a idéia do teatro

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  • 8/2/2019 a idia do teatro

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    A Ideia

    do Teatro

    I n I I I

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    No texto 0 autor declara as circunstancias que 0varam a pronunciar. esta conferencia em Lisboa e

    Madri a 13 de abril e a 4 d e maio de 19461

    .Ortega psou publica-Ia agregando-lhe alguns anexos que comeMiquez ou siB Maiquez,aqUl I'lao se morre de mcntlnnha como no teatro! (N. do T.).

    Vejam voces de que maneira, usando romo pde partida uma simples inspec;ao da estrutura espintema do Teatro de Dona Maria, Ollelepercebemos, tanto, a existencia de dois espac;os, de e10is 10bllloambitos em func;ao urn do outro - a sala e a cenapudemos tomar manifesto 0 carater essencial de fanmagoria, de criac;ao de irrealidade que e 0 Teatro. Alidade de espac;os correspondia a dualidade de pessoaatores e publico -, e esta, p or .sua vez, adqlliriapleno sentido na terceira dualidade funcional: os estadores veem e os atores se fazem ver; estes sao hiptivos e aqueles hiperpassivos.

    Agora vemos claramente no que consiste a hipevidade do ator e a hiperpassividade do publico.

    Os atores podem mover-se e clizer nas formas variadas - tragicas, comicas, intermediarias -,sempre com a condic;ao imprescindivel, permanent

    essencial de que nada do que fazem e dizem seja "ario". isso que fazem e dizem; portanto, que seu fazdizer e irreal e, em conseqiiencia, e ficc;ao, e "brincadeie farsa. Conta Kierkegaard que em urn circo se produrn incendio. 0palhac;o foi encarregado de avisar 0 ao publico, mas este acreditou que se tratava depalhac;ada e morreu queimado.

    A atividade do ator fica, pois, bem determinae fazer farsa; por isso 0 idiom a 0 chama farsante. correlativamente, nossa passividade de publi~o con

    em recebermos dentro de nos essa farsa como tal, ouvez dizendo mais adequadamente, em sairmos de nvida real e habitual para esse mundo que e farsa.isso afirmei ha pouco que e essencial ao Teatro f azer

    sair de casa e ir a ele - quer dizer, ir ao irreal. Naoi lf dib l li

    em certos momentos, "brincadeira", farsa; que par isi f d h

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    existe na lfngua vodibulo para expressar esta peculiarrealidade que somos, quando somos publico, espectadoresdo Teatro. Nao importa; inventemo-la e digamos: noteatro os atores san farsantes, enos, 0 publico, somosfarseados, nos deixamos farsear.

    Com isto veio a concentrar-se, a condensar-se naimensa realidade humana, riquissima, multiforme, que ea historia inteira do Teatro num so ponto, como se este

    fora sua viscera e raiz: a farsa. Antes de nomea-la apren-demos 0 que significava: e aquilo que antes qualifiqueicomo talvez a mais estranha, a mais extraordimlria aven-tura, a mais autenticamente magica que possa acontecerao homein. Com efeito, na farsa 0 homem participa d eurn mundo irreal, fantasmagorico, ele 0 ve, 0 ouve, vivenele, mas, bem entendido, como tal irrealidade, comotal fantasmagoria.

    Pois bern, e urn fato que a farsa existe desde que

    existe 0 homem. Ao que chamamos propriamente teatroprecederam, em longos e profundos milenios da primitivaHumanidade, outras formas da farsa que podemos consi-derar como 0 pre-teatro ou a pre-historia do Teatro. Naopodemos nos par agora a descreve-las12. Se aludi a elase simplesmente para poder sacar esta conseqiiencia:' sen-do a farsa urn dos fatos mais permanentes da Historia,isto quer dizer que a farsa e 'uma dimensao constitutiva,essencial da vida humana, que e, nem mais nem menos,urn lado imprescindivel de nossa existencia. Portanto, que

    a vida humana nao e, nem pode ser "exclusivamente"seriedade, que a vida humana e e tern que ser, por vezes,

    Teatro existe e que 0 fato de haver Teatro nao e casualidade e eventual acidente. A f arsa, viscera do tro, vem a ser, vamos em seguida descobri-lo, umavisceras de que vive nossa vida, e nisso que e comodimensao radic.al de nossa vida cOllsiste a realidada substancia ultima do Teatro, seu scr c sua verdade

    o tempo, que acaba sempre por ser campeaotodas as corridas ape, venceu-me neste cross-country

    nao me deixou, desgrac;adamente, desenvolver com 0vido decoro esta parte da Ideia do Teatro, que e psamente a decisiva.

    Nao e enigmatico, nao e por isso mesmo atraapaixonante, este estranhissimo fato de que a farsa reser consubstancial a vida humana, portanto, que,de suas outras necessidades ineludiveis, necessite 0mem ser farseado e para isso ser farsante? Porque,ha duvida, esta e a causa de que 0 Teatro exista.

    Todo 0 resto de nossa vida e 0 que ha de mais trario a farsa que se possa imaginar - e , constante, egadora "seriedade".

    Somos vida, nossa vida, cada qual a sua13. Masque somos - a vida - nao fomos nos quem no-lamos, mas ja nos encontramos submersos nela justam

    13. Repito aqui com umas ou outras variantes as f6nnulas que tantzes empreguei para definir, ista e , para jazer veT 0 fenomcno radical ema vida humana consiste. Estas expressoes DaO sao ocorrencias verbaistermos tecnicos c om s eu ar de empregar as giros mais vulgares, habitualinguagem coloquial. Que ista seja assim, que seja preciso recorrer ao

    cotidiano e DaO exista na hiswria intcira da filosofia uma terminologiaquada para falar formalmente do fenomeno vital nao e tampouco casual

    embora seja uma vergonha para 0 passado Iilo90ico. Mas 0 que sena

    e querer variar em cada expo3i

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    -se de repente tendo que ser, que existir em urn orbe

    imprevisto que e 0 mundo, onde mundo significa sempre

    "este mundo de agora". Em "este mllndo de agora" pode-

    mos com certa dose de liberdade ir e vir, mas nao nos

    e dado escolher previamente 0 mundo em que vamos

    viver. Este nos e imposto com sua figura e componentes

    determinados e inexoraveis, e em vista de como ele e

    precisamos arranjar-oos para ser, para existir, para viver.

    Por isso chamei eu em meu primeiro livro (em 1914)a este mundo a circunstancia. Vida e ter que ser, quei-

    ramos ou nao, em vista de algumas circunstancias deter-

    minadas. Esta vida, como disse, nos foi dada, posto que

    nao no-la demos nos mesmos, mas que nos encontram05

    dentro dela e c om ela - assim, de subito, sem saber

    como nem por que nem para que. Ela nos foi dada, po-

    rem oao nos foi dada ja feita, senao que temos de faze-la,

    no-la fazer nos mesmos, cada qual a sua. Instante apos

    instante nos vemos obrigados a fazer algo para subsistir.A vida e algo que niio esta ai sem mais,como uma coisa,

    mas e sempre algo que e preciso fazer, uma tarefa, urn

    geruodivo, urn faciendum. E todavia, se nos fosse dado

    ja resolvido 0 que temos de f

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    preferia viver, com um gcsto de dandismo displicente,que era, como e sabido, SU'I religiao, respondeu: "Emqualquer parte, em qualqucr parte, contanto que sejafora do mundo!"

    Com isso dava Baudelaire a entender 0 impossive!.o Destino tern 0 homem irremediavelmente encadeado arealidade e luta sem tregua com ela. A evasao e impos-sive!. 0 fato de cada urn ter que fazer sua propria vida

    e decidir em cada illstante com sua exclusiva responsa-bilidade 0 que vai fazer e como se tivesse de sustentc'i-laa pulso. Por isso a vida esta cheia de pesares, A umacriatura assim, 0Homem, cuja condi

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    substancial a vida humana, nao e urn acidente, nao e algode que se possa prescindir. E nao e frfvolo, senhores,aquele que se diverte, senao aquele que 'cre que nab haque divertir-se. 0 que, corn cfeito, nao tern sentido equerer fazer da vida toda puro divcrtimento e distra

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    lograram durante muitas horas de sua vida, merce aodivino escapismo que 6 a farsa, a suprema aspira

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    Intentemos tomar contato com essa pre-hist6ria Teatro. Ela nos tornara manifesto em que extrema mda esta radicada no homem a necessidade de sua maralhosa fantasm agoria. M as temos que buscar esse contpartindo da origem mesma do Teatro. Situados nelinha poderemos olhar primeiro para tras, para 0 p-teatro e de ricochete sobre esse passado profundfssimnosso olhar se largara para 0 futuro, dirigini uma instanea olhadela sobre 0porvir do Teatro. (No Anexo IV

    Sucede que, como acontece com tantas outrassas, 0mais antigo Teatro, propriamente dito, e 0 teagrego.

    Este teatro grego e, note-se bem, todos os teaque a hist6ria nos da a conhecer se originaram nucerimonia ou rito religiosos. Mas a religiao grega, nsemelhante a todas as demais religi6es antigas e mou menos primitivas, tem um carater radicalmente disto, mais ainda, oposto a linha de inspira

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    e, primeiro, porque se origina na impessoalidade coletivados diferentes "povos" ou "na

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    votos. Os principais assentos do teatro eram ocupados quasesempre por sacerdotes e 0 assento central entre todos estava r e-servado ao sacerdote de Dionisio. A execuyao das peyas era pre-cedida do sacrificio de uma vitima ao deus do festival. Os poe-tas que escreviam as obr as, os coregas que as pagavam e as atorese cantores que as executavam eram considerados com o ministrosda religiao e suas pessoas, sagradas e inviolaveis. 0 teatro mesmotinha a santidade de urn templo divino. Toda forma de ultrajeali cometida era tratada nao meramente como urn delito contra asleis ordinarias, mas como urn ato sacrilego que era condenado

    com a correspondente severidade. 0 processo jtiridico comum naoparecia suficiente, e estes delinqiientes eram submetidos a urn pro-cesso excepcional ante uma reuniiio mu ito especial da Assembleia.Conta-se que em uma ocasiao urn certo Ctesicles foi condenado am rtc apenas por haver surrado urn inimigo pessoal durante aprocissao. 0 simples fato de se arrancar urn h omem do assentoocupado por engano era materia de sacrilegio punivel com a morte3.

    Resguarderno-nos bern da estranhfssirna rnistura deelementos dfspares que este enorrne fato nos apresenta

    juntos, como desafiando-nos a que intenternos descobrirsu'\ raiz s r t'i, 0principio que os liga e faz de sua ant a-

    onica pluralidaclc uma unidade organica. Porque af acha-mos um estaclo de profunda e patetica exalta

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    tual , 0 ordinario . Paralelamente 0 outro mundo fica,por simples repercussao, caracterizado por ser 0 "excep-cional", 0 "extraordinario". E tudo 0 que se oferece comesta fisionomia adquire ipso facto 0grau de Ultramundoe divino.

    Dai que desde os tempos mais primitivos tenha 0homem considerado que os sonhos e os e stados visiona-rios eram, por sua relativa excepcionalidade e vies ex-

    traordinario, 0 que the revelavam esse mundo que e outroe por ser outro e superior.

    a homem nunea foi muito inteligente, nao 0 e toda-via. Ha milenios era menos ainda. Nao sabia pensar. Emtroca, soube sempre sonhar quando dormia. as sonhosfor am a "ciencia" primigenia do ser humano e sua peda-gogia inicial. Nos, certamente, nao possuimos ainda ne-nhuma ideia clara sobre 0 que e 0 sonho e isto nos con-vida a nao menosprezar a Humanidade primeva porque

    julgava que ao sonhar se the tornava presente a realidadede urn modo superior, exatamente da mesma maneira queas percep

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    estavam hi teus olhos? - ESlava luda inleito, sahrellldo meusolhos. - E 0 resto? - Estava denIm lalllbhn (na carna). -Como e isso? - Estava duas vezes. Eslava em minha cama eolhava todo 0 tempo. - Com os olhos abertos ou fechados? -Fechados, ; a que era dormindo." Ur n instante depois Fav pareceter compreendido a interioridade do sonho. "- Quando sonhamos 0sonho esta em nos ou nos estamos no sonbo? - 0 sanhoesta em nos porque somos nos que vemas 0 sanha. - Esta nacabecra ou fora dela? - Na cabet;a. - Voce me disse faz urnmomenta que estava fora dela; 0 que quer dizer isla? - (Jill' 1/(/0

    Sf' \'ia a sanha sabre os alhas. - Onde eSla 0sonho'! - Diwl/e de1I0SSaSo/hos. - Ha alguma coisa de verdade diante dos alhos') -Sim. - Que coisa? - 0 sonho". Fav sabe pois. que ha algo deinterior no sonho; sabe que a aparencia de eXlerioridade do so-nho e devida a uma ilusao ("nao se via 0 sonha sobre os olhas")e, no entanto, admite que, para haver ilusao. e necessario queexista "de verdade" alguma coisa diante de nos. "- Voce eslava 'IIi(II) 'de verdade'? - Sim, eSlava duos veus de \'erdude (I ell).--Se eu tivesse estado ali, 0 teria visto? (II) - Niio. - 0 quequer dizer isto: 'eu estava duas vezes de verdade'? - 1'01''1111'quando eu estava I'm minhll CWl1(/eSluviI de verdude. e depoi,\.q/lundo eSlava em mell SOli//{). qllando eSltll'u COlli () diu/JO , eslm'/Ilumbflll de verdude"?

    E urn erro diagnosticar - como faz 0 proprio

    Piaget - esta opera

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    gtern urn modo de ser afim ao dos contos.

    Mas 0 dramatico 6 a interven

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    continuidade de urn mundo ao outro -; dai a i mpres-sao de arrebatamento e dai tambem que esta realidade aque chega se the oferea sem comunicaao com a que deixae seja formalmente outro mundo.

    Nao obstante, a embriaguez por si nao inclui mo-mento algum que leve ou tenha de ver com 0 religiosoe que faa desse "outro mundo" urn mundo divinal.

    Ter-se-ia que postular, pois, uma embriaguez, emalgum sentido, religiosamente pre-dirigida - de modoque todo 0 fenomeno, com cada urn de seus momentos,fique tingido de cor ou cariz religioso.

    o hornem necessita periodicamente da evasao da co-tidianidade em que se sente escravo, prisioneiro de obri-gaoes, regras de conduta, trabalhos forados, necessida-des. 0 contnirio disto e a orgia. A simples ideia de quea tribo ou varias tribos proximas vao reunir-se urn dia,

    nao para trabalhar, mas precisamente para viver algumashoras de outra vida que nao e trabalho - em suma, afesta -, ~omea ja a alcooliza-Io. Depois a presenl;ados outros, compaginados em multidao, produz 0conheci-do contagio e despersonalizaao - se a isto se acrescentaa dana, a bebida e a representaao de ritos religiosos (adana ja 0era por si mesma) que faz rebrotar do fundodas almas todas as emooes profundas, extraordinarias,transcendentais do patetismo mistico -, da urn resultadode ilimitada exaltaao e faz dessas horas ou dias uma

    forma de vida que e como ultra vida, como participaaoem outra existencia superior e sublime. Isto e a festa.

    70 Is s o e a theoria a que mereferi antes.

    de que consistem as religioes antigas. Porque, diferemente do islamismo e cristianismo, essas religioes SaD fe , mas SaD substancialmente culto. Nao se nelas de recolher-se dentro de si e ali, na solidao dmesmo, na "solidao sonora" da alma (Sao Joao da Crencontrar Deus que mana em nos como uma fonte percebida, mas se trata, inversamente, de "por-se de si", de deixar-se absorver por uma ,extra-realidpor outro mundo melhor que de subito, no estado excional e visionario, se faz presente, logra sua epifa

    o caso da religiao dionisiacaeexcepcionalmenteexemplar por sua clareza. Nela 0 Deus - Dionisioao mesmo tempo, 0 metodo para chegar a cle. Comuma Imitar;ao de Cristo houve uma imitar;ao de Diona qual se chamou literalmente "imitaao" - 0f!-0

    n: p0< ; 'tO V & E O V - e que consiste em "perder a cabfrenesiar -se, enlou'quecer: I-'-a [ \lEa&al-~axy'E6El \I 12.

    Convem notar que na epoca chissica a religiao consistia em tres camadas de deuses, muito diferentre si como fauna divinal, que 0 homem grego tna alma superposta como estratos geol6gicos.

    Ra, para comear, os deuses e cultos dos povos cidos pelos helenos quando do Nordeste, separando-stronco comum indo-europeu, desceram para a Gresuas ilhas. Esta religiao,a mais antiga, grosseira, era a religiao que se havia estendido por toda a arecultura egeia. Suas divindades predominantemente ninas, SaD de simbolismo ctonico. Sao deuses sub

    12. Urn estudo mais amplo da religiao dionisiaca encontrar-se-a

    dido Comentario.

    neos, do "embaixo" ou inferno. Deuses sombrios que ori-ginariamente deviam ser os pr6prios parentes mortos. Ao

    mas tambem deus dos mortos. Deus arnavel, delicioprazenteiro e festival; deus terrivel, destrutor, que acele mesmoesquartejado em feroz canibalisrno* D

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    serem vencidas essas naoes pelos gregos, elas ficaram alicomo plebe, como 0 que Toynbee chama "proletariadointerior de u ma civilizaao". E e curiosa observar que,neste caso como sempre na Hist6ria, essa religiao prole-taria e a que, com uns e o utros acrescimos, acaba parrebrotar e impor-se sobrea religiao dos grupos aristo-craticos que foram seus vencedores. .

    Esta e a outra camada, 0outro Panteao, que culmi-na com refinamentos francamente amaneirados nos poe-mas homericos13. Suas divindades sac exatamente 0 con~trario das subterraneas, infernais e necr6filas. Sao deusescelestes, siderais e fulgurais, o ' sol e 0 raio. Desprezamos mortos. Em Homero, os mortos sac quase umas figu-ras comicas. 0maravilhoso poeta cego acompanha comentusiasmo 0 homem enquanto vive, mas tao logo morreda-Ihe um pontape no traseiro e nao tom a a ocupar-sedele14

    . I?ionisio representa uma camada intermediaria quepartlClpa de ambas, que se concentra praticamente em urns6 deus e que, por todos os conceitos, representa 0maxi-mo de altitude religiosa de que foram capazes os gregos.E filho de Zeus- do mais alto - e de Semele deusada profubdeza, deusa telurica, do pais dos fene;idos.

    Dionisio e urn deus universal - deus da Vida, detodo renascer primaveril em planta, animal e homem,

    13. Que eu qualifique Romero de amaneirado talvez surpreenda urn pOll"

    co e ate muito. Mas nao h a nada a fazer: ele 0. e . Como e por que se vera

    em meu livro El origen de La filosolia, ObTas Completas, torna IX.14. Isto ja aparece de urn ffi?do perfeito e adquirido para sempre na

    Psy.c~e de ~DWI~ RH~DE, urn hvro portentoso que as grandes azernolas fi-lologlcas, tipO Wllamowltz-Moellendorf, conseguiram desterrar e desqualificardurante anos, mas que a cada dia cobra no.va e maior refulgencia.

    ele mesmoesquartejado em feroz canibalisrno*. Dbom e deus mau. A rigor todo deus antigo tern em geambas as caras. E, com efeito, condiao do deus servoravel ao hornem e ser feroz com ele - ser "provere ser "adverso". Dionisio e ambas as coisas de urn msuperlativo: e dellcia e e espanto. E 0 deus que rego hornern com visoes em que este preve 0 seu futurE e ele 0 deus do frenesi e da demencia: a deus manfa

    o deus ebrio.

    Dionisio e, sern d6vida, a deus mais deus que tram as gregos. A seu lado os olimpianos parecem "afinados" a serern deuses. Zeus (Jupiter), Hera (JunAres (Marte), Posseidon (Netuno), dir-se-ia que e"se fazendo d e cieuses"16. Em Dionisio se rnanifesta mclararnente do que em nenhurn outro 0que para o s gre..:- e nao somente para eles - e 0 atributo rnais cararlstico dos deuses: que sac perturb antes, que nao se

    como van cornportar-se, que nao se sabe bem que fcom eles. Par iss9 Hesiodo os chama (}Erov IEa.l~olov", a casta perturb ante dos deuses17

    * 0 autor utiliza 0 termo mascalismo de mascaT. (N. do T.)

    15. Apolo de Delfos n~o. outorgava oraculos mediante visoes, seoaod.hlnte a interpreta fao racional de certos signoo. Os interpretes, adscri

    seu templo, se chamaram pro/etas no sentido estrito desta palavra pargregos, termo que os hebreus da Septuaginta traduziram - e traduziram mo vocabulo hebreu nabib,* que significa uma coisa muito diversa. Quanteligiao dionisiaca entrou triunff'lmente, em DeUos e Apolo teve de pactuartroduziu.se ali a adivinhaf;ao - u.aV" CEta: - por meio de visoes que a

    obtinha intoxicando ..se com gase.. mefiticos. VIDa das clatas que marcepoca oa historia grega {oi a da entronizac;ao da Sibila cerca de 660

    Ainda em Heniclito (475 a.C.) repercute 0 efeito desla tremenda inov

    *A transltiera~ao do termo hebraicO' n ab i, nabUm Oll nil vi, IlflV;;m.

    feta, profetas nao corresponde 1 1 utilizada pelo Autor no lexio. (N. do

    16. Sornente Apo10 tern ares autentico e digno deliS.

    17. HESlODO, Theogonia, verso 44.

    Dionisio e a religiao dionisiaca representam a tenta-tiva de 0homem libertar-se da vida como preocupaao

    dade policialesca que 0 leva a vigiar sua propria condPara abandonar-se e preciso deixar de "estar sobre

    i i ifi 6 i " f d i" d

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    que e sua forma primaria e substantiva. 0dionisiaco ea vida como descuido, sem cuidados, 0 abandono ao puroexistir e a f'e em que algo mais alem da personalidade - apersonalidade e consciencia, deliberaao, cautelosa e sus-peitosa previsao, regulamentada conduta, raziio - e maispoderoso, constante e fecundo que esta leva 0 homemgenerosamente em seus braos, enriquece sua existencia

    e0

    salva. Esse algo, ultra, sobre e infra-humano sac ospoderes cosmicos elementares, os mais certamente divinos.Os deuses do Olimpo sao demasiado pessoas, demasiadoreflexivos, preocupados, corretos; em suma, demasiadohumanos para serem radicalmente divinos. Por isso a reli-giao dionisiaca invadiu a Grecia com incrivel rapidez;viu-se nela a possibilidade de contato com uma realidademais autenticamente transcendente, mais genuinamente

    divina. De puro superior a tudo 0 que e humane, de puroonipotente que e diante dela, 0 homem nao e por si nada.

    A radical nulificaao do homem e0

    sintoma de todagrande e profunda - isto e - genuina religiao. Anteesses poderes supremos nao ha nada a fazer senao aban-donar-se a eles. Porem como no homem tudo toma inexo-ravelmente 0 carater de fazer - ate 0 nao fazer nada eo fazer suspensivo de todo fazer - e, como digo na con-ferencia, ate a paciencia que retem toda aao e um espe-rar e este e um "fazer tempo". abandonar-se sup6c todauma serie de atividades e inclusive exige uma tecnica eurn metodo. Nao e coisa tao facil que 0 homem, cons-

    tituido em urn permanente, fatigante, angustioso "estarsobre si" -' como 0 abutre esta sobre sua presa -, sesolte, perca essa regulamentaao de si mesmo, essa ativi-

    e isto significa que 6 preciso "por-se fora de si", dede "ser si mesmo", fazer-se outro, alheio a si - alie-se. A entrega a Dionisio e a r ealidade transcendenteele simboliza e a alienaao, a loucura estatica -

    mania".

    Homero devia andar pel0 mar Egeu cantando deliciosos contos la pOl'volta de 750 antes de Cristo.

    apolfneo e expoente do que ate entao havia side0

    mem grego, embora em sua forma mais avam;ada, mafetada, mais "fim de epoca". Cem anos mais tardGrecia e uma forma de v ida sobremaneira distinta.lliada e na Odisseia cita-se algumas vezes Dionisio,sem precisar nada a sell respeito, sem que ele interveem nada. Era Dionisio um deus demasiado formidavclra poder tratar com os olimpianos, que eram gente um co acanhada, demasiado "distinta" e de bonne con1lJagMas cern anos mais tarde Dionisio se impos e domino

    vida grega. A medida e ao ser razoavel que Apolo resenta, ensina e ordena com gesto bel0 porem severo, nisio contrapos e cQnseguiu fazer triunfar sua divinacura. Desde entao os gregos nunca mais deixaram de der culto a exalta

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    Ele dispoe ao culto frenetico que consiste em danc;asapaixonadas. Ha urn texto muito curioso em que Alenco,citando a Filocoro, diz: "Os antigos nem sempre prati-cavam 0 ditirambo; mas quando celebravam 0 cuHo seera dedicado a Dionisio, cantavam e dimc;avam, bebe~doate a embriaguez; mas se se tratava de Apolo, com me-dida e com ordem"18.

    . Os gregos nao renunCiavam a nada. Eis aqui as duasfaces da vida: ordem e desordem, seriedade e di-versao,razao e aliena9aO.

    Assim como esquecemos 0 que foram para 0 hornemos sonhos, seus primeiros mestres, esquecemos 0 que du-rante milenios foi para a Humanidade a danc;a. E istoapesar de termos a nossa vista 0 fato de que todos ospovos primitivos atuais nao podem existir' sem dan,c;ar. Adanc;a e todo um lado da vida para eles. E a aC;aocole-tiva por excelencia em que a tribo como tal, dirfamos; a.

    naC;aose faz presente, se reconhece. a si mesma como rea-lidade coletiva, refresca constantemente sua solidariedade,atua e e. O,objeto mais santo, mais sacro sensu stricto,e 0 tambor: Na Africa negra, para expressar que urnindividuo e estfJ-mgeiro, que pertence a outra tribo, sediz: "Esse danc;a com outro tambor"; e em muitos luga-res quem poe a mao indevidamente ou se atreve a tocarsem titulo suficiente 0 santo tambor tribal C e condenado amorte. Ao europeu que haja vivido nas profundas, secre-tas selvas da Nigeria e d~ Congo fica sempre 0 tanta,pertinaz de inumeraveis tambores invisiveis que tocamteimosamente dias, semanas, meses sem parar. E istosig-

    76 18. Ateneu, XXIV, 628a.

    [ado da vida mais importante. E de fato 0 e, pOl quedanc;a, mesmo sem bebida nem droga, 0 homem sequece de si mesmo, do gravame que esua vida e, coguindo ver 0mundo como. outro do que e, como trmutado em feliz ultramundo, e feliz - ultravive.

    Por isso nao e senao mais do que natural que Disio seja urn deus que danc;a - danc;a freneticamente e

    ele suas sacerdotisas e fieis, as menades,isto e, ascas. Tao danc;arino e Dionisio que, segundo 0mitodanc;ava no ventre de sua mae.

    Apolo ,e a medida, a rigorosa norma da vida, 0"esobre si", a conduta severa - a conduta conforme 0rito "ser em forma". Mas, bem entendido, tambem daNo Panteao grego - salvo Jupiter e Hera, que sacdonos da casa, que sac deuses ingleses, antipaticos, a p

    .respectability - todo mundo dan~a. E parte da vocade deus ter 0pe agil. Apolo e, por excelencia, 0 deus

    c;arino - so que sua danc;a e severo e rfgido ritmo; eisso 0 cuHo que se Ihe dedica consiste em danc;as moddas. Est modus in rebus*, e Apolo e 0 .modus, 0 l

    da vida e das coisas.

    . Donde resrilta que a diferenciaC;ao mais precisa era destas duas religi6es contrapostas - a apolfnea e anisfaca -. seria. distinguir duas danc;as - como no seXVIII se batiam a socas na Espanha os "ilustrados",fluenciados pelo enciclopedismo frances, e os casti

    submersos na estupenda plebe espanhola, pela prefereentre estes dois bailados: 0minuet ou a chacona.

    o culto primigenio, j.10disse, e uma danc;a. Mas estadanc;a e uma pantomima em que se representa a vida dod d i li i l

    Agora nao temos mais que dar as coisas seus nopara que tudo isto se combine, se unifique, se a cla

    d

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    deus. Deste modo, a pr.1tica religiosa que e 0 culto tern 0efetivo car.1ter de uma imitatio d ei, de uma f\01l(J)at

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    Baco -, a bacanal carnavalesca foi-se atrofiando, des-nutrindo~se ate morrer em nossos dias. Nos, espanhois,ainda conservamos, embora em estado de agonia, 0unicooutro residuo de festa autentica: a corrida de touros, tam-bem em certo sentido - que nao YOU desenvolver aqui -de origem dionisiaca, Mquica, orgiastica. Nietzsche diziacom verdade sobejante que "toda festa e paganismo". A

    religiao crista, ao desqualificar a vida humana em conse-qtiencia de ,haver descoberto urn Deus mais autenticamen-te Deus que os pagaos, isto e, mais radicalmente transcen-dente, matou para sempre 0 sentido festival da vida.

    A "mania" baquica, 0 frenesiorgiastico nos faz veroutro mundo - urn mundo em que tudo e positivo, sabo-roso, sorridente e, ao mesmo tempo, terrivel. A visaoda realidade outra que e 0mitologico, 0 divino, e infinita-mente atrativa; e, literalmente, a maxima voluptU

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    tasca co ve t do o a s ag ce vo a eg e.

    A tradi

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    das as atua

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    Recordemos 0 que foi dito quase no come

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    do puro logicismo e 0carMer utopico, desiderativo do pen-samento chamado logico. Ao nos darmos conta de quesomos muito menos logicos do que reputavamos, perdesua base de sentido encerrarmos os primitivos na especiede manicomio que era sua pressumida falta de logica. Adiferen

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    p p pcazes e rigorosas. Naose repara no f ato de que a con-fusiio tern urn sentido positivo, e uma a

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    tantes e a experiencia de morte, entende-se da alheia,porque da propria nao ha experiencia. A doutrina quealguns chamam de "existencialismo" e que hoje esta taoem moda com urn atraso de vinfe anos37, ao fazer daideia da propria morte base de toda a filosofia, devia tercontado de forma mais substantiva com a condic;ao de queso ha duas coisas que a vida, a qual e sempre a de cadaqual, em absoluto niio pode ser, que niio sao, pois, possi-bilidades de minha vida, que em nenhum casopodem acon-tecer. Essas duas coisas alheia a minha vida SaD0nas-cimento e a morte. Meu nascimento e um conto, urn mitoque outros me contam, mas ao qual nao pude assistir eque e previo a realidade que chama vida. Quanto a mi-nha morte e um conto que nem sequer podem contar~me.Donde resulta que essa estranhissima realidade que e mi-nha vida se caracteriza por set limitada, fnita e, no entan-

    to, por nao ter nem principio nem fim. E assim, a meu ver,que e preciso colocar 0 problema de minha propria morte,e nao como 0coloca 0 melodramatico S:enhor Heidegger38

    Mas agora nos referimos a uma efetiva e cat ego rialexperiencia que 0 homem faz: a da morte do proxim039

    37. S6 como sintoma da puerilidade e inconsciencia que atua em todoeste reboli,:o da moda "existencialista", basta nOlar que 0 autor a quem sealribuem neste particular as principais leses - Heidegger - protestou contrao fato de que 11sua filosofia seja dada 0 nome de "existencialismo". Assim,nada mais, nada menos. Dai em diante, em toda esta tendencia topamos comuma serie de irresponsabilidades, de tolices e,_ em suma, de u:U tipico sdia-ritismo, elitismo, intelectual".

    38. A analise formal de sua doutrina, especialmente neste ponto sobrea morte como "a mais pr-6pria possibilidade da vida", encontra-se em meu Iivro

    Epi/ago ...

    39. (Aqui se interrompe 0 manuscrito. Ver urn antecedente do tema ini-ciado En lama a Galilea, li"ao V.

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    o seculo e hoje, quem 0 ignora?, uma unidademedida temporal: SaD cern anos. Significa, pois,quantidade de tempo e a medida desta quantidade. nos hoje essa quantidade esta de uma maneira muito cisa determinada, medida: medem-na com rigor os gios, sobretudo os relogios dos observatorios astroncos - que por isso, porque medem 0 tempo, se chamcrono-metros.

    o Tempo, isso que os cronometros quantificam edem, e algo que consiste em passaro 0 tempo e, porcelencia, aquilo que passa e os cronometros contampassagem. E urn passar incessante, infatigavel, inexoranao se detem jamais. E um fluxo. Parece um rioTejo -, urn rio em que tudo quanta existe esta submo Tempo e 0Universo como rio.

    o Tempo tern tres dimensoes, diriamos, tres lado Tempo presente - 0 agora, 0 hoje -, que tem as

    costas 0 passado, 0 ontem, e traz a sua frente 0 fuo amanha. Grac;as a isto e 0Tempo um poder, simneamente, generoso e criminoso. Instalados no pres

    no agora, sabemos que 0 tempo vai suscitar amanha cque hoje nao SaDainda, lhes vai dar vida, existencia,

    lidade. 13. estao ai, nessa misteriosa camara do futuro,preparadas, geiminando, fermentando; como que desper-tando, espregui

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    p g qcoisas para nossa na

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    ontem e urn amanha mas como tern a16m disso infinitoshojes, infinitos ontens e infinitos amanhas, tanto the faraurn como outro. Que the irnporta? Se nao conseguehoje fazer uma coisa the 6 igual, porque a fara urn diadentre os infinitos dias que tern a sua disposi

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    que estao a sua disposi