pela boca, como torneira aberta. O que estava acontecendo? Desesperou-se.

Do outro lado do beco, a enorme vidraça de um açougue deu a ele o triste panorama geral. Não eram apenas seus braços que haviam ressecado. Seu corpo inteiro não passava de uma massa cin-zenta de ossos e carne.

Foi a última coisa que viu.

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“Johnny Falco, você está demitido!”A frase ecoava nos meus pensa-

mentos enquanto dirigia meu carro de volta para casa. Eram pouco mais de duas da tarde e eu ainda não conseguia pensar em algo que justificasse para minha esposa a aparição vespertina em casa. O casamento não caminhava sobre águas calmas havia alguns meses e certamente essa nova bomba serviria apenas para mover ainda mais as pla-cas tectônicas que mantinham nossa já estremecida relação.

Cogitei parar em algum bar e tomar algumas doses de uísque para tomar coragem, mas, com a sorte que me acompanhava ultimamente, sem

umA e s t r a d a p a r a V a l p a r a í s o

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sombra de dúvidas, seria parado em alguma blitz pelo caminho e teria que acrescer fichado à enorme lista de adjetivos indesejáveis que me perseguiam.

Parei em um farol vermelho e comecei a fuçar a caixa de pape-lão que repousava no assento do carona. Mesmo após anos e anos de dedicação, a única coisa que eu trazia de lá eram alguns papéis velhos, itens de higiene pessoal, um par de porta-retratos e o pati-nho de borracha que minha filha havia me dado como amuleto de sorte. “Papai, isso aqui é para lhe dar bastante sorte, viu?”, ela havia dito ao me entregar seu brinquedo favorito. Menos de três meses depois, aqui estava eu, desempregado, falido, depressivo, vivendo um casamento turbulento e fadado ao fracasso. Ainda mais agora que trazia essa bomba para casa. Seria fácil culpar o amuleto por todas essas tragédias, mas negação não faria parte da minha já extensa lista de defeitos.

Avistei a casa e segui para a garagem. Estacionei o carro e per-maneci por mais alguns minutos ouvindo a voz rouca e harmoniosa de Leonard Cohen cantando “The Future”. A letra da música, em determinado momento, dizia “Se prepare para o futuro: é assas-sinato”. Refleti se, ao substituir a última palavra por “divórcio”, a música não poderia se chamar “My Future”. Em alguns minutos, saberia que a letra original não poderia ter sido mais profética. Assassinato estava em meu futuro e em um futuro mais próximo do que poderia imaginar – ou acreditar!

Saí do carro e segui para a porta da frente. Percebi-a aberta, apenas uma fresta mostrando o interior da sala. Empurrei-a com a ponta dos dedos. O silêncio sepulcral lá dentro contrastando com a batucada de pensamentos poluindo minha cabeça. Nenhum deles era bom.

– Nora? Você está aí? – eu perguntei caminhando para dentro da casa.

Não foram precisos mais do que alguns passos para que meus pensamentos ruins se provassem corretos, materializando-se bem

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à minha frente. No chão, tão viva quanto o breu da noite, estava minha esposa. Ou o que parecia restar dela. O rosto, apesar de con-ter suas formas, tinha um aspecto cadavérico, seco, como se múscu-los e sangue e todo o resto que não fosse pele ou osso tivesse sido expurgado dali.

– O que está acontecendo aqui? – eu perguntei em voz alta, sabendo que a resposta não apareceria assim tão fácil.

Meus olhos se arregalaram enquanto disparei escada acima rumo aos quartos. Diana. Minha filha. O quarto vazio foi um alento desesperador. Uma contradição justificável. Afinal, era um alívio não encontrar minha filha no mesmo estado inexplicável da mãe, mas o desespero tomava conta à medida que, vasculhando cada pedaço da casa, o desaparecimento de minha filha ficava a cada instante mais concreto.

Mediante a impotência da situação, desci as escadas em direção ao corpo ressecado de minha esposa. Minha cabeça poluída por ao menos duas dúzias de perguntas sem respostas. Nada ali fazia sen-tido. A frase messiânica na música de Leonard Cohen formou-se na minha cabeça: “Prepare-se para o futuro: é assassinato”.

Ajoelhei-me ao lado de Nora. Havia pouca semelhança entre a carcaça seca repousando sem vida ao lado do sofá e o exuberante mulherão com o qual havia convivido esses anos todos. Em meio a orações misturadas a pensamentos incompreensíveis, ouvi uma voz que entrou em meus ouvidos como chocolate derretido na boca.

– Papai? – o tom doce desmanchando-se em inocência.– Diana? Onde está você, minha filha?A voz invadida por uma ternura inocente, quase pueril, pene-

trava em meus ouvidos como uma agradável melodia, mas vinha desacompanhada de imagem, como um eco insistente.

– Quando você vem me buscar? – a voz questionava envolta por delicadeza. – Estou esperando você me buscar – ela completava.

– Onde você está, minha querida? Diga-me que eu vou lhe bus-car agora – eu respondia encarando o ar em todas as direções.

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Mas a resposta não vinha, apenas o silêncio banhado pela amar-gura do desconhecimento. Onde quer que minha Diana estivesse, ela estava clamando por ajuda, e eu não sossegaria enquanto não descobrisse seu paradeiro. Voltei a encarar o que restava de Nora no chão ao meu lado. Esfreguei sua bochecha dura com as costas da mão, um carinho que ela tanto me pedia em vida e há tempos eu não realizava. E fiz uma promessa. Resgataria nossa filha sob qual-quer circunstância ou impedimento. Nada seria mais importante.

Então, segurando o que sobrava de sua mão, fechei meus olhos em busca de paz.

Abri os olhos. O coração tremendo no ritmo da escala Richter, magnitude oito. O rosto suado e a respiração acelerada formavam um possível quadro de síndrome do pânico. Mas eu já sabia que esse não era o caso. Meu mal tinha outro nome – um muito mais apropriado por sinal: terrores noturnos.

A porta do quarto se abriu; meus olhos levaram alguns segun-dos para criar foco em cima da silhueta parada sob o batente. Sal Salvatore.

– Você está bem? – ele perguntou com um ar preocupado. – Ouvi os gritos lá de baixo.

– O mesmo de sempre – respondi.– O pesadelo? – Sal voltou a perguntar.– Sim.– Ele é sempre igual?– Como o capítulo gravado de uma novela. Passo a passo tudo

o que eu vivi naquele famigerado dia. Estou no carro depois de ser demitido, chego em casa e vejo Nora morta e minha Diana desaparecida.

– Você devia tratar isso, Johnny. Conversar com alguém sobre esses pesadelos.

– Já lhe disse que não vou fazer isso.– Eu não entendo o motivo para tanta resistência – ele disse

sentando ao meu lado no colchão.

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– Já lhe disse, Sal. Diana conversa comigo ao final de cada sonho. Sei que ela está tentando me dizer onde está. Não vou fechar esse canal. É como eu sei que ela ainda está viva, mesmo depois de quatro anos.

Sal encarou-me com um ar que misturava compreensão e incre-dulidade. Nossa amizade começara havia quase quatro anos, pouco depois da tragédia que colocara minha vida de cabeça para baixo. Assim como eu, Sal Salvatore tinha sido vítima de uma desgraça familiar. Os pais foram assassinados em casa e o crime nunca fora desvendado pela polícia. Foi ele quem me apresentara o lado B do mundo, uma parte diferente, assustadora, que beirava as raias da loucura. Um mundo repleto de situações que davam veracidade a quase todas as histórias que considerávamos, como posso dizer, fantasiosas. Nós humanos não somos tão criativos quanto pensa-mos, e toda história tem uma verdade por trás dela. E eu sabia disso por conhecimento de causa.

Ainda assim, Sal Salvatore não acreditava em sinais. Considerava-os frutos de uma imaginação frágil e desesperada, em busca de qualquer coisa que mantivesse viva a chama da esperança. Já eu acreditava que sinais eram a forma mais democrática de se conversar com Deus. Se o Diabo existia – e eu já tinha dezenas de provas que sim –, Deus também existia. Mesmo que residisse na bondade dentro de cada um de nós. E era isso que me dava a certeza de que meu terror noturno nada mais era que um canal de comu-nicação entre mim e minha filha, e o manteria aberto a qualquer custo. Sempre.

O olhar apreensivo de meu amigo dissolveu-se em um longo sorriso acalentador. Sal sorria pouco, assim como eu. Aliás, acho que, em todos esses anos de amizade, essa era a primeira vez que podia assegurar que ele tivesse dentes. O lado B não é um lugar para comé-dias stand-up e happy hours. Aqui, o arco-íris tinha somente duas cores: negro e cinza. O amor sempre vinha coberto pelo recheio do infortúnio e calamidade era a palavra de ordem. Um mundo invisível

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para a maioria que dormia acordada sob a regência da abençoada ignorância. Mas não para Sal. Muito menos para mim.

Meu amigo levantou-se da cama, o sorriso ainda persistindo na boca.

– Venha comigo, Johnny. Tenho uma coisa para lhe mostrar.Sal morava em um bairro de classe alta, inundado por mansões

como a sua, que lembravam em muito os casarões das celebrida-des de Beverly Hills. Até por isso o caminho entre quarto e sala de estar fora longo demais. Após perder seus pais, Duplo Sal – como eu gostava de chamá-lo – e sua irmã herdaram sua fortuna. A par-tir de então, ele enviou a irmã para um local seguro – ela estudara em faculdades fora do país e transformara-se em uma figurona em algum escritório top de advocacia nos Estados Unidos – e passou a dedicar todo o seu tempo para conter esse sangramento que havía-mos batizado de Lado B.

Assim que entramos na sala, Sal caminhou até uma mesa de mármore repleta de garrafas de uísque e vodca. Pegou o Green Label e serviu duas longas doses. Esticou a mão para que eu pegasse um dos copos.

– Está melhor?– Sim, já estou acostumado com isso.Ele olhou para mim com um ar sério.– Não gosto de vê-lo sofrer com esse tipo de coisa.– Já lhe disse para não se preocupar comigo, Sal. Estou bem.– Eu esperava que o tempo fechasse essa ferida, mas, pelo visto,

estava enganado.Fui até a mesa de mármore e me servi de mais uma dose tripla

de uísque importado. Entre um gole e outro, virei-me para ele.– O tempo fechou suas feridas, meu amigo? – perguntei. Esperei

um tempo pela resposta que não veio e, então, prossegui: – O tempo não fecha feridas, meu amigo. Somos nós os responsáveis por isso, pois somos fracos demais para conviver com a dor e o sofrimento. Deixamos de lado aqueles que foram arrancados de nossas vidas,

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colocando-os em um closet na nossa mente, sob o cínico argumento de que temos que “seguir em frente”. E eu pergunto, meu amigo, seus pais, minha esposa, quando eles terão a oportunidade de seguir em frente? Não, Sal. O tempo não fecha nossas feridas. Nós que fazemos isso por sermos covardes demais. Por isso eu nunca vou sossegar enquanto não descobrir quem matou minha esposa e tomou minha filha de mim.

Sal Salvatore deixou a sala, voltando poucos segundos depois. Na mão, uma maleta preta, fechada. Jogou-a no chão, perto dos meus pés. Eu a coloquei no colo e abri. A luz reluzente das notas quase cegou meu olho. Notas de cem amontoadas em dezenas de pequenos bolos, lotando todo o espaço interno. Fechei a maleta e a joguei de volta na direção dele.

– Não preciso do seu dinheiro, meu amigo. Ele não me serve de nada.

– Há um motivo para eu lhe dar esta maleta, meu amigo – ele disse andando em direção a um laptop posto em cima da mesa da sala.

– Qual motivo?Ele sentou em frente ao computador, virando-se na minha dire-

ção logo em seguida.– Há quanto tempo nos conhecemos, Johnny? Quatro anos?– Três anos, nove meses, vinte e sete dias – respondi.Ele riu da precisão da minha resposta.– E, nesse tempo todo, alguma vez você chegou perto de encon-

trar os responsáveis por acabar com a sua família?– Você sabe que não – respondi com secura. – Pois bem – ele disse. – Luzes... Desligar – com um par de pal-

mas a sala só não ficou em um escuro total pela tela brilhante do laptop. – Deixa eu lhe mostrar uma coisa.

Sal usou o controle remoto para ligar a enorme TV de LED aco-plada à parede. A imagem na tela do computador era a mesma que passava na televisão. Podia ver um enorme mapa na tela. A escala

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foi diminuindo até que, no centro da imagem, eu pude ler um nome: Valparaíso.

– O que quer dizer isso? – perguntei.– Você se tornou um grande amigo ao longo desses três anos,

nove meses e vinte e sete dias, Johnny. Passamos por bons e maus bocados juntos, mais maus do que bons, claro, porém, não podemos dizer que nada cresceu de bom. É nos momentos ruins que conhe-cemos o caráter de um homem, e você, Johnny Falco, é o homem com o maior caráter que conheci. Sempre que precisei, você nunca me negou. Nós somos como dois irmãos de guerra.

– Por que está me dizendo isso? Você está morrendo por acaso?Sal caminhou até a imagem aumentada da televisão, colocando

o dedo sobre o ponto que representava a cidade de Valparaíso.– Duas pessoas foram achadas mortas nessa cidade. Os corpos

ressecados como ameixa seca. Um esqueleto com pedaços de pele.Senti meu corpo todo chacoalhar como se eu fosse o fio condu-

tor de uma carga elétrica capaz de acender uma metrópole inteira, entretanto reservada a uma única finalidade: acender a luz no fim do túnel.

– Você tem certeza disso, Sal? – perguntei fixando os olhos no mapa, mais especificamente em Valparaíso. Há quase quatro anos eu esperava por algo desse tipo. Uma chama de esperança.

– Absoluta, meu amigo. Pegue a maleta e vá buscar a sua reden-ção. É o mínimo que posso fazer depois de tudo que você fez por mim desde que nos conhecemos.

Sal Salvatore não precisou falar uma segunda vez. Sem olhar para trás eu segui em direção à porta. Na garagem, meu velho Landau 78, fiel escudeiro em inúmeras aventuras nos últimos anos. Joguei a maleta recheada de dinheiro no porta-malas e girei a chave na ignição. O ronco do motor servindo como analogia para o meu estado de espírito. Esperança era a gasolina da alma. E meu tanque acabava de ser abastecido.

Acelerei o carro, deixando Sal e meus terrores noturnos para trás.

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