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A GEOMETRIA PRÁTICA DE FERDINANDO GALLI BIBIENA EM SEUS TRATADOS DE ARQUITETURA Iran Abreu Mendes Universidade Federal do Rio Grande do Norte E-mail: [email protected] Introdução Em uma pesquisa realizada entre os anos de 2008 e 2015, sobre o trabalho das comissões demarcadoras dos limites territoriais da Amazônia Brasileira, na segunda metade do século XVIII, uma das personagens que se destaca é Giuseppe Antonio Landi (José Antonio Landi); um arquiteto italiano nascido em Bolonha, em 30 de outubro de 1713, que viveu 38 anos no estado do Pará e faleceu em Belém (Pará) em 22 de junho de 1791. Em minhas pesquisas 1 identifiquei que em sua formação como arquiteto, Landi foi discípulo de Ferdinando Galli Bibiena um mestre de arquitetura no Instituto de Ciências e Artes, premiado em 1731 e 1734, que foi membro eleito da Academia Clementina de Bolonha em 1743 e diretor do Departamento de Arquitetura da referida academia em 1745, onde fez um trabalho de extrema relevância para a área da arquitetura, pintura e artes visuais, apoiado em princípios advindos da aritmética, geometria e mecânica, que estão refletidos em suas obras impressas. O trabalho do arquiteto italiano Ferdinando Galli Bibiena foi transposto em suas obras das quais destaco L’architettura civile preparata sula geometria (1711) e Direzioni à giovani studenti nel desegno dell’aechitettura civile (1734), pois ambas objetivaram contribuir na formação de arquitetos italianos na primeira metade do século XVIII, influenciando bastante a obra de José Antonio Landi na Amazônia, na segunda metade do século XVIII, projetando na região parte da característica da arquitetura italiana setecentista. Neste trabalho apresento alguns resultados de uma pesquisa em andamento sobre a geometria prática presente nos dois livros de Ferdinando Bibiena, já mencionados, a fim de verificar como tal geometria foi utilizada na elaboração de uma estética pessoal, que recombinou retas, curvas e poligonais fechadas de modo a explorar noções sofisticadas de proporcionalidade, equilíbrio geométrico áureo das linhas e formas, na 1 Para maiores informações ver Mendes (2008; 2009; 2012; 2016), nas referencias deste artigo.

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A GEOMETRIA PRÁTICA DE FERDINANDO GALLI BIBIENA EM SEUS

TRATADOS DE ARQUITETURA

Iran Abreu Mendes

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

E-mail: [email protected]

Introdução

Em uma pesquisa realizada entre os anos de 2008 e 2015, sobre o trabalho das

comissões demarcadoras dos limites territoriais da Amazônia Brasileira, na segunda

metade do século XVIII, uma das personagens que se destaca é Giuseppe Antonio Landi

(José Antonio Landi); um arquiteto italiano nascido em Bolonha, em 30 de outubro de

1713, que viveu 38 anos no estado do Pará e faleceu em Belém (Pará) em 22 de junho de

1791. Em minhas pesquisas1 identifiquei que em sua formação como arquiteto, Landi foi

discípulo de Ferdinando Galli Bibiena – um mestre de arquitetura no Instituto de Ciências

e Artes, premiado em 1731 e 1734, que foi membro eleito da Academia Clementina de

Bolonha em 1743 e diretor do Departamento de Arquitetura da referida academia em

1745, onde fez um trabalho de extrema relevância para a área da arquitetura, pintura e

artes visuais, apoiado em princípios advindos da aritmética, geometria e mecânica, que

estão refletidos em suas obras impressas.

O trabalho do arquiteto italiano Ferdinando Galli Bibiena foi transposto em suas

obras das quais destaco L’architettura civile preparata sula geometria (1711) e Direzioni

à giovani studenti nel desegno dell’aechitettura civile (1734), pois ambas objetivaram

contribuir na formação de arquitetos italianos na primeira metade do século XVIII,

influenciando bastante a obra de José Antonio Landi na Amazônia, na segunda metade

do século XVIII, projetando na região parte da característica da arquitetura italiana

setecentista.

Neste trabalho apresento alguns resultados de uma pesquisa em andamento sobre

a geometria prática presente nos dois livros de Ferdinando Bibiena, já mencionados, a

fim de verificar como tal geometria foi utilizada na elaboração de uma estética pessoal,

que recombinou retas, curvas e poligonais fechadas de modo a explorar noções

sofisticadas de proporcionalidade, equilíbrio geométrico áureo das linhas e formas, na

1 Para maiores informações ver Mendes (2008; 2009; 2012; 2016), nas referencias deste artigo.

Page 2: A GEOMETRIA PRÁTICA DE FERDINANDO GALLI BIBIENA EM … · O livro de Ferdinando Galli da Bibiena, intitulado L’architettura civile, preparata sú la geometria, e ridotta alle prospettive:

projeção dos ambientes internos em cada prédio e nas localizações externas em cada setor

do conjunto arquitetônico construído naquele período.

Para realização da pesquisa consultei as versões digitalizadas dos dois livros de

Bibiena, já mencionados, além de outros livros e artigos publicados por estudiosos sobre

o tema, para obter mais informações que atendessem ao objetivo do estudo e assim buscar

aproximações entre a obra e a vida de Bibiena. A base das interlocuções teóricas e

empíricas da investigação realizada baseou-se no fato de que a diversidade de fontes

historiográficas originou-se nas pesquisas em história da arquitetura, da arte e do teatro,

considerando os estudos de textos históricos de fontes primárias e secundárias.

O estudo histórico partiu do pressuposto de que a investigação de práticas

socioculturais pode contribuir para a mobilização de cultura matemática a partir de

práticas como as que estão presentes nas obras investigadas. Para obter, organizar e

interpretar o material histórico até descrevê-lo na forma do presente artigo, tomei os

pressupostos da pesquisa histórica defendida por Pinsky (2005) e Veyne (2008), entre

outros que propõem a escrita da história de forma interpretativa.

Assim, o artigo está organizado em cinco partes descritas a seguir: a primeira

contém uma síntese biográfica de Bibiena; na segunda realizo uma descrição sumária e

comentada do livro L’architettura civile preparata sula geometria (1711), e na terceira

apresento uma curta descrição do livro Direzioni à giovani studenti nel desegno

dell’aechitettura civile (1734). Comento, ainda, um pouco mais sobre os dois livros com

destaque para alguns aspectos da geometria prática identificada a partir dos mesmos e

finalizo com as minhas considerações finais sobre o tema abordado.

Sobre Ferdinando Galli de Bibiena

Ferdinando Galli de Bibiena nasceu em Bolonha em 19 de agosto de 1657 e

faleceu na mesma cidade, em 03 de janeiro de 1743. Estudou pintura e aperfeiçoou-se em

pintura de quadratura, uma espécie de projeção em um tipo particular de perspectiva na

arte visual da época, cuja característica era dar uma aparência de profundidade aos

espaços. Viveu alguns anos em Roma, onde ampliou seus conhecimentos. Trabalhou em

Parma, Modena, Gênova, Torino, Veneza, Roma, Milão, Nápoles e, posteriormente, foi

para a Espanha, a convite da coroa espanhola, no reinado de Felipe V. Entre seus escritos

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destacam-se os dois tratados de arquitetura publicados, um número expressivo de projetos

e esboços arquitetônicos, bem como várias decorações que, depois, foram publicadas por

seus descendentes ou estudiosos da sua obra.

Em 1711, Bibiena publicou seu livro mais importante sobre arquitetura, intitulado

L’architettura civile, preparata sú la geometria, e ridotta alle prospettive: considerazioni

pratiche, que por volta de 1731 passou a ser bastante utilizado por jovens estudantes de

arquitetura da Academia Clementina de Bolonha, o que levou Bibiena a retomar as suas

principais reflexões e orientações para compor um novo livro, publicado em 1734,

intitulado Direzioni à Giovani Studenti nel Disegno dell’Architettura Civile. Organizado

em dois tomos, tal livro tinha como finalidade principal a formação dos futuros arquitetos,

a partir da sua perspectiva profissional que envolvia arquitetura, pintura e cenografia.

Para dar continuidade ao trabalho desenvolvido por Bibiena, seu filho Giuseppe (1696-

1756), seguiu na mesma profissão do pai, além de publicar algumas obras póstumas

deixadas por Bibiena.

O tratado L’Architettura Civile Preparata Sula Geometria (1711)

O livro de Ferdinando Galli da Bibiena, intitulado L’architettura civile, preparata

sú la geometria, e ridotta alle prospettive: considerazioni pratiche, foi publicado em

Parma, por Paolo Monti, em 1711. Nessa obra, o autor deixa evidente que a base de seu

trabalho se apoia nas ideias advindas da geometria euclidiana, reinventada de maneira

prática e presente na arquitetura de mestres como Vitruvius, Palladio, Scamozzi, Serglio,

Leon Battista Alberti, dentre outros. Com relação à Perspectiva, Bibiena se baseia em

trabalhos como os de Leon Battista Alberti, Leonardo da Vinci, entre outros. Na parte

relacionada à Mecânica o autor menciona as ideias de Guido Baldo de Marchesi dal

Monte, Vitruvius, Nicolò Tartaglia e Heron de Alexandria.

Figura 1. Folha de rosto do livro L’architettura civile preparata sula geometria (1711)

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Fonte: Acervo digital da Pesquisa

No referido livro são apresentados diversos desenhos correspondentes à

perspectiva e cenografia, que serviram de modelo para uso na formação de jovens

estudantes de arquitetura. Neste sentido, Bibiena dedicou cerca de quarenta páginas de

perspectiva, onde apresenta uma construção de planta de prédios em elevação e inclui,

também, uma seção sobre perspectiva para a construção de teatros e a projeção de espaços

cenográficos.

O tratado foi organizado em cinco partes. A primeira parte trata, exclusivamente,

da geometria euclidiana em suas relações práticas, por considerar que tal tema era de

extrema relevância para as partes posteriores a serem tratadas no livro. Definição de

figura geométrica; como construir tais figuras em um plano e projetá-las no espaço em

diferentes direções ou dimensões, de acordo com as construções práticas em que essas

geometrias necessitam ser mobilizadas.

A segunda contém uma breve apresentação sobre os elementos da arquitetura em

geral, na qual Bibiena esclarece conceitos, formulações e objetos da arquitetura, em cujas

construções mobiliza a geometria abordada na parte anterior. Nessa parte as mobilizações

da geometria euclidiana ocorrem em uma epistemologia da prática, na qual se evidenciam

outras formas de elaboração geométrica, operacionalizadas pelos profissionais das

construções e cujas técnicas de traçados geométricos são preservadas desde etapas

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históricas mais anteriores, como as que aparecem nos manuais de arquitetura de

Vitruvius, Palladio e outros arquitetos italianos que influenciaram a formação de Bibiena.

Na terceira parte, o autor aborda fundamentos sobre perspectiva em geral. Neste

sentido, esclarece sobre nomes dos termos e suas significações como, por exemplo, em

relação aos pontos, linhas, ângulos, superfícies e outras definições referentes a

construções da perspectiva em arquitetura, bem como de suas implicações na cenografia

teatral, na qual são mobilizadas as conexões práticas entre geometria, ótica e cores.

Na quarta estabelece suas considerações sobre pintura em geral, enfatizando quais

as habilidades necessárias para um jovem pintor estabelecer as relações geométricas em

projeções perspectivistas de modo a criar cenários planos e espaciais em diferentes

dimensões. Nessa parte do livro, o autor destaca os mais variados tipos de perspectivas

apresentados em tratados anteriores de arquitetura para, em seguida, anunciar suas

maneiras de conceber e praticar sua arquitetura e pintura de quadratura, o que caracteriza

seu trabalho para a elaboração de projetos cenográficos para teatros da época.

Na quinta, e última parte, trata da mecânica ou arte de mover, manter e transportar

uma peça. É nessa parte do livro que Bibiena retoma as proposições de Vitruvius sobre a

arte de mover as peças e acrescenta novas informações advindas das teorias aristotélicas,

da mecânica de Guido Baldo de Marchesi dal Monte, das ideias de Nicolò Tartáglia e de

Heron de Alexandria, de modo a apontar os conhecimentos necessários para levar em

frente a determinação de qualquer empreendimento mecânica, a ser implementado na

elaboração e execução de um projeto de arquitetura que envolve peças em movimento ou

no transporte de alguma peça.

O tratado Direzioni à Giovani Studenti nel Disegno dell’Architettura Civile (1734)

O livro elaborado por Bibiena para a formação de jovens arquitetos, na Academia

Clementina de Bolonha, na primeira metade do século XVIII, foi organizado, segundo

seu autor, a partir de dois obstáculos que ele considerou necessários de serem superados

por todo estudante de arquitetura civil. O primeiro, refere-se ao fato de que os jovens

profissionais deveriam basear-se na geometria exata para compreender as teorias e as

práticas relacionadas a arte da pintura de quadratura, uma técnica de elaboração estética

visual para a arquitetura cenográfica, principalmente dos teatros e palácios. A outra diz

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respeito ao conhecimento a ser adquirido pelos estudantes na exploração dos livros, de

modo a ampliar suas competências e habilidades a respeito do assunto em questão – o

desenho, a pintura e as projeções arquitetônicas.

Figura 2. Folha de Rosto do livro Direzioni à Giovani

Studenti nel Disegno dell’Architettura Civile (1734)

Fonte: Acervo digital da pesquisa

Neste sentido, o autor organizou sua proposta de geometria prática com base em

autores, cujas ideias favoreciam sua abordagem para a geometria (estática e mecânica),

de modo a tomar os princípios geométricos na projeção de objetos parados e em

movimento para assim se tornar possível ampliar a habilidade de projeção pelos futuros

arquitetos formados naquela academia.

O tratado foi organizado em dois volumes. No primeiro, o autor aborda aspectos

mais teóricos considerados fundamentos essenciais na formação que o estudante

precisaria ter para desenvolver as atividades práticas propostas no segundo volume. Desse

modo, o autor subdividiu os assuntos em cinco partes. A primeira contém fundamentos

sobre geometria prática, a partir dos Elementos de Euclides, com muitas reinvenções

dessa geometria em acordo com os interesses práticos para quem vai fazer uso desse

conhecimento geométrico na arquitetura. Na segunda parte o autor retoma as cinco ordens

presentes no livro de arquitetura proposto por Vitruvius e no trabalho do italiano

Sebastiano Serlio. A terceira contém a divisão das cinco ordens estabelecidas pela

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arquitetura de Andrea Palladio. A quarta oferece a divisão proposta para sua arquitetura,

com destaque para a construção de arcos sobre colunas. Por fim, a quinta apresenta a

divisão da arquitetura de Giacomo Barozzio da Vignola, também referente à construção

de arcos sobre colunas.

Figura 3. Imagens da primeira parte do livro, eferentes a algumas construções geométricas

Fonte: acervo digital da pesquisa

O segundo volume foi dividido em cinco partes: a primeira contém a sugestões de

atividades práticas sobre perspectiva comum (denominada pelo autor) para a formação de

pintores e de arquitetos. A segunda oferece práticas que serviriam para a elaboração de

desenhos e pinturas de figuras (estátuas). A terceira apresenta práticas sobre o uso da

perspectiva nos cenários teatrais. A quarta focaliza as práticas na direção dos modos de

utilizar sombras. A quinta parte traz a mecânica, na qual trata da arte de mover uma peça

e transportá-la de um lugar para outro.

Na organização do trabalho, Bibiena baseia-se no tratado de arquitetura de 1711,

mencionado anteriormente, com diversas informações extraídas do texto de Vitruvius e,

também, dos tratados produzidos por Palladio, Serlio e outros autores credenciados, os

quais deveriam ser adquiridos pelos estudantes com a maior brevidade possível.

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A intenção do autor era oferecer seus vastos conhecimentos como cenógrafo, aos

estudantes de arquitetura, dentre os quais estavam seus filhos, que posteriormente lhe

sucederiam como cenógrafo da corte espanhola, durante muitos anos. Seu tratado

dedicado aos jovens estudantes de arquitetura simplificava e ampliava os conselhos

oferecidos em seu tratado anterior sobre arquitetura civil, principalmente sobre a

preparação para o desenho de cenografias, no qual tentou ser bem pedagógico, o que o

levou a ampliar o número de lâminas com desenhos ilustrativos sobre as práticas

geométricas a serem utilizadas pelos estudantes.

Foi possível observar que nas primeiras páginas do tratado o autor apresenta

alguns fundamentos sobre seu sistema cônico de desenhar em perspectiva, no qual o ponto

de fuga central se conecta aos demais pontos observados de forma conjugada e

integralizante. Igualmente, menciona sua ideia sobre o plano do quadro como plano que

corta as linhas visuais emitidas desde os pontos definitórios das figuras.

Figura 4. Perspectiva cônica presente nos livros de Bibiena

Fonte: acervo digital da pesquisa

Entretanto, Bibiena não trata tão-somente de ensinar o que é um plano do quadro.

O que ele faz no tratado consiste em tentar mostrar como é possível desenhar a perspectiva

de um cenário em vários planos do quadro, e como o cenógrafo deve coordenar seu

trabalho para que quando todos esses planos sejam vistos pelo espectador formem uma

só perspectiva cônica, ou seja, uma imagem convergente mais pormenorizada do objeto

projetado.

Sobre as geometrias práticas presentes nos tratados de arquitetura

A respeito das geometrias práticas presentes nos dois tratados de arquitetura,

elaborados por Bibiena, foi possível perceber que o autor tomou para seus trabalhos as

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experiências já estabelecidas em outros tratados de arquitetura que talvez tenham lhe

servido de orientação durante sua formação profissional. Além disso, foi possível

perceber, ainda, o quanto o autor reinventou princípios, teorias e práticas geométricas ao

estabelecer conexões entre as práticas geométricas, a geometria das luzes e cores, e dos

movimentos, de modo a oferecer um processo dinâmico que visava provocar a

criatividade na imaginação estética dos arquitetos em formação na Academia Clementina

de Bolonha naquele período. A seguir, apresento algumas dessas conexões e suas relações

com a perspectiva cônica presente nos tratados investigados.

Sobre as figuras planas e espaciais exploradas

As figuras ocas preparadas para os projetos de perspectivas constituíam elementos

que enfatizavam aspectos frondosos como, por exemplo, nos muros arquitetônicos, cujas

projeções apresentavam diversas influências de elementos da arquitetura clássica. Neste

sentido, eram utilizadas diferentes formas geométricas espaciais elementares como os

poliedros, uma vez que se os jovens estivessem familiarizados com as figuras planas e

espaciais, Bibiena considerava prudente nesse momento introduzir os poliedros regulares

e semirregulares, pois admitia que, de todos os modos, nenhum cenógrafo desenharia e

projetaria em perspectiva cônica, estas formas mais complexas, uma vez que ele

considerava mais adequado elaborá-las por aproximação e combinação geométrica a

partir da projeção de poliedros conjugados entre si.

De acordo com Bibiena, as figuras sobre planos não horizontais eram os elementos

mais difíceis de serem projetados em perspectiva, na arquitetura. A esse respeito

menciona o exemplo das abóbadas, que se compõem de muitos arcos. Neste sentido,

mostra uma maneira de transportar os pontos principais que definem essas figuras e os

modos de tratar da interseção das superfícies que as envolvem, fazendo assim surgir o

objeto foco de projeção, tal como mostra a figura 5.

Figura 5. Octógono duplo em perspectiva. Livro Direzioni à

giovani studenti nel desegno dell’aechitettura civile (1734)

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Fonte: Acervo digital da pesquisa

Outros elementos difíceis de projetar em arquitetura

Para Bibiena as hélices e as escadas eram consideradas um desafio aos

perspectivistas. Porém, foi com base na exploração da geometria prática que o autor

propõe ser possível projetar esses objetos em cena se for considerado que eles são

compostos por elementos geométricos que se descompõem em outros.

Figura 6. Exemplo de combinação geométrica presente no livro

Direzioni à giovani studenti nel desegno dell’aechitettura civile (1734)

Fonte: Acervo digital da pesquisa

Para ele, se trata apenas de um problema de paciência (imaginação criativa) ou

seja, identificar e projetar em perspectiva, seus pontos definidores e, assim, o objeto

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estaria projetado na perspectiva desejada. Dessa maneira, o autor assegurava que se

tornaria possível realizar uma moldagem arquitetônica em seus pormenores,

considerando os numerosos focos e enquadramentos, as molduras que cercam os

elementos clássicos, que requerem um pouco de prática para saber lançar pequenas

diagonais, que simplificariam a obtenção dos pontos essenciais em linhas paralelas.

Outro aspecto destacado por Bibiena é que os jovens arquitetos em formação

deveriam estar preparados para desenhar qualquer elemento em perspectiva. Por isso, o

autor ofereceu orientações de como desenhar sobre superfícies que não estivessem de

frente para o espectador (o plano de imagem), mostrando, assim, por exemplo, figuras em

perspectivas que pudessem ser utilizadas na decoração de tetos, para que se pudesse

projetar uma profundidade ilusória no olhar do observador, o que caracterizava seu

trabalho de projeção em quadratura.

Colocação de figuras e elementos, deformações e correções

A esse respeito Bibiena destaca que Vitruvius já havia assegurado em sua

arquitetura que, recorrendo a uma tradição anterior, um espectador no sol veria os objetos

arquitetônicos com uma peculiar deformação de maneira que os elementos situados em

uma posição mais alta, os veria menores que os que estivesse mais abaixo. Todavia,

mesmo que lhe parecessem mais baixos, Bibiena sugere que os arquitetos deveriam levar

isso em consideração, e tentassem corrigir esta tendência, pois desde a obra de Vitruvius

já estava proposto que o mais adequado seria desenhar em maior escala os elementos dos

níveis superiores para que parecessem iguais aos dos níveis inferiores. Um exemplo que

o autor deixa claro remete à necessidade de se aumentar a altura das estátuas projetadas

nas obras de arquitetura.

Ainda sobre a colocação das figuras e elementos geométricos nas práticas da

arquitetura, Bibiena destaca o fenômeno da anamorfose. A esse respeito salienta que o

arquiteto pode aplicar o que aprendeu na parte anterior do livro, na busca de alcançar

propósitos mais ambiciosos, pois às vezes as superfícies a serem projetadas não são planas

e, neste caso, o artista (arquiteto) terá de desenhar uma perspectiva acertada sobre uma

abóboda curva ou sobre uma cúpula. Para o autor, deve-se projetar com linhas sobre essa

superfície, e encontrar cuidadosamente os pontos de interseção, de modo que este

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procedimento lhe permitia apresentar uma anamorfose, ou seja, uma espécie de

deformação exagerada e imprevisível do objeto que se queria projetar perspectivamente.

Assim, uma superfície pode conter a representação de uma figura não identificável, que

só se torna possível reconhecê-la a partir de um ponto de vista apropriado.

Figura 7. Sobre a anamorfose mencionada nos livros de Bibiena

Fonte: Acervo digital da pesquisa

O autor destaca, ainda, que a anamorfose mais comum é desenhar uma face (um

rosto), que pode ser incluído um retrato (um quadro). A face deve ser desenhada

projetando-a ponto a ponto sobre essa superfície (um quadro) com um ângulo aumentado,

de modo que se possa obter uma forma extremadamente oblonga. Assim, o observador

só descobrirá o tema do desenho se olhar atentamente muito de lado, para que seja

possível a imagem surge como uma aparição.

Se a superfície for desordenadamente curva a imagem deve ser desenhada por

pontos sobre ela. E a partir desse ponto de vista ser concebido, aparecerá misteriosamente

a imagem do objeto em volume (em dimensão espacial), ou seja, a imagem ficará

projetada no espaço em profundidade de acordo com o movimento curso da superfície.

Sobre a geometria no cenário barroco

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A respeito do cenário barroco, Bibiena revela ao jovem arquiteto o segredo da

decoração, que ele denomina como em teares paralelos. Esse traçado em perspectiva deve

ser forçado pelo desenhista, ou seja, provocado. Neste sentido, cada tear terá uma escala

mais reduzida que o anterior, uma vez que os teares não formam um plano, mas estarão

dispostos em planos escalonados. Nesse procedimento, o cenógrafo deveria pensá-los

(imaginá-los) de modo que quando o espectador olhasse pudesse ter uma visão

consistente do desdobramento do objeto que se queria mostrar.

Ainda sobre esse assunto, o autor menciona outro aspecto geométrico que ele

denomina de ângulo cênico. Trata-se da disposição de uma decoração enviesada (na

forma de viés), que obrigaria o cenógrafo a colocar pelo menos alguns painéis girados.

Para esclarecer oferece um exemplo simples de como alcançá-lo, mencionando que suas

orientações bastariam para o jovem entender o quanto era difícil determinar o número de

teares necessários para uma decoração maior, mas que a partir das técnicas sugeridas

poderiam ser alcançadas com bastante facilidade.

Sobe a Iluminação e as máquinas

A respeito da estética projetiva estabelecida pela iluminação e pelos movimentos

das formas geométricas, colocadas na perspectiva cônica anunciada, Bibiena considerou

que o jovem cenógrafo deveria conhecer as leis elementares da óptica como, por exemplo,

prever as sombras e contar com os reflexos, como princípios também importantes na

aplicação da geometria projetiva, uma vez que, teoricamente, os raios de luz são refletidos

com ângulos simétricos, como em um espelho.

Figura 8. Exemplo de projeção geométrica da luz, presente nos livros de Bibiena

Fonte: Acervo digital da pesquisa

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Neste sentido, poderiam ser determinadas geometricamente as sombras que

seriam, assim, projetadas com toda exatidão. Na prática, o autor considerava que tudo era

um pouco mais difuso e, por isso, preferia passar à aplicações mais práticas desses

princípios.

Na realidade, em seu tempo, o cenógrafo apenas controlava a iluminação. Em

ocasiões se previa iluminação natural nos cenários (com janelas laterais). Porém, quase

sempre, e desde logo nas funções de tarde, só se podia contar com velas ou candeias. Com

frequência as decorações de palácios incluíam lustres e lampadários autênticos entre os

objetos cênicos.

Figura 9. Exemplo de quadratura nos livros de Bibiena

Fonte: Acervo digital da pesquisa

Sobre as máquinas, Bibiena salientou que os arquitetos em formação deveriam

conhecer bem as propriedades físicas sobre a alavanca, posto que com ela seria possível

mover qualquer objeto, independentemente de seu peso, desde que se tivesse um ponto

de apoio para movê-la.

Para o autor esse ponto de apoio era o primeiro elemento multiplicador da força

humana, e que de posse desse conhecimento, o arquiteto poderia iniciar-se em

procedimentos que pudessem aumentar a potência da força humana a ser empregada

como qualquer outra para mover as máquinas de teatro, dentre os quais, alguns são

conhecidos desde a Antiguidade Clássica: o torno (vertical) ou cabrestante (horizontal),

que correspondem ao princípio da alavanca; a polia ou combinações de polias, como

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práticas empregadas habitualmente nos navios; as engrenagens, que no teatro eram

estruturadas por rodas dentadas que, embora de madeira e com grandes dentes, nem

sempre eram executadas com precisão adequada, e não trabalhavam com muita eficácia.

Figura 10. Desenhos de máquinas. Anexos da quarta parte do livro L’Architettura civile

preparata sula geometria (1711)

Fonte: Acervo digital da pesquisa

Considerações finais

A investigação dos dois tratados elaborados por Bibiena me fizeram refletir

principalmente sobre o fato de que o autor se baseia nos tópicos propostos nos Elementos

de Euclides, para reinventar seus métodos de construção geométrica com a finalidade de

abordar entes geométricos como ponto, linha (reta, curva e mista), superfície (plana e

curva), corpo sólido, circunferência, círculo e centro do círculo, bem como diâmetro,

semidiâmetro (raio), sempre em uma relação com a arte geométrica, visual e mecânica no

sentido estético. Igualmente, há ainda destaque para outros aspectos geométricos

extremamente importantes como ângulos planos (reto, agudo e obtuso), ângulo mistilíneo

e curvilíneo, linhas paralelas, figuras regulares como trapézio, retângulo, rombo

(romboide), triângulo equilátero, equiângulo, triângulo isósceles, triângulo escaleno;

figuras irregulares; linha da elipse ou oval; linha espiral no plano; linha espiral elevada

cujas construções geométricas orientadas com o uso da régua e do compasso, expressam

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métodos extremamente originais, cujas maneiras de construir não são muito presentes nos

livros de desenho geométrico ou arquitetônico utilizados atualmente.

Os resultados da investigação apresentam, por exemplo, possíveis eixos de

exploração matemática para uma abordagem transversalizante da matemática escolar para

a Educação Básica e Superior, de forma prática e atualizadas com base nos softwares

usados atualmente como o GeoGebra e o Sketshup, bem como podendo ser tomado como

base para outros estudos similares em geometria dinâmica, simetrias ou outros tópicos

que envolvem geometria.

Ficou evidente, ainda, o quão são melhor evidenciadas as potencialidades

geométricas da perspectiva em grandes espaços arquitetônicos como pátios ou interiores,

quando se dispunham com elementos iguais e repetidos, para criar a ilusão de reiterações

quase infinitas. É possível, portanto, admitir que o trabalho de Bibiena se caracterizou por

introduzir uma nova versatilidade a vários elementos arquitetônicos usuais para a sua

época, principalmente quando sugeriu que se combinassem três aspectos fundamentais

no estabelecimento de uma estética espacial infinita e impactante em ambientes como

palácios e teatros: a geometria, a luz e as cores, em um movimento dinâmico, conectados

na projeção em perspectiva.

Referências

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