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A imagem pública de Tancredo Neves: uma análise em manchetes do Diário de
Pernambuco e da Folha de S. Paulo
Tarcísia Travassos
UFPE
RESUMO: Neste trabalho, analisamos as primeiras páginas da Folha de S. Paulo e do diário de Pernambuco que divulgam a morte do presidente Tancredo Neves em 1985, observando como os referidos jornais construíram a imagem pública do presidente. O foco da análise recai sobre a construção textual e procura investigar: a) os aspectos visuais que compõem as páginas e b) a produção da manchete principal. Tomamos como apoio teórico os trabalhos de Silva (1985), Bazerman (2005, 2006), Jewitt e Kress (2003), Dionísio (2005) entre outros. Constatamos que os jornais, de uma maneira geral, não só falam do mundo como também participam efetivamente da produção da imagem que todos nós temos da realidade, do cotidiano, das personalidades e que a configuração das primeiras páginas dos jornais por meio do posicionamento e da articulação de seus diversos recursos expressivos (manchetes, fotos etc.) é um dos aspectos mais característicos do modo de significar da imprensa cotidiana. PALAVRAS-CHAVE: jornal; primeira página; diagramação; manchete; imagem. RESUMEN: En este trabajo, analizamos las primeras páginas de la Hoja de S. Paulo y del Diario de Pernambuco que divulgan la muerte del presidente Tancredo Nieves en 1985, observando como los referidos periódicos construyeron la imagen pública del presidente. El foco del análisis recai sobre la construcción textual y busca investigar: a) los aspectos visuales que componen las páginas y b) la producción de la titular principal. Tomamos como apoyo teórico los trabajos de Silva (1985), Bazerman (2005, 2006), Jewitt y Kress (2003), Dionísio (2005) entre otros. Constatamos que los periódicos, de una manera general, no sólo hablan del mundo como también participan efectivamente de la producción de la imagen que todos nosotros tenemos de la realidad, del cotidiano, de las personalidades y que la configuración de las primeras páginas del periódicos por medio del posicionamento y de la articulação de sus diversos recursos expressivos (titulares, fotos etc.) es uno de los aspectos más característicos del modo de significar de la prensa cotidiana. PALAVRAS-CHAVE: periódico; primera página; el diagramming; manchete; imagen.
1. Introdução
Ao inventar a máquina de imprimir, Gutenberg inaugurou uma nova era na transmissão de
conhecimentos. A partir de então, a tecnologia da reprodução de textos possibilitou aos
leitores maior acesso à informação e uma atitude menos passiva diante dos variados textos, o
que Eisenstein (1998) trataria como uma grande explosão do conhecimento.
No Brasil, tal tecnologia só chegou quatro séculos depois de sua invenção e a circulação de
impressos até o final do século XIX era bastante restrita (Sodré, 1999). Hoje, a imprensa
brasileira desempenha um papel de destaque na veiculação de informações e na formação de
opinião de grandes setores da população. Segundo Grillo (2004), desses dois propósitos,
prevalece a função informativa enquanto objeto primordial, visto que as instâncias de
produção e de reprodução da imprensa se identificam na questão básica de saber o que está
acontecendo na atualidade. Já Charaudeau (1997 apud Grillo, 2004) questiona o objetivo
informativo da imprensa e destaca o objetivo de captar o leitor, uma vez que se trata de uma
empresa e de consumidores a serem conquistados e mantidos.
Ao ser exposto nas bancas de revistas, o jornal integra-se ao contexto urbano através de sua
primeira página (a capa), seu apelo visual mais contundente. De uma maneira geral, a
primeira página de um jornal se caracteriza pela presença dos seguintes elementos: nome do
jornal, número de edição, data, logotipo, código de barras, foto ou ilustração, manchete e
subtítulo. O design gráfico se insere no jornalismo, pelo fato da apresentação visual ter um
papel essencial, e cada vez mais preponderante, em qualquer meio impresso que tenha como
função primordial a comunicação.
A importância das manchetes, títulos e subtítulos pode ser avaliada pelo grande espaço
dedicado a eles nos manuais de redação e estilo dos jornais. Vejamos o que diz o seguinte
trecho do Manual da Folha de São Paulo a respeito do título:
Título – A maioria dos leitores lê apenas o título da maior parte dos textos editados. Por isso, ele é de alta importância. Ou o título é tudo que o leitor vai ler sobre o assunto ou é o fator que vai motivá-lo ou não a enfrentar o texto. (FSP, 1992: 168)
Com base nas necessidades oriundas das mudanças sócio-históricas, novas tendências vão
surgindo e sendo incorporadas pela imprensa. A criação do telégrafo, na década de 40 do
século XIX, por exemplo, possibilitou o surgimento do sumário, da manchete e do sub-título.
De acordo com Pessoa (2002), “a manchete remonta aos sumários ou ‘comunicados em foco’
da época da guerra civil americana, quando os repórteres do campo de batalha, receosos de
que seus comunicados não pudessem ser enviados de forma completa, começaram a pôr o
principal aspecto da informação no primeiro parágrafo”. Esse procedimento também é o
princípio básico da organização do subtítulo cujo surgimento se deu em circunstâncias muito
parecidas com o das manchetes. A concorrência da TV, em épocas mais atuais, fez com que a
imprensa introduzisse o fotojornalismo para apoiar e intensificar os títulos e as manchetes.
Neste trabalho, analisamos as primeiras páginas do Diário de Pernambuco e da Folha de S.
Paulo que divulgam a morte do presidente Tancredo Neves em 1985, observando como os
referidos jornais construíram a imagem pública do presidente. O foco da análise recai sobre a
construção textual e procura investigar: a) os aspectos visuais que compõem as páginas, b) a
utilização de depoimentos nos textos, e c) a produção das manchetes principais. A escolha do
tema do corpus se deve ao fato de ser a morte, geralmente, um momento de homenagens que
favorece a construção da imagem de pessoas públicas.
2. A diagramação do Diário de Pernambuco e da Folha de S. Paulo
O Diário de Pernambuco, foi fundado no dia 7 de novembro de 1825, pelo tipógrafo Antonio
José de Miranda Falcão, no Recife. Foi criado como uma simples folha de anúncios, com duas
colunas preenchidas com avisos de compra e venda de imóveis, objetos, leilões, aluguéis,
roubos, perdas e achados, fugas e apreensões de escravos, viagens, além de informar a hora de
entrada e saída de embarcações no Porto do Recife (fig. 1).
A origem da Folha de S. Paulo data da fundação do jornal “Folha da Noite”, em fevereiro de
1921 (fig. 2) e do qual a “Folha da manhã” foi sua extensão. Encabeçada por Olival Costa e
Pedro Cunha, tinha uma orientação também bastante localista, voltada, sobretudo, para as
questões da administração da cidade. Sua diagramação apresentava seis colunas
acompanhadas por “fios de separação.” A partir de 1960, transformou-se na atual Folha de S.
Paulo.
Foi a partir de 1950, com o advento da televisão no Brasil, que o jornalismo impresso
precisou se reestruturar para acompanhar a forte concorrência imposta pelos poderosos
veículos de comunicação de massa eletrônicos. O arranjo gráfico passou a atuar como
discurso; e como discurso, possui uma linguagem específica e uma rede encadeada de
significação. Os planejadores gráficos se conscientizaram da importância dessa linguagem e
do seu poder de manipulação (Silva, 1985).
Diagramar é fazer o projeto da distribuição gráfica das matérias a serem impressas (textos,
títulos, fotos, ilustrações etc.); é desenhar previamente a disposição de todos os elementos que
integram as páginas do jornal. Enquanto a paginação quer dizer a montagem de títulos,
notícias e fotos, a diagramação é a combinação dos elementos gráficos com a técnica. Graças
à utilização de recursos gráficos é que se consegue dar o desejável equilíbrio a uma página de
jornal, residindo nesse pormenor a própria personalidade dos veículos gráficos.
Segundo Amaral (1982 apud Silva, 1985), capaz de fascinar, a diagramação é também capaz
de enganar. Agradável, pode ser fútil, sedutora; pode ser demagógica; atrativa, pode ser
simplesmente comercial e, sabendo provocar e concentrar o interesse, ela sabe também como
dispersar e, assim dissolver. A diagramação visa dar às mensagens a devida estrutura visual a
fim de que o leitor possa discernir, rápida e confortavelmente, aquilo que para ele representa
algum interesse.
Estabelecer um padrão gráfico é de grande importância para o jornal pois ele representará
para o consumidor (leitor) a imagem do jornal, com embalagem e conteúdo eficientes. A
primeira página representa essa embalagem, pois reúne características e atrativos através dos
quais o leitor pode identificar o jornal.
Numa página de jornal, facilmente poderemos identificar as seguintes zonas de visualização:
a) zona primária; b) zona secundária; c) zonas mortas; d) centro ótico e e) centro geométrico
(Silva, 1985). A zona primária (lado superior esquerdo da página) deve conter um elemento
forte para atrair a atenção e o interesse do leitor. Esse elemento pode ser uma foto, um texto,
um grande título. A diagramação deve ocupar as zonas mortas (lado superior direito e lado
inferior esquerdo da página) e o centro ótico (centro real de qualquer peça impressa situado
um pouco acima do centro geométrico no cruzamento das diagonais) com aspectos atrativos
para que a leitura se torne ordenada, rápida e agradável, sem o deslocamento brutal da visão
do leitor.
Há dois estilos de diagramação: simétrico, quando a disposição dos títulos, textos, ilustrações
e outros elementos utiliza coordenadas verticais ou horizontais; assimétrico, quando são
utilizadas as coordenadas verticais e horizontais simultaneamente.
O Diário de Pernambuco, jornal mais antigo em circulação na América Latina, slogan este
inserido nas edições diárias logo abaixo do seu grande logotipo no alto da primeira página, no
decorrer de sua história, estabeleceu um estilo de diagramação que se enquadra no modelo
clássico, utilizando com rigor as coordenadas verticais nos arranjos gráficos, cuja simetria é
identificada pela uniformidade e alinhamento rigoroso do espacejamento do branco de
separação entre as colunas.
Já a Folha de S. Paulo tornou-se um jornal de grande porte que também usa um modelo
clássico de diagramação, obedecendo a uma padronização gráfica dos seus títulos de forma
rigorosa e de agradável legibilidade, pela uniformidade de sua tipologia. Existe grande
similaridade no estilo de diagramação das páginas do Diário de Pernambuco com as páginas
da Folha de S. Paulo.
3. Manchete: um gênero jornalístico
Os gêneros provêm do uso comunicativo da língua em sua realização dialógica e um aspecto
essencialmente marcante do enunciado é o “querer dizer” ou o “intuito discursivo” que
determina tanto os limites do enunciado como a escolha do gênero. A escolha de um gênero
implica uma forma de inserção social e de execução de um plano comunicativo intencional
(Marcuschi, 2000).
Na concepção de Bazerman (2006, p. 23), gêneros são frames para a ação social. Eles moldam
os pensamentos que formamos e as comunicações através das quais interagimos; são ações
tipificadas pelas quais podemos tornar nossas intenções e sentidos inteligíveis; são formas de
agência.
Para esse autor (2005, p. 38), a maioria dos gêneros tem características de fácil
reconhecimento e sinalizam a espécie de texto que são. Tais características estão intimamente
relacionadas com as funções principais ou atividades realizadas pelo gênero. Porém, os
gêneros são categorias sócio-histórico-interativas sempre em mudança e não são cristalizações
formais no tempo. Assim, a definição de gênero apenas pelo seu caráter formal ignora o papel
dos indivíduos no uso e na construção de sentidos; as diferenças de percepção e compreensão;
o uso criativo da comunicação para satisfazer novas necessidades percebidas em novas
circunstâncias; a mudança no modo de compreender o gênero com o decorrer do tempo.
De uma maneira geral, as manchetes precisam ser breves e sucintas, dispõem de espaço
limitado e têm a função de atrair o leitor e de informar sobre o assunto tratado na matéria. Na
imprensa é o impacto das informações, dos enfoques novos e inusitados que parecem chamar
a atenção e convidar à leitura.
Do ponto de vista da leitura, pode-se dizer que a manchete determina a priori o tipo de leitor,
desempenhando uma função eminentemente pragmática. Além de criar uma situação de
comunicação, as manchetes dos jornais permitem ao sujeito enunciador atingir o seu
enunciatário, implicando-o, seja pelo assunto (tema), seja pela forma de apresentação. Nesse
sentido, podemos afirmar que a manchete desempenha uma importante função argumentativa;
afinal constitui uma estratégia a serviço das intenções do sujeito enunciador que pretende
influir sobre o leitor, interessá-lo, senão convencê-lo, numa situação real de interlocução.
3.1. A intertextualidade nas manchetes
Um texto traz em si marcas de outros textos que lhe são antecedentes, contemporâneos ou
mesmo futuros. Tal fenômeno é chamado de intertextualidade. Conforme Bazerman (2006),
essa ligação entre os textos pode ser reconhecida através de determinadas técnicas: a) uma
citação explícita ou implícita; b) um comentário ou avaliação acerca de uma declaração, de
um texto ou de outra voz evocada; c) menção a uma pessoa, a um documento ou a
declarações; d) usos de estilos reconhecíveis e de terminologias associadas a pessoas, grupos
de pessoas ou documentos; e) usos de linguagem e de formas lingüísticas que parecem ecoar
certos modos de comunicação.
A intertextualidade é uma associação prevista pelo autor e deve ser feita pelo leitor de forma
espontânea. A intensidade do esforço para compreender a intertextualidade pode variar e
sempre depende de conhecimentos prévios comuns ao autor e ao leitor.
Koch (1997) assegura que a intertextualidade pode ser de forma ou de conteúdo. A
intertextualidade formal também é importante para o processamento adequado do texto, pois
os conhecimentos de mundo são armazenados sob forma de blocos, que se constituem
modelos cognitivos, globais e entre os quais estão as superestruturas ou esquemas textuais.
Trata-se de conjuntos de conhecimentos relacionados aos diversos tipos de textos e gêneros
utilizados em cada cultura que vão se acumulando na memória. Esses conhecimentos
permitirão ao leitor “enquadrar” o texto em determinado esquema, o que lhe dará pistas
importantes para a sua interpretação.
Quanto à intertextualidade de conteúdo, Koch (1997) afirma que é uma constante: os textos de
uma mesma época, de uma mesma cultura, de uma mesma área de conhecimento etc.
dialogam, necessariamente, com outros. As matérias jornalísticas de um mesmo dia ou de
uma mesma semana, por exemplo, normalmente, dialogam entre si, ao tratarem de um mesmo
fato em destaque. É o que podemos constatar nas manchetes que anunciaram a doença e a
morte de Tancredo Neves, presidente eleito, que na véspera de tomar posse adoeceu, não
resistindo a várias cirurgias e a 38 dias de internação. Eis algumas das manchetes principais
publicadas no Diário de Pernambuco: “Tancredo continua inconsciente e bem perto do estado
de coma” (17/04/1985) (Fig. 3), “Novas crises fazem presidente entrar em estado
desesperador” (19/04/1985) (Fig. 4), “Coração de Tancredo Neves ainda resiste e surpreende
os médicos” (20/04/1985) (Fig. 5).
Fig. 3 Fig. 4 Fig. 5
A seqüência de manchetes acima representa o que Bazerman (2006, p. 97) chama de coleção
intertextual, pois cada uma menciona ou se apóia em outra anterior que trata do mesmo
assunto. Assim, os textos ecoam ou desenvolvem partes de outros textos se combinando
dentro de um arquivo para construir uma representação de um caso ou de um sujeito numa
relação de intertextualidade intra-arquivo.
É interessante observar como itens lexicais tais como continua, novas crises, ainda resiste,
usados nessas manchetes, remetem o leitor a declarações anteriores sobre o estado de saúde
do presidente Tancredo Neves. A compreensão das manchetes se dá por uma ligação
anafórica, ou seja, elas exercem a função de lembrete de uma informação conhecida, remetem
a um elemento anterior, não enunciado no texto, porém presente na consciência do leitor.
As manchetes funcionam como focalizadores, à medida que ativam ou selecionam áreas do
conhecimento de mundo que temos arquivados na memória. São elas que possibilitam que o
leitor faça previsões sobre como um determinado tema será desenvolvido e assim crie
expectativas sobre o conteúdo da notícia ou da reportagem .
4. A imagem de Tancredo Neves construída nas capas dos jornais
Em 1985, pela TV ou pelos jornais, o Brasil inteiro acompanhou o sofrimento de Tancredo
Neves, que foi submetido a sete cirurgias após ser internado no Hospital de Base em Brasília.
No dia 15, data de sua posse, ele não pôde fazer o juramento, mas o vice-presidente, José
Sarney, cumpriu o protocolo e assumiu interinamente o comando do país enquanto se
esperava pela volta de Tancredo. O milagre, como disseram os jornais, não aconteceu, pois o
político mineiro de 75 anos não resistiu e faleceu no dia 21 de abril às 22h23m.
Vale lembrar que o presidente Tancredo Neves foi eleito indiretamente no ano seguinte ao da
campanha pela realização de eleições diretas para Presidência da República. A campanha
realizou comícios em todas as capitais brasileiras, principalmente nas vésperas da votação da
emenda constitucional Dante de Oliveira que restabeleceria o pleito direto. Em 25 de abril de
1984, a emenda foi rejeitada no Congresso Nacional.
Tomemos as duas primeiras páginas dos jornais Folha de S. Paulo (Fig. 6) e do Diário de
Pernambuco (Fig. 7) do dia 22 de abril de 1985, data na qual foi publicada a morte do
presidente.
4.1. Os aspectos visuais das primeiras páginas
A Folha de S. Paulo (Fig.6) dedicou toda a primeira página à notícia do falecimento do
presidente. Encabeçando a página, a seguinte manchete em caixa alta: “Tancredo Neves está
morto; corpo é velado no planalto; Sarney reafirma mudanças”. Respeitando o
condicionamento do leitor à escrita ocidental, a zona primária da página foi ocupada com uma
grande foto do momento no qual o porta-voz da presidência, Antonio Brito, anunciava à
nação que o presidente eleito havia morrido. Sob a foto a seguinte legenda: “O porta-voz da
Presidência, Antonio Brito, anunciou, seis minutos depois, que o presidente eleito morrera às
22h23 de ontem”. Sobre esta foto, exatamente no centro ótico da página, uma outra foto
menor de Tancredo Neves com indicação de seu nome completo e as datas de nascimento e
morte (Tancredo de Almeida Neves 1910 – 1985). Ao lado das fotos, um texto em coluna
vertical conta o fato e as providências tomadas para o velório e para a investidura de José
Sarney na Presidência. Abaixo da foto, outro texto, uma espécie de diário, em várias colunas
verticais, com o título: “Dia a dia, todo o drama da doença”. A zona secundária (lado inferior
direito) foi ocupada pelo índice e por uma chamada para os editoriais “O país sem Tancredo
Neves”, “Acima das frustrações” e “Brasília na realidade” nas páginas internas do jornal.
O Diário de Pernambuco (Fig. 7), visando a rota instintiva da visão do leitor que se desloca
em diagonal do lado superior esquerdo para o lado inferior direito, estampou uma foto grande
de Tancredo no centro ótico da página com a legenda “Tancredo Neves faleceu, ontem, às
22h23m, no Instituto do Coração, em São Paulo, depois de 38 dias de lenta agonia”. Abaixo,
uma foto menor de Sarney com a seguinte legenda: “Após ser informado do falecimento de
Tancredo Neves, Sarney dirigiu-se ao Palácio do Planalto para falar á nação”. Acima da
foto do presidente, a manchete principal: “Termina martírio de Tancredo Neves”. Acima da
manchete principal, o seguinte antetítulo destacado entre linhas horizontais: “Coração da
Nova República deixa de bater”. Ao lado esquerdo da foto principal, em coluna vertical,
chamadas para depoimentos do então governador de Pernambuco Roberto Magalhães e do
sociólogo Gilberto Freyre nas páginas internas do jornal. Do lado direito, outra chamada com
um texto maior resumindo a doença e a morte do presidente. Tratando-se de uma situação
especial, o Diário publicou, excepcionalmente em sua capa, um editorial com o título
“Tancredo Neves”. No lado esquerdo inferior, algumas chamadas para outras notícias que não
dizem respeito à morte do presidente.
É interessante observar que as fotos de Tancredo Neves estampadas nos dois jornais, daquele
dia, mostram imagens estáticas do presidente, enquanto as outras fotos apresentam pessoas
em movimento. Quanto ao tamanho das fotos, o Diário de Pernambuco privilegiou a imagem
do presidente, enquanto a Folha de S. Paulo deu maior destaque ao momento no qual o porta-
voz da presidência anunciava que o presidente havia morrido.
Conforme observada nas primeiras páginas acima descritas, a diagramação age
discursivamente, pois a disposição dos vários elementos tem um significado, é intencional e
visa ordenar a percepção do leitor. Nada é inocente e tudo é, como uma espécie de mosaico,
matematicamente calculado.
4.2. A construção lingüístico-textual das primeiras páginas
O primeiro parágrafo do texto principal da Folha de S. Paulo que diz: “O presidente eleito
Tancredo Neves morreu ontem, dia de Tiradentes, às 22h23, no Instituto do coração, em São
Paulo”, faz referência ao dia da morte de Tiradentes, líder do movimento revolucionário
chamado Inconfidência Mineira, que em nome de uma causa, a independência do Brasil,
acabou sendo morto e esquartejado. Essa referência traz implícita a idéia de que Tancredo
Neves, assim como Tiradentes, foi um mártir na história do país. Vale salientar que Tancredo
Neves também era natural de Minas Gerais, estado de origem de Tiradentes e do movimento
por este liderado.
No Diário de Pernambuco, principalmente no editorial, esta idéia foi muito mais explicitada.
Constatamos-na nos seguintes trechos:
... o país precisa mostrar que seu sacrifício não foi inútil. O presidente não nos abandonará se fizermos do seu exemplo semente de uma Nação nova. [...] há uma simbologia irrecusável em tudo. Na mesma data em que Tiradentes ofereceu sua vida pela independência, Tancredo Neves morre para que a democracia renasça.[...] Somos simultaneamente infelizes e felizes. Infelizes porque perdemos o grande líder e felizes porque tivemos a honra de possuí-lo. Tancredo Neves se fez agora presença eterna, inspiração de todos nós, voz de comando que ninguém mais calará. [...] Volta ao seio da terra que tanto amou, mas seus sonhos de liberdade, justiça e amor iluminam nossos olhos cheios de lágrimas [...]
No seguinte trecho do texto principal, o Diário de Pernambuco faz referência à Nova
República, movimento idealizado por Tancredo Neves que objetivava a redemocratização do
Brasil: “São Paulo – A Nação está consternada. O presidente Tancredo Neves, idealizador da
Nova República, faleceu, ontem, às 22h23m, depois de 38 dias de lenta agonia [...].
Ainda nesse texto, o Diário de Pernambuco, através da declaração do vice-presidente
José Sarney, exalta a imagem de Tancredo Neves como herói:
Asseguro à Nação, com todas as forças da vontade e da coragem, que o legado de Tancredo Neves permanecerá vivo. Assim como não lhe faltei com a minha lealdade no período de seu calvário, saberei honrá-lo após a sua morte. E não deixarei murchar a chama da esperança que plantamos no Brasil” (...) O nosso compromisso é o da Aliança Democrática, formada pelo PMDB, partido que é uma página de heroísmo, pela Frente Liberal, homens que quebraram amarras, e por todas as forças que, privadas da liberdade, lutaram pela liberdade. (DP)
Quanto ao pronunciamento emocionado de José Sarney, a Folha de S. Paulo citou
diretamente, apenas, as seguintes palavras: “Nosso programa é o de Tancredo Neves”.
Nos trechos dos depoimentos de personalidades da política selecionados pelo Diário de
Pernambuco para a primeira página, também podemos verificar a exaltação da imagem de
líder e a grandeza de homem-político Tancredo Neves:
A Nação perde o seu timoneiro. Com Tancredo Neves desaparece aquele que numa hora tão difícil, de transição política, conseguiu abrir novos caminhos pela via pacífica e democrática da conciliação’, declarou ontem, consternado, o governador Roberto Magalhães. (DP) [..] O sociólogo Gilberto Freyre, cinco minutos após tomar conhecimento da morte de Tancredo Neves afirmou: ‘Estamos os brasileiros diante de uma grande perda. Nunca o Brasil esteve por ter como presidente da República, um homem de tamanha grandeza. Quando digo grandeza, digo não só como político, mas como um guia total da nação brasileira. Ele não chegou a ser presidente, mas será uma constante inspiração para futuros presidentes. (DP)
Como diz Bazerman (2006, p. 95), na citação direta, “embora as palavras possam ser
inteiramente aquelas do autor original, é importante lembrar que o segundo autor, ao
escrever a citação, exerce total controle sobre que palavras serão citadas exatamente”. O
Diário de Pernambuco, ao citar as declarações transcritas nos trechos acima, evidenciam suas
posições e seus próprios argumentos sobre o presidente em questão.
4.3. As manchetes principais
Na capa que destaca a morte do presidente, a Folha de S. Paulo optou por uma manchete
composta por uma seqüência de três sintagmas oracionais separados por ponto e vírgulas:
“Tancredo está morto; corpo é velado no Planalto; Sarney reafirma mudanças”. A primeira
oração, na ordem direta, com o verbo não-dinâmico estar dá destaque ao sujeito Tancredo e
ao predicativo morto; a segunda oração, na ordem indireta com o verbo principal velar,
destaca o sujeito paciente corpo; e a terceira oração, na ordem direta, constituída pelo sujeito
Sarney e pela forma verbal reafirmar, cujo efeito enfático está associado à conotação de
autoridade, enfatiza a ação de Sarney. Marcuschi (1991) observou que “afirmar” é um dos
verbos preferidos para introduzir o discurso do poder. No caso da manchete analisada, o verbo
reafirmar destaca o fato de que Sarney dará prosseguimento ao ideal político de Tancredo. Ao
ler a manchete, temos a impressão de sermos conduzidos pela seqüência dos fatos.
O Diário de Pernambuco, por sua vez, não anuncia em sua manchete principal que Tancredo
Neves morreu, mas sim que seu sofrimento, seu martírio terminou: “Termina martírio de
Tancredo”. Ao usar a ordem indireta da oração, é para o verbo “terminar” que o jornal quer
chamar a atenção; ele contém a informação nova, pois as várias manchetes de edições
anteriores já haviam criado nos leitores a expectativa da morte de Tancredo Neves. Quanto à
expressão “martírio”, constatamos, mais uma vez, a intenção do jornal de criar uma imagem
de Tancredo Neves como um dos mártires na história do Brasil. É na “personalização” da
Nova República, recurso usado no antetítulo, “Coração da Nova República deixa de bater”,
que o jornal apela para a força da emoção, identificando Tancredo Neves com a própria Nova
República.
5. Considerações finais
O jornalismo é uma espécie de produtor de imagens que visa provocar os sentimentos dos
leitores que não se conhecem, mas que reagem da mesma forma. Os jornais, de uma maneira
geral, não só falam do mundo como também participam efetivamente da produção da imagem
que todos nós temos da realidade, do cotidiano, das personalidades. A configuração da
primeira página do jornal por meio do posicionamento e da articulação dos seus diversos
recursos expressivos (manchetes, fotos etc.) é um dos aspectos mais característicos do modo
de significar da imprensa cotidiana.
Conforme observamos, a Folha de S. Paulo, de uma maneira mais sóbria, e o Diário de
Pernambuco, com seu apelo mais emotivo, utilizaram-se, harmoniosamente, dos recursos
gráficos e dos textos verbais para compor as primeiras páginas que anunciaram a morte de
Tancredo Neves em 1985, construindo a imagem pública do presidente eleito como grande
líder político e mártir da nossa história.
A nossa análise constatou que a intenção de consagrar Tancredo Neves como um herói da
nação brasileira norteou o uso de recursos tais como: a escolha dos depoimentos de pessoas
públicas (intertextualidade); a escolha de palavras de cunho avaliativo e emocional para a
produção dos textos e manchetes principais; o modo de dispor os elementos verbais e visuais
nas primeiras páginas em ambos os jornais. Assim, podemos dizer, recorrendo a Bazerman
(2006) que os jornais “expressaram agência” através de suas capas e que, na composição das
mesmas, entraram em jogo, entre outros fatores, o papel do jornalismo e do comentário
político, o poder cívico dos jornais, as atitudes correntes com respeito à figura política de
Tancredo Neves.
Diante da concorrência agressiva dos veículos de comunicação de massa, as grandes
manchetes e ilustrações passaram a ser uma estrutura motivacional, na qual as imagens
apóiam as palavras transmitindo ao leitor uma sensação de realidade. As capas tornaram-se
verdadeiros construtos multimodais, que evoluem histórica e culturalmente e dos quais a
escrita é apenas um dos modos de representação das mensagens (Jewitt e Kress, 2003, p. 183).
Ao compararmos as capas das primeiras edições do Diário de Pernambuco (1825) e da antiga
Folha da Noite (1921) com as capas das edições do dia da morte de Tancredo Neves (1985),
entendemos e concordamos com a afirmação de Dionísio (2005) de que os textos verbais e
não-verbais mantêm uma relação cada vez mais próxima, cada vez mais integrada, o que
significa novas maneiras de produzir e ler esses textos que circulam socialmente.
Longe de esgotar nossa investigação sobre a construção das imagens de pessoas públicas
pelos jornais, tema de nossa tese de doutorado, pretendemos desenvolver e confrontar novas
análises envolvendo outras personalidades da história política do Brasil.
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