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A ideologia nacionalista na L’École des Annales 1 Roberto Leme Batista 2 Este texto discute a ideologia nacionalista da L‟École des Annales. Busca-se compreender a importância da Universidade de Estrasburgo na formação desta escola. Analisamos se a forma como Lucien Febvre incorpora a psicologia coletiva, ou das multidões de Henri Berr, com seus conceitos de emoção, sentimento e de sensibilidade. Procuramos demonstrar como Febvre repensa a psicologia de Berr ao confrontá-la com a teoria das emoções de Henri Wallon. Febvre desvirtua a teoria de Wallon ao articular as sua noções com a teoria de Henri Berr, fazendo um esvasiamento ideológico das categorias de Wallon. Ao incorporar as noções de Wallon, livrando-a do materialismo dialético, Febvre forma os fundamentos da sua psicologia da história. Buscamos demonstrar que Febvre é um ideólogo do nacionalismo francês, que entende a nacionalidade francesa como portadora do espírito de uma civilização. Como historiador Febvre busca no passado as raízes do sentimento nacional francês, seja no campo, na arte, na história. Analisamos as noções de nação, pátria, país e honra em dois importantes livros de Febvre: Michelet e a Renascença e Honra e Pátria. Palavras-chave: Ideologia. Nacionalismo. L‟École des Annales. História. Psicologia da história. Mentalidades. Abstract This text discusses the nationalist ideology of L'Ecole des Annales. Search to understand the importance of the University of Strasbourg in training this school. I reviewed the way Lucien Febvre incorporates the collective psychology, or the crowds of Henri Berr, with its concepts of emotion, feeling and sensitivity. We demonstrate how Febvre repensa the psychology of Berr to confront it with the theory of emotions of Henri Wallon. Febvre skews the theory of Wallon to articulate their ideas with the theory of Henri Berr, making a esvasiamento ideological categories of Wallon. By incorporating the concepts of Wallon, rid it of the dialectical materialism, Febvre form the basis of its history of psychology. We demonstrate that Febvre is a ideólogo of French nationalism, which considers the French national carrier as the spirit of a civilization. As historian Febvre search in the past the roots of French national feeling, whether in the fields, in art, history. I reviewed the concepts of nation, homeland, honor and country in two important books of Febvre: Michelet and Renaissance and Honor and Fatherland. Keywords: Ideology. Nationalism. L'Ecole des Annales. History. Psychology of history. Mentalidades. 1 Agradeço ao professor doutor Cláudio Stieltjes da Universidade Estadual de Maringá, pela orientação no PDE 2007 e, principalmente, por desfrutar de sua amizade e intensa formação cultural e acadêmica. 2 Roberto Leme Batista Licenciado em História e Letras, mestre em Ciências Sociais, doutorando em Ciências Sociais. Professor de Rede Pública do Paraná, professor PDE/titulado em 2007. Professor do Departamento de História da Faculdade Estadual de Educação Ciências e Letras de Paranavaí. Membro da RET Rede de Estudos do Trabalho www.estudosdotrabalho.org. Organizador dos seguintes livros: 1) Desafios do Trabalho: Capital e luta de classes no século XXI (2004); 2) Trabalho e Educação: Contradições do Capitalismo Global (2006); 3) Trabalho, Economia e Educação: Perspectivas do capitalismo global (2008), todos pela Editora Praxis. E-mail: [email protected]

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A ideologia nacionalista na L’École des Annales1 Roberto Leme Batista2

Este texto discute a ideologia nacionalista da L‟École des Annales. Busca-se compreender a importância da Universidade de Estrasburgo na formação desta escola. Analisamos se a forma como Lucien Febvre incorpora a psicologia coletiva, ou das multidões de Henri Berr, com seus conceitos de emoção, sentimento e de sensibilidade. Procuramos demonstrar como Febvre repensa a psicologia de Berr ao confrontá-la com a teoria das emoções de Henri Wallon. Febvre desvirtua a teoria de Wallon ao articular as sua noções com a teoria de Henri Berr, fazendo um esvasiamento ideológico das categorias de Wallon. Ao incorporar as noções de Wallon, livrando-a do materialismo dialético, Febvre forma os fundamentos da sua psicologia da história. Buscamos demonstrar que Febvre é um ideólogo do nacionalismo francês, que entende a nacionalidade francesa como portadora do espírito de uma civilização. Como historiador Febvre busca no passado as raízes do sentimento nacional francês, seja no campo, na arte, na história. Analisamos as noções de nação, pátria, país e honra em dois importantes livros de Febvre: Michelet e a Renascença e Honra e Pátria.

Palavras-chave: Ideologia. Nacionalismo. L‟École des Annales. História. Psicologia da história. Mentalidades. Abstract

This text discusses the nationalist ideology of L'Ecole des Annales. Search to understand the importance of the University of Strasbourg in training this school. I reviewed the way Lucien Febvre incorporates the collective psychology, or the crowds of Henri Berr, with its concepts of emotion, feeling and sensitivity. We demonstrate how Febvre repensa the psychology of Berr to confront it with the theory of emotions of Henri Wallon. Febvre skews the theory of Wallon to articulate their ideas with the theory of Henri Berr, making a esvasiamento ideological categories of Wallon. By incorporating the concepts of Wallon, rid it of the dialectical materialism, Febvre form the basis of its history of psychology. We demonstrate that Febvre is a ideólogo of French nationalism, which considers the French national carrier as the spirit of a civilization. As historian Febvre search in the past the roots of French national feeling, whether in the fields, in art, history. I reviewed the concepts of nation, homeland, honor and country in two important books of Febvre: Michelet and Renaissance and Honor and Fatherland.

Keywords: Ideology. Nationalism. L'Ecole des Annales. History. Psychology of

history. Mentalidades.

1 Agradeço ao professor doutor Cláudio Stieltjes da Universidade Estadual de Maringá, pela

orientação no PDE 2007 e, principalmente, por desfrutar de sua amizade e intensa formação cultural e acadêmica. 2 Roberto Leme Batista – Licenciado em História e Letras, mestre em Ciências Sociais, doutorando

em Ciências Sociais. Professor de Rede Pública do Paraná, professor PDE/titulado em 2007. Professor do Departamento de História da Faculdade Estadual de Educação Ciências e Letras de Paranavaí. Membro da RET Rede de Estudos do Trabalho – www.estudosdotrabalho.org. Organizador dos seguintes livros: 1) Desafios do Trabalho: Capital e luta de classes no século XXI (2004); 2) Trabalho e Educação: Contradições do Capitalismo Global (2006); 3) Trabalho, Economia e Educação: Perspectivas do capitalismo global (2008), todos pela Editora Praxis. E-mail: [email protected]

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Introdução

Neste texto desenvolvemos uma análise do nacionalismo na L‟École des

Annales. Partimos da ação estatal francesa na Universidade de Estrasburgo logo

após o fim da Primeira Guerra Mundial.

Discutimos a incoporação por Lucien Febvre da teoria da psicologia coletiva

de Henri Berr, de seus conceitos de emoção, sentimento, sensibilidade,

individualidade, individualidade coletiva e raça, fundamento de sua concepção de

nacionalismo.

Discutimos como Henri Febvre se apropria da teoria da personalidade e da

emoção de Henri Wallon, fazendo um desvio, desvirtuando-a através de um

esvaziamento categorial, fazendo desaparecer a concepção materialista dialética de

Wallon. Procuramos entender como Lucien Febvre articula a teoria da personalidade

e da emoção de Henri Wallon com as concepções de Henri Berr, fazendo emergir

uma psicologia da história, base da ideologia da história das mentalidades.

Analisamos como Febvre pensa a nação, a pátria e a honra em dois

importantes livros Michelet e a Renascença e Honra e Pátria. O primeiro constitui-se

de um conjunto de aulas ministradas pelo autor em 1942 e 1943, portanto, durante a

Segunda Guerra Mundial. O segundo, constitui-se de um conjunto de aulas

ministradas logo após o fim da guerra.

A origem da L‟École des Annales

O contexto histórico da fundação da L‟École des annales é marcado pela

retomada das regiões da Alsácia e da Lorena, no final da Primeira Guerra Mundial. A

França foi obrigada a ceder estas duas regiões à Alemanha, como indenização de

guerra em 1871, já que a Alemanha havia logrado vitória nesta guerra.

Esta guerra franco-prussiana ocorrera porque a Prússia em seu processo de

unificação do Império alemão, constituído entre 1864 e 1871 através da diplomacia e

da guerra, incorporando todos os estados germânicos, com exceção da Áustria, fará

uma guerra preventiva, visando se proteger, contra a França, impondo a esta uma

derrota. Após a derrota na guerra de 1870, num contexto em que a rivalidade franco-

prussiana acirrara-se devido ao oferecimento pelas Cortes espanholas, do trono da

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Espanha, já que este estava sem soberano, a Leopoldo de Hohenzollern, primo

distante do rei da Prússia.

O governo francês faz pressões diplomáticas para que o rei da Prússia

convença seu primo a renunciar ao trono da Espanha. O governo francês logrou

êxito nesse caso, mas ao tentar arrancar do rei da Prússia o compromisso de que

nunca mais alguém da família monárquica prussiana pudesse se apresentar como

candidato ao reino espanhol, viu-se diante de uma situação em que Bismarck criou

um imbróglio, ao resumir uma resposta do rei ao diplomata francês, levando a

França a declarar guerra à Prússia.

Com um exército medíocre e sem aliados, Napoleão III aventura-se em uma

guerra, sendo derrotado em um mês de combates. A cidade de Estrasburgo foi

cercada no período de 9 de agosto a 28 de setembro de 1870. Poucos dias depois,

Napoleão III capitulou-se de forma vexaminosa, pois o imperador, trinta e dois

generais, um marechal, noventa e seis mil soldados, contando quase quinze mil

feridos, foram feitos prisioneiros. Em Paris foi proclamada a República. Mas, o

exército prussiano, não se deu por satisfeito e marchou sobre Paris, situação em que

ocorreu a Comuna de Paris, pois com o cerco de Paris pelo exército germânico e a

instalação de um governo provisório em Versalhes, pelos fugitivos que abandonaram

covardemente a capital, deflagrou-se a insurreição da Comuna, que culminou com a

mais sangrenta das guerras civis na história da França.

Nesse contexto, em 10 de maio de 1871, foi assinado o tratado de paz de

Francforte, tendo a França que ceder a Alsácia e grande parte da Lorena ao império

alemão, além de concordar em pagar uma pesada indenização de guerra.

Sobre a Comuna de Paris, falará Lucien Febvre ao analisar os nefastos anos

de 1940-44, quando ocorreu uma divisão da sociedade francesa, que sob o

comando de Petain, chefe do governo de Vichy, permitiu as ações colaboracionistas

da Milícia Francesa com os nazistas. Febvre busca as raízes da divisão da

sociedade francesa desde a Revolução de 1789 e, inevitavelmente, não pode deixar

de falar da Comuna. Cito Febvre:

...ao longo de todo o século XIX a luta prosseguiu, uma luta sem quartel entre uns e outros. [Ela é] mais sensível [em] 1870-1871. [Nós] esquecemos. Mas alguns dos sentimentos, algumas das divisões essenciais que vimos nascer nesses quatro anos nefastos (1940-1944) no seio da comunidade francesa, encontram sua expressão mais nítida nos livros, testemunhos, lembranças desse tempo. [Nós] esquecemos. O historiador, este não deve esquecer, nem deixar esquecer.

3

3 Febvre, L. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 44.

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Dessa forma, durante praticamente meio século as regiões da Alsácia e da

Lorena deixaram de pertencer a França, ficando sob domínio da Alemanha. O

ressentimento da guerra de 1870 será um fator importante no processo de formação

das alianças entre as potências européias durante a fase de expansão imperialista

da viragem do século XIX para o XX, pois colocará sempre a França como rival da

Alemanha. Assim, terminada a Primeira Guerra Mundial, a França será o país que

mais se dispõe a exigir pesada reparação da Alemanha, responsabilizando-a pela

guerra. Cito Hobsbawm:

Na conferência de paz Versalhes (1919), haviam-se imposto pagamentos imensos mas indefinidos à Alemanha, como „reparações‟ pelo custo da guerra e os danos causados às potências vitoriosas. (...) A quantia que a Alemanha teria de pagar permaneceu vaga, como um compromisso entre a posição dos EUA, que propunham fixar os pagamentos da Alemanha segundo a capacidade de pagar do país, e a dos outros aliados – sobretudo os franceses – que insistiam em recuperar todos os custos da guerra. O objetivo real destes, ou pelo menos da França, era manter a Alemanha fraca e ter um meio de poder pressioná-la. Em 1921, a soma foi fixada em 132 bilhões de marcos ouro, ou seja, 33 bilhões de dólares na época, o que todo mundo sabia ser uma fantasia.

4

John Maynard Keynes, jovem economista que participou como membro da

delegação britânica na conferência de Versalhes, foi um crítico radical desta

conferência, por entender que sem a restauração da economia alemã, seria

impossível um retorno a um padrão liberal de civilização e economia estáveis na

Europa. Cito Hobsbawm:

A política francesa de manter a Alemanha fraca para sua „segurança‟ era contraprodutiva. Na verdade os franceses estavam fracos demais para impor sua política, mesmo quando ocuparam por breve período o coração industrial da Alemanha ocidental em 1923, com a desculpa de que os alemães se recusavam a pagar as reparações. (...) Os que desejavam manter a Alemanha fraca queriam dinheiro vivo, em vez de (como seria racional) bens de produção corrente, ou pelo menos parte da renda das exportações alemãs. (...) Na verdade, obrigaram a Alemanha a recorrer a pesados empréstimos, de forma que as reparações que foram pagas vieram dos empréstimos maciços (americanos). Para seus rivais de meados da década de 1920, isso parecia ter a vantagem extra de fazer a Alemanha incorrer em profunda dívida, em vez de expandir suas exportações para equilibrar sua balança externa. (...) todo o arranjo (...) deixou tanto a Alemanha quanto a Europa extremamente sensíveis ao declínio dos empréstimos americanos após a crise de Wall Street em 1929.

5

Portanto, para os franceses, uma vez derrotada a Alemanha, tratava-se de

devolver a humilhação sofrida na guerra de 1870, sem contar que a corrida

imperialista fez crescer ao longo do tempo a rivalidade entre estas potências, aja

4 Hobsbawm, E. Era dos extremos: O breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,

1995. p. 102. 5 Idem, p. 103.

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vista a disputa pelo Marrocos que quase as levaram a guerra em 1906 e 1911. Pois,

bem, passados quarenta e oito anos da derrota de 1870, a França irá vingar-se da

Alemanha no Tratado de Versalhes, além de recuperar os territórios da Alsácia e da

Lorena, garantiu o direito de explorar as minas do Sarre por quinze anos. A história

provou a irracionalidade e estupidez do Tratado de Versalhes para a Europa, pois

gerou ônus de dívida e tributação.

Entretanto, uma vez recuperada a Alsácia e a Lorena, o Estado francês

preocupa-se com a reinserção cultural da região aos modus vivendi francês. Então,

o Estado francês fará pesados investimentos na Universidade de Estrasburgo.

Febvre ao referir-se aos cursos de Sylvain Lévi menciona esses recursos, quando

descreve o cenário da Biblioteca. Cito Febvre:

a admirável Biblioteca Nacional e Universitária de Estrasburgo, seus tesouros expostos a nossos olhos, ao nosso alcance: um instrumento de trabalho incomparável, único na França. E se alguns de nós deveriam deixar para a posteridade algumas obras, seriam elas em parte devidas à Biblioteca de Estrasburgo. Aos seus prodigiosos recursos, que puderam ser fartamente explorados.

6

François Dosse analisando a universidade de Estrasburgo, e o potencial que

lhe garante os vultosos investimentos do Estado francês, refere-se também a

importância de sua biblioteca afirma que esta universidade se mantinha muito

distante da realidade alsaciana. Na verdade a universidade de Estrasburgo era um

local que projetava e criava condições para seus membros ascenderem à Sorbonne,

ou seja, a Paris. Cito Dosse:

é um enclave parisiense, aliás desvinculado das realidades alsacianas locais cujos membros apenas aspiram sucesso na ascensão à capital: „É necessária a nossa resignação, teremos a glória de ser a antecâmara da Sorbonne‟, concorda seu deão, Christian Pfister, em 1925. Além disso a Universidade de Estrasburgo dispõe de uma biblioteca-modelo, instrumento incomparável de trabalho, pelo menos em relação às outras universidades de província. Beneficia-se também de financiamentos superiores graças ao fundo de pesquisas científicas que subvenciona as publicações da Faculdade de Letras de Estrasburgo.

7

Além do que a Universidade de Estrasburgo conta também com uma

excelente Faculdade de Direito, “que concentra também a elite dos juristas

franceses, ansiosos por conduzir estudos pluridisciplinares e comparatistas”8A

L‟École des Annales antes de conquistar Paris, a França e espraiar-se pelo mundo,

6 Febvre, L. In memorian de Marc Bloch. Lembranças de uma grande história. In: MOTA, Carlos

Guilherme (Org.). Febvre.Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1978. p. 165. 7 Dosse, F. A história em migalhas: dos Annales à nova história. São Paulo: Ensaio, 1992. p. 47. (grifo

nosso). 8 Idem, p. 47.

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conquistou e brilhou primeiro em Estrasburgo. Assim se expressou Thomann ao

afirmar que “não é por acaso que o brilho dos Annales jorrou em Estrasburgo, antes

de tudo abraçar”.9

Segundo Dosse os dois fundadores da L‟École des Annales, Lucien Febvre e

Marc Bloch têm em mente uma estratégia para fazer da história o “papel de

federalista das ciências sociais”, nesse sentido, evitam o dogmatismo que foi

responsável pela derrota dos durkheimianos. Nesse sentido, acrescentam “a essa

estratégia de conquista o ecumenismo de Henri Berr, para ganhar para si diversos

componentes das ciências sociais e agrupá-los por trás da bandeira de uma história

renovada e federalista”.10

Dosse demonstra-nos que para ver vitoriosa essa estratégia imperialista, os

Annales tiveram que cuidar-se para não assustar e causar medo aos seus aliados

das outras ciências sociais. Cito Dosse:

Os dois diretores dos Annales compreenderam que, para ganhar a partida, um acordo amistoso com as outras ciências sociais não era suficiente, e para triunfar seria necessário realizar o Anschluss. Encontramos ainda esse aspecto fundamental em cada etapa do discurso dos Annales, esta faculdade de absorver tudo, desde a abertura, a recuperação até a captação. Para não esmagar os partidários e melhor absorvê-los, seria necessário ainda não lhes causar muito medo.

11

Desta forma a L‟École des Annales vai tomando forma e conteúdo a partir da

Universidade de Estrasburgo, com um projeto de imperialismo da história sobre as

outras ciências sociais, porém, estrategicamente, apresentavam-se com certa

humildade, fingindo-se de marginais e de anões. Os expoentes da L‟École des

Annales irão apropriar e incorporar às suas concepções de história, categorias,

conceitos e noções de outros cientistas, de outras áreas das ciências sociais.

Porém, fazem certas correções, adaptações e muitas vezes distorções das teorias

dos outros, por eles incorporadas, como teremos a oportunidade de demonstrar mais

a frente nesse texto. Por ora, detenhamo-nos em Estrasburgo, onde Febvre e Bloch

tiveram a oportunidade de conviver com muitos membros da intelligenzia francesa.

Cito Dosse:

Os dois fundadores da história dos Annales, assim como seus herdeiros, não são, como eles gostam de se apresentar, marginais. Ambos foram professores na Universidade de Estrasburgo, novamente francesa desde 1920, com a reconquista da Alsácia, que se tornou uma universidade-modelo. Ela deve mostrar aos alemães do que são capazes os pesquisadores franceses. Estrasburgo é, então, a segunda universidade, depois de

9 M. Thomann, Au berceau des Annales. p. 33-36. Apud Dosse, F. Op cit, p. 47.

10 Dosse, F. Op cit, p. 46.

11 Ibid.

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7

Paris, pela importância de seus professores. Encontra-se ali uma série de pesquisadores científicos de diferentes disciplinas, que colaborarão mais tarde nos Annales: o geógrafo Baulig, os sociólogos Maurice Halbwachs e Gabriel Le Brás, o psicólogo Charles Blondel, os historiadores André Piganiol, Charles-Edmond Petrin e Georges Lefebvre e, certamente, Lucien Febvre e Marc Bloch que ocupam, portanto, posição estratégica no seio desse rico centro intelectual. Ao lado das disciplinas tradicionais, cadeiras novas, mais modernas são criadas. O espírito novo que sopra em Estrasburgo se assemelha àquele da Revue de synthèse historique, a vontade de ultrapassar os limites e de abertura que pertence a Henri Berr desde 1921.

12

Segundo Dosse os encontros realizados aos sábados na Universidade de

Estrasburgo permitia que reunissem “filósofos, sociólogos, historiadores, geógrafos,

juristas e matemáticos, que instituem assim o diálogo regular e institucionalizado em

torno de três temas (filosofia e orientalismo; história das religiões; história social)”.13

A Herança de Henri Berr

Stieltjes ao analisar a ideologia da corrente de L‟École des Annales parte da

premissa de que os historiadores que constituem esta Escola não formam um grupo

monolítico. Ao contrário, “as divergências que podem ser substanciais aparecem já

entre os fundadores, Marc Bloch e Lucien Febvre” (p. 137). Stieltjes demonstra-nos

como a presença de Durkheim ocupa um lugar central na teoria da história de Marc

Bloch, mas, transita apenas na periferia da concepção e da metodologia

historiográfica de Lucien Febvre. A concepção e metodologia de Febvre,

diferentemente de Bloch, recebe uma influência intensa da concepção de síntese em

história e psicologia de Henri Berr. Cito Stieltjes:

no artigo Marc Bloch et Strasbourg14

ele (Febvre) declara a importância tanto da Revue de Synthese historique quanto de Berr para a formação do seu pensamento e da corrente annalista; é assim que Febvre se manifesta: nosso amigo Henri Berr lançou por volta de 1900 a Revue de syntheses historique, que foi nosso cavalo de Tróia.

15

Para Berr (1946) a síntese histórica deve selecionar exemplos que confirmem

a previsão sobre o curso de outros eventos, buscando coordenar, agrupar e

confirmar generalizações hipotéticas. A história, para Berr, constitui-se em ciência

12

Ibid, p. 46-47. 13

Ibid, p. 47. 14

Publicado em português com o título Febvre, in memorian de Marc Bloch. Lembranças de uma grande história. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Febvre.Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1978. 15 Stieltjes, Cláudio. A ironia em a utopia de Thomas More ideologia e história. São Paulo: USP, 2005, tese de doutorado. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2006_doc/claudiostieltjes.pdf, acesso em 15 de dezembro de 2007. p. 138-139.

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que se caracteriza por pesquisar causalidades diversas e da busca da relação que

estas causalidades mantém entre si.

Waeny (2003) demonstra-nos que a concepção de história-ciência de Berr

evoca três tipos de causas nos fatos humanos, ou seja, a contingência, a

necessidade e a lógica. Sendo que o primeiro nível de causalidade – a contingência

– diferencia-se o puro acaso do acaso histórico, por ser imprevisível, pois são

possíveis ocorrências casuais, ou coincidências, em que “a multiplicidade e a

duração dos efeitos produzidos, e a intensidade da repercussão no espaço e no

tempo que caracterizam o acontecimento”.16

Stieltjes mostra-nos que é na problematização da história concebida como

ciência de Henri Berr que Lucien Febvre “encontrará fundamentos teóricos que lhe

permitirão pensar a sua própria concepção de história”17. Stieltjes (p. 139) afirma que

na introdução à segunda parte de seu livro La synthese em Histoire, intitulada “A

causalidade em História”, Henri Berr caracteriza e define o que ele denomina de a

verdadeira ciência em história, apresentando também, segundo Stieltjes, o que

constitui para ele – Berr – o principal problema dessa história científica. Cito Berr:

Aí está o caráter próprio da verdadeira ciência, em história, - de comportar, para a explicação integral, a busca de causalidades diversas e da relação que essas causalidades manchem entre si. Do discernimento dessas diversas causalidades resulta histórica. Na relação dessas causalidades consiste o problema capital da síntese histórica.

18

Portanto, Berr em seu intento de fazer da história uma ciência irá afirmar que

o historiador deve dedicar-se a busca das causas em história e a formulação de

explicações como tarefas do trabalho de síntese, superando o esquema vigente até

então no estudo da história. Cito Stieltjes:

todavia, esclarece Berr, o que o historiador deve fazer para formular uma síntese que dê uma explicação integral é relacionar causas diversas: isto é, que tenham caráter diferente. Berr está se referindo a dois tipos de causas: as causas que têm caráter da contingência e as que têm o caráter da necessidade. Por que a história deve, segundo Berr, correlacionar e conjugar a causalidade da contingência e a causalidade da necessidade? A resposta de Berr é: para o historiador, a mudança só interessa na medida em que esteja vinculada à continuidade, ou mesclada, de qualquer modo, à permanência. Com esse teor a mudança adquire a especificidade do desenvolvimento. que Berr definiu como sendo a mudança na duração.

19

16

Berr, H. La synthèse histoire. S rapport avec la sythèse générale. (nouvelle édition). Paris: Albin Michel, 1953. Apud y, Maria Fernanda Costa. História e psicologia em Henri Berr. Memorandum, 5, 36-41. http://fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/wany02.htm acesso em 19/04/2008. 17

Stieltjes. Op cit. p. 139. 18

Berr, Henri. La synthese em histoire: sans rapport avec la synthese generale. 2. ed. Paris: Editi Albim Michel, 1953, p. 53. Apud Stieltjes, p. 139. 19

Stieltjes, p. 139.

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9

Para Stieltjes é importante compreender como se articulam a noção de

causalidade contingente e de causalidade necessária na teoria da história de Henri

Berr, ou seja, na história como síntese. Berr formula sua concepção de síntese em

história estabelecendo a relação entre a individualidade e o social; e, “é nessa

articulação que se apóia a idéia de desenvolvimento da história, isto é, da mudança

no tempo da duração”.20

Ora, em que implicam os conceitos de causalidade contingência e de

causalidade necessária? Stieltjes faz uma interessante exposição acerca desses

conceitos, mostrando-nos como Berr define essas questões. Cito Stieltjes:

Berr entende por causalidade contingente aquela que se distingue do puro acaso, ou isto é, do evento fortuito, imprevisível, e que não tem eficiência suficiente para provocar sobre determinada ordem (material ou social) mudanças regulares no tempo da duração. A causalidade contingente que Berr chama de individualidade é um acaso que adquiriu um grau de regularidade, uma certa estabilidade e eficiência num grupo de fenômenos já erigidos por leis.

21

O conceito de individualidade também possui um caráter fortuito, pois é

entendido como “intermediário entre o puro acaso e a necessidade”, ou seja, a

própria individualidade tembém é contingencial. Cito Berr:

Existe uma forma de contingência que é preciso, já dissemos, distinguir do acaso. A individualidade é algo intermediário entre o puro acaso e a necessidade. Nela, um acaso inicial afeta um grupo de fenômenos, mais ou menos duráveis, e submetidos a leis: a conseqüência parece ser que essas leis misturam-se de contingência e que os efeitos do acaso participam a estabilidade dessas leis.

22

Para Berr há vários tipos de individualidades que são basicamente três: a

individualidade singular, a individualidade coletiva e a individualidade geográfica

(Stieltjes, p. 140). Ora, a individualidade é um acontecimento que se desenha entre

o acaso, as leis e o social. Haveria, aqui, a necessidade de um aprofundamento do

conceito de individualidade, de acaso, de leis e do próprio social, conceitos caros à

concepção de história-ciência de Berr. Entretanto, os limites deste texto coloca-nos a

necessidade de avançarmos para a compreensão do nacionalismo em Berr e a

repercussão que esta exerce sobre os Annales, fundamentalmente em Lucien

Febvre. Mas, por ser esclarecedor sobre o conceito de individualidade, ao comentar

a última citação de Henri Berr. Cito Stieltjes:

20

Stieltjes, p. 140. 21

Stieltjes, p. 140. 22

Henri Berr. Op cit. p 26 apud, Stieltjes, p. 140.

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10

a individualidade (causalidade contingente) é algo intermediário entre o puro acaso e a necessidade. Basta correlatar essa asserção com outras formuladas por Berr, tais como: a história é um problema psicológico; são os três motivos humanos, os motivos permanentes, que explicam eventos e instituições, e teremos a chave para compreender o papel das individaulidades (causalidades contingentes) no desenvolvimento da história, ou seja, da mudança no tempo da duração.

Berr dá pouca importância à causalidade singular, pois, segundo sua

concepção, ela muito raramente possui relevância para a história, a não ser

excepcionalmente, “quando alguma individualidade singular desenvolve

sobremaneira uma idiossincrasia”. Esta idiossincrasia pode ser genética ou psíquica

“como a genialidade, sua ação pode adquirir eficiência sobre a ordem (social) e a

individualidade singular torna-se personagem histórica, tendo portanto um papel no

desenvolvimento da história”.23 Do contrário, do ponto de vista histórico, a

individualidade torna-se insignificante.

Portanto, para Berr é a individualidade coletiva que é capaz de constituir a

base para uma síntese em história. Portanto, segundo Stieltjes, é na categoria de

psicologia coletiva que podemos encontrar o fundamento da concepção de síntese

em história Henri Berr, pois esta categoria analítica constitui-se em uma das

principais na teoria de história de Berr, sendo, posteriormente, resgatada e

modificada por Lucien Febvre, da L‟École dês Annales. Cito Stieltjes:

Uma das diferenças importantes entre a individualidade singular e a individualidade coletiva é que esta última agrega contingências com um cunho de generalizações que impõe maiores limites às manifestações do acaso. A individualidade, para merecer o predicado de coletiva, deve preencher no mínimo dois requisitos: primeiro, ter um princípio de continuidade e de unidade espaço-temporal; segundo, ter um princípio de unidade impessoal. (...) Berr estabelece o princípio de unidade e de continuidade espaço-temporal da individualidade coletiva na noção de raça; (...) Berr tenta, com toda a argumentação possível, desvincular o conceito de raça dos componentes biológicos, particularmente da hereditariedade genética. Antes de ter um fundamento biológico, a raça é o resultado da influência etológica do meio ambiente.

24

Stieltjes nos alerta sobre o necessário cuidado para se evitar equívocos sobre

a noção de raça em Berr, até mesmo, porque ele vive e desenvolve sua teoria em

uma época marcada pelas teorias raciais. Portanto, em Berr, a raça não têm um

fundamento biológico, pelo contrário, resulta da influência etológica do meio

ambiente.25 Cito Berr:

23

Stieltjes. Op cit, p. 141. 24

Stieltjes, p. 142. 25

Nota: transcrevo a nota esclarecedora de Stieltjes em sua tese de doutorado, “Em francês a expressão tem um sentido ao mesmo tempo mais preciso e mais amplo que a palavra portuguesa

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Já falamos da influência etológica do milieu: é, podemos constatá-la, toda poderosa nas origens, e confunde-se com a formação da raça (...) – acrescentamos: o modo de agir desses milieux. O climat, o terreno, a alimentação exerceu uma ação físico-psicológica direta. Talvez também a paisagem (...). Indiretamente, a maneira de viver que o milieu acarreta age sobre a formação do caráter (grifo de Stieltjes). Todavia, o milieu não emprega toda sua ação nos efeitos etológicos. Desde a origem, ele age historicamente e socialmente; (...) O milieu age historicamente, (...).

26

No terceiro tipo de individualidade, a geográfica relaciona-se com a

individualidade coletiva, está diretamente implícita na citação anterior, pois, segundo

Stieltjes “Berr considera a raça como sendo a expressão de uma lei da

hereditariedade produzida pela ação permanente e estável do milieu” (Stieltjes, p.

142).

Stieltjes alerta para a necessidade de não deixar passar despercebida a

maneira como Berr migra, sutilmente da noção de raça para a noção de caráter.

Operação pela qual Berr “transfere a questão da continuidade e da unidade espaço-

temporal para o plano psicológico, iniciando dessa maneira a elaboração de uma

psicologia coletiva e da história.”27 Nesse sentido, segundo este autor, não deixa de

ser significativo o fato de Henri Berr declarar que as raças modificaram-se muito

menos do ponto de vista físico do que do ponto de vista psicológico.

Berr opta pela etologia coletiva para estudar o caráter (categoria psicológica)

que é, para ele, o princípio da unidade espaço-temporal da individualidade coletiva.

Cito Stieltjes:

Para ele (Berr) a etologia coletiva estuda o caráter de agrupamentos historicamente determinados e tangíveis; podem ser povos antigos ou nações modernas vinculadas a um território e organizadas em sociedades políticas. Pedimos ao leitor que não deixe escapar o fato de que o conceito de caráter, uma vez formulado, como sendo os princípios de unidade e de continuidade da individualidade coletiva, vem logo a seguir acompanhado da idéia de nacionalidade

28.

29

A relação que Berr estabelece entre caráter e nacionalidade, é resgatada por

Lucien Febvre e por outros historiadores da L‟École des Annales. Cito Berr:

(...), na sociedade como no indivíduo, o caráter é o núcleo central e permanente que liga uns aos outros os diversos momentos da existência e que constitui a seqüência e a continuidade da vida (...) um agrupamento nacional (grifo nosso), uma vez constituído

„meio‟, por isso traduzimos por „meio ambiente‟, todavia milieu refere-se também ao componente social” (Stieltjes, p. 142). 26

Henri Berr. Op cit. p 26 apud, Stieltjes, p. 142. 27

Stieltjes. Op cit, p. 142-143. 28

Nota: em concordância com Stieltjes consideramos essa questão importante, pois, como veremos, por trás “das categorias de psicologia coletiva ou de mentalidade, particularmente do modo como foram formuladas pela L‟École des Annales, há um forte componente de ideologia nacionalista” (Stieltjes, p. 143). 29

Stieltjes, p. 143.

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12

(...) age – como um indivíduo (...). É preciso para cada povo ou nação, estudar indivíduos, de uma determinada época, certa região, em situações diferentes e registrar as semelhanças (...). É preciso considerar os produtos da coletividade, as instituições, - para chegar até as causas psíquicas que lhes dão o tom individual; (...). É preciso considerar os atos de grupo enquanto grupo, onde se manifesta uma sensibilidade (grifo nosso) (...) uma vontade mais ou menos refletida ou tenaz – Eis – em resumo – como é possível determinar a psicologia de uma individualidade coletiva.

30

Stieltjes apresenta uma síntese interessante sobre a incorporação por Berr de

partes da sociologia de Durkheim, de Tarde e também de psicólogos italianos,

particularmente Pasquale Rossi31. Cito Stieltjes:

Muitos componentes que caracterizam a psicologia das multidões tornam-se parte significativa da psicologia coletiva de Berr e irão contribuir para a construção da psicologia da história de Lucien Febvre, que por sua vez exercera sobre aqueles historiadores da École des Annales adeptos da história das mentalidades uma influência significativa. Os italianos, constata Berr, entenderam os processos basilares que explicam a reação e o movimento das multidões, descobriram até uma „lei‟ que rege suas reações e movimentos.

Temos, então, em Berr o embrião daquilo que virá a ser chamado de história

das mentalidades, uma concepção de história que foi formulada mais tarde por

Lucien Febvre. Cito Berr:

O que caracteriza essencialmente uma multidão, o que a diferencia de qualquer outro agrupamento, é de sentir e de traduzir uma emoção (grifo de Stieltjes), uma „exaltação passional‟ coletiva. (...) Os italianos formularam essa „lei‟, que, na multidão, „o pensamento elide-se e o sentimento adiciona-se‟ (...). Esse fenômeno liga-se, em certa medida, à psicologia intermental e a esclarece (...). Todavia, o papel da imitação é aqui secundário: o que é essencial, no fenômeno da multidão, é um fundo de sensibilidade idêntica de onde nasce, sob uma excitação comum a identidade de reação.

32

Lucien Febvre resgata e incorpora características essenciais da concepção de

psicologia das multidões de Berr. Portanto, os conceitos de emoção, sentimento,

sensibilidade de Berr estão presentes na psicologia da história de Febvre. Porém, “o

componente emoção será repensado, particularmente através da psicologia de

Henri Wallon e da sua teoria das emoções, e junto com a noção de sensibilidade

formaram um dos principais fundamentos da sua psicologia da história”.33

30

Berr, H. Op cit. p. 85-86, apud Stieltjes, p. 143. 31

Remeto os interessados à tese de Stieltjes, Cláudio. A ironia em a utopia de Thomas More ideologia e história. São Paulo: USP, 2005, tese de doutorado. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2006_doc/claudiostieltjes.pdf, acesso em 15 de dezembro de 2007. 32

Berr. p. 105. Apud Stieltjes, p. 144-145. 33

Stieltjes, p. 145.

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13

A apropriação da teoria de Henri Wallon

Henri Wallon foi médico, filósofo e psicólogo e formulou uma psicologia, cujo

fundamento é a teoria da personalidade e da emoção. Wallon participa da Primeira

Guerra Mundial, como neurologista. Essa experiência irá ser vital para a elaboração

de sua teoria da emoção, pois tratou durante a guerra com inúmeros feridos, onde

sua sensibilidade, ao observar os abalos emocionais dos feridos lhe permitiram

colher elementos importantes para a elaboração de sua teoria.

Stieltjes desenvolve uma importante discussão acerca da psicologia de Henri

Wallon, sobretudo, da teoria da personalidade e da emoção, infelizmente, os limites

de nosso texto, não nos permite acompanhar passo-a-passo essa discussão.34 Cito

Stieltejs:

A emoção para Wallon é uma atividade do organismo humano sobre si mesmo, conseqüência do efeito da variação do tônus nesse organismo (no nível da musculatura esquelética, isto é, proprioceptiva, ou no nível visceral, isto é, interoceptiva), que provoca uma reação postural, ou seja, que modifica a musculatura ou as vísceras na forma de contrações, de relaxamentos ou de espasmos, dando origem a uma atitude que pode se expressar sob várias formas, tais como o choro, o riso, a cólera, o medo, a alegria, etc.

35

Portanto, como já adiantamos, não será possível um aprofundamento da

teoria da personalidade e da emoção de Henri Wallon, nesse texto. Porém, faz se

necessário uma rápida incursão por Wallon, pois do contrário não entenderíamos

como Lucien Febvre se apropria de elementos dessa teoria para elaborar sua

psicologia coletiva ou da história. Em Wallon encontramos a formulação da

“constituição da consciência e da formação da sociabilidade”.36 Portanto, ao teorizar

a questão da origem e desenvolvimento da consciência, ao tratar de questões

ontológicas como o problema das relações de sociabilidade, Wallon formula uma

teoria cognoscitiva de profundidade. Cito Stieltjes:

O antagonismo posto por ele, entre representação mental e as emoções, constitui fator importante da dialética entre indivíduo e sociedade. As emoções são um sistema de expressão, porém não são um sistema de atividade simbólica, e estão longe de formar uma linguagem.

37

Lucien Febvre incorpora e aplica a teoria da emoção de Wallon à sua

formulação de uma psicologia da história, ou seja as concepções de Wallon é a base

34

Remetemos os interessados para a tese de Stieltjes, p. 145 e seguintes. 35

Stieltjes, p. 146-147. 36

Stieltjes, p. 47. 37

Stieltjes, p. 148-149.

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14

para o fundamento na elaboração de uma psicologia da história por Lucien Febvre.

A contradição é que Lucien Febvre sempre foi um antimarxista e a teoria de Wallon é

inconcebível sem o materialismo dialético, ou seja, o marxismo. Ora, a apropriação

de uma teoria sem as categorias fundamentais que lhe dão forma e conteúdo

transformam-se em quê? Pergunta Stieltjes: “que feição tomarão essas categorias

quando marginalizadas do método e da concepção da história em que foram

produzidas? Manterão elas sua autenticidade e legitimidade conceitual?”38

Eis como Stieltjes responde a estas questões:

Nossa proposição é: Lucien Febvre idealiza e faz um uso ideológico da teoria da emoção de Wallon. O que nos autoriza a fazer essa afirmação? A teoria da emoção (...) desempenha na obra de Wallon um papel basilar pelo menos em dois pontos: é o fundamento de uma ontologia constituída pela relação dialética entre o biológico e o social; é ela que permite elaborar uma psicologia que exclui o mecanicismo e é capaz de conceber a consciência de forma não-idealista. Ao desconsiderar a relação entre os processos orgânicos que produzem a emoção e a total dependência do milieu social, ao qual está submetido o homem nos meses iniciais de sua vida, Lucien Febvre ignora o caráter material, concreto, das emoções; a emoção e as atitudes que expressa, como forma da afetividade, passam a ser concebidas como manifestação de uma psicologia humana que adquire caráter de entidade. Esse desvio que a teoria da emoção walloniana sofre, na interpretação de Febvre, explica a apropriação desvirtuada que esse historiador annalista faz das relações postas por Wallon entre a emoção, suas expressões da afetividade e a sociabilidade. é conveniente lembrar a Lucien Febvre não só o lugar metodológico que a teoria da emoção ocupa na psicologia walloniana, mas também seu sentido filosófico e objetivo político.

39

Stieltjes coloca as coisas em seu devido lugar. Uma concepção de indivíduo,

de emoção, de sensibilidade, construída a partir de um fundamento ontológico

marxiano não pode servir de escudo a uma concepção de sociedade, de psicologia

humana em forma de entidade. O desvio proposital desta apropriação desvirtuada

que Febvre faz da teoria walloniana irá levar a uma concepção de psicologia da

história, de história e mentalidades que nada tem com a originalidade da teoria

walloniana, pois, para Wallon “a evolução realiza-se no movimento dialético que a

superação das contradições da realidade exige e, como a realidade humana

desdobra-se em três dimensões, biológica, psicológica, social, é entre esses termos

que se efetiva o movimento dialético”.40

Qual o problema que torna suspeita a recepção que Lucien Febvre faz da

teoria da emoção de Wallon, tornando ilegítima sua apropriação? Quem responde é

Stieltjes:

38

Stieltjes, p. 150. 39

Stieltjes, p. 150. Grifo nosso. 40 Stieltjes, p. 152.

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15

São três subtrações: a primeira consiste em ter isolado essa teoria de seu método, a dialética; a segunda foi desvincular essa teoria do seu principal objeto de estudo: a consciência; a terceira, não ter considerado essa teoria na perspectiva evolutiva que é dada por Wallon. Lucien Febvre, ao fazer essas três subtrações, transforma a teoria da emoção numa ideologia.

41

Lucien Febvre ao apropriar-se de forma desvirtuada da teoria da

personalidade e da emoção, de Henri Wallon, subtrai desta o materialismo dialético,

conduzindo-a ao encontro da psicologia coletiva fundada e respaldada na etologia

coletiva de Henri Berr, cujo conceito de raça, uma vez expropriado de seu teor

genético, serve de fundamento, fazendo emergir a idéia de nacionalidade. Cito

Stieltjes:

Berr consegue dessa maneira transformá-lo, para o uso da sua psicologia coletiva, num conceito de caráter e, ao transferir os princípios de unidade e de continuidade desse conceito para o plano coletivo, encarna-o na idéia de nacionalidade, esta entendida como manifestação de uma sensibilidade coletiva. A psicologia coletiva de Berr torna-se mastro de bandeira de uma ideologia nacionalista que vai permear sua concepção de história.

42

Portanto, ao dissociar a teoria da emoção e da personalidade do materialismo

dialético, “Lucien Febvre abre-lhes o caminho que conduz ao mesmo lugar: a estreita

terra da ideologia nacionalista”.43 Veremos, mais a frente, quando analisarmos o livro

Honra e Pátria, de Febvre, transcrição de dois cursos ministrados pelo autor, durante

os anos de 1945, 1946 e 1947, onde tenta entender as razões da divisão da nação

francesa, pois enquanto uns morrem para defender a pátria, outros simplesmente

aderem ao nazismo de Hitler. Veremos que Febvre faz apelos eloqüentes ao

despertar do caráter, da honra e do nacionalismo francês.

Stieltjes mostra-nos que Lucien Febvre monta sua ideologia nacionalista

articulado na relação entre psicologia e história, ao analisar a seqüência de artigos

sobre esse problema, publicados em Combats pour l‟historie, este autor disseca, em

sua tese de doutorado, a forma como se constitui tal edificação ideológica.

Em Combats pour l‟historie, no capítulo Psicologia e fisiologia nacionais – os

franceses vistos por André Sigfried ou por Sieburg, onde, Febvre faz aflorar seu

nacionalismo, ao discutir os fundamentos da nacionalidade alemã e por outro lado, a

nacionalidade francesa. Cito Stieltjes, que afirma ser esse capítulo:

Uma discussão a respeito daquilo que fundamenta e constitui, de um lado, o caráter da nacionalidade alemã e, de outro, a nacionalidade francesa. A conclusão é que a

41

Stieltjes, p. 152. 42

Stieltjes, p. 153. 43

Idem.

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16

nacionalidade alemã constitui-se e caracteriza-se pela cultura e pela especificidade do sangue (raça), enquanto à francesa por ser portadora do espírito de uma civilização.

44

Febvre é um ideólogo do nacionalismo francês, a apologia a cultura, ao

espírito, a civilização francesa, são bem desenvolvidas em Michelet e a Renascença

e em Honra e Pátria, dois livros que constituem de cursos ministrados pelo autor,

conforme já explicitamos. Entretanto, vejamos como isto aparece em Psicologia e

fisiologia nacionais – Os franceses vistos por André Siegfried ou por Sieburg? Cito

Febvre:

(...) – é um fato „ser francês, não é pertencer a uma raça‟, mas adquirir uma fé: a fé na França, esta comunidade que não é fundamentada no sangue, mas no espírito (grifo de Stieltjes). De tal forma que atualmente „muitos Negros, Árabes, Indochineses são Franceses autênticos – que se sentem depositários da idéia francesa de civilização‟. (grifo de Stieltjes). Tanto que na França não há nenhuma hostilidade contra o estrangeiro, apenas, talvez, só se depois de ter chegado com seu país ele o leva de volta, depois de sua estadia, tal qual ele o trouxe.

45

Resta saber, qual foi a pesquisa que fez Lucien Febvre para fazer afirmações

fortes e taxativas como estas da última citação. Febvre comportou-se como

historiador ou ideólogo. Febvre desenvolve uma “nebulosa noção de sensibilidade

coletiva, que é um marco da idéia de mentalidade”.46 É na apropriação e

incorporação da teoria da emoção de Wallon, que Febvre “constrói uma das

principais categorias que constituem sua psicologia da história: o conceito de

sensibilidade. Febvre define a sensibilidade como sendo a vida afetiva e suas

manifestações”.47 Portanto, Febvre reduz a teoria da personalidade e da emoção

de Wallon a seus interesses ideológicos, esvaziando a teoria da emoção de suas

categorias materialistas dialéticas. Cito Stieltjes:

Ao subtrair a formação da consciência da concepção walloniana da vida mental, Febvre adultera essa concepção para transformá-la numa noção abstrata de mentalidade capaz de servir aos objetivos de uma historiografia de cunho culturalista.

48

O nacionalismo de Lucien Febvre

Stieltjes mostra-nos como Febvre em seu livro Michelet e a Renascença,

transcrição de um curso ministrado por este nos anos de 1942 e 1943, publicado

44

Idem. 45

Febvre, Lucien. Psycologie et physiologie nationales, Les Français vus por André Siegfried ou por Sieburg? In: Combats pour l‟histoire. Op. cit. p. 242 e 243. Apud: Stieltjes, p. 153. 46

Stieltjes, p. 154. 47

Idem. 48

Stieltjes, p. 160.

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17

após sua morte, tem como fio condutor de suas aulas o problema do caráter

nacional francês. As aulas de Febvre são contraditórias, pois escondem o objetivo

principal: a relação entre história e política. Cito Stieltjes:

Febvre utilizou de forma emblemática as figuras de Décluse, Stendhal e, particularmente, Michelet, como daqueles que, ao fazerem história, souberam lançar um apelo aos franceses para reconquistarem seu caráter, sua energia, sua paixão, pondo-os a serviço do renascimento do espírito nacional francês e da nação que o abriga.

49

Conforme já adiantamos, veremos mais a frente em Honra e Pátria que

Febvre ao analisar a evolução histórica dos conceitos de honra, pátria e nação,

elabora uma concepção de formação do espírito nacional, na perspectiva de uma

história das mentalidades. Febvre busca as raízes da divisão da sociedade francesa

desde a Revolução de 1789 até o contexto da Segunda Guerra Mundial. O

interessante é que em momento algum essa divisão aparece como uma divisão de

classes sociais, fundada nos conflitos e antagonismos de classe.

Nesse sentido, posiciona-se sobre a Revolução Francesa, afirmando ter sido

o momento em que a Nação tomou para si o poder. Cito Febvre:

Danton, Robespierre – substitutos irrisórios e momentâneos do rei? Não. Se eles governaram a França num dado momento, não foi com certeza como usurpadores de um poder tradicional. Foi como mandatários de um poder novo, cuja autoridade era legitimada pela teoria do direito popular,(...). Digamos a palavra certa: a revolução foi a nação tomando o poder na França.

50

Febvre ao abordar a Revolução, em seu curso sobre Michele e a

Renascença, preocupa-se em abordar a nação, dando enfoque a palavra. Ou seja,

há em Febvre uma preocupação central com a história da palavra, com a evolução

do conceito. Cito Febvre:

A nação: a palavra revolucionária por excelência. Palavra de ressonâncias profundas, cuja história, que seria tão curiosa, não se fez. Uma história que nasce como, por assim dizer, por acaso, no fim do reinado de Luís XIV, (...). Foi a nação que, em 1789, diante da queda dos reis, do desmoronamento dos tronos, assumiu a qualidade de sujeito da História – e a guardou. Com todas as conseqüências que se possam imaginar para a própria História.

51

A nação toma o poder para tornar-se o novo sujeito histórico. Ora, nada mais

romântico e idealista do que isto. É como se a nação fosse extremamente

homogênea e portadora de interesses comuns a todos os seus membros? Não há,

nessa concepção, espaço para as divergências, os conflitos e as contradições de

49

Stieltejs, p. 161. 50

Febvre, L. Michelet e a Renascença. São Paulo: Página Aberta, 1994, p. 86. grifo nosso. 51

Idem.

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18

interesses. Caberia perguntar a Febvre a qual nação pertence os contra-

revolucionários que restauraram a monarquia em 1815?

Febvre critica a monarquia, afirmando ser absurdo a estrutura social dos três

estados e a máxima da trindade “uma fé – um rei – uma lei” que legitimava o sistema

monárquico. Condenando a fantasia individual dos destinos monárquicos levanta-se

a nação cuja “vida estava em movimento, suas perpétuas transformações, suas

variações de forma, de volume, de densidade”.52 Diz Febvre que a nação não se faz

com quereres individuais, pois participa da vida das espécies, assim como

teorizaram os precursores Bonnet, Diderot, Goethe e Buffon. Cito Febvre: “A nação,

como a espécie, parece obedecer a um impulso que vem de dentro e põe-se a

caminhar como a espécie ereto diante dela, no caminho do progresso”.53

Febvre aborda a importância da educação para a formação da nacionalidade,

na obra de Michelet, sobretudo em sua Histoire de France, diz: “de fato, quando

Michelet faz a história, é para a ação.”54 Febvre apóia-se em Gabriel Monod, para

quem, nada do que não fosse ação e vida tocava a Michelet, para quem em

educação não basta instruir, pois isto é secundário, sendo prioritário emocionar e

formar o caráter. Cito Febvre:

o importante, aos seus olhos (de Michelet), emocionar o coração e formar o caráter, e o estudo e o ensino da história eram para ele um meio de perpetuar, de renovar, de tornar mais intensa a vida nacional e de agir sobre o futuro pelo passado.

55

Febvre demonstra um Michelet ardorosamente apaixonado pela França, diz:

“A França, ele a ama apaixonadamente.” E Michelet a amou tanto, que a tratou, em

sua Histoire de France, como pessoa adorada, pois “Traçou-lhe, em 1833, (...) um

retrato comovido, entusiástico, amoroso, o retrato de uma pessoa adorada”.56

Febvre descreve-nos um Michelet, historiador incondicionalmente apaixonado pela

França. Um homem cuja paixão não tinha limites, a ponto de morrer pela Pátria

amada quando da derrota para os prussianos em 1870. Cito Febvre:

O amor pela França, essa foi, durante toda a sua vida, a grande religião de Michelet. Não é muito demasiado dizer que ele morreu dos golpes que a atingiram em 1870. Mas esta religião, ele pretendia servi-la honestamente, na verdade, e nunca mentira. E foi para servi-la que se fez historiador.

57

52

Idem, p. 87. 53

Febvre,. Op cit, p. 87. 54

Idem, p. 141. 55

Idem, p. 141. 56

Idem. 57

Idem. p. 141. grifo nosso.

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19

Febvre em Honra e Pátria, após afirmar que se fosse moralista teria como

preocupação a definição do sentimento de honra ou de pátria, porém, diz que pelo

contrário, como era historiador, exegeta da mudança, sua preocupação não era com

a definição das palavras. Cito Febvre:

na nossa ótica, nada do que é matéria de história escapa às exigências do tempo que tudo desloca; do meio que se modifica sem trégua; do ser humano que jamais permanece idêntico a si mesmo: quando dizemos Nação, esta tomada de consciência de um passado tradicional por grupos reunidos, por vontade ou pela força, em um mesmo quadro e sofrendo a ação cotidiana da vida em comum; quando dizemos Estado, esta armadura, esta mecânica estranha a qualquer exigência moral, indiferente a qualquer tomada de consciência sentimental, a tudo que não serve unicamente para o seu funcionamento, suas conquistas técnicas, seus fins que justificam os meios; quando inserimos, talvez, entre a Nação e o Estado o ponto oscilante da Nacionalidade, desta Nacionalidade que faz de cada um de nós, franceses nascidos na França de pais franceses, um portador de esperanças comuns a todos os franceses, ligados na felicidade e na infelicidade à sorte comum de sua coletividade; e ainda quando pronunciamos a palavra Pátria e esta palavra evoca em nós o objeto de uma das múltiplas formas do amor, ou então, quando referimo-nos ao sentimento sempre vivo da Honra, tal como vive em nossos corações no meio do século XX, quando acreditamos estar certos sobre o sentido preciso destas noções aparentadas, mas tão fortemente distintas...”

58

Temos então um Febvre que se aproxima do materialismo dialético ao fazer

afirmações como “nada do que é matéria de história escapa às exigências do tempo

que tudo desloca; do meio que se modifica sem trégua; do ser humano que jamais

permanece idêntico.” Parece até querer resgatar Heráclito. Porém, no mesmo

parágrafo, o autor resvala pelo caminho do nacionalismo romântico, criando inclusive

uma espécie de mediação extremamente forjada entre Nação e Estado, através do

“ponto oscilante da Nacionalidade”.

Febvre esboça uma análise teórica acerca das palavras Nação, Pátria e

Honra, afirmando que são noções que nunca “pararam de mudar no curso dos

tempos, no interior de diversas civilizações e que ainda hão de mudar, que já estão

mudando diante dos nossos olhos (...) teremos que modificar nossa visão de mundo

ou estabelecer-nos no absurdo.”59 Porém, avesso a teoria interrompe rapidamente a

análise, fugindo abruptamente do problema com a alegação de que a definição

teórica não traz grande ajuda e contribuições para os historiadores. Cito Febvre:

O que vale para nós, é a história da palavra, e feita com precaução. Saber se tal palavra é antiga na língua ou que, ao contrário, ela só surgiu recentemente, que nossos pais ou nossos avós no máximo, engendraram-na para seu uso, eis o que não nos é, com certeza, indiferente, e em várias condições, é bom lembrá-lo.

60

58

Febvre, L. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. 1988. p. 28-29. 59

Febvre, L. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1998. p. 29. 60

Idem.

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20

Febvre desenvolve uma espécie de filologia das palavras. Nesse sentido

apresenta uma evolução das palavras, mostrando, por exemplo, que foram

pronunciadas, escritas, transmitidas há alguns séculos, mas que foram só nos

séculos recentes, segunda metade do século XVIII, no caso da palavra Nação, que

assumiu um valor, uma eficácia. Cito Febvre:

Em francês a palavra Nação, palavra calcada no latim, „Natio‟, e que lhe toma emprestado ao mesmo tempo tempo forma e fundo. E foi pronunciada, escrita, transmitida muito tempo antes da época em que, na segunda metade do século XVIII, assumiu bruscamente um valor, uma eficácia à qual retornaremos mais tarde e que permitiu que datasse uma época à qual, por seu lado, devia seu alcance, seu progresso e sua fama. Eis uma outra palavra, Pátria, também calcada no latim „Patria‟. Mas foi somente antes do século XVIII que este vocábulo douto alcançou sua extensão e seu sentido verdadeiro: refiro-me àquele que lhe damos ainda hoje, ao final de uma longa evolução. Foi então que ele nasceu para a História, embora tenha nascido dois séculos antes para a filologia.

61

A concepção de história de Febvre, calcada na ideologia das mentalidades

não lhe permite dizer que isto aconteceu no contexto de transição do feudalismo

para o capitalismo, ou que isto foi obra das revoluções burguesas.

Para Febvre as palavras Nação, Pátria, formam um casal, um belo exemplo

que conferem uma à outra, uma espécie de virulência particular. Essas palavras,

juntamente com outras de igual teor e ressonância, formam uma espécie de

associação, ou, se quisermos, uma família. De tal forma, que essas palavras não

devem ser analisadas e examinadas isoladamente, “esta primeiro, depois outra, e

ainda esta outra”, pois, elas só tem sentido quando articuladas entre si. Portanto,

para Febvre: “Uma palavra não tem valor para o historiador isolada das outras

palavras que atrai e que a atraem ou que repele e que a repelem.”62

Febvre formula a pergunta por onde começar a pesquisa sobre Honra e

Pátria? E, responde que esta deve remontar aos “tempos sem história”, muito antes

do sentimento de Nação, da consciência patriótica e nacional aparecer na França.

Cito Febvre:

Neste pedaço da Europa que um trabalho tantas vezes milenar transformou na França que amamos, é tentador perguntar-se: depois de quanto tempo existem homens, (...) Depois de quanto tempo, nesta Gália que durante muito tempo conheceu, ao que tudo indica, uma civilização dos bosques, existem homens que se comovem com os cantos dos pássaros ao despertar e com surdos rumores que, nos corações, provocam o frêmito do invisível?

63

61

Idem, p. 29-30. 62

Idem, p. 30. 63

Idem, p. 30-31.

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Febvre responde a suas indagações com longas descrições do meio rural,

fala dos Pântanos, das terras saturadas de água, dos comedores de pão, dos trigais

fecundos, trigais devastados, do apego daqueles que trabalham os terrenos sem

obstáculos e da inveja dos vizinhos que viviam além dos cinturões dos bosques e

que em nada facilitavam-lhes a vida. Dessa forma, acredita Febvre, deve ter nascido

o apego e o sentimento dos homens antigos àquilo que chamamos de Pátria. Cito

Febvre:

Assim devem ter nascido, em todo caso, no coração dos homens, pastores ou „mateiro‟, camponeses ou montanheses, „filhos das planícies‟ e „filhos da montanha‟ (...) assim nasceram lentamente apegos profundos, frutos de um tipo de vida herdado e transmitido para a própria vida fisiológica, para o próprio organismo; apegos que tomavam emprestado de seus objetos qualquer coisa de elementar e de animal que nos leva a pronunciar a palavra pátria: a etimologia nos autoriza, sem dúvida; mas esta grande palavra pode nos perder, induzir-nos ao anacronismo.

64

Pois, Febvre afirma que os historiadores tendem a colocarem em marcha, a

partir daí, a mecânica mental, fazendo-as fundar as primeiras pátrias, fazendo-as

ligarem-se, federarem-se, dando origem, desta forma a povoações, que unindo-se

umas às outras, afirmam sentimentos que reforçam-se batendo-se por este ou

aquele chefe. Afirma então, Febvre que esse é um mundo em movimento e

inexplicável, mas plausíveis se os historiadores dotarem os ancestrais de uma

mentalidade semelhante à dos franceses do século XX. Entretanto, questiona

Febvre se teriam, os historiadores, o direito de dar a esses homens do passado tal

presente?

Desta forma, esse fundador dos Annales, busca na psicologia, na

mentalidade, no sentimento dos antigos habitantes da Gália a origem da Pátria

francesa. Para ele a origem da França pode ser encontrada nos habitantes da Gália

de 2000 anos passados. Questiona por que no ano 54 d. C. esses gauleses

reuniram-se em assembléia e juraram obedecer ao sinal de seu chefe na revolta

contra os romanos? Vercingetórix de Arverne, o chefe a quem todos entregaram a

fidelidade, o que se passava por sua cabeça? Interroga Febvre, que afirma que em

tempos de sua juventude, juntamente com Camille Jullian empregavam toda uma

psicologia que acreditavam ser eterna na busca da compreensão de seus

“ancestrais, os gauleses”.

64

Idem, p. 31.

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22

O problema que se coloca ao historiador, nesse caso, é o das fontes, pois dos

gauleses nada se sabe através dos gauleses. Cito Febvre:

nada de suas idéias, de seus sentimentos, de suas concepções. Sabemos apenas o que nos diz César, este romano, este inimigo que, sem dúvida, recebia informações importantes de seu serviço de inteligência.

65

Porém, do ponto de vista psicológico esses documentos não servem para

construir uma identidade de Vercingetórix, pois revelam um sentimento inadequado

dos gauleses, porque calcado nos sentimentos romanos, nesse sentido afirma

Febvre que “é preciso uma certa candura na ousadia para buscar em César, ou em

Dion Cassius, uma explicação de Vercingetórix baseada na verdade.”66 Ou seja, a

versão de César e de seus historiadores é contaminada pela ideologia romana, pois

não apresentam os grandes feitos desse herói gaulês, pelo contrário, apresentam

um Vercingetórix humilhado ajoelhando-se diante de César e seu tribunal. Febvre

afirma que César esqueceu de contar que “injuriou baixa e maldosamente”

Vercingetórix. Portanto, César não teve o menor respeito pelo heroísmo do inimigo,

agiu sem a menor preocupação de cavalheirismo em relação ao mais fraco.

Portanto, é da Gália que Febvre parte para construir uma visão histórica das

origens da Pátria francesa. Cito Febvre:

analisemos „deveras‟ o Vercingetórix de Alésia para definir o sentimento da Pátria entre os gauleses ou da Honra entre os conquistadores. Ao término deste esforço, saberemos muitas coisas, não sobre os gauleses, mas sobre nós mesmos.

67

Febvre trata da França sempre no sentido de sentimento, de emoção, de

amor. Nesse sentido, afirma que Michelet ao dizer sobre a França: “Antes de todos,

eu a vi como uma pessoa”, errou, diz Febvre, pois Michelet não tem razão, pois

muito antes dele outros a viram como uma realidade e a ela deram um nome. Cito

Febvre:

O primeiro que a viu como pessoa, como uma realidade foi aquele que a nomeou, que lhe impôs um nome; mas devemos, no entanto, dizer aqueles, pois trata-se de um coletivo.

68

Na seqüência, o nacionalismo de Febvre salta à vista, pois aflora todo

sentimento e sensibilidade deste em relação à França, que assim como em Michelet

recebe o tratamento de pessoa. Cito Febvre:

65 Idem, p. 32. 66 Idem, p. 32-33 67 Idem, p 33. 68

Idem, p. 47.

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Há o Reino, a Coroa, a Monarquia, o Estado, essas abstrações. Há a França, esta pessoa, que vive uma vida de pessoa porque recebeu – e desde que recebeu – um nome de pessoa, um nome próprio. “Quia” esse nome pouco a pouco criou o ser, “quia” a palavra exteriorizada torna-se finalmente um ser exterior ao homem, transcendendo ao homem, um ser em cuja vida eu, francês, confundo minha própria vida, um ser que tem o poder de pedir, a mim, francês, minha própria vida e que a pede certas vezes(...).

69

Febvre rechaça o papel da teoria, pois posiciona sempre avesso a esta, para

a compreensão dos conceitos de Estado, Pátria e Nação. Nesse sentido, afirma: o

historiador saberia “que suas definições teria que valer para todos os tempos,

épocas, civilizações. Pois o tempo tudo desloca, o meio tudo muda e o homem não é

jamais o mesmo”.70

Impressiona-nos os termos usados por Febvre, pois são reveladores da

distorção que este comete ao apropriar-se e incorporar a teoria da personalidade e

da emoção de Wallon. Cito Febvre:

(...), quando dizemos pátria, isto é, quando nos referimos a um sentimento, quando evocamos através dessa palavra o objeto de uma das múltiplas formas de amor, que participa desses sentimentos elementares que jogam os homens nos braços de uma mulher, que ligam o filho à mãe e, através da mãe, às crianças que dela saíram; quando dizemos nação, isto é, quando evocamos a tomada de consciência de grupos reunidos em assembléia (...) quando evocamos esta tomada de consciência coletiva de um passado tradicional e de um futuro que se torna claro à luz do passado que é, ele mesmo, colorido pelas luzes do presente; quando dizemos Estado (...).

71

Febvre entende Estado como uma mecânica que é indiferente, enrijecida,

compacta e estranha a qualquer tomada de consciência. O Estado é indiferente a

valores e exigência morais, pois só interessa aquilo que serve a seu funcionamento,

aquilo que garante seu sucesso técnico. Diz Febvre que ao Estado, seus “fins

justificam os meios”. Portanto, o Estado só visa através de seu realismo o sucesso.

Esta concepção não deixa de ser reveladora da aversão que os Annales tinham da

história política.

Febvre faz emergir o conceito dito instável e oscilante de nacionalidade, como

uma espécie de mediação e aproximação entre Nação e Estado. Impossível não

lembrarmos Durkheim e sua noção de fato social ao lermos a definição de

nacionalidade. Segundo Febvre a nacionalidade faz do indivíduo nascido na França,

69

Idem 70

Idem, p. 54. 71

Nota: Aqui Febvre repete a seguinte passagem “(...) esta armadura, esta máquina concebida, forjada tendo em vista resultados que, em parte obtém pela força ou que, em todo caso impõe pela força, força material, força policial, a força armada mais repressora, gendarmes, policiais, militares, juízes”. Ver citação na nota 55.

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filho de pai e mãe franceses vincular-se à sorte comum de todos os franceses, na

alegria, na dor, enfim, no sofrimento. Entretanto, Pátria, Nação, Estado são

realidades substanciais que os franceses por mais que cheguem a acordo sobre

estas noções não conseguem apreender. Ora, questionamos: seriam estas

realidades inatingíveis, possuem algum parentesco com a Santíssima Trindade dos

cristãos? Cito Febvre:

quando colocamos entre Nação e Estado o ponto instável da nacionalidade, no sentido administrativo e jurídico, dessa nacionalidade que faz de mim, automaticamente, sem que eu precise pedi-lo e sem que eu possa recusá-lo um “quia” nascido na França de pais que têm a qualidade de franceses e, portanto, associado através de meu nascimento, na alegria e na dor, no desastre ou no triunfo, à sorte comum de todos os franceses; quando nós mesmos chegamos a um acordo sobre essas noções, o que foi que conseguimos fazer? Apreendemos nelas próprias essas realidades substanciais: Pátria, Nação, Estado? Certamente não,(...).

72

Para Febvre Estado, Nação, País são palavras que designam agrupamentos

humanos. Estado é uma palavra do século XVI e XVII, Nação adquire valor e

eficácia no século XVIII. Já país é uma palavra neutra, antiga, é uma palavra de

pouca importância, para se usar apenas quando quer se evitar a palavra Nação. Os

pressupostos teóricos e ideológicos de Febvre não permitem dizer que o valor, a

eficácia e o significado do conceito Nação, são partes do processo de racionalização

burguesa do mundo, das relações sociais. Portanto, são conceitos produzidos

historicamente por uma classe social, que era naquele contexto, revolucionária. Cito

Febvre:

Estado, [é] uma palavra recente. Mas seu sentido político [é] moderno. [É uma] palavra do século XVI, [uma] palavra do século XVII. Nação, [é uma] palavra ainda mais recente, [uma] palavra que só adquire seu valor, seu sentido pleno e sua eficácia no século XVIII. Diante delas, País é uma velha palavra neutra, [uma] velha palavra de sempre, que vai ser traduzida pelos doutos como “Pátria”: [ver] texto no processo de Joana d‟Arc; [uma palavra] usada para evitar, para quando se quer evitar pronunciar a palavra Nação (ou Pátria).

73

Febvre considera a palavra Pátria carregada de sentimentos, e afirma que por

formar um par com a palavra Nação, não pode ser estudada separadamente. Numa

posição bastante conservadora, diz mais, as palavras devem ser estudadas em

relação àquelas com que concordam e não em relação aquelas a que se opõem.

Portanto, não há de se preocupar com os paradoxos, conflitos e contradições. Nesse

sentido, analisa a palavra Pátria em relação a Honra, também carregada de

72

Febvre, p. 54-55. Grifo nosso. 73

Febvre, p. 55-56.

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sentimentos e capaz de dar sentido as palavras Pátria e Nação. Segundo Febvre a

palavra Honra74 é muito antiga, derivada do latim, uma palavra medieval, que

exerceu um importante papel em toda a Idade Média, uma palavra pela qual os

homens da Idade Média expressavam seus sentimentos. A palavra Pátria75,

entretanto, é mais recente. Cito Febvre:

Pátria, [é uma] palavra muito mais recente, [uma] palavra de formação erudita, [uma] uma palavra do século XVI que só começou a assumir seu verdadeiro sentido lentamente junto às elites; que durante muito tempo manteve seu caráter de palavra para eruditos, uma palavra para [...]. e que só assumiu um sentido mais forte, mais rico, mais amplo no século XIX, apoiando-se sobre a realidade da nação.

76

Febvre ao analisar poemas do século XVI que tratam da Pátria, embriaga-se,

alucina-se e transforma-se em um romântico, num lírico nacionalista. Cito Febvre:

„Terra pátria‟: a terra dos ancestrais, a terra que os nutriu antes de nutrir os vivos. [É uma] palavra abstrata, uma palavra emprestada, uma palavra clássica, sem dúvida; mas que muito rapidamente encheu-se de substância humana, de substância pessoal, de substância vivida. [É essa] substância vivida que preenche a noção de pequena pátria, [é essa] substância vivida que preencheu a noção de grande pátria, que torna nostálgica sua evocação(...)

77

A ideologia da história das mentalidades que fundamenta a noção de

psicologia da história não poderia deixar de estar presente na concepção de Nação

de Febvre, pois para este a Nação é uma realidade psicológica. Cito Febvre:

(...) a Nação é uma realidade psicológica. A que responde ela? À noção de articulação. A Nação não é feita de indivíduos. [É] feita de grupos (famílias, profissões, escolas, igrejas) que unifica e subordina a tarefa comuns. Ela representa a transferência para uma comunidade mais vasta, dotada de um território próprio, o território nacional de simpatias estreitas que funcionam livremente no interior dos grupos elementares.

78

Febvre estabelece uma diferença fundamental acerca do Estado e da Nação.

Essa diferença se dá ao nível da consciência, pois não existe uma consciência

estatal, o que existe é uma consciência nacional. Cito Febvre:

„Nota‟: não existe consciência estatal. [Existe] uma consciência patriótica, [uma] consciência nacional que é feita em parte de história, em parte de ideal. A Nação é a tomada de consciência de uma história que age perpetuamente sobre um ideal, de um ideal que age perpetuamente sobre a história. A história vivida em comum determina a tomada de consciência. E esta tomada de consciência marca a representação da

74

Nota: Para Febvre “a honra [é] o resultado de uma pressão, aceita, do grupo, da coletividade sobre uma ou várias consciências individuais” (p. 65). 75

Nota: para Lucien Febvre “(...) Pátria, a palavra tem ressonâncias carnais e sentimentais profundas. Ela evoca a terra, os mortos; a terra, esse grande ossuário dos mortos” (p. 152). 76

Idem, p. 152. 77

p. 152-153. 78

p. 156.

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história, o sentido de história, o curso mesmo da história. A Nação [é] ao mesmo tempo [um] fato sofrido e [um] fato querido, de onde vem sua força (y).

79

Vemos então que para Lucien Febvre a Nação é a tomada de consciência de

uma história que ao agir perpetuamente sobre um ideal, que age perpetuamente

sobre a história. O posicionamento de Febvre, não poderia deixar de ser

extremamente abstrato e evasivo. Ora, o que é ideal? senão, um conceito que pode

vincular-se a sentimento e a emoção. Portanto, há em Febvre a construção de uma

ideologia nacionalista que justifica e legitima a França como Estado e como Nação.

O conceito chave, nesse caso, é o de nacionalidade, cujo princípio une o Estado à

Nação.

Conclusão

Analisar a ideologia nacionalista na L‟École des Annales, sobretudo em

Lucien Febvre, apreender algumas das categorias importantes desta escola e deste

historiador é o resultado a que chegamos no final deste trabalho.

Vimos como formou-se a ideologia da história das mentalidades, da psicologia

da história, com a aproximação e mesclagem que faz Febvre das teorias de Henri

Berr e as de Henri Wallon, fazendo um completo esvaziamento categorial da teoria

da personalidade e da emoção deste último. Febvre faz um desvio que leva a um

desvirtuamento das concepções originais de Henri Wallon, expropriando–a das

concepções materialistas dialéticas.

Procuramos demonstrar que em Michelet e a Renascença e em Honra e

Pátria, Febvre expõe toda sua vertente nacionalista, buscando construir uma

sensibilidade e uma adesão à causa da França. O nacionalismo de Febvre é

romântico e idealista, pois entende o nacionalismo francês como dotado de um

espírito de cultura e de civilização. Trata a França como uma pessoa, portadora de

sensibilidade e de emoções.

REFERÊNCIAS

79

p. 157.

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BERR, Henri. La synthese em histoire: sans rapport avec la synthese generale. 2. ed. Paris: Editi Albim Michel, 1953. DOSSE, F. A história em migalhas: dos Annales à nova história. São Paulo: Ensaio, 1992. FEBVRE, L. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. FEBVRE, L. In memorian de Marc Bloch. Lembranças de uma grande história. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Febvre. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1978. HOBSBAWM, E. Era dos extremos: O breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. STIELTJES, Cláudio. A ironia em a utopia de Thomas More ideologia e história. São Paulo: USP, 2005, tese de doutorado. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2006_doc/claudiostieltjes.pdf.