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Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes Apresenta: A GIRA DA RAINHA De Luiz Oliveira Santos Colaboração de Alex Moletta Direção: Ednaldo Freire PRÓLOGO AINDA NA PLATEIA ATORES TOCAM E CANTAM, RECEBENDO OS ESPECTADORES QUE SE APROXIMAM. EM DETERMINADO MOMENTO, A UM TOQUE, INICIA-SE A FUNÇÃO. FÁBIO- Boa tarde, muito boa tarde a vocês que aqui vieram! Bem-vindos aos senhores e senhoras, rapazes, moças e crianças! ROBERTO- Nossas boas vindas aos distintos moradores dessa cidade e também a todos os seus visitantes! NOVO APITO E OS ATORES SOBEM AO CAMINHÃO, TOCANDO E CANTANDO A CHEGANÇA. CARLOS- (JÁ NO PALCO) É com orgulho e satisfação que a Fraternal Companhia de Arte e Malas Artes sobe mais uma vez neste palco itinerante para vosso entretenimento e reflexão! AIMAN- Primeiro pedimos vossa atenção para os arranjos que decoram o ambiente. Este pequeno espaço que dividimos com vocês doravante representará uma dimensão muito mais abrangente: Este imenso terreiro chamado Brasil! DANIELA - Terreiro encantado que é o resultado da encruzilhada de várias nações e culturas, palco de transformações mágicas e poéticas, onde se misturam santos

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Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes

Apresenta:

A GIRA DA RAINHA

De Luiz Oliveira Santos Colaboração de Alex Moletta

Direção: Ednaldo Freire

PRÓLOGO

AINDA NA PLATEIA ATORES TOCAM E CANTAM, RECEBENDO OS

ESPECTADORES QUE SE APROXIMAM. EM DETERMINADO MOMENTO, A

UM TOQUE, INICIA-SE A FUNÇÃO.

FÁBIO- Boa tarde, muito boa tarde a vocês que aqui vieram!

Bem-vindos aos senhores e senhoras, rapazes,

moças e crianças!

ROBERTO- Nossas boas vindas aos distintos moradores dessa

cidade e também a todos os seus visitantes!

NOVO APITO E OS ATORES SOBEM AO CAMINHÃO, TOCANDO E

CANTANDO A CHEGANÇA.

CARLOS- (JÁ NO PALCO) É com orgulho e satisfação que a

Fraternal Companhia de Arte e Malas Artes sobe mais

uma vez neste palco itinerante para vosso

entretenimento e reflexão!

AIMAN- Primeiro pedimos vossa atenção para os arranjos que

decoram o ambiente. Este pequeno espaço que

dividimos com vocês doravante representará uma

dimensão muito mais abrangente: Este imenso

terreiro chamado Brasil!

DANIELA - Terreiro encantado que é o resultado da encruzilhada

de várias nações e culturas, palco de transformações

mágicas e poéticas, onde se misturam santos

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católicos, entidades indígenas e Orixás vindo da

África!

ATOR - Na encruzilhada deste terreiro de transformações era

de se esperar que a mistura de tantas culturas

acabasse gerando alguns desvios. Vamos dizer assim:

a cópia ficou um pouquinho diferente do original.

ATOR - Quando aquelas Grandes Mães Orixás vindas da África

atravessaram esta encruzilhada, acabaram sendo

vestidas como santas e assim perderam a sua principal

característica, a sensualidade. O prazer sagrado que

existe no ato de conceber uma vida lhes foi negado.

Coisa impensável lá na África.

MARIANA- Neste ato, pedimos licença a todos esses Orixás

femininos para revelar com engenho e arte a

trajetória de uma mulher que veio das brumas do

passado, atravessou a encruzilhada e, aqui no Brasil,

acabou se tornando um símbolo do resgate dessas

Grandes Mães africanas. Uma mulher plena de

sensualidade e que assumiu o prazer como um direito

seu e, por extensão, o direito de todas as mulheres

do mundo. Com Vocês:

TODOS: Maria Padilha !!!

NO PALCO, UM TECIDO COLORIDO ESTÁ ESTENDIDO. MARIA PADILHA -

NUMA LONGA CAPA DEBRUADA COM ARMINHO, SEGURA UM CETRO

COM UMA CAVEIRA NA PONTA -, ENTRA NUM CARRO ALEGÓRICO E

DESFILA PELA PLATÉIA. OS ATORES A ACOMPANHAM E CANTAM

Ela vem na calunga

Ela vem na ciranda

Ela tem armadilha

Ela é de Sevilha

Ela é quem comanda

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Ela é moça bonita

Ei, cuidado, seu moço

Nunca brinca em serviço

e despacha feitiço

É angu-de-caroço.

É rainha da noite

É mulher que encruzilha

É preciso ter fé.

Ela entra na gira

É Maria Padilha

Ela tem cabaré.

TERMINADA A MÚSICA, OS CANTORES SE DIRIGEM A MARIA PADILHA E

A SAÚDAM. ELA FUMA UMA CIGARRILHA E SE DIRIGE AO PALCO.

ATORES CONTINUAM NA PLATÉIA.

ATORES - Salve, Maria Padilha dos Sete Cabarés!

Salve, Maria Padilha, rainha da Lira

Salve, Maria Padilha da Calunga

Salve, Maria Padilha das Almas.

MARIA PADILHA Boa tarde, querido e distinto público. Bem-vindos, os

estrangeiros de todas as raças e credos que vieram dar

sua contribuição a este país. Bem-vindos, todos os

deuses e entidades de todas as civilizações que já

passaram por esta terra para ajudar os homens. Bem-

vindos, todos os andarilhos do além, aqueles que já se

foram e ainda caminham entre nós.

NO TECIDO ESTENDIDO NO PALCO, APARECEM DOIS BONECOS, ZEFINO E

LANDINHA. ELE É MAGRELO E COMPRIDO. ELA USA ÓCULOS GATINHO,

TEM SEIOS ENORMES E UM PENTEADO ALTO E COMPLICADO.

ZEFINO - Não, não acredito no que eu tô vendo. Cê tá vendo a

mesma coisa que eu, Landinha?

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LANDINHA - (OBSERVANDO BEM E RESMUNGANDO) Hum, hum!

Num pode ser. Vim toda bonita porque achei que cê ia

me levar pro Municipal pra ver a dança do cisne e me

traz aqui neste...neste terreiro pra ver a dança da

pomba? Tá tentando me descaminhar, seu trôço?

(DÁ-LHE UM SAFANÃO)

ZEFINO - Ai, minha flor, eu queria te fazer uma surpresa. É que

me falaram que ia ser história de rainha, mas parece

que...

LANDINHA - Então vamo embora já. Isto aqui é propaganda

enganosa, o que eu tô vendo ali é uma...uma...

MARIA PADILHA - Uma o quê, dona Landinha?

LANDINHA - Zefino, diga pra essazinha aí que não me venha com

intimidades. Meu nome é Y-o-lan-da. Diga também

que eu não converso com gente desqualificada. Não

vim aqui pra isso. Vou processar essa companhia.

(PARA O PÚBLICO) Gente, quem aqui quer ir lá

comigo fazer um abaixo assinado?

ZEFINO - Dona...dona...é...o caso é que viemo aqui pra ver um

espetáculo da Fraternal Cia e disseram pra gente que

ia ser história bonita de rainha.

ATOR 1 - Dona Yolanda, a gente vai cumprir o que prometeu.

Pode ficar sossegada.

LANDINHA - Ah, só se forem contar história de rainha de terreiro.

ZEFINO - É, coisa de despacho, velas pretas, galinhas sangrando,

farofa de dendê e muita bebida.

ATOR 1 - Olha o preconceito, vocês é que podem ser

processados.

LANDINHA E ZEFINO BATEM COM OS OMBROS ALTERNADAMENTE.

OS DOIS - Eparrei! Saravá! Laroyê! Saluba!

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MARIA PADILHA SOLTA UMA BAFORADA SOBRE LANDINHA E

GARGALHA.

LANDINHA - (TOSSINDO) Me acuda, Zefino, me acuda que tô

morrendo.

ZEFINO SUSTÉM LANDINHA E ABANA SEU ROSTO. MARIA PADILHA

APROXIMA-SE E ESTENDE A MÃO PARA ELA.

MARIA PADILHA - Põe pra fora esses melão sufocado, deixa essas tetas

respirar.

ZEFINO - Sai pra lá, encosto!

MARIA PADILHA- Ô seu Armando, cadê a minha birita?

S. ARMANDO - (FORA DE CENA) Já vai, menina.

ATOR 1 - Deixa eu fazer uma respiração boca a boca.

ZEFINO - Nem vem, na minha muié não.

ATOR 1 - Então vamos chamar alguém dá plateia. Ei você aí, cê

sabe fazer isto? (AGUARDA)

ZEFINO - (PEGANDO UM PORRETE) Vem, vem, quero ver cê

chegar aqui perto... Vem!

ENTRA S. ARMANDO (BONECO) TRAZENDO EM UMA DAS MÃOS UMA

TAÇA COM BEBIDA; NA OUTRA, UMA GARRAFA. É UM NEGRO E ESTÁ

BASTANTE GROGUE.

S. ARMANDO - Aqui, menina. (DÁ A TAÇA A MARIA DE PADILHA E

OLHA PARA LANDINHA) Tá caída por causa de

cachaça?

ZEFINO - Não, é fumante passiva por causa dessa aí.

S. ARMANDO - Então dá cachaça que ela arriba.

S. ARMANDO DESPEJA O CONTEÚDO DA GARRAFA NA BOCA DE

LANDINHA. ELA SE LEVANTA, REFEITA.

LANDINHA - Ui, ai...

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ZEFINO - Vamo embora daqui, muié. Isto não é lugar pra gente

decente.

LANDINHA - Ah, não.(MEIO GROGUE, DÁ UM SINAL AO ATOR)

Vem cá, rapaz. Cês vão ter mesmo peito de contar

uma história sobre essa rainha de terreiro? Dessa...

MARIA PADILHA - Tanto peito quanto a senhora...

LANDINHA - (OLHANDO PARA OS LADOS) Parece que ando

ouvindo voz de gentalha...(PARA ATOR) Mas que ideia

de jerico!

MARIA PADILHA - Tô me segurando, tô me segurando...

ZEFINO - (AMEAÇANDO-A COM O PORRETE) Vem, vem!

MARIA PADILHA TIRA O PORRETE DE SUA MÃO, JOGA-O AO FUNDO E

GARGALHA.

ZEFINO - Ah, muié dos diabos.

ATOR 1 - D. Landinha, esta rainha de terreiro já foi rainha de

fato lá na Espanha, há muito tempo atrás.

LANDINHA - Não acredito! Essa é boa. Quero ver isso. Venha aqui,

menina. (ANALISA-A) Ei, me dá mais um gole disso.

MARIA PADILHA DÁ-LHE UM POUCO DA BEBIDA.

ZEFINO - Que que é isso, Landinha? Não se meta com essa...

MARIA PADILHA- O que foi, magrelo bicudo? Vem não, num tô aqui pra

ser xingada.

ZEFINO - Vamo embora, muié. Cê não tá bem.

LANDINHA - Quieto, marido, deixa eu ver (OBSERVA M. PADILHA

POR TODOS OS CANTOS) Vira um pouquinho, moça.

S. ARMANDO - Um pitéu, ela pode ser rainha da Espanha, de terreiro,

sei lá, mas eu queria memo é que fosse rainha lá em

casa.

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LANDINHA - É, tenho que admitir que o material é dos bons e...

ZEFINO ESTÁ FASCINADO E NÃO DESGRUDA O OLHO. LANDINHA DÁ-LHE

UM BOFETÃO.

LANDINHA - Aqui quem olha sou eu, safado.

ZEFINO - Ai, minha frô!

LANDINHA - (OLHANDO MELHOR) É...nós mulheres nos

reconhecemos. Sabe, menina? Parece que eu tô vendo

lá no fundo, mas bem longe mesmo alguma coisinha aí

de nobreza, mas posso tá enganada.

ATOR 1 - Acredite, dona Yolanda, Maria Padilha já foi mesmo

rainha da Espanha.

ZEFINO - Mas cumé que pode ser, homem?

ATOR 1 - Ela foi amante de Pedro, O Cruel, e era...

MARIA PADILHA – (APARTANDO) Deixa que eu explico. Olha, esta

companhia e todo o seu pessoal deviam de tá meio

sem assunto pra algum espetáculo e resolveram ir lá

no terreiro me conhecer.

S. ARMANDO - Devia de ter perguntado pra mim, ara. Minha vida dá

um livro. Ou pr’aquela moça ali que tá com a cara

amarrada. Vai ver que a vida dela é uma desgracera

só./ Ou pr’aquele rapaz ali, aquele com cara de

safado. Ele deve de ter muita coisa indecente pra

contá...

ATOR 1 - Fica quieto, homem. Não é da tua vida que tamos

falando.

MARIA PADILHA - Me fizeram tanta pergunta e queriam saber tanta

coisa que eu falei pra eles: Olha, por que que cês não

conta a minha história no seu espetáculo? Eu posso

dar uma mão.

LANDINHA - (MAIS INTERESSADA) E esses doido toparam?

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MARIA PADILHA - Conversa vai, conversa vem... (BAIXO, PARA

LANDINHA) Eles gostam muito de jogar conversa fora,

de complicar. Daí eu disse pra eles: Chega de

prosa, quanta enrolação. Olha, não vim sozinha pra

este país, muitos já estavam aqui antes de mim, então

por que cês não conta a minha história cruzando com

as histórias das mulheres que vieram da África?

Podiam juntar aí as aflições de todas as mulheres

do mundo, que sofreram discriminação ou apanharam

dos maridos. E olha que isso tem a ver contigo, dona

Landinha.

LANDINHA - Eu, hein?! Tá me estranhando? Este pamonha aí que

tente levantar um dedo! (BATE EM ZEFINO)

ZEFINO - Ai, meu quindim, que foi que eu fiz?

LANDINHA - É pra não perder a mão. Ei, dá mais um gole aí, seu

Armando. Tô gostando disso...

S. ARMANDO VIRA A GARRAFA EM SUA BOCA.

ZEFINO - Landinha, cê tá loca...

ATOR 1 - Posso continuar, dona Landinha?

LANDINHA - (ESTALANDO A LÍNGUA) Coisa boa! Vai lá, rapaz.

Manda bala!

ATOR 1 - Foi daí que surgiu a ideia de usar tudo isso aqui, o

palco e a plateia, como um terreiro.

MARIA PADILHA - Um terreiro que é o grande terreiro do Brasil. A

encruzilhada.

ATOR 1 - Onde se misturam santos católicos, entidades

indígenas e os Orixás vindos da África.

ZEFINO - (PUXANDO LANDINHA) Vam’bora, muié. Num tô a fim

de ter indigestão com este angu.

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LANDINHA - Ah, não, nem vem, agora eu quero ver como é que

essa aí passou de rainha da Espanha pra rainha do

terreiro, rainha do cabaré e da porta do cemitério.

ZEFINO - Muié, ainda vão fazer encruzilhada com coisas da

África e índios. Não vai ser coisa boa.

ATOR 1 - Vai ficar então, dona?

LANDINHA - Vou sim, mas só se for de camarote e poder dar minha

opinião na hora que eu quiser. Tá bom?

ATOR 1 - Tá, tá, dona Landinha. Fique no seu camarote que nós

vamos pra encruzilhada.

S. ARMANDO - Beleza! Vamo lá.

ZEFINO - Ai, ai, que que eu fui fazer? Ainda dá tempo de ir pro

Municipal, minha frô...

LANDINHA - Quem mandou? Agora é que tô animada.

OS BONECOS SAEM. MARIA PADILHA PÕE UM BONÉ DE MARINHEIRO, SE

POSTA ATRÁS DO TECIDO E SEGURA UM TIMÃO. OUTROS ATORES ,

TAMBÉM COM CHAPÉU DE MARINHEIRO, SEGURAM O TECIDO EM “V”,

FORMANDO COM ELA O GRUPO 1 - A TRIPULAÇÃO. OUTRO GRUPO DE

ATORES PERMANECE NAS LATERAIS OU LOGO ATRÁS, FORMANDO O

GRUPO 2 - OS PASSAGEIROS. CANTAM.

GRUPO 2 - Pra onde vamos nesta nau

que já cruza o azul do mar?

fale um pouco desta terra

fale antes de ancorar.

GRUPO 1 - Vou então contar aqui

qual destino vamos ter

Na encantada encruzilhada

é ali se quer saber.

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GRUPO 2 - Chamem todos que aqui esperam,

entrem logo, minha gente.

Tudo isto é um terreiro,

desde aqui até na frente

GRUPO 1 - Venham ver coisas da encruza

nos palmares de aflição,

vejam santos bem juntinho

com a negra escravidão.

GRUPO 2 - Como o povo de Tupã

recebeu toda esta tropa,

recontou tempo das trevas,

reinventou bruxas de Europa.

TODOS - Ande, entre aqui, meu povo,

vem trilhar reino andaluz.

Vou parar no mundo novo,

a chamada Santa Cruz.

TODOS SAEM. ATOR 1 E ATRIZ/D. MARIA TRAZEM UM CARRO EM QUE

UM CORPO ESTÁ ENCOBERTO.

ATOR 1 - A história de Maria Padilha começou na Espanha

medieval por volta do ano de 1350. Época difícil pra se

viver e mais difícil ainda para conseguir se manter no

poder. (PARA A ATRIZ). Por favor, D. Maria.

ATRIZ - (VESTINDO-SE) Eu não tive muita sorte na vida, pois

me casei com D. Alfonso, este defunto que aqui está.

Estão vendo? Tive mais azar ainda quando gerei um

único filho para ele, Pedro, um menino tão

desmiolado quanto o pai aqui. O que este pivete

caprichoso não tinha de volume no cérebro, tinha em

fartura na sua bundinha cheia de carnes. Desde bebê

as duas partes traseiras pareciam olhar para o céu,

sempre empinadinhas. Eu também carreguei duas

coisas que apontavam para o céu. (DESCOBRINDO O

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TECIDO) Dois chifres que este aqui me colocou. Ah, D.

Alfonso, desgraçado! (PARA O PÚBLICO) Este canalha

aqui tinha uma amante e...

ATOR 1 - Por favor, D. Maria, cada coisa a seu tempo.

(VESTINDO-SE C/ D. ALBUQUERQUE). D. Alfonso

deixou D. Pedro, o Pedrito Rabiola, como seu único

herdeiro... Mas deixou também outras coisas.

ATRIZ - Este ordinário me deixou um enorme abacaxi pra

descascar. O que eu tive de fazer com a ajuda deste

ministro todo poderoso aqui, D. Albuquerque.

(APRESENTA-O)

ATOR 1 - (AFIANDO DUAS FACAS) Já dei jeito em tudo quanto é

problema deste reino e nós haveremos de dar um

jeito de descascar esta fruta, D. Maria. (PARA OS

FUNDOS) Tragam o abacaxi.

RUFAR DE TAMBORES. TROMPAS. ATOR ENTRA COM UM ENORME

ABACAXI NUM CARRINHO E COLOCA-O NO CENTRO.

ATRIZ - Este defunto descarado tinha uma amante chamada

D.Leonor. (TIRA UMA PINTURA DE D. LEONOR SOB O

TECIDO) Esta ratazana vivia como rainha no palácio.

Eu e Pedro fomos mantidos afastados, bem longe do

reino. (C/D. MARIA, ESMURRA O CADÁVER, DEPOIS O

ABACAXI) Ah, miserável, infame, traidor!

ATOR 1 - Vocês acham que ela está assim só por causa da

amante? Que nada, a amante era o de menos. O pior

era o abacaxi que veio com ela e tinha que ser

descascado.

ATRIZ - Ele teve dez filhos, dez filhos bastardos com esta

ratazana branquela. (C/ D. MARIA, TIRA UMA FACA

DO BOLSO E ESFAQUEIA A PINTURA, EM SEGUIDA O

ABACAXI) Ah, maldita D. Leonor, sua ratazana

parideira.

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NUM ALÇAPÃO EM FRENTE DO PALCO, APARECEM OITO BONECOS. D.

MARIA/ATRIZ CONTA.

ATRIZ - Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito. Ei, tá

faltando dois.

ATOR 1 - E estes dois filhos de D. Leonor eram os piores. D.

Henrique e D. Fadrique.

APARECEM DOIS BONECOS TREINANDO COM ESPADAS.

D. HENRIQUE - (ESGRIMINDO) Vamos lá, mano Fadrique. Cê precisa

ficar mais em forma pra enfiar tua espada no fiofó do

Pedrito Rabiola.

D. FADRIQUE - (ESGRIMINDO) Que que é isso, mano Henrique? Não

vou sujar minha espada no Zé bundinha.

D. MARIA - Como é que vamos fazer para ajudar Pedro, D.

Albuquerque? Este filho desmiolado vai ter que lutar

contra estes dez bastardos para se manter no trono.

APARECE O BONECO DE PEDRO NO OUTRO ALÇAPÃO.

PEDRO - Oi, mamãe. Oi, D. Albuquerque. Olhem só a minha

nova capa. Hoje eu vou caçar com ela.

D. MARIA - Você devia estar treinando esgrima pra se defender

dos teus irmãos bastardos, isso sim.

D. HENRIQUE - Ei, Fadrique, olha lá o Zé bundinha de capa nova.

D. FADRIQUE - Tô vendo, Henrique. (PARA PEDRO) Vai caçar

tartarugas, ô almofadinha?

D. PEDRO - Vem cá se cês for homem, bastardos!

TODOS OS IRMÃOS BASTARDOS RIEM. D. MARIA E D. ALBUQUERQUE

ESTÃO IRRITADOS.

D. MARIA - Não aguento mais isso.

BASTARDOS - Olha só o Zé bundinha,

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vai pro mato co’a capinha

refrescar sua argolinha.

D. PEDRO - Bostardos!

BASTARDOS- Caga-rendas/Papa-hóstias/ Borra-botas.

D. PEDRO - Vou mandar queimar todos vocês, cagões!

NERVOSO, D. ALBUQUERQUE TAMPA O ALÇAPÃO DOS BASTARDOS. D.

PEDRO CONTINUA NO MESMO LUGAR.

D. ALBUQUERQUE- (C/MINISTRO) Quietos, seus bastardos de merda!

(PARA D. MARIA) D. Maria, não dá mais pra aguentar

isso. Temos que casar Pedro e fazer uma aliança com a

França para acabar com as revoltas destes bastardos.

D. MARIA - Ah, e quem é que vai querer se arriscar a casar com

este traste?

D. ALBUQUERQUE -Já pensei nisto. D. Blanca de Bourbon, a sobrinha do

rei de França está disponível.

D. PEDRO - Não gosto destas francesas aguadas!

D. MARIA - Cale a boca, você não tem que querer. ( PARA D.

ALBUQUERQUE ALBUQUERQUE) Ótimo, então mande

embaixadores para mediar o casamento e que D.

Blanca traga muitos dotes. Agora só falta escolher a

amante pra ele também. (D. PEDRO VIBRA).

D. ALBUQUERQUE- Mas, D. Maria, a senhora sabe os estragos que as

amantes podem causar.

ATRIZ - Já que meu filho provavelmente vai seguir os passos

do pai, então precisamos escolher a amante para nos

precaver. Tem que ser bobinha e dócil. (ANDANDO)

Mas quem?

D. PEDRO - Tem a Dorotéia que arruma o meu quarto.

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D. MARIA - Esta você já usa, canalha. Pensa que não sei? Ela tem

que ser da nobreza. Vê se fica quieto.

D. ALBUQUERQUE- Já sei. Aquela mocinha que vive em casa sob a minha

proteção.É uma órfã obediente, dócil e muito bonita.

D. MARIA - Maria de Padilla? Sim, D. Albuquerque, o senhor é um

gênio. Ela pertence a uma das famílias mais antigas e

nobres da Espanha.

D. PEDRO - É morena?

D. ALBUQUERQUE- Sim, é morena.

D. PEDRO - Oba!

D. ALBUQUERQUE- D. Maria, agora que a família Padilla ficou pobre por

causa destas guerras, os irmãos desta menina não se

oporão a isto.

D. MARIA - Pelo contrário, eles lucrarão, isto sim. Conheço muito

bem a nobreza. Então vá lá buscar a garota. Ah, tire

ocorpo deste traidor daí e mande enterrar.

D. PEDRO – (MASTURBANDO-SE) Depressa, depressa!

D. ALBUQUERQUE PEGA O CORPO E SAI. ATRIZ, C/D. MARIA, DESCASCA

COM VIOLÊNCIA UMA PARTE DO ABACAXI E GRUNHE COM RAIVA.

ATRIZ - (PARA PEDRO) Pronto, meu filho, esta parte já foi

descascada. agora, Pedro, eu quero descascar essa

outra parte aqui (MOSTRA), quero a morte de D.

Leonor, esta meretriz que pariu estes dez bastardos.

Mande matá-la!

D. PEDRO - É pra já, mamãe. Guardas!

SURGE UM BONECO/GUARDA RAMON AO LADO DE D. PEDRO.

D. PEDRO - Ramon, pegue mais dois homens e vão lá matar

D.Leonor. (O GUARDA FAZ UMA VÊNIA E SAI)

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D. PEDRO - (INDICANDO O ALÇAPÃO OPOSTO) Abra, mamãe, que

a senhora poderá assistir à sua vingança.

ATRIZ ABRE O ALÇAPÃO E APARECE O RAMON SEGURANDO D. LEONOR.

D. LEONOR - Oh, oh, oh! Desgraçada! Meus filhos irão me vingar,

sua vaca!

O GUARDA ABAIXA O CORPO DE D. LEONOR E UM GRANDE FACÃO

CORTA SUA CABEÇA. D. MARIA, RINDO, JOGA UM LENÇO NO BURACO.

ATRIZ - Adeusinho! (VIRA-SE) Agora vamos tirar mais uma

casca deste abacaxi (TIRA) Menos uma!(RI)

RAMON - (SURGINDO) Mas D. Maria logo viu que a sua vingança

só prestou pra jogar mais merda no ventilador. O

abacaxi engordou!

OS DEZ BASTARDOS IRROMPEM DESESPERADOS DO ALÇAPÃO E FAZEM

GRANDE ALGAZARRA, ORA DIRIGINDO-SE A D. PEDRO, ORA PARA D.

MARIA.

BASTARDOS - O que vocês fizeram com nossa mamãe, família do

capeta?/ Tadinha, era tão boa/ Aguarde, Pedrito

Rabiola, nós juntaremos forças! Vamos fatiar essa

cadela aí que nem presunto./ Vamos fatiar também

essa bundinha gorda antes de se sentar no trono/ Os

nobres virão em nosso apoio, carniceiros.

D. MARIA - (FECHANDO O ALÇAPÃO C/ VIOLÊNCIA) E não é que

eles conseguiram mesmo o apoio da nobreza? Ai, que

bosta! (ENFIA A FACA NO ABACAXI) Ainda volto pra

completar minha tarefa.(SAI)

MÚSICA DANÇANTE E MELÍFLUA. CUPIDO ENTRA, TEM UMA COROA DE

FLORES NA CABEÇA, SALTITA E ATIRA FLEXINHAS CONTRA O PÚBLICO.

CUPIDO - Corria o mês de maio, em maio, quando faz calor,

quando o trigo amadurece, quando canta o rouxinol...

(PIPILAR DE PÁSSAROS)

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D. PEDRO - Que boiolice é essa agora?

ATOR 2 - (CORRIDINHAS) Em maio, quando os enamorados vão

servir ao amor. Foi em maio quando Pedro de Castela

conheceu e caiu definitivamente cativado por D. Maria

de Padilla, uma doce e equilibrada castelhana.

ATOR 2 FAZ EVOLUÇÕES COM O TULE SOBRE O ALÇAPÃO. D. MARIA DE

PADILLA (BONECO) SURGE E ENVOLVE D. PEDRO. BEIJOS. MÚSICA

APAIXONADA. COREOGRAFIA ROMÂNTICA.

ATOR 2 - Enfim, mergulharam para o amor, no doce fosso da

paixão...

O CASAL/BONECOS MERGULHA. ATOR 2 JOGA O TULE NO FOSSO.

ATOR 3 - (TRAZENDO A MESA EM QUE ESTIVERA O CADÁVER)

A rainha-mãe e o ministro pensavam ser muito

espertos ao arrumar aquela amante tão dócil, aquela

órfã tão pequetita que lhes devia favores. Só que... só

que...

TAMBORES E PRATOS. NARRADOR 3 ABRE O ABACAXI E DE DENTRO SAI

D. MARIA DE PADILLA COROADA COM UM GRANDE ABACAXI. MÚSICA

FESTIVA.

NARRADOR 3 - Arrumaram outro abacaxi!

NARRADOR 2 - E este se revelaria bem mais difícil de descascar.

D. MARIA DE PADILLA APRESENTA UM SHOW DE REVISTA. OUTROS

ATORES ENTRAM VESTIDOS COM PAETÊ E COLARES DE FLORES.

Quando o rei Alfonso foi para o além,

os seus filhinhos fincaram pé ali

pois queriam no trono sentar também,

O que foi um tremendo abacaxi. (SURGE UM

ABACAXI)

A mãe e o ministro buscaram na França

a bela Blanca que morava em Paris,

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colocando nela toda esperança,

mas ganharam é mais dois abacaxis. (OUTRO)

Foram em Sevilha buscar a amante,

pois Pedro, tristinho, nem falava xis

Até ver Dona Padilha provocante

e ganharam é mais três abacaxis. (MAIS UM)

Um, dois, três

Não saia já daí

olha que lá vem

mais outro abacaxi. (MAIS UM)

O rei, caído pela bela potranca,

ficou no bem bom com sua rainha,

nem foi se encontrar com a virgem Blanca,

mamãe Maria confortou a francesinha.

Quatro, cinco, seis (VÁRIOS ABACAXIS)

Segura o rojão,

olha que lá vem

mais merda no vagão.

EM FILA, JOGAM A BUNDA PARA OS LADOS E REPETEM OS TRÊS

ÚLTIMOS VERSOS POR VÁRIAS VEZES. FINDA A APRESENTAÇÃO, OS

ATORES LEVAM O ABACAXI. FICAM NO PALCO MARIA PADILHA, DUAS

ATRIZES E D. PEDRO.

D. MARIA ACARICIA BLANCA, QUE CHORA CONSTANTEMENTE.

MARIA PADILHA - Oh, foram muitas noites de amor. Foi o primeiro e

último homem que conheci. Sinto até um frenesi pelo

corpo quando penso nisto. (ESTREMECE)

D. MARIA - Hija de mil potras, se aquele desgraçado de mi hijo era

tão bueno garanhon, porque não deixou um poquito

pra essa niña que só llora?

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MARIA PADILHA - (FALANDO AO PEDRO/BONECO) Pedro, se você quer

salvar o nosso amor, deve se casar com D. Blanca de

Bourbon ou toda a nobreza vai cair em cima de ti.

D. MARIA - (PARA BLANCA) Mas no llores más, chica. Vou lá pegar

este hijo desgraçado. (SAI)

MARIA PADILHA - (PARA PEDRO/BONECO) Você precisa fazer uma

aliança com os franceses, pois estes teus irmãos

bastardos estão pondo o reino de ponta cabeça.

D. PEDRO - Não tô a fim de ver aquela branquela. Gosto das

morenas como você. Vem cá, me dá um besito.

QUANDO MARIA PADILHA APROXIMA-SE, ELE SOME REPENTINAMENTE.

D. MARIA ARRASTA D. PEDRO/ATOR PELO COLARINHO E COLOCA-O NA

FRENTE DE BLANCA. ELA ARMA UM BERREIRO.

D. MARIA - Santa mierda, Pedro, estoy a ficar sorda con esta

lamentación. Você precisa casarse com esta niña.

Temos un acuerdo a cumprir com os franceses.

D. PEDRO DÁ VOLTAS EM TORNO DE BLANCA E CORRE PARA M.

PADILHA. AJOELHA-SE A SEUS PÉS E BEIJA SUAS MÃOS. D. MARIA TORNA

A PEGÁ-LO E A LEVÁ-LO PARA JUNTO DE BLANCA

D. MARIA - Por el cullo de Satanás, mi hijo, o que tiene esta

mujer, una cachufleta de oro?

D. PEDRO OLHA RAPIDAMENTE PARA BLANCA E CORRE PARA MARIA

PADILHA. MÚSICA FRENÉTICA. VAI E VEM. BEIJOS PARA PADILHA E

GESTOS DE REPÚDIO PARA BLANCA.

D. MARIA - (XINGAMENTOS DURANTE A MOVIMENTAÇÃO) Mas

que cullo./ Maldita cachufleta tem esta mujer. /Bica

aberta dos demônios. /Cojones!

CHORO DESBRAGADO DA PRINCESA.

D. MARIA - Por el chorizo de Belzebu, voy a cortar tus huevos, hijo

de mierda!

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MARIA PADILHA- (LEVANDO PEDRO PARA A FRENTE) Chega, basta! Vá

de uma vez se casar com ela, senão nosso amor estará

em perigo.

D. PEDRO CAMINHA MAQUINALMENTE PARA BLANCA E PEGA EM SUA

MÃO. D. MARIA DÁ A ELA UM BUQUÊ. MÚSICA NUPCIAL. CAMINHAM

PARA O PROSCÊNIO. BLANCA ARMA UM ENORME SORRISO.

D. MARIA - Finalmente meu filho resolveu se casar com D. Blanca

de Bourbon. Castela estava salva.

D. PEDRO DEIXA BLANCA E CORRE PARA M. PADILHA. A PRINCESA

DESABA NUM CHORO ABERTO NOS OMBROS DE D. MARIA.

D. MARIA - Ai que não posso mais suportar esta merda! (C/

NARRADOR) No dia seguinte após o casamento, D.

Pedro correu de novo aos braços de Maria de Padilha,

o que comprova que realmente ela tinha una

cachufleta de oro. (C/ D. MARIA) Tirem essa bica

aberta fora da minha vista, antes que me cago toda en

la leche de tu madre, coño!

D. MARIA OLHA COM RAIVA PARA A PRINCESA E SAI. BLANCA A SEGUE

CHORANDO ALTO COMO CRIANÇA DE QUEM ROUBARAM UM DOCE.

PARA ANTES DE SAIR E SE VOLTA PARA O PÚBLICO.

D. BLANCA - Rien, rien encore. Moi, eu continuo virgem. Foutre la

merde!

LANÇA O BUQUÊ NO CHÃO E SAI. MARIA PADILHA PEGA O BUQUÊ. D.

PEDRO E DÁ O BRAÇO A ELA. CAMINHAM ATÉ O PROSCÊNIO AO SOM DA

MARCHA NUPCIAL.

MARIA PADILHA - Eu e Pedro nos casamos em segredo e acho que este

casamento era sim o que valia perante Deus, pois era

baseado no amor.

FÁBIO - O povo da Idade Média, mesmo a classe pobre, era

incapaz de entender aquela paixão tão arrebatadora e

desinteressada, pois só podiam compreender a união

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de dois seres como uma forma de unir fortunas ou

poder. Vai daí que essa gente começou a imaginar

histórias, a tecer rendas fantásticas. Acusaram Maria

de Padilha de ter enfeitiçado o rei com filtros de

amor... Ah, e quem precisa de magias e sortilégios

para se apaixonar pela doce Padilha?

MARIA PADILHA - (C/ PADILHA ENVOLVE O ROSTO DE PEDRO, DEPOIS

C/NAR.) Me acusaram bruxaria e ingratidão contra

quem sempre havia me protegido, o D. Albuquerque.

Olhem só o que o povo dizia!

ENTRAM DUAS MULHERES DO POVO.

XIMENA - Ah, não diga, Juanita... um judeu?

JUANITA - Hum, hum, judeu sim, dona Ximena. Um judeu no

palácio de Castela! Pode?

XIMENA - Mas como é que D. Pedro teve a coragem de colocar

este D. Samuel Levi no lugar de D. Albuquerque?

JUANITA - O que cê acha que aconteceu? Dá pra entender que aí

tem a mão daquela Maria Padilha. É mulher cheia de

feitiço e manha.

XIMENA - E pensar que D. Albuquerque acolheu ela em sua

própria casa. Cobra criada!

JUANITA - Uma bruxa ingrata. Aposto que ela e esse judeu,

Samuel Levi, (PERSIGNANDO-SE) se juntaram pra

enfeitiçar D. Pedro e fazer ele despedir o pobre D.

Albuquerque.

XIMENA - Acho que tem coisa aí. Ouvi dizer que D. Albuquerque

andou metendo a mão no balaio do tesouro. O

homem tá mais rico que o rei, Juanita!

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JUANITA - Mentira, mentira, Ximena! É uma desculpa que esta

Padilha e o Samuel Levi andaram espalhando pra

disfarçar as suas bandalheira.

XIMENA - Ah, Juanita, tô cuma dó do home. Agora ele deve tá

amargando a dor do exílio.

JUANITA - Cê acha que ele ia deixar barato? D. Albuquerque se

juntou aos irmãos bastardos, aqueles filhos da égua da

D. Leonor.

XIMENA - Ahá, não diga! Ele não larga o osso.

JUANITA - Ximena, sabe onde devem estar agora a amante e o

judeu? (APONTANDO) Lá em cima, naquela torre,

traçando cabalas pra atazanar a vida da sua próxima

vítima.

XIMENA – Quem?

D. BLANCA ENTRA, ESCOLTADA POR RAMON. TEM AS MÃOS PRESAS

POR CORRENTES E CHORA.

D. BLANCA - Oh, D. Pedro, tão Cruel, serei eu culpada por não ter

lhe agradado se nem sequer tentou deitar em meu

leito?

XIMENA - A pobre francesinha!

JUANITA - (BENZENDO-SE) Eu sabia! Vamo, vamo sair daqui de

baixo, senão vai espirrar feitiço na gente.

SAEM AS DUAS MULHERES E D. BLANCA.

RAMON - O rei D. Pedro ordenou que eu prendesse D. Blanca

numa torre distante e o povo, sem entender a razão

disso, começou de novo a criar histórias. As

companhias teatrais de saltimbancos perambulavam

pelo reino de Castela e apresentavam a sua versão

para os fatos. Olha só o que inventaram. Tome

posição, Padilha. (PERMANECE EM CENA)

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OS PRATICÁVEIS DA PLATÉIA SÃO UNIDOS. MARIA PADILHA E SAMUEL

LEVI SE DIRIGEM A ELES E ASSUMEM GESTOS ESTEREOTIPADOS DE

FEITICEIROS. MÚSICA. ELA TRAZ UM CINTO CRAVEJADO DE PEDRARIAS.

D. LEVI TRAZ UM CALDEIRÃO FUMEGANTE E TRAÇA CABALAS NO AR. M.

PADILHA ENVOLVE O CINTO NA NÉVOA QUE SOBE.

M. DE PADILLA- (RINDO) Pronto, Samuel Levi, aqui tens o cinto. Já está

com o disfarce pronto?

SAMUEL LEVI - Tá tudo aqui dentro, pode deixar. Estudou o teu papel

direitinho? Vamos repassar.

M. DE PADILLA - Eu me transformarei numa velha e direi a D. Blanca

que depois de presentear o rei com este cinto, ele se

apaixonará perdidamente por ela.

SAMUEL LEVI - Depois que o feitiço der certo, D. Blanca será presa

como bruxa e tu...

M. DE PADILLA - Serei a mais bela e a única rainha de Castela.

DÃO GARGALHADAS SINISTRAS E LEVAM O CALDEIRÃO, MURMURANDO

ESTROFES HERMÉTICAS. O BRUXO SAI E M. PADILHA RETORNA COM

LANDINHA.

MARIA PADILHA - (COM AS MÃOS NOS QUADRIS, PARA LANDINHA)

Pode, D. Landinha? E ainda tem gente que diz que a

imaginação do povo é a riqueza de uma nação.

LANDINHA - Ah, sei, só se for uma nação de gente mentirosa. Mas

e aí, o que é que deu esta história de cinto?

MARIA PADILHA - Espera, dona Landinha. Vamos lá ver o que os

saltimbancos inventaram sobre o cinto.(SAI)

MÚSICA DA CORTE. ENTRA D. PEDRO SEGUIDO POR RAMON. ESTE LEVA

UMA CAIXA. VÃO ATÉ OS PRATICÁVEIS.

D. PEDRO - Um presente? Você já olhou aí dentro? Tá cheio de

gente querendo me matar.

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RAMON - Pode abrir, majestade. Eu já averiguei. É coisa muito

linda. Vais gostar.

D. PEDRO - (PEGANDO A CAIXA) Então vamos ver, vamos ver.

Acho que é coisa de mulher. Quem enviou? (ABRE)

RAMON - Ela me pediu segredo, por enquanto, mas vai se

revelar.

D. PEDRO - (LEVANTANDO O CINTO) Mas que maravilha! Jóias

encrustadas em pele de cobra. Que mulher é esta?

ENTRA D. BLANCA, MEIO TÍMIDA E SORRINDO.

D. PEDRO - Tu?

D. BLANCA - É para selar a paz que agora retorna entre nós.

D. PEDRO - (COLOCANDO O CINTO) Você deve ter vasculhado

toda a terra pra encontrar esta maravilha. Muito

obrigado, vou usá-lo pra sempre.

PEDRO COMEÇA A SE AGITAR. SACODE TODO O CORPO.

D. PEDRO - Ramon, me ajude! (TENTA TIRAR O CINTO) Ele está

vivo, está vivo!

RAMON CORRE PARA PEDRO E TENTA AJUDAR.

RAMON - (GRITANDO) Ai, ela me mordeu.(TIRA O BLUSÃO)

D. BLANCA - (CONFUSA) Tava mortinho quando eu comprei ele

daquela velhinha.

O GUARDA EMBRULHA O CINTO COM A BLUSA E TENTA TORCER A

COBRA.

D. PEDRO - (APROXIMANDO-SE COM CAUTELA) Tá morta?

RAMON - (OSCILANDO) Não sei, mas quem tá morrendo sou eu.

A COBRA TENTA MORDER PEDRO. ELE ARRANCA-LHE A CABEÇA COM

UM GOLPE DE ESPADA. RAMON CAI.

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D. PEDRO - Mas o que você queria fazer comigo, sua bruxa? Olha

só quem sofreu com o teu feitiço.

D. BLANCA - Pedro, eu juro, eu não...

D. PEDRO - Guardas, guardas. (LEVANDO BLANCA) Você será

trancada numa torre, bem longe do meu castelo,

depois decidirei o que farei contigo.

D. BLANCA - Pedro, Pedrito, não tive culpa.

D. PEDRO - Ah, pensava que ia reinar sozinha, né? Vais ver o que é

bom.

ELA DESATA NO CHORO E OS DOIS SAEM.

RAMON - (LEVANTANDO-SE) Dizem que depois de sofrer este

golpe pela mão da própria esposa, D. Pedro se

enfureceu, resolveu que iria defender o trono de

qualquer jeito. Dizem até que as suas bandas traseiras

ficaram maiores ainda. Ele foi tratar da questão de D.

Albuquerque. Bem, o caso é que este ex-ministro, que

havia se juntado aos rebeldes, acabou sendo

envenenado pelo seu médico dias depois... Aposto

que cês já sacaram quem foi que subornou o médico,

não é?

APARECEM LANDINA E ZEFINO.

LANDINHA - Aposto que foi o D. Pedro.

D. ALBUQUERQUE ENTRA SEGURANDO UM ATAÚDE. M. PADILHA TAPA

O NARIZ.

D. ALBUQUERQUE- Ele mesmo. Aquele canalha.

ZEFINO - (PUXANDO LANDINHA) Cruz credo, vam’bora,

Landinha. Não quero saber de defunto que levanta.

LANDINHA - (BATENDO) Vai em ocê embora, se não quiser virar

defunto.

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ZEFINO - Desta eu tô fora, ciao mesmo!

D. ALBUQUERQUE- E a senhora, dona Landinha, deve ter descoberto

também quem foi que enfeitiçou D. Pedro pra que ele

encomendasse a minha morte, né? (APONTANDO) Foi

ela, essa aí que tá do teu lado.

LANDINHA - Cê fez isto, menina?

MARIA PADILHA - Mentira! Não enfeiticei ninguém, são futricas,

histórias inventadas. (PARA ALBUQUERQUE) Vai

embora, homem, que vai empestear tudo aqui.

ALBUQUERQUE - Não vou e não vou.

LANDINHA - Ô defunto insistente! Quer que eu dê um jeito nele?

D. ALBUQUERQUE- Eu deixei um testamento em que ordenava que meu

corpo não deveria ser enterrado até que a ordem

voltasse ao reino.

MARIA PADILHA - Demorou uma eternidade, arre! Vou lá passar

perfume pra me livrar dessa inhaca.(SAI)

LANDINHA - Eu também quero passar um pouquinho. (SAI)

ALBUQUERQUE - (C/ NAR. E PERSONAGEM) Antes que eu saia daqui

levando meu caixão, tem mais um crime de D. Pedro,

o cruel, que eu quero narrar aqui bem depressinha

para não incomodar vocês com meu cheiro. Ele

mandou cortar a cabeça do seu meio-irmão, D.

Fadrique. O povo, que era muito religioso, começou a

misturar história de Bíblia com bruxaria. Acusaram

Maria de Padilla de ter pedido a cabeça de D.

Fadrique, como na história de Salomé e São João

Batista.

MARIA PADILHA ENTRA COM A CABEÇA DE D. FADRIQUE.

MARIA PADILHA - Oh, D. Fadrique, há quanto tempo esperava por esse

momento, agora podemos conversar face a face,

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cunhadinho. Oh, nunca foste belo, mas deixa que eu

te embelezarei com minha saliva de bruxa. (COSPE E

RI) Ah, agora sim ficou bem melhor. Tu e aqueles teus

irmãos bobocas espalharam por aí que eu envolvi D.

Pedro em minha teia de aranha... (LEVANTANDO A

BANDEJA) Olha, olha pra mim, D. Fadrique. Estás

vendo mesmo uma tarântula em frente de ti?

D. FADRIQUE MOSTRA-LHE A LÍNGUA.

MARIA PADILHA - Oh, menino mal-educado, que coisa feia! Vossa

mamãe vos mimou demais. Então se achas que sou

mesmo uma tarântula, saiba que foste apenas o

primeiro, estenderei minha teia sobre todos os teus

irmãos.

D. FADRIQUE - Bruxa, filha de Satanás, irmã de Barrabás, de Caifás e

súcubo daquele bruxo judeu. Meu irmão Henrique vai

por fim às tuas mandingas.

MARIA PADILHA - (ENFIANDO UM LENÇO EM SUA BOCA) Que horror!

Sujeitinho escroto! Pois vamos ver, D. Fadrique, vamos

ver quem vencerá. Vai, vai lamber el cullo del diablo.

GARGALHA E JOGA A CABEÇA NO FOSSO. OUVE-SE A VOZ DE D. MARIA.

D. MARIA - (FORA DE CENA) Ai, santa mierda, o senhor por aqui,

D. Fadrique?

MARIA PADILHA SE RETIRA GARGALHANDO. D. ALBUQUERQUE SAI DO

CAIXÃO.

D. ALBUQUERQUE- Licença, gente. É já já que eu vou embora. Tem mais

um crimezinho de D. Pedro, que eu tava me

esquecendo. E este acabou colocando até o povo

contra ele. O caso é que o rei mandou os guardas

atrás de D. Blanca de Bourbon, que ainda estava presa

na torre. (SENTA-SE NO CAIXÃO)

BONECOS - D. BLANCA É TRAZIDA POR RAMON E OUTRO GUARDA.

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D. BLANCA - Oh, oh, oh! Morrerei como as virgens e com as virgens

me vou, pois o rei nunca me conheceu.

NO ALTO, AO FUNDO, SURGEM DOIS ANJOS CANTANDO EM CORO.

ANJOS - Oh, pobre, pobre D. Blanca de Bourbon vais morrer

virgem sem saber o que é bom.

OS GUARDAS ABAIXAM O CORPO DE BLANCA E UM GRANDE FACÃO

CORTA-LHE A CABEÇA. NO OUTRO ALÇAPÃO APARECE D. MARIA (ATRIZ)

EM MEIO CORPO, QUE VÊ A EXECUÇÃO.

RAMON - Adivinhem, minha gente, em quem o povo pôs a culpa

do assassinato de D. Blanca? (SAEM)

D. MARIA - Foi aquela yegua de mierda da Padilha! Ah, hijo del

diablo, a pobre chica morreu con la cachufleta

ignorante. Vou lá me juntar com aqueles nobres

rebeldes. A queda de Pedro é uma questão de tempo.

Quero mais é salvar a minha pele e continuar

mandando..

D. PEDRO - Um dia peguei todo mundo de surpresa. Os nobres

rebeldes e a minha própria mãe estavam reunidos em

volta do caixão desse aí, como se fosse mesa.

(APONTA PARA D.ALBUQUERQUE) Pode sair e levar o

seu caixão. (ELE JUNTA O CAIXÃO E SAI

RESMUNGANDO) A senhora vai ser deportada para

Portugal e nunca mais quero ver a tua cara.

D. MARIA - (BATENDO COM OS PUNHOS) Estiérco, mierda! Fico

matutando aquí comigo se não foi Satã quem visitou

minha cachufleta para gerar um filho de merda como

tu. Adios, nunca más quiero volver a verte.(AFUNDA)

UMA FIGURA COBERTA COM PANOS PRETOS EM ANDRAJOS CAMINHA

PELO PALCO. MÚSICA.

ATOR/PEDRO - Eram tempos terríveis. A partir de 1346 toma conta de

toda a Europa, ceifando quase a metade de sua

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população. A dama negra visitava todos os lares

semeando desolação. Os nobres fugiam para seus

castelos distantes, mas acabavam recebendo a tal

visita não convidada. D. Maria de Padilla também não

escapou deste destino.

A DAMA NEGRA COBRE MARIA PADILHA COM UM VÉU BRANCO.

ATRIZ/MP - D. Pedro fez celebrar luxuosas pompas fúnebres em

todo o reino e o povo chorou a minha morte.

Lamentaram a perda da favorita, da rainha sem coroa.

ATOR/PEDRO - D. Pedro solicitou à igreja que declarasse nulo o seu

casamento com D. Blanca e reconhecesse D. Maria de

Padilla como sua legítima esposa. Sua vontade foi

satisfeita e numa magnífica cerimônia ele coroou sua

favorita como rainha da Espanha.

LANDINHA - Oh, oh, que triste, é igualzinha àquela história de Inês

de Castro que morreu e depois foi coroada como

rainha pelo rei de Portugal.

ATOR/D. PEDRO- Ele era meu tio, dona Landinha.

LANDINHA - Adoro histórias de amor mesmo que cê tenha sido tão

cruel. Fazer o quê, né? Cê vivia entre os lobos.

ZEFINO - Deixa de ser tonta, Landinha. Não vê que esses ator

dispõe as coisa de um jeito que é pra pegar a gente, só

prá comover? Aposto que agora eles vão entrar com

negócio de bruxaria e encruzilhada.

LANDINHA - Vá te catar, desmancha prazer.(DÁ-LHE UM TAPA)

D. PEDRO COROA MARIA PADILHA, EM SEGUIDA SE AJOELHA E FAZ

REVERÊNCIA. SONS DAS ALFAIAS E GANZÁS DO MARACATU. ATORES

ENTRAM VESTIDOS COM VOIL BRANCO (OU ENGLOBANDO TODO O

GRUPO) E APÓS BREVE COREOGRAFIA, SE DESCOBREM: DUAS DAMAS

DO PAÇO, UMA DELAS SEGURA UMA CALUNGA (BONECA); O PORTA-

ESTANDARTE LEVA A BANDEIRA; O CABOCLO DE LANÇA E O DUQUE (OU

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UM VASSALO QUE LEVA O PÁLIO). DURANTE A EVOLUÇÃO, A CALUNGA

PASSA DE UMA MULHER A OUTRA E TERMINA NAS MÃOS DE MARIA

PADILHA.

Minhas alma, venham cá!

Venham ver quem tá chegando

ela é rainha da Espanha

que agora vai dançá.

Cante sinhô, cante sinhá

que a calunga vai passá

abre a porta e a janela

venha aqui mais perto dela.

Senhora rainha trigueira

o teu corpo tem mil cheiros

cheira cravo, cheira rosa

cheira flor de laranjeira.

Cante sinhô, cante sinhá

que a calunga vai passá

a rainha da Espanha

quer licença pra dançá.

Cante sinhô, cante sinhá

que a calunga vai passá.

Cantem, almas que estão cá

a passagem pelo mundo

da Padilha não findou

muito chão tem pra andá

A calunga vai dançá

e no universo de sonho

da criação popular

a rainha vai entrá

Toque o agogô e o ganzá

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que a rainha vai chegá.

ATORES SE RETIRAM, FICANDO EM CENA APENAS MARIA PADILHA E D.

PEDRO. APARECEM D. LANDINHA E ZEFINO, ELA ENXUGA OS OLHOS

COM UM LENÇO.

LANDINHA - E aí, moça, cê morreu e o D. Pedro, como é que ficou?

MARIA PADILHA - D. Pedro continuou lutando contra os bastardos.

ATOR/D. PEDRO - Mas um dia D. Henrique armou uma emboscada e me

matou sem dó, aquele covarde.

LANDINHA - Cruzes. Irmão contra irmão.

ATOR/D. PEDRO - D. Henrique se tornou o rei e iniciou a dinastia dos

Trastâmara e...

MARIA PADILHA - Deixa pra lá, são histórias já passadas. O que importa

pra gente, aqui e agora, é que a minha saga continuou

na boca do povo e, quando chegou no Brasil, iria

mudar muito mais. (FORA DE CENA, MARACATU EM

SURDINA)

ZEFINO - Ah, viu, não te falei, muié? Agora estes espertos tão

chegando lá onde queriam...

LANDINHA - Ô prisão de ventre, cala a boca. Vamos lá ver.

O CASAL SAI. ENQUANTO ATOR/D. PEDRO FALA, OUVE-SE A MÚSICA DO

MARACATU AO FUNDO.

A calunga vai dançá

e no universo de sonho

da criação popular

a rainha vai entrá.

Toque o agogô e o ganzá

que a rainha vai chegá.

ATOR/D. PEDRO - O amor que eu dediquei a Maria Padilha ajudou a

difundir as histórias de feitiçarias na imaginação do

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povo. Foi o amor, amor que é feitiço puro, feitiço do

qual ninguém escapa, foi ele o arquiteto de todas

estas lendas.

MARIA PADILLA ENTRA E PEDRO A LEVA PARA O CENTRO.

NARRADOR - As histórias de Maria Padilha começaram a crescer no

meio do povo espanhol, gente muito dada a florear e

a reinventar lendas. Era a época da Inquisição e as

fogueiras não paravam de tremular. Os feitiços eram

feitos às escondidas pra solucionar amores infelizes e

levavam sempre a mesma fórmula.

FEITIÇOS EM FORMA DE PANTOMIMAS

1- ESPANHA – PABLO, XIMENA E JUANITA - FEITIÇO DO BONECO

NARRADOR - As histórias de Maria Padilha começaram a crescer no

meio do povo espanhol. Os feitiços eram sempre

feitos em nome de amores infelizes e todos sempre

levavam a mesma fórmula.

CENA COMO NUM FILME MUDO. MÚSICA.

HOMEM ENTRA E MOSTRA AO PÚBLICO UM CARTAZ EM QUE INDICA

QUE SEU NOME É PABLO. ELE CARREGA AS SUAS TROUXAS. MULHER 1

ENTRA E MOSTRA A PLACA EM QUE ESTÁ ESCRITO SEU NOME: XIMENA.

PABLO AMEAÇA IR EMBORA. ELA SEGURA SUAS PERNAS E CHORA,

PEDINDO PELO AMOR DE DEUS. ELE DEMONSTRA QUE ELA ESTÁ FEIA E

ACABADA, ARRASTA O BIOMBO E TIRA O TECIDO QUE O COBRE. UMA

BELÍSSIMA E GOSTOSA MULHER ESTÁ REPRESENTADA NA IMAGEM. ELE

MOSTRA À ESPOSA INFELIZ QUE ESTA SIM VALE A PENA E QUE ELA

ESPERA POR ELE NA SUA CAMA. XIMENA TENTA UM ÚLTIMO RECURSO:

VAI ATRÁS DO BIOMBO E COLOCA SUA CARA NO LUGAR DO ROSTO DA

GOSTOSA. O MARIDO FAZ CARA DE NOJO, DEMONSTRANDO QUE ELA

NÃO COMBINA COM O RESTO E RESOLVE IR EMBORA. CHORANDO, ELA

SE ARRASTA ATRÁS DELE E ACABA ARRANCANDO UM PEDAÇO DE SUA

CALÇA. ELE SAI.

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ENTRA JUANITA. ELA TRAZ UM CALDEIRÃO E UM BONECO. AJUDA A

AMIGA A SE LEVANTAR E VÃO POR MÃOS À OBRA PRA TRAZER O

HOMEM DE VOLTA. JOGAM FEITIÇOS SOBRE A IMAGEM DA GOSTOSA E

A COBREM. JUANITA PEGA O PEDAÇO DA CALÇA DO HOMEM E COM ELE

ENVOLVE O BONECO, EM SEGUIDA ENROLA-O COM UM CORDÃO E O

SUSTÉM SOBRE O CALDEIRÃO.

JUANITA - Senhora Santana, assim como o mar mareja, o céu

estreleja, o vento venteja e os peixes não podem

entrar no mar sem água, nem o corpo viver sem alma,

assim Pablo não possa estar sem pra Ximena aqui

voltar. Por Barrabás, Satanás, Caifás e Maria Padilha

com toda a sua quadrilha.

AS DUAS - Assim Pablo não possa estar sem pra Ximena aqui

voltar. Por Barrabás, Satanás, Caifás e Maria Padilha

com toda a sua quadrilha.

REPETINDO A ÚLTIMA FRASE, ELAS SAEM.

2- CIGANOS – CARMEN E JOSÉ – FEITIÇO DA BACIA

NARRADOR - Os feitiços em nome de Maria Padilha passaram do

povo espanhol para os ciganos. Na Espanha medieval

muitas raças se cruzavam, mais ou menos como se

deu aqui no Brasil. Ali viviam muitos ciganos que

acabaram conhecendo as histórias de Maria Padilha e

fizeram dela a rainha de suas magias.

CENA COMO NUM FILME MUDO. MÚSICA.

DESTA VEZ A COISA É INVERSA. JOSÉ SE ARRASTA AOS PÉS DE CARMEN,

ELA O REPUDIA E VAI ATÉ O BIOMBO. VIRA-O E APRESENTA A META DE

SEU DESEJO: UM BELO TOUREADOR EM ROUPAS FAUSTOSAS (CANÇÃO

DO TOUREADOR). ELA DEMONSTRA QUE ESTE SIM É QUE VALE A PENA E

NÃO O TRASTE QUE SE ARRASTA AOS SEUS PÉS. JOSÉ IMPLORA E, NUM

ÚLTIMO RECURSO, VAI ATRÁS DO BIOMBO, COLOCANDO SEU ROSTO NO

LUGAR DO TOUREADOR. CARMEN REPUDIA E DEMONSTRA QUE ELE

NÃO COMBINA COM O TODO. JOSÉ SE ATIRA AOS SEUS PÉS.(A

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HABANERA AO FUNDO) ELA PEGA UMA BACIA E A COLOCA EM FRENTE

DA IMAGEM DO TOUREADOR. DESPEJA ALGUNS PÓS, ABRE SEU LEQUE E

MOVIMENTA-O.

CARMEN - Eu te conjuro, vinagre, pimenta e enxofre, com três da

padaria, três da cutilaria, três do terreiro, todos três,

todos seis, todos nove se ajuntarão, mais nove varas

de amor apanharão e no coração do toureador se

cravarão. Ó Rainha que anda pelas encruzilhadas

descasando os casados e ajuntando os amancebados,

me trazeis o toureador pelos ares e pelos ventos, que

ele não possa dormir nem sossegar, até comigo vir

estar. Valha-me Barrabás, valha-me Caifás. Por D.

Maria de Padilha com toda a sua quadrilha.

CARMEN RETIRA-SE, GARGALHANDO. JOSÉ SE LEVANTA E A SEGUE COM

O PUNHAL LEVANTADO. SAEM.

3- PORTUGAL - ANTONIA MARIA E A INQUISIÇÃO – FEITIÇO DA PENEIRA

NARRADOR - Por onde cruzava Maria Padilha, os povos nela mais

um retalho de sua cultura. Estes sortilégios e bruxedos

foram parar em Portugal e em 1718 uma linda

portuguesa, Maria Antônia, foi presa pela Inquisição.

TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO. TAMBORES GRAVES MARCAM A ENTRADA

DO VISITADOR. ATRÁS DELE ENTRA ANTÔNIA DE BEJA, ALGEMADA.

VISITADOR - Sabe por que está aqui, dona Antonia Maria?

ANTÔNIA MARIA - Sei sim, foi por causa daquela vaca da minha vizinha,

que me denunciou. Eu só quis ajudar a piranha.

VISITADOR - Modere esta linguagem, feiticeira, ou é o demônio

que está a falar por esta boca suja? (COM TESÃO) O

maligno usa de mil disfarces para enganar. Entrou aí

neste teu corpo de ninfa, cobriu-te com uma pele

branca e aveludada, deu-te formas que despertam o

desejo dos homens...

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ANTÔNIA MARIA - Não tem demônio nem nada. Se eu estou aqui, a

Marlise devia de tá também, pois foi ela quem me

pediu que fizesse uns trabalho pra trazer o namorado

de volta.

VISITADOR - Cale esta boca. Sua vizinha trabalhou para nós, ela

lançou a isca e você mordeu.

ANTÔNIA MARIA - Sei, e cês usaram uma mulher que todos sabem o que

é como espiã pra ajudar nas suas santas intenções?

VISITADOR - Oh, mulher dos demônios, saiba que são insondáveis

os caminhos que Deus usa para fazer sua justiça.

ANTÔNIA MARIA- Ele tá precisando melhorar suas fonte de informação.

VISITADOR - Infame! Agora então se julga uma conselheira de

Deus? (ANOTANDO) Isto será acrescentado ao seu

processo.

ANTÔNIA MARIA - Fazer o quê, né? Qualquer coisa que eu disser aqui vai

me levar pra fogueira mesmo.

VISITADOR - Não é bem assim, se você quiser que sua pena seja

abrandada, deve nos dizer exatamente como fez o teu

sortilégio de amarração, senão vamos supor coisas

piores e aí você estará perdida. Aqui estão os objetos

que foram encontrados em sua casa. Mostre-nos!

O VISITADOR ENTREGA-LHE UMA PENEIRA COM VÁRIOS OBJETOS.

ANTÔNIA MARIA - Primeiro eu fiz um fervedouro com raízes fortes,

depois eu coloquei um coração de pombo e um

tiquinho de pó de cantárida, daí eu coloquei os

pedaços de pano das roupas do namorado dela. Garrei

a peneira e rezei assim: Por São Pedro e por São Paulo,

por Jesus crucificado, por Barrabás, Satanás, Caifás,

por quantos eles são, por Dona Maria Padilha e toda a

sua quadrilha, me digas, peneira, se o namorado vai

voltar pra ela, senão eu vou trazer o diabo coxo, que

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tem aquilo roxo, pra comer no meu cocho e fazer ele

engolir este carocho...

VISITADOR - (EXPLODINDO) Chegaaaa! Tirem esta mulher da

minha frente, pelo amor de Deus. Que ela seja

degredada para Angola embrulhada em mil peneiras.

(SAI)

ANTONIA MARIA - Fiquei lá em Angola aprendendo as artes mágicas

daquele continente, mas nunca me esqueci de Maria

Padilha. Um dia eu embarquei num navio e fugi para o

Brasil.

ATORES ENTRAM COM VELAS DE NAVIO. ANTÔNIA MARIA VAI NA

FRENTE. MARIA PADILHA, EM PÉ, ATRÁS DELA. SONS DE PÁSSAROS. OS

MARINHEIROS CORREM APAVORADOS. OS GRASNADOS DESAPARECEM.

ELES RETOMAM A POSIÇÃO E SINGRAM OS MARES. ENQUANTO MARIA

PADILHA FALA, OS ATORES CANTAM BAIXO A MÚSICA DOS

MARINHEIROS E FEITICEIRAS SEM A LETRA (LA RA RA...).

MARIA PADILHA - Atravessei o Atlântico a bordo da imaginação de

Antonia Maria. Deixei toda a tristeza pra trás, naquele

velho continente. Deixei as lutas e as guerras

fratricidas, não quis mais ver a luz das fogueiras que

queimavam pobres mulheres inocentes. Deixei pra

trás aqueles velhos casamentos bolorentos que uniam

fortunas e levavam as mulheres à loucura. Deixei pra

trás os castelos frios e sombrios onde as damas

passavam horas a bordar lágrimas em tamboretes, pra

trás ficaram os tristes claustros que serviam de prisão

a mocinhas sem dote.

ATORES CANTAM A CANÇÃO DOS MARINHEIROS E FEITICEIRAS.

MARINHEIROS - Florestas, praias e corais da minha terra,

estou chegando enfim.

Moças bonitas do cais,

guardem seus lábios pra mim.

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AS DUAS - Falem mais desta terra pra onde nos levam,

nos distraiam com seu cântico.

Por nossa sina de mulheres perseguidas,

vamos cheias de temor por este Atlântico.

MARINHEIROS - Não há porque se inquietar

na minha terra terão paz e calor,

tempo teu pra ensinar

arte e feitiços de amor.

AS DUAS - Que as mulheres de além escutem este aviso:

despachos semeamos num zás-trás,

Por Barrabás, Caifás, e Satanás!

TODOS - O vento pode ventejar

o céu pode estrelejar

o mar, marejar

Ninguém vai entrar nesta quadrilha

sem antes passar pela Padilha.

Maria Padilha.

ASSIM QUE A MÚSICA TERMINA OUVE-SE O GRASNADO DE PÁSSARO

NOVAMENTE. CORRE CORRE DOS MARINHEIROS. TODOS SAEM.

NARRADOR - Enquanto Maria Padilha atravessava os mares

montada na imaginação de Antonia Maria, duas

mulheres muito ansiosas esperavam na praia do outro

lado do Atlântico: Oxum, a senhora dos rios e das

águas doces e Nanã Buruquê, a mais velha de todas as

orixás, senhora dos pântanos e da morte.

ENTRAM OXUM E NANÃ. OXUM FIRMA A VISTA AO LONGE. NANÃ

AGUARDA IMPACIENTE.

NANÃ - E aí, tá vendo alguma coisa?

OXUM - Ainda não, mãe Nanã. Ela tá demorando pra chegar.

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NANÃ - Não aguento mais esperar. Não quero que este povo

aqui continue a me enfiar vestes da Senhora Santana.

OXUM - Não se desespere, mamãe Nanã, é só uma questão de

tempo. Padilha vai acabar com isto e mostrar o valor

das mulheres.

NANÃ - Eu vou lá arrumar mais algumas flores pra receber a

menina.

OXUM - Não precisa forçar mais a tua vista cansada, mãe.

Iansã, Iemanjá, Ewá e Obá já deixaram tudo pronto

pra receber a Padilha.

NANÃ - Ah, e eu vou ficar aqui fazendo o quê?

OXUM APURA OS OUVIDOS.

OXUM - Espera, mãe. Será possível? Parece que estou ouvindo

o grande pássaro! (RADIANTE) A Grande Mãe vem na

forma de pássaro acompanhando a rainha da

Espanha.

NANÃ - Não é possível, a própria Iyami Oxorongá, a primeira

mulher que veio ao mundo, está trazendo a Padilha?

OXUM - Sim, é a nossa Grande Mãe ancestral que tá

protegendo ela.

NANÃ COMEÇA A RIR SEM PARAR.

OXUM - Que foi, endoidou?

NANÃ - Não, menina, só tô imaginando aqui a caganeira que

devem tá passando estes marinheiros. Imagine só,

este grande pássaro grasnando e eles não podendo

ver onde ele está.

OXUM - Os homens sempre tiveram medo da Grande Mãe e

chamaram ela de feiticeira. Devem ter esvaziado as

tripas no mar.

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NANÃ - É uma honra muito grande receber ao mesmo tempo

a Grande Mãe e Maria Padilha. Ah, agora é que eu

preciso ir lá ver como as meninas estão indo com os

preparativos.

OXUM E NANÃ SE RETIRAM. ENTRA MARIA PADILHA NUM CARRO,

SEGURANDO UMA VELA DE NAVIO. ELA COLOCA A MÃO DIANTE DOS

OLHOS E PROCURA.

MARIA PADILHA - Ao longe, eu vi aquela terra prometida. Lugar

estranho, com muito verde e florestas emaranhadas.

Não podia saber o que me esperava, mas qual não foi

a minha surpresa quando pisei no Recife com Antonia

Maria e ali fui recebida com festas pelas entidades

alegres que habitam esta terra de mistérios.

MÚSICA ALEGRE. MARIA PADILHA É RECEBIDA POR TUPÃ, NANÃ E

OXUM (grandes bonecos).

Bem-vinda à nossa gira

vem reinar, minha senhora.

Bem-vinda à nossa gira

que chegou a sua hora.

Gira, gira, gira, meu povo,

entra na roda e vem cantar nossa rainha.

Rodou, rodou e veio lá de longe,

na gira ganhou vida esta andorinha.

Bem-vinda à nossa gira.

vem reinar, minha espanhola.

Bem-vinda à nossa gira.

Sambolê pemba de Angola.

ATORES CONTINUAM A CANTAR EM VOZ BAIXA. O CARRO PASSEIA

ENTRE O PÚBLICO.

MARIA PADILHA - Minha história termina aqui, minha gente, mas o povo

continuará reinventando este mito. Não me importo

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com isso, pois minha essência continuará sendo a

mesma! Por mais que mudem, serei sempre a mulher

que soube ocupar o seu lugar num mundo dominado

por homens.

RETORNA À MÚSICA ANTERIOR. FESTA NO MEIO DO PÚBLICO.

FIM