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1 A história secularizada sob o olhar da REB (Revista Eclesiástica Brasileira) na contingência do Concílio Vaticano II Patrícia Carla de Melo Martins 1 (UEGP-Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR) [email protected] Resumo Sob a perspectiva da História Intelectual, a presente comunicação apresenta uma abordagem acerca da compreensão teológica presente nos artigos da REB (Revista Eclesiástica Brasileira) durante a contingência do Concílio Vaticano II. Tendo como principal protagonista desta abordagem Frei Constantino Koser (OFM), Definidor Geral da Ordem dos Franciscanos no Brasil em 1959, Definidor Geral da Ordem na América Latina e membro conciliar nas sessões do Concílio Vaticano II, a partir de 1963, verificam-se os apontamentos teológicos formulados num debate em torno da contingência política, cultural e econômica que marcou o início da segunda metade do século XX. A produção intelectual, articulada pela REB entre 1962 e 1965, esteve sob o jugo das sínteses e diretrizes do Concílio Vaticano II, frente ao mundo histórico. A REB foi no Brasil a única revista autorizada pelo Vaticano a publicar os documentos conciliares. Fator que atribuiu ao clérigo franciscano, articulado em torno da Editora Vozes, um lugar destacado na produção de sentidos pautados nos dogmas e nas doutrinas do catolicismo, representados na religiosidade cristã. A REB proporcionou um lugar à intelectualidade católica brasileira frente ao mundo contemporâneo. As categorias conceituais tecidas sob a perspectiva de uma teologia que apontava para uma análise histórica alocada na participação dos fiéis como sujeitos de uma sociedade civil que deveria ser constituída sob a imagem cristianizada do mundo, delineava um catolicismo fragilizado e ameaçado pela emergência dos valores relacionados a cultura de massa. Por intermédio dos artigos analisados percebe-se as tensões e angústias, bem como as soluções apresentadas pelos clérigos para superar a crise das relações 1 Graduação, mestrado e doutorado em História pela UNESP-Franca/SP; doutora em Ciências da Religião, pela PUC-SP. Professora colaboradora no programa de Graduação e Pós-Graduação, Strito-Senso, em História da UEPG. A presente pesquisa é parte dos estudos de pós-doutorado em andamento no departamento de História da UEPG, sob a supervisão do Prof. Dr. Erivan C. Karvat, integrada ao grupo de estudos História Intelectual.

A história secularizada sob o olhar da REB (Revista

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A história secularizada sob o olhar da REB (Revista Eclesiástica Brasileira) na

contingência do Concílio Vaticano II

Patrícia Carla de Melo Martins1

(UEGP-Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR)

[email protected]

Resumo

Sob a perspectiva da História Intelectual, a presente comunicação apresenta uma

abordagem acerca da compreensão teológica presente nos artigos da REB (Revista

Eclesiástica Brasileira) durante a contingência do Concílio Vaticano II. Tendo como

principal protagonista desta abordagem Frei Constantino Koser (OFM), Definidor Geral

da Ordem dos Franciscanos no Brasil em 1959, Definidor Geral da Ordem na América

Latina e membro conciliar nas sessões do Concílio Vaticano II, a partir de 1963,

verificam-se os apontamentos teológicos formulados num debate em torno da

contingência política, cultural e econômica que marcou o início da segunda metade do

século XX. A produção intelectual, articulada pela REB entre 1962 e 1965, esteve sob

o jugo das sínteses e diretrizes do Concílio Vaticano II, frente ao mundo histórico. A

REB foi no Brasil a única revista autorizada pelo Vaticano a publicar os documentos

conciliares. Fator que atribuiu ao clérigo franciscano, articulado em torno da Editora

Vozes, um lugar destacado na produção de sentidos pautados nos dogmas e nas

doutrinas do catolicismo, representados na religiosidade cristã. A REB proporcionou um

lugar à intelectualidade católica brasileira frente ao mundo contemporâneo. As

categorias conceituais tecidas sob a perspectiva de uma teologia que apontava para

uma análise histórica alocada na participação dos fiéis como sujeitos de uma sociedade

civil que deveria ser constituída sob a imagem cristianizada do mundo, delineava um

catolicismo fragilizado e ameaçado pela emergência dos valores relacionados a cultura

de massa. Por intermédio dos artigos analisados percebe-se as tensões e angústias,

bem como as soluções apresentadas pelos clérigos para superar a crise das relações

1 Graduação, mestrado e doutorado em História pela UNESP-Franca/SP; doutora em Ciências da Religião, pela PUC-SP. Professora colaboradora no programa de Graduação e Pós-Graduação, Strito-Senso, em História da UEPG. A presente pesquisa é parte dos estudos de pós-doutorado em andamento no departamento de História da UEPG, sob a supervisão do Prof. Dr. Erivan C. Karvat, integrada ao grupo de estudos História Intelectual.

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sociais permeadas pela tradição cristã. O catolicismo se apresenta como detentor e

defensor de uma tradição histórica, tendo os clérigos nos seus espaços de erudição e

expressão intelectual, um lugar privilegiado na produção de significados acerca da

condição temporal humana, disposta na experiência da modernidade contemporânea.

Palavras-chave: História Intelectual, Concílio Vaticano II, Catolicismo, Imprensa.

Introdução

“Laicização significa, eliminação do caráter religioso. Em todas as culturas conhecidas, ainda as mais remotas, o universo com o homem foi sempre entendido como essencialmente ligado a religião. O pensamento, o trabalho, a vida familiar, a vida social – tudo tinha significação religiosa. A eliminação deste cunho religioso e a criação dum pensamento e duma ação isentos de

religiosidade é o “novum” absoluto da Idade Moderna. (KOSER, 1963,p.884).

A laicização foi um tema fundante no debate promovido pela

intelectualidade católica2 ao longo dos séculos XIX e XX. O processo de

laicização do ordenamento político e econômico, já havia atravessado as

diretrizes do Concílio Vaticano I, no século XIX. Inserida nas abordagens dos

filósofos do iluminismo, o tema laicização se desdobrou em torno da ascensão

científica que se tornaria hegemônica durante a segunda metade do século XIX

e primeira metade do século XX. No decorrer das sessões do II Concílio

Vaticano, anunciado como evento que dava continuidade ao I Concílio Vaticano,

a laicização da cultura se apresenta como o problema relacionado as

consequências da Segunda Guerra Mundial, demarcada pela emergência da

cultura de massa. Pensar a realidade em torno de uma categoria conceitual

secularizada, significava para os clérigos do II Concílio Vaticano não apenas

uma ameaça à continuidade da Igreja Católica no mundo contemporâneo, mais

do que isso, a própria continuidade da religião sob a dimensão humana, na

2 Entende-se por intelectualidade católica os grupos que compõem a hierarquia católica: cônegos, arcebispos, bispos, padres seculares e regulares; e, quaisquer outros segmentos relacionados com a erudição que sustenta a teologia católica. E por intelectual, entende-se aquele que atua na produção das ideias, na produção de práticas e representações, na produção de linguagens que definem os grupos culturais, em geral associados à tradição erudita.

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relação consigo, na relação com o outro, na relação com as coisas. Para a

intelectualidade católica a ausência da religião nas relações de produção e

consumo levaria a vigência de uma sociedade autodestrutiva, uma vez apoiada

na competição e no lucro. Para os clérigos a ausência da religião incide em torno

de uma questão moral. A fraternidade e a ideia de imagem e semelhança entre

os seres humanos e Deus, apresentava-se como um princípio ameaçado no seio

da cultura de massa e assim, o ser humano seria levado a autodestruição.

Pensar essa questão remete a uma determinada concepção de tempo e,

portanto, de uma teoria da história, quanto aos aspectos que constituem as

concepções teológicas debatidas na REB, no período conciliar.

Detentora de uma perspectiva intelectual específica associada aos

franciscanos de Petrópolis-RJ, entende-se que a REB se apresenta como

espaço exponencial da produção e circulação de ideias na compreensão

teológica temporal debatida nas sessões do II Concílio Vaticano. A REB tornou-

se, no Brasil, protagonista da hierarquia católica envolvida com a busca de

reafirmação do catolicismo na identidade social da cultura brasileira. Não se

tratava de um protagonismo subordinado aos pronunciamentos do papa romano,

mas sim, de um protagonismo ponderado, consubstanciado à experiência de ser

clérigo na contingência da cultura brasileira. Os artigos da REB, trazem o

pensamento e o posicionamento instaurado na erudição dos franciscanos

brasileiros, dos seus segmentos sociais, dos processos migratórios no interior

do Brasil, das diferentes localidades do Brasil, das relações de poder local dos

clérigos e também no interior da própria Ordem dos Franciscanos Menores de

Petrópolis.

Descendente de alemães, Frei Constantino Koser (1908-2000), nasceu

na região sul do Brasil, em Blumenau, no Estado de Santa Catarina. Passou sua

infância e adolescência na capital do Paraná, em Curitiba. Seu pai recebera a

formação no Colégio Santo Antônio de Blumenau e, ainda jovem, assumira o

cargo de professor na Escola Bom Jesus de Curitiba. A relação do pai com os

franciscanos do Estado de Santa Catarina e do Paraná perpassaram também o

processo de formação do filho. Frei Koser fizera o ensino fundamental no

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Seminário Seráfico na cidade de Rio Negro-SC, entre 1929 e 1934 e depois

Filosofia no Seminário de Curitiba e Teologia no Seminário de Petrópolis,

terminou seus estudos em 1942 e no ano seguinte, em 1943, iniciou a atividade

docente no Seminário de Petrópolis. A condição de docente favoreceu sua

projeção nas atividades políticas de cunho educacional, cultural e social dos

clérigos, das religiosas e dos fiéis. No final da década de 1940 e início de 1950,

as assembleias e encontros dos clérigos concentrados no Rio de Janeiro e São

Paulo, se intensificaram. Novos sujeitos, envolvidos com as questões sociais

emergentes, começam a se destacar, dentre os quais estava Frei Koser. Em

1948, ele se projeta no Primeiro Congresso de Reitores dos Seminários

Diocesanos e Religiosos do Brasil, ao redigir o primeiro esboço do regime

estatutário da Associação dos Professores de Teologia e Filosofia do Brasil,

criado no congresso. Em 1949, Frei Kose é incumbido de coordenar a catequese

na diocese de Petrópolis e se torna assistente da JEC (Juventude Estudantil

Católica) do Rio de Janeiro. Em 1950 ele vai para a Universidade de Friburgo,

na Alemanha, fazer a sua tese de doutorado, se especializando em mariologia,

uma temática em ascensão naquele momento. Em 1953, Koser concluiu o

estágio de doutoramento e retornou para a sua atividade docente no Brasil. Seu

envolvimento com a mariologia fez com que se aproximasse das questões que

envolviam as religiosas no interior da Igreja. Em 1955, ele criou o primeiro curso

de teologia aberto para todas as irmãs das congregações vigentes no Brasil. No

período de 1956 a 1959 ele assumiu o cargo de definidor geral da Ordem no

Brasil. Em 1963 ele assumiu então, o cargo de definidor geral da Ordem na

América Latina, momento que o leva até Roma para participar diretamente das

sessões do II Concílio Vaticano. Essa trajetória aponta traços dos aspectos

materiais e simbólicos da sua condição humana como clérigo, beneficiado pelo

espaço propenso a difusão de conteúdos sócio culturais da Editora Vozes,

mantida pelos franciscanos de Petrópolis-RJ.

Os textos de Frei Constantino Koser publicados durante os anos de 1962

a 1965, trazem junto com outras temáticas, o debate travado em torno da

laicização. Os artigos evidenciam um movimento de ideias, sob uma categoria

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conceitual de decodificação da realidade, em busca de um diálogo com a filosofia

e as demais áreas das ciências sociais, com a finalidade de dar sentido aos

valores da existência social em processo de modificação.

Essa discussão se vale do aporte da História Intelectual, conta com

autores como Fronçois Dosse (2007), François Sirinelli (1998), Russel Jacoby

(1992), Koselleck (2006), Toupin-Guyot (2002) dentre outros. A partir de uma

abordagem sugerida por esses autores, busca-se o protagonismo de um clérigo

católico, vinculado a Ordem dos Franciscanos Menores de Petrópolis nos

desdobramentos do II Concílio Vaticano. A Editora Vozes, dos Franciscanos de

Petrópolis-RJ, apresenta-se no cenário nacional como um espaço de

apresentação e discussão dos pronunciamentos do papa romano. A REB

expressava o posicionamento dos clérigos do Brasil frente as novas orientações

impulsionadas pelo Vaticano II. Koser compõe uma determinada cena

sociocultural dos clérigos da década de 1960. Para além das ideias em si, busca-

se o intelectual que produz e pertence a uma categoria sócio discursiva, detentor

de meios capazes de impulsionar e fomentar a produção de sentidos que tanto

representam a continuidade da tradição como a produção de novos significados.

Nessa posição, o intelectual se torna capaz de se (re)inscrever e (re)constituir a

interpretação da experiência social do seu grupo, no seio de uma realidade

histórica em curso, traçando significados a sociabilidade do grupo no qual se

insere.

A REB e a produção de sentidos

Para Russel Jacoby (1992), em seu artigo A New intellectual History?, a

história intelectual tem como um de seus pontos de partida a projeção de

determinados grupos e sujeitos por intermédio da imprensa. Em outras palavras,

a veiculação de ideias por intermédio da publicação de textos escritos tornou-se

um espaço vital para a legitimação das narrativas acerca da definição da

realidade em curso. Levando essa premissa em consideração, a abordagem

apresentada nesta comunicação debruçou sua análise em torno de um artigo

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publicado por Frei Koser, na REB, em 1963. Uma publicação de dezembro de

1963 que traz consigo a discussão realizada naquele ano nas sessões plenárias

do II Concílio Vaticano, indicando um curso da produção de ideias dentro do

movimento conciliar. O artigo traz na sua discussão o debate teológico travado

frente ao mundo contemporâneo. Ele possibilita adentrar na percepção da

hierarquia católica diante de um tempo histórico considerado detentor da

emergência de um novo tipo humano autodestrutivo.

Considera-se que o catolicismo continua atuante junto à história do tempo

presente compondo novas matizes. A hierarquia católica é detentora de uma

perspectiva de tempo histórico que encontra seus limites na dialética vigente

nesta mesma modernidade. Outro ponto substancial da análise que vem se

articulando em torno da práxis do intelectual católico é a transferência de um

catolicismo mantido e alocado no ordenamento político, isso no Brasil até o final

do século XIX com término do regime imperial, para um catolicismo mantido e

alocado no ordenamento cultural, na contingência do regime político republicano,

quando da instauração do Estado Laico.

Nesta pesquisa tem sido elucidativo a vigência de uma crise da identidade

cristã católica nos aspectos que compunham cultura brasileira. O artigo de 1963,

traz consigo um esboço do debate teológico daquilo que chamavam, naquela

época, de realidades terrestres. Koser debatia também a relação entre a

teologia, a filosofia e as ciências sociais na busca de compreensão da realidade

em curso. Aproximações consideradas necessárias para dar conta de uma

reflexão capaz de entender o processo histórico do seu tempo. Em última

instância, apresenta-se o esboço de uma nova teologia em processo de

elaboração. Essa discussão culminaria na produção de uma epistemologia

teológica na qual acreditava-se na manifestação de Deus nas coisas que fazem

parte da realidade empírica: naquilo que a hierarquia, denominava de coisas do

mundo. Sob esse princípio, se configurou, inevitavelmente – no processo

dialético da produção do conhecimento – a refutação da tradição teológica. A

tradição teológica estava envolvida com a aplicação de um conhecimento

associado a revelação de Deus no passado. A nova perspectiva teológica

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defendia a vigência da manifestação de Deus em todos os tempos históricos, o

que inclui a história do tempo presente.

Ao inserir o católico numa categoria conceitual chamada de cristandade é

a própria religião cristã que se mostrava ameaçada em torno da discussão

levantada por Frei Koser. Não apenas o catolicismo estaria passando por um

momento de crise. Para além disso, era a continuidade do cristianismo como um

princípio condutor da humanidade que estava sob ameaça.

Os oito artigos publicados por Frei Koser durante o período conciliar

perpassava os temas em discussão entre os clérigos vinculados a hierarquia

romana, dentre os quais podemos destacar: a relação entre a teologia do

passado e a teologia do presente; a relação entre a teologia e as demais áreas

das ciências sociais; quanto ao papel dos leigos na existência da De Eclésia; a

emergência da sociedade de massa; a destituição dos valores cristãos na

sociedade envolvida com a cultura de produção e consumo industrial; mariologia.

O artigo publicado no fascículo 4, de dezembro, de 1963, trata da relação

entre a experiência católica frente ao mundo secularizado e a experiência

católica vivida nos conventos e mosteiros, do passado. Experiência apresentada

como espiritualidades distintas. Neste artigo, intitulado Perfeição Cristã “no

Mundo” e “Fuga do Mundo”, a percepção do clero quanto a existência de uma

realidade secularizada se explicita. Realidade que deveria ser rearticulada numa

expressão cristã já vivida na experiência do clero regular nos monastérios

medievais. O tema deste artigo é a De Eclesia, ou seja, a vida dos leigos, dos

fiéis que formam a comunidade religiosa em face à Igreja. Um tema central no

debate travado nas plenárias do II Concílio Vaticano.

Neste texto, de dezembro de 1963, Koser reconhece que a literatura

produzida pela Igreja não era mais suficiente para compreender o mundo

contemporâneo. A literatura católica produzida sob os auspícios dos antigos

conventos e mosteiros distantes da realidade empírica dos fiéis teria, na

contingência da modernidade contemporânea, que se apresentar dentro da

experiência empírica do mundo. Koser considerava que a elaboração de uma

teologia das realidades terrestres e uma espiritualidade apropriada a ela, estaria

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em fase de eclosão e empreendimento. Indica ainda uma demarcada

diferenciação entre o passado e o presente do cristianismo. No presente, a

espiritualidade e a vocação deveriam ser trabalhadas sob novos ditames,

inseridos na realidade cotidiana das relações de produção e consumo.

Na Teologia das Realidades Terrestres é o processo de secularização,

política e cultural, que emerge como um tema central. Ele argumenta que a

laicização do pensamento, iniciada com o ocaso da Idade Média, sistematizada

durante a segunda metade do século XVIII, levou a gradual laicização das

mentalidades e da ação da vida humana. A laicização se define nos artigos de

Koser como eliminação do sentido religioso nas práticas e representações da

vida humana cotidiana. Ele salienta que em todas as culturas do mundo antigo

a experiência humana estaria revestida da religião. Nesses termos para além do

cristianismo a religião estaria ameaçada pela sociedade vinculada a cultura de

massa. São os significados da vida religiosa, demarcada pela experiência da

vida cotidiana que deveriam ser novamente dotados dos referencias cristãos.

Koser considerava que os laicistas teriam garantido o avanço das ciências

e dos meios de comunicação de massa. Fica subentendido a vigência de uma

nova perspectiva temporal sob a sociedade que passava a se identificar com a

cultura de massa. É no interior dessa laicização que podemos identificar, um

movimento de ruptura com o passado que afetaria diretamente os domínios da

tradição ocidental mantida sob a alçada da Igreja Católica.

A recuperação da perspectiva temporal que se articulava a partir dos

dogmas e doutrinas do passado católico, apresentavam-se na discussão da

intelectualidade católica da década de 1960, como algo que recaía sobre o

laicato. No artigo de 1963, a possibilidade de restaurar a temporalidade, que era

então guiada pela Igreja Católica, viria do laicato. Exposto à cultura de massa, a

De Eclésia, estava sob o domínio de novos valores sobrepostos a tradição

cultural proferida pela doutrina cristã.

Na cultura de massa relacionada a sociedade de consumo e com os

avanços da ciência, a narrativa mítica associada aos dogmas, as doutrinas e à

subjetividade soteriológica do catolicismo, perdia o seu significado. Os

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significados que perpassavam a necessidade de sustentar um padrão moral

rígido quanto as condutas familiares, os exames de consciência, o controle sobre

o corpo e a sexualidade, não encontravam mais a sua razão de ser no

cristianismo. Com isso, a hierarquia católica perdia sua posição de controle

sobre a sociedade. Ao se articular como detentora de uma concepção humana,

a Igreja Católica também garantia seus controles sobre a própria existência

humana. E, ao perder seu status de detentora do tempo humano, a Igreja,

representada pelos clérigos, tivera que reavaliar sua posição sociocultural. Foi

necessário um reposicionamento da hierarquia para rever o surgimento de novas

compreensões que apontavam para emergência de um novo tipo humano,

disposto sob outras categorias conceituais distantes e até mesmo subversivas à

moralidade cristã.

No interior dessa discussão, Koser adentrou naquilo que chamava de

Teologia Terrestra, apresentando um prognóstico considerado elementar para a

vida salvítica dos leigos. Em outras palavras, ele trata de um aporte relacionado

a ideia de salvação garantida pelas tarefas terrestres, onde alocava sua

discussão sobre o Espírito de Cristo no mundo. O aporte teológico se

apresentava no vocabulário utilizado. Toda a discussão sobre a Teologia

Terrestre é feita com citações da encíclica Mater Et Magistra, tomada como

documento que assinala a visão sobrenatural de mundo do cristão. A práxis

cristã se apresenta, quanto a possibilidade de realizar-se no dia a dia, no

trabalho, na vida cotidiana. Consta a tentativa de (re)instaurar o sentimento

religioso católico, na prática de um conjunto de valores capazes de denotar o

cristão, frente a cultura de massa em ascensão.

Essa percepção apresentada por frei Koser, representava um movimento

de ruptura na tradição teológica católica. Frei Koser, na sua reflexão instaurada

em torno da concepção da De Eclesia formula sua concepção acerca das

realidades terrestres:

...como nova avaliação do ser e do agir específico do cristão no mundo, mais que tudo do leigo. As tarefas culturais, sociais, econômicas, científicas, técnicas, as

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atividades que delas resultam, os empenhos que reclamam, as estruturas psicológicas que supõem e criam; o ambiente e a situação, a vida de família, de escola, de trabalho, o convívio social e até mesmo as atividades esportivas e recreativas, mais que tudo e acima de tudo o matrimônio e a vida de família – tudo isso é visto de um modo não apenas positivo, mas pode-se dizer que de um modo otimista, como campo de realização plena e perfeita da vida cristã. Mais que tudo ao leigo cabe a missão de “cristianizar”, de “consagrar” tudo isso e de criar assim um mundo, o mundo cristão. (KOSER, 1963, p. 887-888)

Nessa passagem fica clara a posição que deveria ser assumida pelo

indivíduo no reconhecimento de si mesmo como sujeito histórico. Koser defende

a ideia de que aquilo que é perpetrado pela mão humana também pode ter a

referência da obra de Deus. Existe nessa acepção o pressuposto de uma praxis

humana como manifestação de Deus: permeada por uma noção de civilização e

progresso, na perspectiva da pós-modernidade, calcadas na técnica, na ciência,

na cultura; e, na perspectiva religiosa permeada por uma teologia que

reconhecia a presença de Deus, neste mesmo processo civilizatório. Emerge a

noção de humanidade, que evidenciava a missão do homem no mundo, a partir

da qual se realizaria o destino de seu aperfeiçoamento. Pode-se dizer que a

Teologia Terrestre reconhece a participação dos sujeitos na construção do

tempo histórico. Reconhecimento que deslocou a discussão teológica para a

ação dos indivíduos na sua vida cotidiana.

Resultados parciais:

Existe na abordagem de Frei Constantino Koser a busca da relação entre

o mundo material, terrestre e espiritual. Os aspectos vigentes naquilo que

entendemos como história do tempo presente, passa a ter relevância nessa

abordagem teológica pensada na década de 1960, bem como na posição dos

fieis como indivíduos que participam como sujeitos da sua própria realidade. A

partir disso, a transformação do tempo se daria sob uma perspectiva cristã que

poderia se realizar na interioridade das práticas dos fiéis. Ocorre um certo

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deslocamento da relevância da práxis religiosa da hierarquia para a práxis dos

fieis no interior da existência da própria Igreja Católica. A vida humana, no

mundo, na realidade terrestre, se tornava neste discurso, uma possibilidade de

aperfeiçoamento da experiência espiritual individual e coletiva. Constituía-se

uma perspectiva teológica na qual vigorava uma noção positiva do mundo.

No interior dessa produção intelectual, promovida pela REB, localizava-

se a reafirmação de um tempo único e linear, constituído a partir dos preceitos

da hierarquia católica. Esse tempo linear se ordenava a partir dos livros bíblicos,

dos tratados medievais, da teologia medieval, moderna e contemporânea

pautada na contrarreforma da passagem do século XVI para o XVII, nos

anátemas do I Concílio Vaticano do século XIX, no debate teológico vigente nas

sessões do II Concílio Vaticano, da década de 1960. Orientações que atribuíram

ao clero católico um lugar exponencial na definição e importância do que é o ser

humano na dimensão histórica, temporal e extra temporal, soteriológica. Na

contingência desse pensamento, consta um posicionamento ontológico e

teleológico de reafirmação da erudição clerical católica voltada à análise da

historicidade em curso. A supremacia dessas diferentes formas de compreensão

em torno de uma existência permeada pela moralidade cristã, ordenava uma

percepção sob os aspectos simbólicos e representativos que constituíam

igualmente a própria noção de Cristo na vida humana.

O periodismo da imprensa católica brasileira, cuja Editora Vozes fora

exponencial, se estruturava no debate articulado pela hierarquia composta pelos

clérigos regulares e seculares num diálogo com as posturas do Vaticano e dos

meios de informação da comunicação de massa, e com as ciências sociais. O

periodismo católico tornou-se um fio condutor da intelectualidade católica, no

processo da composição da identidade cristã, na erudição brasileira da década

de 1960.

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