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A história secularizada sob o olhar da REB (Revista Eclesiástica Brasileira) na
contingência do Concílio Vaticano II
Patrícia Carla de Melo Martins1
(UEGP-Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR)
Resumo
Sob a perspectiva da História Intelectual, a presente comunicação apresenta uma
abordagem acerca da compreensão teológica presente nos artigos da REB (Revista
Eclesiástica Brasileira) durante a contingência do Concílio Vaticano II. Tendo como
principal protagonista desta abordagem Frei Constantino Koser (OFM), Definidor Geral
da Ordem dos Franciscanos no Brasil em 1959, Definidor Geral da Ordem na América
Latina e membro conciliar nas sessões do Concílio Vaticano II, a partir de 1963,
verificam-se os apontamentos teológicos formulados num debate em torno da
contingência política, cultural e econômica que marcou o início da segunda metade do
século XX. A produção intelectual, articulada pela REB entre 1962 e 1965, esteve sob
o jugo das sínteses e diretrizes do Concílio Vaticano II, frente ao mundo histórico. A
REB foi no Brasil a única revista autorizada pelo Vaticano a publicar os documentos
conciliares. Fator que atribuiu ao clérigo franciscano, articulado em torno da Editora
Vozes, um lugar destacado na produção de sentidos pautados nos dogmas e nas
doutrinas do catolicismo, representados na religiosidade cristã. A REB proporcionou um
lugar à intelectualidade católica brasileira frente ao mundo contemporâneo. As
categorias conceituais tecidas sob a perspectiva de uma teologia que apontava para
uma análise histórica alocada na participação dos fiéis como sujeitos de uma sociedade
civil que deveria ser constituída sob a imagem cristianizada do mundo, delineava um
catolicismo fragilizado e ameaçado pela emergência dos valores relacionados a cultura
de massa. Por intermédio dos artigos analisados percebe-se as tensões e angústias,
bem como as soluções apresentadas pelos clérigos para superar a crise das relações
1 Graduação, mestrado e doutorado em História pela UNESP-Franca/SP; doutora em Ciências da Religião, pela PUC-SP. Professora colaboradora no programa de Graduação e Pós-Graduação, Strito-Senso, em História da UEPG. A presente pesquisa é parte dos estudos de pós-doutorado em andamento no departamento de História da UEPG, sob a supervisão do Prof. Dr. Erivan C. Karvat, integrada ao grupo de estudos História Intelectual.
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sociais permeadas pela tradição cristã. O catolicismo se apresenta como detentor e
defensor de uma tradição histórica, tendo os clérigos nos seus espaços de erudição e
expressão intelectual, um lugar privilegiado na produção de significados acerca da
condição temporal humana, disposta na experiência da modernidade contemporânea.
Palavras-chave: História Intelectual, Concílio Vaticano II, Catolicismo, Imprensa.
Introdução
“Laicização significa, eliminação do caráter religioso. Em todas as culturas conhecidas, ainda as mais remotas, o universo com o homem foi sempre entendido como essencialmente ligado a religião. O pensamento, o trabalho, a vida familiar, a vida social – tudo tinha significação religiosa. A eliminação deste cunho religioso e a criação dum pensamento e duma ação isentos de
religiosidade é o “novum” absoluto da Idade Moderna. (KOSER, 1963,p.884).
A laicização foi um tema fundante no debate promovido pela
intelectualidade católica2 ao longo dos séculos XIX e XX. O processo de
laicização do ordenamento político e econômico, já havia atravessado as
diretrizes do Concílio Vaticano I, no século XIX. Inserida nas abordagens dos
filósofos do iluminismo, o tema laicização se desdobrou em torno da ascensão
científica que se tornaria hegemônica durante a segunda metade do século XIX
e primeira metade do século XX. No decorrer das sessões do II Concílio
Vaticano, anunciado como evento que dava continuidade ao I Concílio Vaticano,
a laicização da cultura se apresenta como o problema relacionado as
consequências da Segunda Guerra Mundial, demarcada pela emergência da
cultura de massa. Pensar a realidade em torno de uma categoria conceitual
secularizada, significava para os clérigos do II Concílio Vaticano não apenas
uma ameaça à continuidade da Igreja Católica no mundo contemporâneo, mais
do que isso, a própria continuidade da religião sob a dimensão humana, na
2 Entende-se por intelectualidade católica os grupos que compõem a hierarquia católica: cônegos, arcebispos, bispos, padres seculares e regulares; e, quaisquer outros segmentos relacionados com a erudição que sustenta a teologia católica. E por intelectual, entende-se aquele que atua na produção das ideias, na produção de práticas e representações, na produção de linguagens que definem os grupos culturais, em geral associados à tradição erudita.
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relação consigo, na relação com o outro, na relação com as coisas. Para a
intelectualidade católica a ausência da religião nas relações de produção e
consumo levaria a vigência de uma sociedade autodestrutiva, uma vez apoiada
na competição e no lucro. Para os clérigos a ausência da religião incide em torno
de uma questão moral. A fraternidade e a ideia de imagem e semelhança entre
os seres humanos e Deus, apresentava-se como um princípio ameaçado no seio
da cultura de massa e assim, o ser humano seria levado a autodestruição.
Pensar essa questão remete a uma determinada concepção de tempo e,
portanto, de uma teoria da história, quanto aos aspectos que constituem as
concepções teológicas debatidas na REB, no período conciliar.
Detentora de uma perspectiva intelectual específica associada aos
franciscanos de Petrópolis-RJ, entende-se que a REB se apresenta como
espaço exponencial da produção e circulação de ideias na compreensão
teológica temporal debatida nas sessões do II Concílio Vaticano. A REB tornou-
se, no Brasil, protagonista da hierarquia católica envolvida com a busca de
reafirmação do catolicismo na identidade social da cultura brasileira. Não se
tratava de um protagonismo subordinado aos pronunciamentos do papa romano,
mas sim, de um protagonismo ponderado, consubstanciado à experiência de ser
clérigo na contingência da cultura brasileira. Os artigos da REB, trazem o
pensamento e o posicionamento instaurado na erudição dos franciscanos
brasileiros, dos seus segmentos sociais, dos processos migratórios no interior
do Brasil, das diferentes localidades do Brasil, das relações de poder local dos
clérigos e também no interior da própria Ordem dos Franciscanos Menores de
Petrópolis.
Descendente de alemães, Frei Constantino Koser (1908-2000), nasceu
na região sul do Brasil, em Blumenau, no Estado de Santa Catarina. Passou sua
infância e adolescência na capital do Paraná, em Curitiba. Seu pai recebera a
formação no Colégio Santo Antônio de Blumenau e, ainda jovem, assumira o
cargo de professor na Escola Bom Jesus de Curitiba. A relação do pai com os
franciscanos do Estado de Santa Catarina e do Paraná perpassaram também o
processo de formação do filho. Frei Koser fizera o ensino fundamental no
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Seminário Seráfico na cidade de Rio Negro-SC, entre 1929 e 1934 e depois
Filosofia no Seminário de Curitiba e Teologia no Seminário de Petrópolis,
terminou seus estudos em 1942 e no ano seguinte, em 1943, iniciou a atividade
docente no Seminário de Petrópolis. A condição de docente favoreceu sua
projeção nas atividades políticas de cunho educacional, cultural e social dos
clérigos, das religiosas e dos fiéis. No final da década de 1940 e início de 1950,
as assembleias e encontros dos clérigos concentrados no Rio de Janeiro e São
Paulo, se intensificaram. Novos sujeitos, envolvidos com as questões sociais
emergentes, começam a se destacar, dentre os quais estava Frei Koser. Em
1948, ele se projeta no Primeiro Congresso de Reitores dos Seminários
Diocesanos e Religiosos do Brasil, ao redigir o primeiro esboço do regime
estatutário da Associação dos Professores de Teologia e Filosofia do Brasil,
criado no congresso. Em 1949, Frei Kose é incumbido de coordenar a catequese
na diocese de Petrópolis e se torna assistente da JEC (Juventude Estudantil
Católica) do Rio de Janeiro. Em 1950 ele vai para a Universidade de Friburgo,
na Alemanha, fazer a sua tese de doutorado, se especializando em mariologia,
uma temática em ascensão naquele momento. Em 1953, Koser concluiu o
estágio de doutoramento e retornou para a sua atividade docente no Brasil. Seu
envolvimento com a mariologia fez com que se aproximasse das questões que
envolviam as religiosas no interior da Igreja. Em 1955, ele criou o primeiro curso
de teologia aberto para todas as irmãs das congregações vigentes no Brasil. No
período de 1956 a 1959 ele assumiu o cargo de definidor geral da Ordem no
Brasil. Em 1963 ele assumiu então, o cargo de definidor geral da Ordem na
América Latina, momento que o leva até Roma para participar diretamente das
sessões do II Concílio Vaticano. Essa trajetória aponta traços dos aspectos
materiais e simbólicos da sua condição humana como clérigo, beneficiado pelo
espaço propenso a difusão de conteúdos sócio culturais da Editora Vozes,
mantida pelos franciscanos de Petrópolis-RJ.
Os textos de Frei Constantino Koser publicados durante os anos de 1962
a 1965, trazem junto com outras temáticas, o debate travado em torno da
laicização. Os artigos evidenciam um movimento de ideias, sob uma categoria
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conceitual de decodificação da realidade, em busca de um diálogo com a filosofia
e as demais áreas das ciências sociais, com a finalidade de dar sentido aos
valores da existência social em processo de modificação.
Essa discussão se vale do aporte da História Intelectual, conta com
autores como Fronçois Dosse (2007), François Sirinelli (1998), Russel Jacoby
(1992), Koselleck (2006), Toupin-Guyot (2002) dentre outros. A partir de uma
abordagem sugerida por esses autores, busca-se o protagonismo de um clérigo
católico, vinculado a Ordem dos Franciscanos Menores de Petrópolis nos
desdobramentos do II Concílio Vaticano. A Editora Vozes, dos Franciscanos de
Petrópolis-RJ, apresenta-se no cenário nacional como um espaço de
apresentação e discussão dos pronunciamentos do papa romano. A REB
expressava o posicionamento dos clérigos do Brasil frente as novas orientações
impulsionadas pelo Vaticano II. Koser compõe uma determinada cena
sociocultural dos clérigos da década de 1960. Para além das ideias em si, busca-
se o intelectual que produz e pertence a uma categoria sócio discursiva, detentor
de meios capazes de impulsionar e fomentar a produção de sentidos que tanto
representam a continuidade da tradição como a produção de novos significados.
Nessa posição, o intelectual se torna capaz de se (re)inscrever e (re)constituir a
interpretação da experiência social do seu grupo, no seio de uma realidade
histórica em curso, traçando significados a sociabilidade do grupo no qual se
insere.
A REB e a produção de sentidos
Para Russel Jacoby (1992), em seu artigo A New intellectual History?, a
história intelectual tem como um de seus pontos de partida a projeção de
determinados grupos e sujeitos por intermédio da imprensa. Em outras palavras,
a veiculação de ideias por intermédio da publicação de textos escritos tornou-se
um espaço vital para a legitimação das narrativas acerca da definição da
realidade em curso. Levando essa premissa em consideração, a abordagem
apresentada nesta comunicação debruçou sua análise em torno de um artigo
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publicado por Frei Koser, na REB, em 1963. Uma publicação de dezembro de
1963 que traz consigo a discussão realizada naquele ano nas sessões plenárias
do II Concílio Vaticano, indicando um curso da produção de ideias dentro do
movimento conciliar. O artigo traz na sua discussão o debate teológico travado
frente ao mundo contemporâneo. Ele possibilita adentrar na percepção da
hierarquia católica diante de um tempo histórico considerado detentor da
emergência de um novo tipo humano autodestrutivo.
Considera-se que o catolicismo continua atuante junto à história do tempo
presente compondo novas matizes. A hierarquia católica é detentora de uma
perspectiva de tempo histórico que encontra seus limites na dialética vigente
nesta mesma modernidade. Outro ponto substancial da análise que vem se
articulando em torno da práxis do intelectual católico é a transferência de um
catolicismo mantido e alocado no ordenamento político, isso no Brasil até o final
do século XIX com término do regime imperial, para um catolicismo mantido e
alocado no ordenamento cultural, na contingência do regime político republicano,
quando da instauração do Estado Laico.
Nesta pesquisa tem sido elucidativo a vigência de uma crise da identidade
cristã católica nos aspectos que compunham cultura brasileira. O artigo de 1963,
traz consigo um esboço do debate teológico daquilo que chamavam, naquela
época, de realidades terrestres. Koser debatia também a relação entre a
teologia, a filosofia e as ciências sociais na busca de compreensão da realidade
em curso. Aproximações consideradas necessárias para dar conta de uma
reflexão capaz de entender o processo histórico do seu tempo. Em última
instância, apresenta-se o esboço de uma nova teologia em processo de
elaboração. Essa discussão culminaria na produção de uma epistemologia
teológica na qual acreditava-se na manifestação de Deus nas coisas que fazem
parte da realidade empírica: naquilo que a hierarquia, denominava de coisas do
mundo. Sob esse princípio, se configurou, inevitavelmente – no processo
dialético da produção do conhecimento – a refutação da tradição teológica. A
tradição teológica estava envolvida com a aplicação de um conhecimento
associado a revelação de Deus no passado. A nova perspectiva teológica
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defendia a vigência da manifestação de Deus em todos os tempos históricos, o
que inclui a história do tempo presente.
Ao inserir o católico numa categoria conceitual chamada de cristandade é
a própria religião cristã que se mostrava ameaçada em torno da discussão
levantada por Frei Koser. Não apenas o catolicismo estaria passando por um
momento de crise. Para além disso, era a continuidade do cristianismo como um
princípio condutor da humanidade que estava sob ameaça.
Os oito artigos publicados por Frei Koser durante o período conciliar
perpassava os temas em discussão entre os clérigos vinculados a hierarquia
romana, dentre os quais podemos destacar: a relação entre a teologia do
passado e a teologia do presente; a relação entre a teologia e as demais áreas
das ciências sociais; quanto ao papel dos leigos na existência da De Eclésia; a
emergência da sociedade de massa; a destituição dos valores cristãos na
sociedade envolvida com a cultura de produção e consumo industrial; mariologia.
O artigo publicado no fascículo 4, de dezembro, de 1963, trata da relação
entre a experiência católica frente ao mundo secularizado e a experiência
católica vivida nos conventos e mosteiros, do passado. Experiência apresentada
como espiritualidades distintas. Neste artigo, intitulado Perfeição Cristã “no
Mundo” e “Fuga do Mundo”, a percepção do clero quanto a existência de uma
realidade secularizada se explicita. Realidade que deveria ser rearticulada numa
expressão cristã já vivida na experiência do clero regular nos monastérios
medievais. O tema deste artigo é a De Eclesia, ou seja, a vida dos leigos, dos
fiéis que formam a comunidade religiosa em face à Igreja. Um tema central no
debate travado nas plenárias do II Concílio Vaticano.
Neste texto, de dezembro de 1963, Koser reconhece que a literatura
produzida pela Igreja não era mais suficiente para compreender o mundo
contemporâneo. A literatura católica produzida sob os auspícios dos antigos
conventos e mosteiros distantes da realidade empírica dos fiéis teria, na
contingência da modernidade contemporânea, que se apresentar dentro da
experiência empírica do mundo. Koser considerava que a elaboração de uma
teologia das realidades terrestres e uma espiritualidade apropriada a ela, estaria
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em fase de eclosão e empreendimento. Indica ainda uma demarcada
diferenciação entre o passado e o presente do cristianismo. No presente, a
espiritualidade e a vocação deveriam ser trabalhadas sob novos ditames,
inseridos na realidade cotidiana das relações de produção e consumo.
Na Teologia das Realidades Terrestres é o processo de secularização,
política e cultural, que emerge como um tema central. Ele argumenta que a
laicização do pensamento, iniciada com o ocaso da Idade Média, sistematizada
durante a segunda metade do século XVIII, levou a gradual laicização das
mentalidades e da ação da vida humana. A laicização se define nos artigos de
Koser como eliminação do sentido religioso nas práticas e representações da
vida humana cotidiana. Ele salienta que em todas as culturas do mundo antigo
a experiência humana estaria revestida da religião. Nesses termos para além do
cristianismo a religião estaria ameaçada pela sociedade vinculada a cultura de
massa. São os significados da vida religiosa, demarcada pela experiência da
vida cotidiana que deveriam ser novamente dotados dos referencias cristãos.
Koser considerava que os laicistas teriam garantido o avanço das ciências
e dos meios de comunicação de massa. Fica subentendido a vigência de uma
nova perspectiva temporal sob a sociedade que passava a se identificar com a
cultura de massa. É no interior dessa laicização que podemos identificar, um
movimento de ruptura com o passado que afetaria diretamente os domínios da
tradição ocidental mantida sob a alçada da Igreja Católica.
A recuperação da perspectiva temporal que se articulava a partir dos
dogmas e doutrinas do passado católico, apresentavam-se na discussão da
intelectualidade católica da década de 1960, como algo que recaía sobre o
laicato. No artigo de 1963, a possibilidade de restaurar a temporalidade, que era
então guiada pela Igreja Católica, viria do laicato. Exposto à cultura de massa, a
De Eclésia, estava sob o domínio de novos valores sobrepostos a tradição
cultural proferida pela doutrina cristã.
Na cultura de massa relacionada a sociedade de consumo e com os
avanços da ciência, a narrativa mítica associada aos dogmas, as doutrinas e à
subjetividade soteriológica do catolicismo, perdia o seu significado. Os
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significados que perpassavam a necessidade de sustentar um padrão moral
rígido quanto as condutas familiares, os exames de consciência, o controle sobre
o corpo e a sexualidade, não encontravam mais a sua razão de ser no
cristianismo. Com isso, a hierarquia católica perdia sua posição de controle
sobre a sociedade. Ao se articular como detentora de uma concepção humana,
a Igreja Católica também garantia seus controles sobre a própria existência
humana. E, ao perder seu status de detentora do tempo humano, a Igreja,
representada pelos clérigos, tivera que reavaliar sua posição sociocultural. Foi
necessário um reposicionamento da hierarquia para rever o surgimento de novas
compreensões que apontavam para emergência de um novo tipo humano,
disposto sob outras categorias conceituais distantes e até mesmo subversivas à
moralidade cristã.
No interior dessa discussão, Koser adentrou naquilo que chamava de
Teologia Terrestra, apresentando um prognóstico considerado elementar para a
vida salvítica dos leigos. Em outras palavras, ele trata de um aporte relacionado
a ideia de salvação garantida pelas tarefas terrestres, onde alocava sua
discussão sobre o Espírito de Cristo no mundo. O aporte teológico se
apresentava no vocabulário utilizado. Toda a discussão sobre a Teologia
Terrestre é feita com citações da encíclica Mater Et Magistra, tomada como
documento que assinala a visão sobrenatural de mundo do cristão. A práxis
cristã se apresenta, quanto a possibilidade de realizar-se no dia a dia, no
trabalho, na vida cotidiana. Consta a tentativa de (re)instaurar o sentimento
religioso católico, na prática de um conjunto de valores capazes de denotar o
cristão, frente a cultura de massa em ascensão.
Essa percepção apresentada por frei Koser, representava um movimento
de ruptura na tradição teológica católica. Frei Koser, na sua reflexão instaurada
em torno da concepção da De Eclesia formula sua concepção acerca das
realidades terrestres:
...como nova avaliação do ser e do agir específico do cristão no mundo, mais que tudo do leigo. As tarefas culturais, sociais, econômicas, científicas, técnicas, as
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atividades que delas resultam, os empenhos que reclamam, as estruturas psicológicas que supõem e criam; o ambiente e a situação, a vida de família, de escola, de trabalho, o convívio social e até mesmo as atividades esportivas e recreativas, mais que tudo e acima de tudo o matrimônio e a vida de família – tudo isso é visto de um modo não apenas positivo, mas pode-se dizer que de um modo otimista, como campo de realização plena e perfeita da vida cristã. Mais que tudo ao leigo cabe a missão de “cristianizar”, de “consagrar” tudo isso e de criar assim um mundo, o mundo cristão. (KOSER, 1963, p. 887-888)
Nessa passagem fica clara a posição que deveria ser assumida pelo
indivíduo no reconhecimento de si mesmo como sujeito histórico. Koser defende
a ideia de que aquilo que é perpetrado pela mão humana também pode ter a
referência da obra de Deus. Existe nessa acepção o pressuposto de uma praxis
humana como manifestação de Deus: permeada por uma noção de civilização e
progresso, na perspectiva da pós-modernidade, calcadas na técnica, na ciência,
na cultura; e, na perspectiva religiosa permeada por uma teologia que
reconhecia a presença de Deus, neste mesmo processo civilizatório. Emerge a
noção de humanidade, que evidenciava a missão do homem no mundo, a partir
da qual se realizaria o destino de seu aperfeiçoamento. Pode-se dizer que a
Teologia Terrestre reconhece a participação dos sujeitos na construção do
tempo histórico. Reconhecimento que deslocou a discussão teológica para a
ação dos indivíduos na sua vida cotidiana.
Resultados parciais:
Existe na abordagem de Frei Constantino Koser a busca da relação entre
o mundo material, terrestre e espiritual. Os aspectos vigentes naquilo que
entendemos como história do tempo presente, passa a ter relevância nessa
abordagem teológica pensada na década de 1960, bem como na posição dos
fieis como indivíduos que participam como sujeitos da sua própria realidade. A
partir disso, a transformação do tempo se daria sob uma perspectiva cristã que
poderia se realizar na interioridade das práticas dos fiéis. Ocorre um certo
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deslocamento da relevância da práxis religiosa da hierarquia para a práxis dos
fieis no interior da existência da própria Igreja Católica. A vida humana, no
mundo, na realidade terrestre, se tornava neste discurso, uma possibilidade de
aperfeiçoamento da experiência espiritual individual e coletiva. Constituía-se
uma perspectiva teológica na qual vigorava uma noção positiva do mundo.
No interior dessa produção intelectual, promovida pela REB, localizava-
se a reafirmação de um tempo único e linear, constituído a partir dos preceitos
da hierarquia católica. Esse tempo linear se ordenava a partir dos livros bíblicos,
dos tratados medievais, da teologia medieval, moderna e contemporânea
pautada na contrarreforma da passagem do século XVI para o XVII, nos
anátemas do I Concílio Vaticano do século XIX, no debate teológico vigente nas
sessões do II Concílio Vaticano, da década de 1960. Orientações que atribuíram
ao clero católico um lugar exponencial na definição e importância do que é o ser
humano na dimensão histórica, temporal e extra temporal, soteriológica. Na
contingência desse pensamento, consta um posicionamento ontológico e
teleológico de reafirmação da erudição clerical católica voltada à análise da
historicidade em curso. A supremacia dessas diferentes formas de compreensão
em torno de uma existência permeada pela moralidade cristã, ordenava uma
percepção sob os aspectos simbólicos e representativos que constituíam
igualmente a própria noção de Cristo na vida humana.
O periodismo da imprensa católica brasileira, cuja Editora Vozes fora
exponencial, se estruturava no debate articulado pela hierarquia composta pelos
clérigos regulares e seculares num diálogo com as posturas do Vaticano e dos
meios de informação da comunicação de massa, e com as ciências sociais. O
periodismo católico tornou-se um fio condutor da intelectualidade católica, no
processo da composição da identidade cristã, na erudição brasileira da década
de 1960.
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