46

A Ilha Misteriosa

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Ilha Misteriosa
Page 2: A Ilha Misteriosa

1ª Edição 2001

Page 3: A Ilha Misteriosa

EXPEDIENTE

ISBN: 85-339-0102-X

EDITORA AFILIADA

© Copyright - Todos os direitos reservados à

Al. Afonso Schmidt, 879Santa Terezinha - São Paulo - SP

CEP 02450-001www.rideel.com.br

e-mail: [email protected]

Proibida qualquer reprodução, seja mecânicaou eletrônica, total ou parcial, sem prévia

permissão por escrito do editor.

EDITOR

EDITORA ASSISTENTE

ASSISTENTE EDITORIAL

ADAPTAÇÃO

ILUSTRAÇÕES DE CAPA

REVISÃO

NOTAS DE RODAPÉ

ROTEIRO DE LEITURA

EDIÇÃO DE ARTE

DIAGRAMAÇÃO

CAPA

Italo AmadioKatia F. AmadioEdna Emiko NomuraMargareth FioriniSusy Braz ReijadoCélia Regina / Lisabeth Bansi /Rita de Cássia MachadoMônica HamadaAna Tereza Pinto de OliveiraHulda MeloCristina Ibra / Wagner G. da SilvaJairo Souza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Verne, Jules, 1828-1905.

A ilha misteriosa: texto condensado/ Júlio Verne; adaptação de Margareth

Fiorini; ilustração Suzy Braz Reijado. — São Paulo: Rideel, 2001. — (Coleção

Júlio Verne)

Inclui roteiro de leitura.

1. Literatura infanto-juvenil I. Fiorini, Margareth. II. Reijado, Suzy Braz. III.

Título. IV. Série.

01-0792 CDD-028.5

Índice para catálogo sistemático:

1. Literatura infanto-juvenil 028.5

2. Literatura juvenil 028.5

Page 4: A Ilha Misteriosa

Prefácio

Precursor da ficção-científica, Júlio Verne revela suaimportância pela maneira como compreendeu o mundoem que vivia, a ponto de antever várias das descober-tas científicas que se concretizariam somente no séculoXX, como o submarino ou a viagem à lua.

Suas aventuras entretêm adolescentes de todo omundo há gerações, levando seus leitores à viagensespetaculares.

Seu realismo advém de sua estrutura baseada sobreseu conhecimento científico e sobre sua habilidade emconstruir personagens singulares.

Ler Júlio Verne é vislumbrar a perplexidade dohomem do século XIX diante do mundo que se descor-tinava à sua frente, é viver a emoção das novas desco-bertas na companhia de homens intrépidos numa novaexpedição rumo ao desconhecido, é, finalmente, conhe-cer todos os recônditos da Terra.

Esta coleção traz as obras deste notável autor comtexto adaptado de forma a agilizar a leitura sem prejudi-car o desenvolvimento de suas narrativas.

Ao rodapé das páginas foi incluído um glossário emque também constam fatos históricos e coordenadasgeográficas para facilitar a compreensão dos textos e sualocalização espaço-temporal.

Além disso, um Roteiro de Leitura que, preenchido,resultará num pequeno resumo da obra.

Esperamos, desta forma, resgatar a obra deste autor,difundindo-o entre todos os brasileiros.

O EDITOR

Page 5: A Ilha Misteriosa

7

Cyrus Smith era oficial do Estado Maior naGuerra da Secessão1. Essa guerra tevelugar nos Estados Unidos da América do

Norte, durante o governo de Abraham Lincoln, pelacausa da libertação dos escravos. Além de oficial,Cyrus era um engenheiro e homem de ciência de pri-meira grandeza. Era um homem de idéias e de ação;assim, seus atos se realizavam sem esforço. Tinha umcaráter forte e a persistência dos que confrontam oazar. Apesar de tudo, fora feito prisioneiro na batalhade Richmond2.

No mesmo dia, um repórter do New York Herald,Gedeon Spilett, também caíra prisioneiro. Spilett era otipo do repórter cheio de idéias, soldado, artista, heróida curiosidade e da informação, que empunhava umlápis numa mão e uma arma na outra. Cyrus e Spiletttornaram-se amigos e, em pouco tempo, só tinhamum objetivo em mente: fugir de Richmond para seunirem ao exército do General Grant!

Eles gozavam de certa liberdade, mas a cidadeestava toda protegida pelas tropas sulistas, de formaque os projetos de fuga pareciam impossíveis. Naque-les dias, um antigo servo de Cyrus conseguira alcan-

1 Guerra de Secessão:(1861-1865) conflitoarmado entre os estados do Sul (Confederação) e osdo Norte (União) dosEUA, e que resultouno fim da escravidãoem todo o territórioamericano.

2 Batalha de Richmond: uma das tentativas das tropasda União de conquistar a capitalconfederada. Em abrilde 1865, o GeneralGrant derruba a cidade e a incendeia,pondo fim à guerracivil e dando vitória à União.

Page 6: A Ilha Misteriosa

8

çar a cidade cercada, apesar da vigilância. Era Nabu-codonosor, apelidado por Nab, um antigo escravolibertado da propriedade do engenheiro, que lhevotara3 amizade e dedicação eternas. Com prazer, Nabsacrificaria sua própria vida pelo engenheiro, se pre-ciso fosse.

Um fato curioso veio mudar o rumo de suas vidas:havia sido construído um balão para conduzir cincopessoas para campos de batalha longínquos. Contu-do, no dia do embarque houve um furacão, que tor-nou impossível a partida. E o balão ficou na grandepraça de Richmond, à espera de melhor tempo. Maseste só piorava... Foi quando um marinheiro chamadoPencroff propôs a Cyrus que se utilizassem do balãopara a fuga.

— Mas não estou só — disse o engenheiro. —Tenho Spilett e Nab comigo.

— Ótimo — disse Pencroff. — Meu amigo HarbertBrow e eu somos dois; com vocês três, totalizamoscinco... O balão foi feito para seis.

A noite veio. Estava escuro e um denso nevoeiro osimpedia de enxergar um palmo à frente do nariz. Asruas estavam desertas, pois, com semelhante tempo,ninguém julgava ser necessário vigiar a praça ou obalão. Tudo favorecia a fuga dos prisioneiros, mas umahorrível viagem os esperava, naquelas condições.

Os cinco encontraram-se na barquinha do balão,em silêncio. No momento de dar ordem para subir,Cyrus viu, surpreso, seu cão Top pular no balão. Quismandá-lo descer, mas Pencroff dissuadiu-o4, dizendo

Coleção Júlio Verne

3 Votar: dedicar; conceder.

4 Dissuadir:desaconselhar; despersuadir.

Page 7: A Ilha Misteriosa

9

que ainda cabia mais um. Assim fugiram de Rich-mond e, só cinco dias depois, o denso nevoeiro dis-sipou-se e eles puderam ver o mar imenso por baixodo balão. Não tinham pontos de referência, visto que,devido ao furacão, que destruíra grandes áreas naAmérica, Ásia e Europa, em nove dias do mês demarço de 1865, o balão se deslocara muito pelos ven-tos horríveis. O balão, na verdade, parecia um jogue-te5 no meio da tempestade, e eles ficaram o tempotodo sem saber quando era dia ou quando era noite.Agora, que podiam avistar o mar, nem imaginavamonde estavam...

O balão começou a perder altura. Desesperados,os fugitivos começaram a jogar fora tudo o que fossepeso, inclusive coisas úteis e alimentos. Mas o gásescoava rapidamente, o que lhes causava verdadeiropânico, ao ver o mar lá embaixo com ondas imensase violentas. Nenhuma ilha ou continente. Só o mar —eterno, límpido6, azul e infinito.

Conforme jogavam peso do balão ao mar, elesubia um pouco, mas logo voltava a cair, já que seuproblema era o gás que fugia irremediavelmente.

Quando os fugitivos já tinham feito tudo o queera possível para evitar a tragédia e esperavam pelaajuda divina, Top latiu: parecia ver alguma coisa.Era um pedaço de terra! Abençoada terra, ilha oucontinente, não importava. Habitada ou não; hospi-taleira ou selvagem. Agora todos se concentravamno desejo de atingir aquele ponto longínquo7 queestava a uma boa hora de viagem. O balão agüen-taria tanto? Pouco depois, o balão corria raso8 junto

A Ilha Misteriosa

5 Joguete: coisa que émovida sem oporresistência.

6 Límpido: nítido; transparente; sereno.

7 Longínquo: distante;afastado.

8 Corria raso: percorriaquase tocando.

Page 8: A Ilha Misteriosa

10

ao mar. Algumas ondas já os atingiam, quando esta-vam bem próximos à terra. Os passageiros tinhammeio corpo imerso na água e eram empurrados porondas furiosas, quando um golpe de mar impulsio-nou o balão, que subiu inesperadamente e os arre-messou à praia. Spillet, Pencroff, Harbert e Nab,além de Top, conseguiram salvar-se. Cyrus, o lídernatural do grupo, não chegou à praia e, quando ocão se apercebeu, voltou ao mar, em busca dodono. Os demais fugitivos fizeram o mesmo, esque-cendo o próprio cansaço.

Foram horas de busca e de desespero, mas nadaencontraram. Nem o corpo de Cyrus nem suas rou-pas. Porém, Nab não desistiu e continuou a nadarcontra a corrente, em maré alta. Os outros três regres-saram à praia, exaustos, e, deitados na areia, ficaramcontemplando a terra em que viveriam por longosanos. Harbert e Pencroff encontraram mariscos juntoaos rochedos e os comeram avidamente. Estavamesfomeados e os moluscos enganaram a fome, masnão a sede. Continuaram mata adentro e encontraramum riozinho, cuja nascente era fresca e potável.

Estavam alegres, descobrindo novas formas desobreviver, quando se puseram a procurar abrigo.Encontraram uns rochedos, em forma de grutas,aos quais deram o nome de “chaminés”, e começa-ram a transportar lenha, pelo rio, em uma jangadaimprovisada.

O jornalista havia saído em busca de Nab e Cyrus.Harbert confidenciava a Pencroff que esperava reverCyrus e que ele não era um homem comum para dei-

Coleção Júlio Verne

Page 9: A Ilha Misteriosa

11

xar-se morrer naquelas circunstâncias. O marinheironão tinha a mesma esperança, mas ficou calado paranão entristecer o rapaz.

Além de habitação e água, nossos amigos encon-traram ovos de pombas e os levaram às chaminés,juntamente com a lenha, que seria o combustível danova vida. Na chaminé, Pencroff quis acender umalareira, já que estava esfriando com o chegar da noite,mas não encontrou fósforos! E, assim, desistiu defazer ovos cozidos para o jantar e saiu com Harbertpara pegar mariscos nos rochedos.

Encontraram Nab e Spilett, que voltavam exaustosdas buscas inúteis. Nab tinha os olhos vermelhos dechorar. Harbert deu a eles um punhado de mariscos,que eles comeram alucinadamente. Ficaram caídos naareia, recompondo a energia e os ânimos. Quandopareciam descansados, Harbert convidou-os a segui-rem à chaminé. E, assim, foram dormir a primeiranoite de suas novas vidas.

No caminho, Harbert perguntou a Nab e a Spilettse não teriam consigo um fósforo. Por sorte, Spilettencontrou um palito no bolso. Era o único! Harbertnem teve coragem de acendê-lo, temendo quebrá-lo.Com emoção, Pencroff usou-o, acendendo umafogueira, que logo aqueceu o ambiente. Nas cinzasquentes, colocou uma dúzia de ovos para armazenaralimentos para o grupo.

Ao jantar, todos deram graças a Deus por estaremsalvos e lamentaram a ausência de Cyrus. Oraram,profundamente, para reencontrar o líder, vivo.

A Ilha Misteriosa

Page 10: A Ilha Misteriosa

12

Nab continuava na areia, vagando como umaalma penada, não obstante o frio.

No dia seguinte, os náufragos do ar fizeram o in-ventário9 do que possuíam: além das roupas do corpo,Spilett conservara o relógio, por esquecimento. Nãotinham um utensílio, nem uma arma ou canivete.Lamentavam a perda de Cyrus: ele vivo os tiraria daque-la enrascada! Do nada tiraria tudo o que precisassem...

Era necessário explorar as regiões vizinhas, mas ojornalista achou melhor adiarem a excursão, visto queprecisavam recuperar as forças. Nab aderiu com fer-vor10 à idéia, pois não queria abandonar a costa atéencontrar algum sinal de Cyrus.

De certa forma, tinham um abrigo; o fogo estavasendo conservado pela lenha sempre acesa; mariscos eovos havia em abundância. Portanto, o pior passara...

No dia seguinte, logo ao amanhecer, Nab voltoua nadar no local onde o engenheiro desaparecera.Harbert e Pencroff saíram para mais uma caçada e ojornalista ficou na chaminé, à espera de Nab, conser-vando o fogo da lareira.

Depois de muitas tentativas inúteis, os caçadoresconseguiram uma boa dezena de pássaros curucus11.O rapaz lamentava não ter Top por perto para ajudá-los. Desde que se pôs a procurar seu dono, Top nãotinha mais voltado. Talvez estivesse morto também.

Harbert e Pencroff voltaram ao anoitecer para aschaminés e encontraram o jornalista sentado na areia,fitando o mar. Ele olhava uma nuvem negra, que indi-cava um terrível vendaval para a noite. Os caçadores

Coleção Júlio Verne

9 Inventário: relação de bens.

10 Com fervor: comdedicação; com zelo.

11 Curucu: ave trepadora da América do Sul.

Page 11: A Ilha Misteriosa

13

conversavam com ele sobre Cyrus, quando o mari-nheiro disse que acreditava na morte do engenheiroe que, talvez, uma corrente forte tivesse arremessadoseu corpo para local distante. Spilett não concordoucom ele nessas palavras:

— Acho que o desaparecimento duplo de Cyruse Top tem um quê inexplicável, compreende? Respei-to sua opinião, mas ainda não estou certo...

Pencroff preparou dois tetrazes12 assados numespeto. O gosto era excelente, pois até temperos eleconseguira encontrar na floresta!

A ventania era terrível, enquanto os três devo-ravam o jantar. Estavam preocupados com Nab, queaté ali não tinha regressado. Pensaram em ir procurá-lo, mas seria perigoso, já que o nevoeiro os faria per-der a direção do abrigo. Com o cair da noite, a tem-pestade aumentara. Harbert conseguira dormir logo,assim como Pencroff, pois, como marinheiro, estavahabituado a conviver com violências naturais; só Spi-lett virava-se em sua cama de areia, insone. Estavapreocupado com a tormenta, com Nab, com a chami-né, que poderia desabar a qualquer momento, soter-rando-os. Um barulho chamou sua atenção: acordouPencroff para que ele ouvisse.

— É o vento — disse o marinheiro, voltando adormir.

— Não, não é o vento — disse Spilett. — É latidode cão, mesmo...

— Top! — gritou Harbert, que acordara naquelemomento com o barulho.

A Ilha Misteriosa

12 Tetraz: gênero deaves galináceas.

Page 12: A Ilha Misteriosa

14

Os três correram para a porta da chaminé. Ovento forte empurrava-os para dentro. Para consegui-rem se manter em pé, eles se seguravam nas rochas.No nevoeiro, nada viam: mar, terra, céu — tudo seconfundia com as trevas.

Pencroff, sabiamente, entrou na chaminé e voltoucom uma lenha acesa, como uma tocha. Assobiarame chamaram o cãozinho, que entrou pelo corredor.Harbert brincava com Top e admirava como ele nãoestava sujo nem cansado. Parecia incrível ele ter con-seguido encontrá-los no meio da tempestade!

— Se Top apareceu, Cyrus também aparecerá —falou Harbert.

Top, porém, estava agitado. Parecia querer con-duzi-los até o engenheiro. Os três resolveram segui-lo, confiando em seu instinto sábio. Caminharamalgumas horas, em meio às chuvas, e, quando ama-nhecia, Top seguiu o rumo das dunas. Lá, numa espé-cie de gruta, viram Nab ajoelhado perto de um corpoinerte. Era Cyrus.

— Vivo?! — perguntou Pencroff a Nab, que nãorespondeu.

Os três começaram a tentar salvar Cyrus, commassagens e água. Foi assim que o engenheiro deuum suspiro e pareceu querer balbuciar13 alguma coisa.O corpo de Cyrus não apresentava um só arranhão eas mãos estavam intactas. Era inexplicável!

Nab contou que vira pegadas humanas na areia eas seguira nas dunas, quando viu Top, que o levoupara junto do seu amo. Portanto, Nab já o encontrara

Coleção Júlio Verne

13 Balbuciar: articularimperfeitamente ecom hesitação.

Page 13: A Ilha Misteriosa

15

ali deitado e pensava que estivesse morto... Deraordens a Top para encontrar os outros, confiando noinstinto poderoso do cão.

O grupo improvisou uma padiola14 e, a caminhodas chaminés, Cyrus conversou com Spilett. Semi-consciente, o engenheiro perguntava se estavamnuma ilha ou num continente. Quando melhorou,Spilett quis saber como se salvara, mas ele não selembrava de nada e logo adormeceu, debilitado.

Como as chaminés ficavam longe e o grupo nãopodia correr com a padiola, chegaram ao anoitecer.Pencroff, então, ficou desolado com o que o mar fize-ra nas rochas: tudo estava revolvido e o fogo, apagado!

No dia seguinte, já recuperado, Cyrus riu muitosobre a história do fósforo único e tranqüilizou Pen-croff, dizendo-lhe que obteriam fogo, novamente. Oengenheiro estava preocupado em descobrir se esta-vam em uma ilha ou em um continente e propôs quetodos subissem na montanha mais elevada para des-cobrirem. Aquilo decidiria o rumo de suas vidas.

Harbert, Nab e Pencroff haviam saído para caçar.Desta vez, porém, com Top à frente, tudo era maisfácil. Aliás, foi ele que acabou caçando um cabié,que, assado, mais parecia um leitãozinho!

Quando os caçadores regressaram à chaminé, sur-preenderam-se vendo fumaça. Pencroff não acredita-va que veria fogo novamente!

Cyrus, então, explicou que, usando os vidrosdos relógios (dele e do jornalista), uniu-os comágua e greda15, conseguindo que os raios solares

A Ilha Misteriosa

14 Padiola: maca.15 Greda: variedade de

argila.

Page 14: A Ilha Misteriosa

16

provocassem combustão em musgos secos... Ànoite, comeram o cabié assado, cuja carne era exce-lente, sargaços16 e pinhões. A chaminé estava muitoaquecida e gostosa, já que Spilett e Cyrus durante odia repararam os estragos da chuva.

No dia seguinte, logo cedo, o grupo saiu parasubir a montanha. Levavam provisões de cabié paragarantir a refeição do dia e contavam caçar algumacoisa no caminho. A subida foi difícil, mas a caça,proveitosa. Armaram acampamento numa clareira edormiram ali. No dia seguinte, continuaram a escala-da. No alto, Cyrus exclamou tratar-se de uma ilha,não existindo arquipélagos ou continentes próximos.Era uma ilha desabitada do Pacífico.

A partir daí, eles começaram a projetar uma novavida, já que não teriam meios de sair de lá. Cyrus sen-tia-se capaz de arrancar daquela natureza selvagemtudo o que fosse necessário à sobrevivência dele e deseus companheiros. E isto todos sentiam: estandocom Cyrus, nada temiam.

A região era vulcânica, afirmou o engenheiro. Afauna17 e a flora18 eram ricas, mostrando bem a exu-berância19 do lugar.

— Eis aqui, amigos — disse Cyrus —, o cantinhode terra que nos legou a divina providência. Estamosgratos e a abençoamos! Vamos viver aqui por muitotempo, já que um navio não se aproxima de ilhaspequenas como esta.

Quando todos renovaram fé e confiança emCyrus, Pencroff disse:

Coleção Júlio Verne

16 Sargaços: algas degrandes dimensões.

17 Fauna: conjunto dosanimais próprios deuma região.

18 Flora: conjunto dosvegetais próprios deuma região.

19 Exuberância:fertilidade.

Page 15: A Ilha Misteriosa

17

— Haveremos de transformar esta ilha numapequena América. Construiremos cidades, linhas fér-reas, telégrafos e um dia vamos oferecê-la à União: serámais uma estrela na bandeira norte-americana! A partirde agora, não somos mais náufragos, mas colonos...

E, animados, como colonos começaram a darnomes a todos os portos, baías, rios e praias. Batizarama ilha com o nome de Lincoln, no dia 30 de março de1865, jamais lhes ocorrendo que o grande presidentenorte-americano seria assassinado dali a quinze dias.

Seguindo Top, Nab e Harbert conseguiram caçarum faisão. O cão, espertamente, caçou uns roedores,dos quais praticamente engoliu um, vorazmente20.Quando Pencroff lamentou não ter armas de fogo,Cyrus aconselhou-o a fazer arcos e flechas, com alâmina que retirou da coleira de Top.

— E nada de desdém21, Pencroff. A humanidadeensangüentou todas as épocas com arcos e flechas. Apólvora nasceu ontem...

À noite, após o jantar, o engenheiro tirou umasamostras do bolso.

— Vejam o que encontrei: minério de ferro, piri-te22, argila e carvão. Este é o trabalho da natureza.Amanhã, falaremos sobre o nosso.

No dia seguinte, Cyrus liderava os colonos acomeçarem um grande trabalho. O ferro e o aço esta-vam no estado de minério; a olaria, no estado da argi-la; as roupas em estado de matérias têxteis, vegetais;na verdade, os colonos estavam iniciando um traba-lho de reconstrução do mundo e Cyrus estava feliz

A Ilha Misteriosa

20 Vorazmente: com avidez; consumir violentamente.

21 Desdém: desprezo;orgulho.

22 Pirite: ou pirita. Sulfeto de ferro quese emprega na fabricação do ácido sulfúrico.

Page 16: A Ilha Misteriosa

18

em contar com a melhor equipe de homens quepoderia reunir: fortes, inteligentes e hábeis.

O princípio de tudo era a construção de umforno, que pudesse transformar as substâncias natu-rais. Fabricariam louças, utensílios e tijolos. Para cons-truir o forno, precisavam de argila. No lago, Cyrus atinha encontrado na véspera, e em abundância. Aargila embebida com água e amassada pelas mãos eradividida em prismas23 de igual tamanho. Em dois diasde trabalho, os colonos já tinham três mil tijolos.

A equipe dedicava-se febrilmente ao trabalho,sem se descuidar das caças e das provisões. Com oforno, fizeram todo o utensílio de que precisavam,embora as formas fossem bastante primitivas.

Cyrus, um dia, construiu um aparelho rudimentar24

que parecia um sextante25 e um grupo partiu para fazeras medições de latitude26 e longitude27. Planejavamconstruir uma embarcação se estivessem próximos aalguma ilha ou continente. Porém, calculada a posição,Cyrus verificou que não seria sensato arriscar as vidasde seus homens, já que estavam a muitas milhas de ou-tras terras. E, por maior esforço de memória que fizes-se, não conseguia lembrar-se de nenhuma ilha do Pací-fico cuja localização fosse a de Lincoln.

O próximo trabalho dos colonos foi de carátermetalúrgico. Deveriam transformar minérios deferro em aço, utilizando peles de focas comomáquinas de sopro. Encontradas as jazidas, o miné-rio era riquíssimo. Com o primeiro pedaço de ferro,Cyrus obteve um martelo, que os auxiliou nas tare-fas seguintes. O engenheiro aqueceu o minério com

Coleção Júlio Verne

23 Prisma: poliedro emque duas faces sãopolígonos paralelos ecôngruos, e as outrassão paralelogramos.

24 Rudimentar: poucodesenvolvido.

25 Sextante: instrumentoótico constituído dedois espelhos e umaluneta astronômicapresos a um setor circular de 60°(1/6 do círculo), destinado a medir a altura de um astro acima do horizonte.

26 Latitude: distância dalinha do Equador aqualquer ponto daTerra, quer no Hemisfério Norte,quer no HemisférioSul.

27 Longitude: ângulocompreendido entre omeridiano de um lugare outro, tomado con-vencionalmente parao ponto de contagem(geralmente adota-seo de Greenwich comoprimeiro meridiano).

Page 17: A Ilha Misteriosa

19

carvão em pó, transformando-o em aço de segundaqualidade, mas muito importante para a realizaçãode um sem-número de objetos necessários, comomachados, plainas, serras, pregos etc.

No início de maio, o grupo resolveu explorarparte da ilha, visando mudar-se das chaminés, já queo inverno se aproximava e a habitação não ofereciasegurança, próxima à costa.

No percurso, Top, que ia à frente, ladrava juntoao lago, enfurecido, e não obedeceu ao chamado dodono, atirando-se à água. Todos correram e viramque o cão enfrentava em luta desigual um dugongo28

enorme. Nab chegou a querer pular no lago para sal-var Top, mas foi impedido por Cyrus.

Quando todos esperavam pelo pior, aconteceualgo incrível: Top foi lançado ao ar por uma forçapoderosa, mas invisível. Assim, voltou nadando àmargem e todos puderam acompanhar que, abaixoda água, a luta continuava. Talvez um animal maisforte enfrentasse o dugongo. As águas tingiram-se desangue e o corpo do animal morto boiou numa praia-zinha ao sul do lago. Os colonos correram para lá epuderam ver uma ferida no pescoço dele feita poralgum instrumento cortante.

No dia seguinte, Spilett e Cyrus voltaram ao localonde o dugongo fora morto. O incidente da vésperanão lhes saía da cabeça, pois viam naquilo um pro-fundo mistério. Não encontrando respostas, o enge-nheiro pôs-se a investigar sobre o escoadouro daságuas do lago, pois planejava baixar o nível da água:uma queda viria a ser muito útil a todos.

A Ilha Misteriosa

28 Dugongo: mamíferoanfíbio do mar dasÍndias, dotado deforma extravagante ea que o vulgo chamahomem-peixe.

Page 18: A Ilha Misteriosa

20

Depois de produzir glicerina29, através de sodanatural30, juntou xistos piritosos31, aquecendo tudo, eobteve sulfato de ferro, sulfato de alumínio e carvão.Com tudo isso, objetivava produzir nitroglicerina32, econseguiu. Essa substância altamente explosiva fariavoar pelos ares os penedos33.

Assim, no dia seguinte, os colonos transformaram-se em mineiros improvisados e conseguiram explodiro dique de granito em grande extensão. Por essafenda, as águas corriam planalto abaixo e caíam napraia como cascata.

Pencroff parecia ver um deus em Cyrus e insistiapara que ele produzisse armas de fogo, como se fossepossível! Aliás, Pencroff parecia ter riscado a palavra“impossível” de seu dicionário, na ilha Lincoln.

Ao lado do lago, no planalto, os colonos encon-traram uma caverna habitável, mais segura que aschaminés. Ela era vasta e nela estava o escoadouroque tanto Cyrus procurara: havia uma boca de poço,e Top latiu muito ao se aproximar dela. Denomina-ram a caverna como o “Palácio de Granito” e semudaram para lá no dia seguinte. As chaminés foramtransformadas em oficinas de obras pesadas. Como oPalácio ficasse num nível superior, Cyrus projetouuma escada de corda para acesso do grupo e, quan-do estivessem dentro do Palácio, a suspenderiam paraevitar entrada de animais ou piratas.

Harbert não negligenciara34 na caça e continuavaencontrando maravilhas, em termos animais e vege-tais. Chegara a encontrar plantas medicinais excelen-tes, assim como chás com propriedades terapêuticas35.

Coleção Júlio Verne

29 Glicerina: substânciaorgânica que se uneaos ácidos graxospara a formação dasgorduras; glicerol.

30 Soda natural: sodacáustica.

31 Xistos piritosos:pequenos fragmentosde rocha contendopirita ou “ouro dostrouxas”.

32 Nitroglicerina: líquidooleoso, altamenteexplosivo, que seobtém pela combinação de glicerina com os ácidos nítrico e sulfúrico, comumenteempregado na fabricação de dinamite.

33 Penedo: grandepedra; rochedo.

34 Negligenciar:desleixar; descuidar.

35 Terapêuticas:medicinais; curativas.

Page 19: A Ilha Misteriosa

21

Mobiliaram a casa com objetos necessários, embo-ra rudimentares, como camas, cadeiras, chaminé nacozinha; vedaram com cimento a boca do poço, quedava para o lago, e abasteceram o Palácio de Granitocom água potável, vinda do lago. Construíram janelase portas de madeira.

Quando o inverno chegou, com fortes tempes-tades e vendavais, os colonos agradeceram a Deuspelo trabalho realizado. Fizeram boas provisões decaça e com gordura de focas produziram velas deestearina36. Cyrus planejou caçar carneiros, quandoo tempo estivesse bom, a fim de tecer agasalhos delã para sua equipe.

Nada lhes faltava: tinham abrigo seguro, boa ali-mentação e, um dia, Harbert encontrou um grão detrigo em seu bolso. Deveria estar esquecido lá desdeos tempos de Richmond, quando ele dava comida aospombos.

Cyrus emocionou-se com o fato de poderem vir afabricar pão através daquele pequeno grão. A partirdaquele dia, Pencroff protegia sua “seara”37 de trigo,dia e noite. Num dia muito frio, mas seco, o gruposaiu em nova expedição pela ilha. O aspecto do locallembrava as regiões polares invadidas pelo gelo.Pararam para almoçar carnes frias, acendendo umafogueira. Ali observaram que a terra era estéril elevantaram hipóteses a respeito da ilha, concluindoque talvez ela fizesse parte de um continente submer-so do Pacífico. Cyrus acreditava, também, que o Pací-fico se transformaria no futuro num continente habi-tado e civilizado por novas gerações.

A Ilha Misteriosa

36 Estearina: produtoextraído da glicerina,com o qual se fazemas velas.

37 Seara: campo decereais; campo cultivado.

Page 20: A Ilha Misteriosa

22

— Mas para que novos continentes? — perguntouHarbert.

— Chegará o tempo em que a vida humana evegetal não será mais possível devido ao intenso res-friamento da Terra. Assim foi com a Lua, que esfrioue que já não é habitável, apesar de o Sol continuar amandar o mesmo calor à superfície. Foi o fogo inter-no que se apagou, e este é um segredo que só per-tence a Deus — falou Cyrus.

Após o almoço, a expedição prosseguiu. Caça-ram alguns patos e pensaram que poderiam domes-ticar algumas aves, junto ao Palácio de Granito, paraque se reproduzissem e ficassem mais próximas doscolonos.

O frio intenso durou até 15 de agosto. Nesse meiotempo, Pencroff e Spilett colocaram muitas armadi-lhas no planalto, obtendo boas presas, como coelhose porcos selvagens. Durante o tempo em que eramobrigados a permanecer dentro do Palácio de Grani-to, os cinco homens dedicavam-se à atividade demarceneiros, complementando a mobília.

No fim do mês, a neve parou e o tempo começoua melhorar, ainda que um pouco frio. Assim, os colo-nos começaram a voltar a outras atividades, nãonegligenciando as provisões.

Top ficava impaciente quando fechado no abri-go. Cyrus notava que ele latia de modo singulartoda vez que se aproximava do poço, por onde aságuas do lago iam ao mar. Chegava a querer abri-locom as patas!

Coleção Júlio Verne

Page 21: A Ilha Misteriosa

23

O início da primavera foi muito comemorado e oscolonos retomaram as atividades. Outro fato estranhoocorreu na noite de 24 de outubro, quando jantavamuma excelente carne de porco assada. Pencroff xin-gou, quando sentiu um dente quebrar-se.

— Os porcos têm pedras? — perguntou Spilett,diante do barulho.

Quando o marinheiro tirou o objeto da boca,todos tomaram um susto: era um grão de chumbo!!!Eles estavam há sete meses na Ilha e nunca encontra-ram sinal humano, mas o chumbo encontrado numleitãozinho de três meses provava o contrário...

À noite, Cyrus confidenciou a Spilett que tentavarelacionar aquele incidente ao seu salvamento:

— Nunca haveremos de encontrar explicaçãopara isso...

Cyrus concordou com Pencroff quando este pro-pôs construírem um barco, espécie de piroga38 decasca de árvore. Enquanto o marinheiro construía aembarcação, Harbert e Spilett partiram para a caça.

Em 28 de outubro, voltou a ocorrer um fato estra-nho: Harbert e Nab encontraram uma tartaruga enor-me, pesando umas quatrocentas libras39. Viraram-nade barriga para cima para a buscarem depois, commais ajuda. Quando retornaram com Spilett e Cyrus,a tartaruga havia sumido...

Cyrus tentou encontrar lógica: talvez a maré tives-se subido e, na água, a tartaruga teria feito o que seriaimpossível na areia: virar-se sozinha. Mas, no fundo,não se convenceu de sua própria explicação.

A Ilha Misteriosa

38 Piroga: nome comumàs embarcações compridas, estreitas evelozes usadas pelosindígenas da África eAmérica, algumas dasquais são feitas deum só tronco cavado.

39 Libra: medida demassa, igual a0,4535923 kg, utilizada no sistemainglês de pesos e medidas.

Page 22: A Ilha Misteriosa

24

Em 29 de outubro, a piroga estava pronta. Todosembarcaram e navegaram meia milha40, quando Har-bert avistou alguma coisa na praia. Voltaram imedia-tamente e encontraram duas barricas e um grandecaixote.

Emocionado, Cyrus abriu-os, esperando encontrarexplicação para o grão de chumbo. Encontraramnavalhas, machados, martelos, brocas, serras, agulhas,espingardas, facas, pólvora, talheres, panela; instru-mentos como termômetro, barômetro41, sextante, bús-sola; máquina de fotografias; binóculo e até livros,como a Bíblia, atlas, dicionários e cadernos.

— O náufrago era um homem prevenido — sor-riu Spilett.

Os colonos agradeceram aos céus aquele achado.Ao dormir, Harbert pediu a Cyrus que lesse qualquercoisa da Bíblia, quando Pencroff disse que a abrisseao acaso. Sorrindo, Cyrus atendeu o pedido do mari-nheiro e logo uma cruz feita de lápis vermelho, noversículo 8, capítulo XII, São Mateus, chamou suaatenção:

— Aquele que pedir, receberá; e aquele que pro-curar, achará.

Em 30 de outubro, o grupo saiu navegando pelailha, a fim de encontrar vestígios dos náufragos, aquem pertenceriam os caixotes e os barris da praia.Mas nada viram que indicasse presença humana, ape-sar de a expedição ter durado alguns dias.

— Resta-nos o consolo de que ninguém disputa-rá conosco a posse da ilha — sorriu Spilett.

Coleção Júlio Verne

40 Milha: medida itinerária inglesa equivalente a 1.609 m.

41 Barômetro: instru-mento com o qual semede a pressãoatmosférica.

Page 23: A Ilha Misteriosa

25

Foi Top quem encontrou os restos do balão queos trouxera à ilha. Todos seguiram ao local, onde ocão latia, e ficaram felizes pelo achado: ali teriam teci-do para lenços, lençóis e camisas para muitos anos.

Outro acontecimento também ocorrera: a pirogahavia sumido do local onde os colonos a haviamamarrado. Quando voltavam a pé, lamentando aperda do barco para a correnteza, encontraram-nopreso, como se estivesse à espera deles...

Quando chegaram ao Palácio de Granito, a esca-da não estava no lugar, de forma que eles eram impe-didos de entrar na habitação. Parados e surpresos,ficaram conjecturando sobre possíveis ocorrências.

— Parece que o caçador do grão de chumbo seapossou de nossa casa — brincou Spilett.

O grupo resolveu entrar por uma nova corda;quando conseguiram subir, depararam-se com quatromacacos, que fugiram assustados ao vê-los. Apenasum restou, e parecia tão inofensivo que o gruporesolveu adotá-lo, atendendo aos apelos de Harbert,que acreditava na inteligência quase humana do ani-mal. Batizaram-no de Jup.

E realmente Jup começou a aprender coisas e aajudar Nab na cozinha. Cyrus começou a construçãode uma ponte sobre o rio Merci e os demais empe-nharam-se na construção do galinheiro e do curral.Cyrus pretendia isolar o Palácio, transformando-o emuma ilha, dentro do próprio ilhéu42, unindo-o ao“continente” com pontes móveis que, a exemplo daescada de corda, pudessem ser alçadas e impedisseminvasões no Palácio.

A Ilha Misteriosa

42 Ilhéu: concernente ailha; ilhota.

Page 24: A Ilha Misteriosa

26

Usaram dinamite para isolar o Palácio e abriramuma vala por onde corria a água do lago. Jup os aju-dava, como um perfeito pedreiro.

Um dia, dois onagros43 atravessaram os pontilhõese se aproximaram do Palácio. Cyrus teve a excelenteidéia de os domesticar para que servissem como bur-ros e puxassem a carroça que construíra.

Na primeira semana de janeiro, confeccionaram aroupa branca de que tanto necessitavam. Tinhamagulhas e linha do caixote e tecido do balão. Fizeramtambém sapatos de pele de foca, largos e folgados.

Cyrus evitava desperdiçar chumbo e mandava queutilizassem grãos miúdos de ferro nas espingardas e,graças à habilidade dos caçadores, os resultados erambons. O engenheiro queria estocar munição para pre-venir o futuro. Ele poderia fabricar pólvora com salitre,enxofre e carvão, mas preferia substituir o explosivocom substâncias retiradas da celulose e outros vegetais.

Assim, os colonos resolviam os problemas dasarmas de fogo, defendendo-se de animais perigo-sos, com inteligência e arte.

O planalto, devidamente isolado, era cultivadopelos colonos: tinham hortas, cuidavam dos animaisque haviam domesticado e que se reproduziam, pes-cavam, obtinham ovos de tartarugas e de pombas, emgrandes quantidades, transportavam lenha e carvãona carroça. Tudo ia bem com eles, inclusive com Jup,que já se vestia com calças curtas e aprendia comextraordinária facilidade um sem-número de lições.Chegava até a servir a mesa, como criado!

Coleção Júlio Verne

43 Onagros – burros selvagens.

Page 25: A Ilha Misteriosa

27

No fim de janeiro, puseram-se a construir o curralpara os carneiros que lhes dariam a lã para o inver-no. Até bebidas já preparavam, como chá e cerveja,obtida pela fermentação de raízes. Muitas vezes, con-versavam sobre os destinos da Guerra da Secessão...Como seria bem-vindo um jornal que os pusesse apar dos acontecimentos da pátria!

A 24 de março, comemoraram o primeiro aniver-sário na ilha. De náufragos do ar, transformaram-seem promissores colonos, graças ao tino e à sabedoriade Cyrus e à força de vontade de todos.

No final de março, o tempo mudou e começaramas tempestades violentas. O estado de saúde de todosera excelente: a vida ao ar livre, o clima, o trabalhoincessante44, tudo concorria para livrá-los das doenças.

Harbert crescia perfeito no físico e no moral. Liaos livros encontrados no caixote e aproveitava aslições de Cyrus. O engenheiro pensava satisfeito que,se morresse, Harbert poderia substituí-lo na liderançado grupo.

Cyrus construiu um elevador, a pedido de Pen-croff, para substituir a escada de fibra: era um cestoque subia por uma corda, movida por um motorhidráulico45! Jup e Top foram os primeiros a estrear oelevador.

O engenheiro também fabricou vidro, utilizandoo antigo forno de tijolo e as matérias-primas abun-dantes: areia, giz46, soda, ácido sulfúrico! Logo todasas janelas do Palácio tinham vidraças e os colonosdispunham de copos, taças e frascos. Um dia, encon-

A Ilha Misteriosa

44 Incessante:constante; contínuo.

45 Motor hidráulico:aquele que utiliza aágua como fonte deenergia.

46 Giz: Calcário quepode reduzir-se afragmentos ou a pó eque, em geral, contémsílica e argila.

Page 26: A Ilha Misteriosa

28

traram a árvore-do-pão e Nab transformou os frutosem bolos e pudins, mas pão mesmo, só depois dacolheita do trigo.

O leite dos animais era abundante. Tudo corriapróspero e de nada se queixavam, exceto de sauda-de da pátria. Na Páscoa, todos se puseram a orar, emação de graças.

Com o sextante, Cyrus fez nova medição, porsugestão de Spilett.

— Ora, o Sr. Cyrus não se engana — observouPencroff. — Se a ilha não se mexeu desde que che-gamos, há de estar onde ele falou...

E tinha razão. Cyrus se enganara apenas por cincograus... Com o atlas em mãos, o engenheiro encon-trou a Ilha Tabor, próxima a eles umas cento e cin-qüenta milhas.

Assim, nossos amigos resolveram construir umaembarcação mais resistente, que os levasse à ilhaTabor, o que, segundo Pencroff, levaria quarenta eoito horas de viagem.

Um dia, uma baleia apareceu morta e encalhada, napraia. No arpão que encontraram, estava gravado“Maria Stella — Vineyard”. Pencroff vibrou; conheciaaquele navio e Vineyard era um porto de Nova Iorque!

Esquartejaram o pobre animal morto e aproveita-ram tudo: o leite, o toucinho, com o qual fizeramazeite e glicerina, e com as barbatanas Cyrus fabricoudoze lanças, que serviram para matar raposas, lobose jaguares.

Coleção Júlio Verne

Page 27: A Ilha Misteriosa

29

O mês de julho, com grande frio, chegou e aconstrução do barco foi adiada, já que eles foramobrigados a permanecer dentro de casa. Aproveita-ram o tempo e, com a lã dos carneiros, fizeram teci-dos, sem a ajuda das máquinas têxteis, mas com fiosenredados em todos os sentidos e prensados a vapor.

A 30 de julho, capturaram um albatroz, levemen-te ferido por Harbert. Tentaram a primeira correspon-dência: uma notícia curta, protegida, para que quema encontrasse fizesse com que chegasse ao New YorkHerald!

Sempre conversavam à noite, e as idéias do enge-nheiro eram muito respeitadas.

— A água é o combustível do futuro, amigos. Aágua composta nos seus elementos e decompostapela eletricidade. A água é o carvão do futuro.

Top continuava a latir quando rodeava a aberturado poço. E Jup acompanhava-o, nessas ocasiões, res-mungando.

— Silêncio — exclamou o engenheiro. — Quebela dupla!... Devem ficar agitados quando pressen-tem algum animal marinho se aproximar...

Quando o frio já partia, os colonos concluíram aembarcação e a batizaram com o prenome de Pen-croff: Bonadventure. Naquele primeiro passeio, Har-bert tornou a ver algo na praia. O barco aproximou-se e eles puderam examinar o objeto: era uma garra-fa, lacrada, com um bilhete dentro. Abriram e leram,pasmados: “Náufrago. Ilha Tabor, 153 long. oeste37°11” lat. sul”.

A Ilha Misteriosa

Page 28: A Ilha Misteriosa

30

Isto apressou-os e, no dia seguinte, às cinco damanhã, Pencroff, Spilett e Harbert partiam, com pro-visões e armas. Exatamente dois dias depois, comoPencroff previra, chegaram à Ilha Tabor, que era umailhota muito parecida à Lincoln. Começaram a explo-rar o local, sem nada ou ninguém encontrarem.

À tarde, Harbert, estupefato47, encontrou uma casavazia! Pencroff acendeu o fogo, iluminando a saleta.Todos puderam, então, ver uma cama desfeita, rou-pas úmidas e amarelecidas, chaleira, panelas cobertasde ferrugem, um armário, uma colher e uma Bíbliacorroída pelo tempo, duas espingardas, um barril depólvora, outro de chumbo, e muitas balas. Tudo esta-va coberto de pó.

O grupo dormiu na habitação e pela manhã con-tinuou a exploração. Em uma tábua puderam ler “BR TÂ NA” (Britânia), mas isso não ajudou em nada.Não havia o menor vestígio do náufrago, que pareciater morrido.

Quando ouviram gritos de Harbert lá fora, corre-ram para ajudá-lo e se depararam com um animal,que parecia um macaco gigante. Mas, quando o exa-minaram melhor, viram que era um selvagem, umhomem embrutecido, com longo cabelo e barba.

— Nossa obrigação é levá-lo conosco, seja elequem for. — disse Spilett. — Talvez possamos tirá-lodo embrutecimento. A alma não morre...

O selvagem só comia carne crua, que devorava semqualquer noção de educação. Permaneceu surdo emudo, enquanto o barco regressava à Ilha Lincoln. A

Coleção Júlio Verne

47 Estupefato: pasma-do; atônito.

Page 29: A Ilha Misteriosa

31

volta não encontrou tempo bom e, a 18 de outubro,eles quase foram tragados pelo mar, quando foram sal-vos pelo instinto de marinheiro do selvagem.

Só conseguiram localizar a Ilha Lincoln graças àfogueira que o engenheiro fizera na praia para orien-tá-los.

Quando chegaram, Cyrus ficou feliz por terem tra-zido o selvagem, que tentou fugir, assustado. O enge-nheiro pôs-lhe a mão no ombro e o olhou com infi-nita doçura, o que o fez sossegar, baixar a cabeça enão resistir mais.

O selvagem teve os cabelos e a barba cortadospelo engenheiro e já aceitava carne cozida. Cyrusdeu-lhe roupas e impôs a si mesmo passar horas emsua companhia, ensinando-lhe algumas coisas. Aospoucos, o selvagem, que já tinha boa aparência,demonstrava prestar atenção no que os colonos fala-vam.

Um dia, Cyrus quis fazer uma experiência e dei-xou o selvagem, sozinho, na praia. Seu olhar cintilou,mas ele não tentou fugir. Quando o levaram à flores-ta, ele aspirou o ar da mata, profundamente, e suspi-rou, em seguida. Foi quando uma lágrima deslizou-lhe pelo rosto.

— Ah! — regozijou-se Cyrus. — Eis-te outra vezum homem... Choras...

Mais tarde, puderam saber que o náufrago erainglês e que estava havia doze anos vivendo só, comoselvagem. Numa confissão pouco lógica e seqüencial,contou a todos sobre uma traição cometida por um

A Ilha Misteriosa

Page 30: A Ilha Misteriosa

32

48 Degredado: exilado.

contramestre do “Britânia” chamado Ayrton. Para nãoser entregue à Justiça, pediu para ser degredado48 naIlha Tabor, onde permanecera por doze anos. Era suaprópria história. Ao terminar, ele perguntou a Cyrusse era livre. E ouviu:

— Sim, você é livre.

Como um louco, ao ouvir isso, ele fugiu, nova-mente. Enquanto o aguardavam retornar, Cyrus cons-truiu um moinho de vento e os colonos puderammoer farinha. No dia seguinte, eles já tinham umabroa magnífica à mesa. É impossível que alguém dacivilização compreenda o quanto há de sagrado nosimples existir de um pão.

Voltaram a ter notícias do selvagem dias depois,de modo singular. Harbert estava pescando, quandoum jaguar se aproximou. Diante de seus gritos desocorro, o selvagem travou luta corporal com a fera,usando apenas uma faca. Quando matou o animal, oselvagem ia fugir, mas Cyrus pediu-lhe que ficassecom eles. Ao que o homem respondeu:

— Vocês são homens honrados. Eu não.

Os dias passavam. O selvagem não participavanem dos trabalhos nem das refeições e dormia namata. Em janeiro de 1867, tudo corria com tranqüili-dade. Todos trabalhavam, inclusive Ayrton, que jácuidava do rebanho, ainda que isolado dos demais.Foi quando Cyrus teve a idéia de construir um telé-grafo que estabelecesse comunicação entre o curral eo Palácio de Granito. Começaram a construir fios deferro de ótima qualidade; depois desenvolveram uma

Coleção Júlio Verne

Page 31: A Ilha Misteriosa

33

pilha rudimentar, que acompanhava o trabalho doconjunto por eletricidade. A 6 de janeiro, colocarampostes com isoladores de vidro, receptor e manipula-dor, com mostrador alfabético.

Tudo isso movimentado pelo poder de um ele-troímã fazia a correspondência entre uma estação eoutra. Em 12 de fevereiro, Cyrus lançou a correnteatravés do fio e perguntou se estava tudo certo nocurral. Instantes depois, Ayrton respondia que sim.Assim, a comunicação instalou-se, permitindo queacompanhassem o que ocorria no curral e não dei-xando Ayrton tão isolado.

Tudo ia bem. A colônia prosperava com trabalhoárduo e alegre. Em março, completaram o segundoaniversário de permanência na ilha. Mesmo assim,todos sonhavam com o dia de voltar à pátria. Cyrusnão se esquecera de que, na confissão de Ayrton, olorde que o degredara à Ilha Tabor fizera a promessade vir resgatá-lo um dia. E, com certeza, um homemde bem mantém e cumpre sua palavra.

Foi assim que eles resolveram ir até a Ilha Tabordeixar alguma inscrição sobre suas vidas na Ilha Lin-coln, inscrevendo a posição geográfica de onde seencontravam. Porém, com o mau tempo, sentiam-sesem rumo definido e resolveram voltar. Quando esta-vam próximos à Ilha Lincoln, mas não a viam, devidoao denso nevoeiro, Pencroff lamentou a ausência deum farol e completou:

— Dessa vez, não teremos a fogueira do Sr. Cyrusa nos orientar...

A Ilha Misteriosa

Page 32: A Ilha Misteriosa

34

Cyrus assustou-se ao ouvir a história do primeiroretorno da Ilha Tabor, quando traziam Ayrton, semi-selvagem, e viram uma fogueira de orientação napraia da Ilha Lincoln, que os salvou de perderem-seno nevoeiro. Até ali, todos pensavam que o autorfosse Cyrus, que havia permanecido na ilha. E, paraespanto geral, não era.

Três dias depois, o Bonadventure voltava à IlhaLincoln, onde era recebido por Ayrton e Jup, quepulava na areia, em festa. Cyrus estava muito intriga-do com tudo. Sempre que necessitados, uma influên-cia estranha agia em favor deles: o salvamento dopróprio Cyrus; Top conseguir encontrar os amigosnas chaminés, debaixo de tempestade, sem nunca terestado lá; depois a forma como o próprio Top forasalvo na luta contra o dugongo; o grão de chumbo nacarne de leitão; o caixote e os barris da praia, semsinais de naufrágio; a garrafa com o bilhete, que nãofora escrito por Ayrton; a canoa que sumira e apare-cera presa, por encanto; a tartaruga que se desvirou efugiu; agora, a fogueira de orientação! Todos estavamsurpresos, mas nada podiam pensar a respeito.

No inverno, Ayrton veio juntar-se aos outros, noPalácio de Granito. Passaram os meses de frio, comonos outros anos, em trabalhos no interior da própriacasa, com reservas de alimentos.

Quando o tempo melhorou, Harbert saiu com amáquina fotográfica e, depois de bater algumas cha-pas, resolveu revelar o filme, como Cyrus lhe haviaensinado. Na foto, algo chamou sua atenção. Levou-a até Cyrus, que a examinou atentamente, com umalupa de aumento:

Coleção Júlio Verne

Page 33: A Ilha Misteriosa

35

— Um navio! — murmurou, espantado.

Fazia dois anos e meio que os náufragos do arhaviam sido arremessados à Ilha Lincoln e estavamincomunicáveis com o resto do mundo. Tentaramcorrespondência por meio de ave, mas não houverespostas. E, agora, viam um navio e não sabiam sese dirigia à Ilha Lincoln. Eles não eram mais pobresnáufragos; eram homens felizes e prósperos, quehaviam conquistado duramente o que possuíam esobrevivido, sob condições tidas como impossíveis.Chamaram Ayrton para vir observar com o binóculo econjecturavam se podiam ser os salvadores dele, quevoltavam para resgatá-lo do exílio, no “Duncan”, onavio do lorde Glenarvan.

— Não — respondeu decidido Ayrton. — O “Dun-can” é um iate a vapor. Aquele não solta fumaça.

Todos aguardavam a proximidade do navio,comovidos. No fundo, não saberiam se era temor oualegria e se queriam ou não ser salvos. Mesmo assim,decidiram que fariam uma fogueira à noite na praiapara comunicar ao navio sobre suas vidas. Não pode-riam prever o futuro e não queriam se arrependermais tarde por não terem tentado sair de lá.

À noite, viram que o navio dirigia-se para a IlhaLincoln, com muita rapidez, e não podiam ver ascores da bandeira. Seriam piratas? Receosos, os colo-nos desistiram da fogueira na praia e ficaram fecha-dos no Palácio.

Ayrton e Pencroff aproximaram-se do navio, anado, e puderam descobrir que eram perigosos pira-

A Ilha Misteriosa

Page 34: A Ilha Misteriosa

36

tas assassinos. Ayrton fora um deles e os conheciabem. Foram vistos, mas conseguiram escapar e infor-mar aos colonos sobre o perigo. Cyrus, então, dividiua equipe armada, em três pontos estratégicos, e ficouaguardando até o amanhecer.

De fato, pela manhã um bote com piratas aproxi-mou-se da costa para investir sobre os nativos quehaviam aparecido próximos ao navio, à noite, e queeles não conseguiram capturar. Foram recebidos abala e, assim, as duplas se revezavam e iam extermi-nando todos os piratas que se aproximavam, antesque desembarcassem. A vantagem de Cyrus era queo inimigo desconhecia o tamanho de seu exército:seis homens e Deus!

Pelos tiros, os piratas entenderam que não se tra-tava de nativos e resolveram entrar pela foz do rio. Oscolonos, ainda dando combate, refugiaram-se noPalácio de Granito; vendo o navio aproximar-se, fica-ram assustados, pois não queriam ser descobertos. Noinstante em que a primeira bala atingiu o Palácio, umacontecimento estranho ocorreu: uma tromba d’águaemergiu, engolindo o navio, numa forte explosão.

Os colonos estavam tão tensos que não saberiamdizer se a explosão ocorrera dentro do navio ou fora.O que sabiam é que estavam salvos, novamente, poruma força estranha. A mesma, talvez, que estivesseagindo a favor deles desde o naufrágio.

No dia seguinte, apesar de terem visto que seis tri-pulantes haviam conseguido fugir e estavam soltospela ilha, representando perigo a eles, os colonosforam examinar os restos do navio. Puderam recolher

Coleção Júlio Verne

Page 35: A Ilha Misteriosa

37

caixas de objetos e um sortimento completo de pro-dutos manufaturados, inclusive canhões. Examinandobem o casco do navio “Speedy”, Cyrus concluiu queele estava totalmente destruído e não poderia sermais utilizado: enormes rombos iam de um lado aoutro.

Mais tarde, encontraram sinal de um torpedo. Eisa explicação: o navio fora tombado pela enormetromba d’água. Mas ela fora produzida pelo torpedo, que o explodiu... Mas quem teria colocadoo torpedo ali? Os colonos olharam para Cyrus, curiosos:

— Só sei que eu não fui — respondeu o enge-nheiro.

A partir daquele incidente, estava mais do queclaro para os colonos que deviam gratidão eterna aum ser misterioso, que, como eles, habitava aquelailha.

Contudo, não poderiam esquecer que seis assas-sinos estavam pela ilha e que precisavam encontrá-losantes que eles os encontrassem.

Ayrton permanecia no curral, cuidando dos ani-mais e dando sinais pelo telégrafo. Enquanto Cyrusestava arrumando a segurança do Palácio, o gruporesolveu ir ver como estava o barco, depois da che-gada dos piratas. Pencroff descobriu pelo nó quealguém tinha utilizado o Bonadventure e o teriadevolvido em péssimas condições. Comunicaram aCyrus, que se propôs a construir um abrigo maisseguro para o barco.

A Ilha Misteriosa

Page 36: A Ilha Misteriosa

38

Naquele dia, enviaram mensagens para o curral eestranharam o silêncio de Ayrton. Como insistissem,sem respostas, partiram para lá, bem armados, exce-to Nab. Quando lá chegaram, viram que o posto dotelégrafo estava ao chão e o fio partido por mãoshumanas. Assim que entraram, Top latiu e uma deto-nação seca atingiu Harbert, que caiu baleado. Comoainda vivia, os colonos o transportaram para dentro.Foi quando Cyrus deparou-se com um dos piratas e,por pouco, não recebeu uma bala. Atravessou o cora-ção do criminoso com um punhal.

O ferimento de Harbert exigia cuidados, mas nãoera mortal. Os colonos improvisaram o atendimento eesperaram baixar a febre. Enquanto estavam fechadosno curral, ocorreu-lhes que Nab, aflito, sem notícias,poderia sair em busca deles e seria assassinado acaminho, talvez como ocorrera a Ayrton.

Resolveram mandar um bilhete na coleira de Tope o enviaram a Nab. Receberam resposta, pelo cão,que Nab aguardaria no Palácio.

No curral, permaneceram dez dias até que Har-bert se recuperasse. Lá tinham boas condições parasobreviver, visto que Ayrton vivera lá até ser captura-do pelos piratas. Agora, Cyrus não tinha outra alter-nativa, senão a de matar os cinco sobreviventes.

Pensava nisto, constantemente. Onde estaria oprotetor que os havia amparado o tempo todo, desdeque chegaram àquela ilha? Teriam os piratas o assas-sinado, como a Ayrton? Cyrus sentia que os ventos damá sorte chegavam, mas como homem forte estavapronto a desafiá-los.

Coleção Júlio Verne

Page 37: A Ilha Misteriosa

39

Um dia, receberam a visita do macaco Jup, quetrazia junto ao pescoço um bilhete de Nab, comuni-cando-os das devastações que os criminosos fizeramno planalto, queimando plantações, matando os ani-mais domésticos e destruindo tudo. Assim, a pedidodo próprio Harbert, eles voltaram ao Palácio de Gra-nito, sem maiores incidentes. Lá, Harbert pioroumuito. Todos os estragos eram pouco diante do medode perderem o rapaz, que ficou entre a vida e a mortevários dias. Spilett descobrira que se tratava de umainfecção e dizia que só um sulfato de quinino xria sal-var o rapaz. E qual não foi a surpresa de todos quan-do, na manhã seguinte, depois de Top latir muito,encontraram sobre a mesa um vidro, que trazia umrótulo “Sulfato de Quinino”...

Quem teria entrado lá sem ser notado? Nãoimportava. Cheios de esperança naquele poder invisí-vel, que voltava a manifestar sua presença, restabele-ceram o jovem Harbert. O ano de 1868 entravadando-lhes de presente Harbert, completamente recu-perado!

No dia 14 de fevereiro, saíram em missão de caçaros piratas. Pencroff levava um revólver, armado coma mesma bala que atingira Harbert. Haveria de acer-tá-los, com a mesma pontaria. Morreriam do próprioveneno!

Depois de muito procurarem, foram até o curral eo encontraram aceso. Cyrus achava que os cinco esta-vam reunidos, quando avistou Ayrton, sozinho. Nãopodia acreditar. Vivo? O próprio rapaz não sabiaexplicar.

A Ilha Misteriosa

Page 38: A Ilha Misteriosa

40

Naquele momento, os latidos de Top os conduzi-ram à margem do rio. E lá, sob o luar, viram os cadá-veres dos cinco piratas que buscavam...

No dia seguinte, Ayrton lhes contou o que ocor-rera com ele naqueles cem dias de separação. Foracapturado pelos piratas e levado a uma caverna, ondefora torturado e amarrado. Os piratas queriam que eleaderisse a eles e os ajudasse a invadir o Palácio e amatar os colonos. Como se recusasse, mantiveram-nopreso, durante noventa dias, sob a guarda de umdeles... Não sabia mais nada, mas surpreendeu-se aosaber da morte dos cinco criminosos. O justiceiro dailha continuava agindo em sua proteção:

— Daria minha vida para pagar-lhe o que temfeito por nós — falou Cyrus.

Os colonos recomeçaram as atividades e, princi-palmente, dedicaram-se a construir um novo barco, jáque o anterior os piratas haviam destruído contra osrochedos, na expectativa de fugirem.

Comemoravam o terceiro aniversário de perma-nência na ilha, quando, preocupados, ouviram baru-lhos de erupção vulcânica. Examinaram tudo, masnada encontraram que comprovasse suas suspeitas. Ovulcão parecia extinto.

Passaram os meses empenhados na construçãode um navio maior que o “Bonadventure”, inclusiveAyrton. No inverno, interromperam as atividades ese enfiaram no Palácio de Granito, para se protege-rem do frio.

Coleção Júlio Verne

Page 39: A Ilha Misteriosa

41

Foi em setembro que Cyrus observou o vulcãodespertar. O que poderia acontecer à ilha só Deuspoderia saber. Mesmo assim, eles voltaram a traba-lhar e sonhavam um dia, com a ajuda do barco, par-tir para a pátria e um dia regressar à Ilha Lincoln,com esposas e filhos...

Uma noite, os seis estavam reunidos no Paláciode Granito quando o telégrafo foi acionado do curral.Cyrus foi ler a mensagem: “Urgente. Corram ao cur-ral.” Obedeceram, prontamente, entendendo que par-tia do misterioso dono da ilha. No curral, havia outroaviso: “Sigam o fio.” Obedeceram, novamente, eforam até os rochedos, acompanhando o fio. Espera-ram a maré baixar e utilizaram um barco, que oslevou a um estranho navio submarino, que flutuava,muito iluminado. Emocionado, Cyrus reconheceu-o:era o Nautilus. O submarino do Capitão Nemo!

Entraram, encantados com o submarino, quandoCyrus apresentou-se a um homem velho, de barbasbrancas, deitado num divã.

— Mandou nos chamar, capitão Nemo? Aquiestamos.

— Não tenho nome, senhor — disse ele, pare-cendo doente.

Cyrus contou-lhes sobre como o conhecera: atra-vés do livro “Vinte Mil Léguas Submarinas”, escritopelo Professor Aronnax, que sobreviveu a uma fugado “Nautilus”. O Capitão Nemo sorriu, demonstrandoalegria por saber que o náufrago sobrevivera.

A Ilha Misteriosa

Page 40: A Ilha Misteriosa

42

— Vou morrer, mas antes vou contar-lhes minhahistória...

Nemo era o príncipe indiano Dakkar e receberaesmerada educação para ser um grande chefe políti-co. Mas odiava os opressores de sua pátria: a Ingla-terra! Homem de Estado e de ciência, casou-se e tevedois filhos, mas a felicidade doméstica não atenuavasua revolta íntima. Quando houve o levante contra osingleses, liderou muitas lutas; a vingança caiu sobresua família, já que não conseguiam capturá-lo. Opríncipe Dakkar afastou-se com vinte companheiros ese refugiou no mar, construindo o “Nautilus”. Otempo passou e, agora, aos sessenta anos, o CapitãoNemo era o último sobrevivente do submarino. Vira aqueda do balão e, por solidariedade, salvara CyrusSmith. Através do poço, no Palácio de Granito, podiaouvir-lhes as conversas contra a escravidão nos Esta-dos Unidos; ali estavam homens honestos e dignos dereconciliarem Nemo à humanidade. Após seu relato,os homens ajoelharam-se e beijaram as mãos do Capi-tão Nemo, em agradecimento eterno.

Nemo fez a eles seu último pedido: que no diaseguinte após sua morte, queria ser afundado com o“Nautilus”. Instruiu Cyrus em como fazê-lo e o pre-veniu de retirar o cofre, antes, e voltar com o barcoque os trouxera.

Nemo quis falar a sós com Cyrus e morreu a umada manhã do dia seguinte. O engenheiro cumpriu nostermos exatos a última vontade de Nemo, que que-ria ser afundado com o “Nautilus”, transformando-oem túmulo de seu dono.

Coleção Júlio Verne

Page 41: A Ilha Misteriosa

43

49 Espavoridos: assus-tados; aterrados.

A Ilha Misteriosa

Quando voltaram à ilha, estavam prostrados e sesentiam desamparados com a partida do protetor. Puse-ram-se à construção do barco e, assim, viram o ano de1869 chegar. Em janeiro, perceberam novas erupçõesno vulcão. Pálido, Cyrus foi examinar os locais ondeNemo o avisara sobre possíveis explosões.

Quando esteve com Ayrton no curral, pôde verque os animais por instinto estavam inquietos.Libertou todos, que fugiram espavoridos49 paratodos os lados. Cyrus voltou ao Palácio e contouaos amigos sobre o grave perigo previsto por Nemoantes de sua morte: um terremoto arrasaria a IlhaLincoln.

Muitas erupções ocorreram, enquanto os colonostentavam apressar o trabalho de construção do barco,dia e noite, sem descanso. Inutilmente, porque, nanoite de 8 para 9 de março, a ilha explodiu e, empoucos minutos, o oceano Pacífico cobriu o lugaronde havia existido a próspera colônia.

O único ponto da ilha que não fora invadidopelas águas era agora um rochedo isolado, no meiodo mar: o Palácio de Granito! Felizmente, os seis esta-vam reunidos no momento do terremoto e consegui-ram se salvar, junto a Top. O pobre Jup morreu por-que estava fora naquele momento.

Oravam e esperavam pela intervenção divina,quando viram Ayrton, quase sem forças, erguer-se efazer sinais a um navio que se aproximava: era o“Duncan”, comandado pelo filho do Capitão Grant,Roberto, que vinha resgatá-los no meio do oceano!

Page 42: A Ilha Misteriosa

44

Quinze dias depois, chegaram à pátria, já pacifi-cada, depois da guerra que fez triunfar a justiça sobreo direito.

Com boa parte das riquezas do cofre deixado porNemo, nossos amigos compraram uma ilha, nosdomínios de Java, e lá fundaram uma colônia, quebatizaram como a anterior: Lincoln. Tudo prosperoue permaneceram juntos até o fim, pelo juramento queos ligava. Spilett chegou a fundar um jornal excelen-te: “New Lincoln Herald”!

Vocês devem estar se perguntando: como o filhodo Capitão Grant conseguiu localizá-los, se eles nãohaviam ido à Ilha Tabor deixar uma mensagem sobrea posição geográfica da Ilha Lincoln? A explicação ésimples e foi Cyrus quem a descobriu, após Robertomostrar o bilhete que encontrara: a letra era do Capi-tão Nemo. Ele havia estado na Ilha Tabor e deixara amensagem anônima, na certeza de que os colonosnão conseguiriam voltar lá. Até pouco antes de mor-rer, ele os protegera...

Viveram na nova colônia, sem nunca se esquecerda ilha que os abrigara na queda do balão e da qual,hoje, só restava um rochedo no oceano: o Palácio deGranito. Era como um indicativo do túmulo daqueleque, em vida, fora o Capitão Nemo.

Coleção Júlio Verne

Page 43: A Ilha Misteriosa

45

A Ilha Misteriosa

01. Quem era Cyrus Smith?

02. Cyrus foi preso no mesmo dia que um repórter do NewYork Herald, Gedeon Spilett. O que pretendiam eles ecomo conseguiram realizar seu intento?

03. Quem os acompanhou na viagem?

04. O grupo chegou a uma praia deserta, mas Cyrus desa-parecera. Pouco depois seu cão também desapareceu.Como Cyrus foi encontrado?

05. Complete os espaços com palavras do texto: o grupo realizava um trabalho de reconstrução do mundo,porque o ferro e o aço estavam no estado de

; a olaria, no estado de ; asroupas em estado de .

06. Com inteligência e perseverança os fugitivos fabricarammuitas ferramentas, utensílios e armas. Quem era, noentanto, o gênio que tinha idéias para criar todos essesobjetos?

07. Coisas estranhas já haviam acontecido: o salvamento deCyrus, a agitação de Top sempre que se aproximava dopoço. Mas depois da chegada da primavera esses aconte-cimentos multiplicaram-se. O que sucedeu?

08. Top encontrou também os restos do balão em que via-jaram. Poderiam agora confeccionar roupas com o tecido.Domesticaram um macaco, Jup, e dois onagros que osauxiliavam em todas as tarefas. Para onde Pencroff, Spilette Harbert partiram depois de encontrarem uma garrafacom uma mensagem?

09. O que encontraram na Ilha Tabor?

10. O selvagem era, na realidade, um náufrago inglês, Ayrton,que, para não ser entregue à Justiça, pedira para ser deixa-

Roteiro de Leitura

Page 44: A Ilha Misteriosa

46

do na Ilha Tabor. Ele se juntou ao grupo liderado porCyrus, mas não vivia no Palácio de Granito. Onde ele cos-tumava ficar?

11. Quando um navio pirata chegou à ilha, o grupo, junta-mente com Ayrton, refugiou-se no Palácio de Granito eum fato estranho ocorreu. O que foi?

12. O que atingira o “Speedy”?

13. Que outro incidente estranho aguçou a curiosidade dogrupo e reacendeu suas esperanças?

14. Uma noite o grupo recebeu uma mensagem pelo telé-grafo. O que encontraram?

15. Quem era Nemo?

16. Qual o pedido de Nemo a Cyrus?

17. Um terremoto arrasou a ilha, só sobrando o Palácio deGranito, mas quem os resgatou?

18. Os amigos voltaram aos Estados Unidos e, com parte dasriquezas do cofre do Capitão Nemo, compraram uma ilha.Onde ficava e o que fizeram nela?

Coleção Júlio Verne

Page 45: A Ilha Misteriosa

47

Nenhuma outra obra literária refletiucom tanta fidelidade a história desua época como a coletânea dos ro-

mances de Júlio Verne, conhecida como Viagensextraordinárias.

Nascido em Nantes, na França, a 8 de fevereirode 1828, filho de Pedro Verne, cuja família orgulha-va-se de sua tradição na advocacia, e de Sofia Alotte,proveniente de rica família de armadores, JúlioVerne mostrava uma forte inclinação para a literatu-ra desde sua infância.

Talvez devido à sua formação familiar, Vernetenha se inclinado para um novo gênero literário: aficção-científica, resultado da união de seus conheci-mentos sobre a vida dos homens do mar, daquelaépoca, cheia de aventuras, e sua formação escolar,na faculdade de direito, que o ensinara a raciocinarlogicamente, e a aceitar somente os fatos como ver-dadeiros.

Júlio Verne, entretanto, viveu durante uma épocaprivilegiada. O homem do século XIX conjugava har-moniosamente a ciência e a tecnologia. Uma mesmageração assistiu ao descobrimento da eletricidade, doautomóvel, do avião, do rádio, do submarino, dostecidos sintéticos, do cinema...

Verne assistiu a todos estes acontecimentos eantecipou-se a muitos deles. Maravilhava-se, assim

A Ilha Misteriosa

O Autor

Page 46: A Ilha Misteriosa

48

como seus contemporâneos, com a velocidade queo progresso adquiria. Tudo isto o levou a uma idéia,em que trabalhou com afinco desde seus 24 anos atésua morte em 24 de março de 1905: escrever a nove-la da ciência, estabelecendo uma ponte entre a ciên-cia e a literatura. Para tanto, contava apenas comuma ferramenta: sua imaginação fértil, cujo ponto departida era o estudo, a observação e a curiosidade.

Nem mesmo seu casamento com Honorina Hebè,o nascimento de seu filho Michel, ou suas ocasionaisrusgas com seu pai, o desviaram de seu propósito.

Seu profundo respeito para com a ciência nunca odeixou afastar-se do racionalismo ou realismo. E,mesmo em obras mais fantásticas, como Viagem ao cen-tro da Terra, Da Terra à Lua e outras, sua finalidade erausar a fantasia para ilustrar os conhecimentos de suaépoca em astronomia, matemática, física, paleontologia,mineralogia etc.

Em suma, sua vida resumiu-se a retratar suaépoca, por isso Verne está profundamente imerso emseu tempo e expressa aspectos importantíssimosdesse período. Seus personagens, em sua maioria,não são senão veículos de uma idéia ou agentes deuma empresa, quando não meros símbolos.

A coragem, a tenacidade, a lealdade, a nobreza desentimentos não isenta de uma certa ingenuidade, taiscomo as principais características, em ocasiões umtanto estereotipadas, do herói verniano, que não sedefine tanto por si mesmo como pelo que faz.

Coleção Júlio Verne