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Ano V, n. 10 – outubr0/2009
A IMATÉRIA DE PROMETHEA - VOLUME I, DE ALAN MOORE: SOLVE E COAGULA
Enéias Farias Tavares1
Resumo
Baseado nos conceitos alquímicos de solve e coagula, análise e síntese em linguagem contemporânea, propomos uma leitura do romance gráfico Promethea, do escritor inglês Alan Moore, dos artistas J. H. Williams III e Mick Gray e do letrista Todd Klein. Nossa metodologia apontará em cada um dos seis primeiros capítulos do romance as referências que os autores apresentaram nos campos da história, do misticismo, do ocultismo e da filosofia, visando demonstrar os aspectos culturais e artísticos presentes num gênero popular como o da narrativa gráfica. A partir de algumas entrevistas com o escritor do título, percebemos que Promethea intenta reunir no seu enredo uma série de elementos díspares e, aparentemente, distantes. Nosso trabalho de pesquisa sobre a obra apresentará esses elementos e igualmente os relacionará ao enredo do romance.
Palavras-Chave: Promethea. Narrativa Gráfica. Crítica Literária.
Introdução
Se deus não existisse, seria preciso inventá-lo.
(Voltaire)
Pense numa grande jornada na qual realidade ficcional e fantasia de povos e
culturas antigas se encontrem. Uma longa viagem que teria por mapa de percurso o
conhecimento dos arcanos maiores do tarô, os sephiroth da cabala, o sistema
astronômico clássico de sete planetas e a simbologia mística e hermética da antiguidade,
entre outros saberes. Imagine ainda que o leitor de tal jornada possa, junto com sua
protagonista, também aumentar seu conhecimento dessa simbologia que engloba boa
parte da cultura humana e aumentar sua percepção das realidades mentais e psíquicas.
Se não, pelo menos desfrutar de uma história instigante e bem construída, literalmente
um marco no gênero. É essa a viagem imaginária que a leitura do romance gráfico
Promethea, do escritor inglês Alan Moore e dos artistas J. H. Williams III e Mick Gray
e do letrista Todd Klein – propicia, tanto a leitores como também a críticos de arte e
cultura.
1 Enéias Farias Tavares é professor mestre e doutorando pela Universidade Federal de Santa Maria
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Ao lado de obras como a Divina Comédia de Dante e o Mundo de Sofia de
Jostein Gaarder, Promethea foi concebida por seus autores como um grande mosaico
ficcional em que misticismo, magia e sistemas herméticos, como cabala e gnosticismo,
serão usados como componentes desse conto no qual a protagonista parte de um relativo
desconhecimento histórico e filosófico até alcançar uma série de revelações familiares,
culturais e psicológicas. Peregrina, como Dante, das esferas infernais, purgatórias e
celestes e trazendo o nome da própria sabedoria em sua etimologia grega, a protagonista
de Promethea leva o leitor junto com ela em suas investigações e descobertas sobre a
personagem milenar que dá título à série de Moore, publicada pela American Best
Comics.
No caso do inglês Alan Moore, autor que para os leitores da arte gráfica
constitui uma referência por obras como Watchmen, Monstro do Pântano, Do Inferno e
Garotas Perdidas, Promethea é também o resultado de suas próprias reflexões e
pesquisas a respeito da cabala e do ocultismo. Criador também da personagem John
Constantine, publicado atualmente pelo selo Vertigo da DC Comics, Alan Moore é
como o alter ego de sua protagonista, tendo se dedicado tanto à escrita de diversas obras
cuja temática mística é preponderante, como também em executar apresentações
públicas em que música, simbologia mística, encenações dramáticas e canhões de luz e
fumaça, tentam alterar as percepções de seus expectadores. Nesse sentido, Promethea é,
na narrativa gráfica, o que essas performances de Moore são para os espetáculos rituais.
Quanto ao título, Promethea, tipologia feminina do deus grego do fogo,
divindade que discordou da proibição de Zeus de dividir o fogo do intelecto com os
homens e que posteriormente foi amaldiçoado por isso, aparentemente parece como
mais uma das muitas heroínas de histórias em quadrinhos dos selos Marvel e DC. Mas
diferente dessas, sua principal atividade, assim como sua contraparte Prometeu, é trazer
um novo tipo de revelação ou esclarecimento mental aos homens. Seu traje é um misto
de caracteres egípcios e gregos, aludindo aos deuses do conhecimento, Toth e Hermes,
representativos desses objetivos iluminadores. Quando não é Promethea, é Sophie
Bangs, adolescente franzina e desinteressante que almeja terminar um trabalho para a
escola. Segundo Octavio Aragão, no artigo “Promethea no Reino de Thot-Hermes e O
poder da Palavra”, em seu romance Alan Moore fez uso do imaginário dos heróis
fantasiados visando trabalhar com diversos “conceitos que mergulham fundo em
referências místicas, cruzando técnica narrativa e um certo didatismo cabalístico numa
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mistura nem sempre agradável ao grande público, acostumado ao imediatismo
maniqueísta dos vilões monomaníacos e dos protagonistas bidimensionais” (2006).
Nessa série de cinco artigos que publicarei na Revista Temática, que possui o
título geral de “Promethea, de Alan Moore: Misticismo e Narrativa Gráfica”,
apresentarei uma leitura de cada um dos capítulos do romance, num total de trinta e
dois, que tente conectar os elementos ficcionais e narrativos da série com a rede de
diferentes conhecimentos, sistemas e crenças que os autores apresentam. Sobre isso,
faz-se necessário aqui um adendo metodológico.
O que se percebe quando se começa a pesquisar esses diferentes sistemas de
crenças antigas e algumas ainda vigentes, são duas coisas: primeiro, a dificuldade de
sair da linguagem alegórica ou simbólica de todos esses sistemas. Quando se dá conta, o
pesquisador está também imerso no mar de associativismos que tantos incorreram, nos
quais, para usarmos as palavras de Moore, “nada em Imatéria é de fato o que aparenta.
Tudo aqui significa outra coisa”. Em segundo lugar, há o desafio de se definir
objetivamente o conceito de Infinito ou de Absoluto que todas as crenças e sistemas
místicos ou esotéricos apresentam. Todas elas revelam, quando estudadas, diversas
incongruências ou conclusões ilógicas, sendo possivelmente essas o princípio de toda
crença no extra material.
Nesse sentido, estudar Promethea é um percurso muito satisfatório num certo
sentido, especialmente quando cotejado com esses sistemas. Embora o crítico corra o
risco de tomar, em alguns momentos, a sério aquilo que não deveria. À parte de tal
problema metodológico e também analítico que enfrentaram Jung e tantos seguidores, é
interessante perceber como a ficção de Moore transforma e reutiliza praticamente todos
esses sistemas – cabala, gnosticismo, hermetismo, alquimia, ocultismo, esoterismo do
tarô, astrologia, e tantos outros – numa história ficcional lógica, coerente, interessante e
instigante do ponto de vista literário.
1. Promethea, primeiro capítulo: a primeira visão dA Radiante Cidade Celestial
A primeira edição de Promethea apresenta duas variações de capa. Uma com
temática egípcia, com arte de Alex Ross e a outra, com arte mais convencional, pelos
artistas regulares do título, J. H. Williams III e Mick Gray. A capa pintada de Ross
apresenta a personagem Promethea cercada por hieróglifos egípcios. Também apresenta
uma pequena versão do símbolo do sol, associada à própria personagem, no canto
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superior direito. Já a capa de JH Williams e Mick Gray mostra Promethea no centro,
tendo Thot num circulo azul à esquerda, e Hermes, num círculo vermelho à direita. No
canto inferior esquerdo, temos uma pequena menina, a Promethea original, vagando por
um deserto. No canto inferior direto, temos Sophie Bangs, a Promethea atual e
protagonista da série, sendo atacada pela entidade conhecida como Smee. O símbolo de
Promethea, o símbolo do sol, pode ser visto logo abaixo da personagem central.
Segundo Eroon Nala2, um dos principais comentadores das alegorias e símbolos
presentes no título, as duas capas parafraseiam a citação de Voltaire, “Se Deus não
existisse, teríamos de inventá-lo”. O título dessa história, A radiante cidade celestial, é
uma alusão ao livro bíblico de Apocalipse, capítulo 21, versículo 10, na qual a
Jerusalém celestial é descrita nesses termos.
Figura 01 - Capas da primeira edição de Promethea. Arte de Williams III, Mick Gray, Alex Roos e Todd Klein
Num diálogo com obras literárias que brincam com o próprio fazer artístico,
como Fogo Pálido, de Nabokov, no qual o romance são as notas de rodapé para um
poema de novecentos e noventa e nove versos, ou o conto de Arthur Schnitzler, Meu
amigo Ypsilon, em que um poeta se apaixona por sua própria criação ficcional, Moore
abre o primeiro volume de Promethea mostrando a origem do interesse de sua
protagonista pela personagem mítica ter nascido da necessidade de se terminar um
trabalho escolar. Trazendo o título “O enigma de Promethea: uma aventura pelo
folclore”, texto que abre o primeiro volume do romance, notamos no texto de três laudas
2 No site www.angelfire.com/comics/eroomnala/Promethea.htm
encontram-se as anotações de Nala para cada um dos números da série.
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da personagem uma ingenuidade estudantil, focada em sua pretensa objetividade
acadêmica e em sua estruturação cronológica dos artistas que trabalharam anteriormente
com o que a ela chama de “mito de Promethea”. A emulação que Moore do estilo do
ensaio acadêmico também observa os “excessos” dos primeiros esforços intelectuais de
sua autora: períodos longos e confusos, opiniões pessoais politicamente corretas ao lado
de dados desconexos e imprecisos. Assim, percebendo a ironia do autor ao apresentar o
trabalho inicial da protagonista sobre Promethea, não estranhamos períodos
intermináveis como:
Tudo isso em grande contraste com o absorto e sensível jovem pastor/poeta descrito na narrativa de Sennet, mas, mesmo assim, não se pode evitar a sensação de que, na imaculada inocência de seu protagonista masculino, irremediavelmente apaixonado por um ser imortal da Terra das Fadas, Sennet estava descrevendo a ele mesmo como gostaria de ser visto.
Na primeira leitura, é de estranhar, justamente no que parece ser uma história em
quadrinhos tradicional, a quantidade de informações, do ponto de vista de uma pesquisa
acadêmica, sobre as anteriores encarnações de Promethea e dos artistas que propiciaram
sua existência anterior. Criticando a obra do poeta fictício Charlton Sennet, Sophie
escreve que seu texto é “demasiado longo e por muitas vezes maçante em seu ritmo”,
algo que poderia ser dito a respeito do seu próprio artigo. Ironicamente, Moore inicia
Promethea externando os próprios limites do texto racional, histórico ou acadêmico em
relação com a potencialidade da arte ficcional. Como Sophie perceberá, a real aventura
pelo folclore mostrar-se-á muito mais instigante do que a pesquisa inicial previa.
Dois outros títulos da ABC, escritos por Alan Moore, Tom Strong e Top Ten,
também começam com duas páginas de introdução repletas de detalhes e informações
prévias sobre as respectivas séries. O interessante desse recurso usado por Alan Moore é
perceber o efeito que ele tem sobre o leitor ao apresentar tantos detalhes sobre o plot de
sua história, antes mesmo desse ter começado a leitura da mesma. No texto de Sophie,
Moore mistura uma série de pessoas reais com outras totalmente fictícias visando já
nessa introdução deixar pouco claro os limites entre realidade e ficção em sua história.
Também reforça esse sentido a história de Promethea começar com um trabalho
acadêmico sobre uma aparentemente ficcional personagem literária, impressão de
Sophie que corresponde também à própria impressão do leitor. Assim, essa introdução,
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dentro ou fora da história, funciona como background para o que veremos no desenrolar
desse primeiro capítulo.
A história de Promethea tem início no ano de 411 d.C. em Alexandria, no Egito.
Lá, o leitor testemunha um sacerdote dos antigos segredos herméticos ser assassinado
pelos defensores do cristianismo, execução que se relaciona com a filósofa egípcia
Hipátia, morta em condições similares. Antes de ter sua casa invadida, o sacerdote,
acusado pela turba cristã de feitiçaria, ordena que sua pequena filha fuja para o deserto.
Antes de morrer, a menina é encontrada por um deus de natureza dupla que se denomina
Thot-Hermes, respectivamente os deuses egípcio e grego do conhecimento e da
comunicação. Prometem protegê-la da era de trevas que será trazida pela “nova
religião” num lugar chamado Imatéria, ou Universo Imaterial das idéias e das histórias.
Platônico em seu conceito, Moore dá início com essas palavras das divindades a esse
universo de lendas, mitos e estórias, que apresentará no seu título. Antes de ser levada
por Thot-Hermes, a pequena menina revela ter o mesmo nome da heroína do título.
Três páginas depois, estamos em Nova York no ano de 1999 d.C. Mas não a
Nova York que o leitor está acostumado e sim uma cidade estilizada, sombria,
tecnológica. Chuvosa sempre, num cenário nitidamente inspirado no Blade Runner, de
Ridley Scott, com carros voadores, sinais luminosos e anúncios digitais em cada
esquina. A população é aparentemente protegida por um grupo de heróis chamado Os
Cinco Caras Bacanas, formados pelo líder, Bob, pela poderosa Roger, pelo gênio
mecânico Stan, pelo estrategista Kenneth e pelo vidente Marv. A Nova York de Moore,
Williams III e Gray é uma explosão de luz multicores em que a população é
bombardeada com informações, notícias, imagens, anúncios e convites mercadológicos
e sexuais, vinte e quatro horas por dia. Para representar esse fluxo ininterrupto de
informações e dados, como uma internet pública em cada esquina, os autores
conceberam no cenário do romance um sistema eletrônico de informações sonoras e
visuais chamado TEXtura.
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Figura 02 – A Nova York futurista de Promethea Promethea 23, p. 26 e 27. Moore, Williams III, Gray e Klein
Dentro de um táxi a protagonista da história e autora do artigo que abre o
volume, a jovem Sophie Bangs, é apresentada ao lado da amiga, Stacia, as duas
conversando sobre seus respectivos trabalhos finais. Enquanto Sophie continua a sua
pesquisa sobre Promethea, “o mesmo nome aparece em poemas do século 18, em
antigas tirinhas de jornal, revistas alternativas e histórias em quadrinhos” (Promethea 1,
p. 6), a amiga já terminou seu trabalho sobre a personagem Gorila Chorão semanas
antes. Sua justificativa para a pertinência do trabalho? “Não há sentido! Isso é o que é
genial no gorila chorão” (ibidem, p. 7), num nítido contraste entre as preocupações
intelectuais de Sophie.
Contrastando as duas personagens, Promethea e Gorila, Moore parece
problematizar a natureza dicotômica dos tipos de entretenimento disponíveis em
qualquer mídia: um passível de pesquisa e aprendizado, que sempre apresenta algo atrás
de seu verniz estético, e uma obra cultural mais rasa, simples e superficial. Se a pesquisa
pela personagem Promethea revela uma série de alusões à mitologia, filosofia, ciência,
literatura, ocultismo e outras artes, a figuração do Gorila Chorão é apenas feita de
jargões sentimentalistas e auto-depreciativas, como “Vamos, pergunte sobre o meu
casamento”, “Tenho alguns problemas de infância não resolvidos”3.
3 Alguns dos bordões da personagem: “Não acredito que me demitiram”, “Ela fica com os garotos e a casa. Eu fico com o carro.”, “Acho que as pessoas mudam”, “Todo mundo disse que eu devia usar o windows 95”, “Por que os bichinhos morrem?”, “Gosto de música country. Ela diz a verdade”, “Alguns dias são melhores que outros”, “Como assim, você precisa de mais espaço?”, “Deus ajuda quem cedo madruga”, “Eu odeio meu corpo”, “Podemos ouvir aquele som do radiohead só mais uma vez?”, “Se pelo
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É também nessa cena, no rápido diálogo entre as duas amigas, que Moore
diferencia suas duas protagonistas. Enquanto Sophie busca um conhecimento maior
sobre sua personagem, e por conseqüência, sobre si mesma, Stacia, estática em suas
opiniões, está satisfeita com o pouco sentido que o entretenimento cultural de seu tempo
possibilita. Após deixar Stacia, Sophie vai à casa de Bárbara Shelley, esposa do
quadrinista que desenhou a personagem na década anterior, para entrevistá-la. Nessa
conversa, mais uma vez são apresentadas as várias interpretações que Promethea
recebeu com o passar do tempo.
O mito teve início com uma personagem secundária no poema Um Romance de
fadas, de Charlton Sennet, em 1789. Depois, apareceu numa tira de quadrinhos,
Pequena Margie na Misteriosa Terra Mágica, da autora Margaret Taylor Case, em
1901. Durante a primeira guerra mundial, a imagem de Promethea surgiu como lenda de
guerra, relacionada a misteriosos salvamentos de soldados perdidos em campos
inimigos. Na década de vinte, foi uma das personagens das revistas Pulp, como a
Princesa Guerreira de Hy Brasil, de Grace Brannagh. Em 1938, como heroína
científica em quadrinhos de super-heróis, esses escritos por William Woolcott. O último
dos criadores foi o quadrinista Steve Shelley, morto em 1996. O interessante da lenda
ficcional construída para a personagem, segundo o que a pesquisa de Sophie indica, é
que nenhuma dessas versões tem grande relação com a outra. Exceto por uma relativa
unidade na constituição física da personagem, todo o resto foi alterado em suas
sucessivas encarnações.
Figura 3. A pequena Promethea e Thot-Hermes; os artistas do mito; Promethea enfrenta a entidade Smee - Promethea 1, p. 22, 24 e 15 e 30. Moore, Williams III, Gray e Klein
menos eu entendesse o que as mulheres querem...”, “Aquele tamagochi confiava em mim.”, “Essa deveria ser a minha oportunidade” e “Sim, eu trabalho com telemarketing...”, entre outras.
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Após deixar Shelley, Sophie é atacada por uma entidade misteriosa chamada
Smee (Semi-Mindless Elemental Entity ou Entidade Elemental Sub-Estúpida), um ser
de energia negativa que busca matá-la sem razão aparente. Questionado sobre o porquê
do ataque, ele diz que o erro de Sophie foi ter lido “os livros errados” (ibidem, p. 16).
Prestes a ser morta pela criatura, Sophie é salva por Promethea, agora uma heroína real
e imensamente poderosa. O primeiro número termina com a revelação de que a
Promethea salvadora era na verdade Bárbara e que agora, cabe a Sophie assumir seu
papel. Para tanto, basta compor e recitar um poema sobre a existência e a pertinência da
personagem no seu tempo. Demonstrando “imaginação e entusiasmo”, Promethea pode
viver novamente, por meio do poema de Sophie:
Eu sou Promethea. O rumor, o misticismo trazido à razão que pressiona até entortar Eu sou a voz que resta, uma vez que o livro está pronto. Eu sou o sonho que mesmo acordada não se encerra. Eu sou Promethea, a faísca feroz da arte Eu sou toda a inspiração, todo o desejo A chama da imaginação na escuridão da humanidade Eu sou Promethea, e trago a você o fogo. (Promethea 1, p. xx-xx)
A história termina com Promethea, agora Sophie, levando em seus braços uma
agonizante Bárbara até um hospital. Nesse primeiro capítulo, fica claro o valor
mitologia, do conhecimento e da curiosidade para o trabalho da estudante Sophie. Sem
essas “armas”, nenhuma grande jornada pode ter início. Até esse ponto, como é comum
em outros trabalhos de Moore, uma série de linhas ficcionais e personagens aparecem,
alguns de modo central, outros como coadjuvantes. Todas as peças desse imenso painel
constituído de trinta e duas peças serão, no devido tempo, esclarecidas.
2. Promethea, segundo capítulo: Sophie diante do severo Julgamento de Solomon
A capa do segundo capítulo recria um cartaz de filme Noir, aludindo a uma das
publicações da personagem nas revistas Pulp da década de vinte e trinta. Trazem o
nome do Templo, organização ocultista que tem Benny Solomon como contratado para
assassinar essa nova encarnação de Promethea. O título, O julgamento de Solomon,
brinca com o mau julgamento do místico que se supõe capaz de destruir Promethea. Se
no primeiro capítulo do romance, o leitor poderia cansar-se com o número de
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informações, parece que os autores evitaram isso acelerando a narrativa nesse segundo
momento.
A história começa com duas importantes citações. Contrastando imagens
urbanas que remontam a diferentes aspectos da sociedade de consumo, Moore coloca
nos lábios de sua protagonista a fala “Me sinto cheia de algo. É... Significado. Me sinto
cheia de significado” (Promethea 2, p. 3). A frase de Promethea diz respeito a sua
própria condição de personagem literária que se relaciona com uma série de outras
idéias, conhecimentos e mitos, em oposição à uma existência intelectualmente vazia em
que o pensamento é início e fim em si próprio, e não um meio para alcançar outras
percepções e saberes. Também é digna de nota a menção aos símbolos que nunca
mudam como o próprio símbolo da Sabedoria, ilustrado pelo Caduceu usado na
medicina e também pela heroína.
O caduceu era o principal emblema de Hermes, representado por um bastão com
duas asas em sua ponta, em torno das quais duas serpentes se entrelaçavam. Símbolo
milenar que remonta a culturas bem mais antigas que a grega, foi comumente
relacionado com energia criativa e busca por conhecimento. As serpentes, chamadas de
Od e Ob, em Promethea de Mack e Mick, representavam as qualidades opostas do
espírito humano. É usado modernamente no símbolo da contabilidade e da medicina,
sendo nesta conhecida como Caduceu de Asclépio, relacionado com a astrologia e com
a cura de doenças.
Era também o emblema do deus grego Hermes, como vimos um dos pais divinos
da personagem. Embora a simbologia da serpente esteja associada ao mal e a falsidade,
sobretudo por sua relação com o Gênesis bíblico, para os antigos ela era símbolo de
conhecimento e sabedoria oculta, além da cura que seu veneno devidamente diluído
poderia significar, explicação para seu símbolo ser usado na medicina ainda hoje.
No decorrer de toda a história, assistimos a protagonista ser perseguida pelos
demônios Marchosias e Andras, invocados por Solomon. O primeiro é nomeado em
livros de demonologia como um marquês do inferno. O segundo, o demônio
responsável pela discórdia no mundo. Após deixar Bárbara no hospital, Sophie vai a
procura de Stacia para lhe contar o que aconteceu. É no show da banda de rock Limp,
que também apresenta nas letras de suas músicas o mesmo tipo de sentimentalismo do
gorila chorão, que ela encontra a amiga. Se primeiramente o Templo havia enviado a
entidade Smee, agora Solomon é enviado para destruí-la. O ocultista pensa que dois
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demônios seriam suficientes para a tarefa. Como os autores do título demonstram,
Sophie é mais especial do que ela própria supunha.
Figura 04 – O símbolo do caduceu no hospital de Nova York; Promethea enfrenta Marchosias e Andras - Promethea 02, p. 04, 16 e 17. Moore, Williams III, Gray e Klein
O capítulo termina com os demônios sendo derrotados e retornando ao inferno.
Promethea os expulsa usando um sinal de luz em formato de um pentagrama.
Originalmente, o pentagrama era conhecido como o símbolo da deusa Vênus embora
pudesse ser associado a uma série de outras divindades. Ele também marcava, para os
antigos, a movimentação astronômica do planeta Vênus ao redor de sua órbita.
Associado aos cultos mágicos antigos e pagãos, foi completamente distorcido pela
igreja como simbologia demoníaca. Ele relaciona-se justamente com os quatro
elementos, ou as quatro armas psíquicas que Sophie apreenderá nos próximos capítulos
de Promethea, que seriam organizados pelo quinto, o espírito humano.
Sugado pelo mesmo portal criado por Marchosias e Andras, Stacia acaba indo
parar na Imatéria. No último painel, Textura anuncia, após noticiar o ataque no show
dos Limp, denúncias de assédio sexual envolvendo o prefeito de Nova York, Sonny
Basquerville, que entre outras particularidades, possui mais de quarenta personalidades.
Esse será um dos personagens importantes dos próximos capítulos de Promethea.
Esse capítulo intermediário prepara o leitor, assim como a própria personagem,
para o próximo estágio do seu desenvolvimento intelectual e místico. Se no primeiro
capítulo ela percebeu que havia algo de misterioso e interessante na velha história de
Promethea, agora ela tem uma idéia melhor do seu próprio poder mental, de sua própria
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imaginação. Para resgatar Stacia, Sophie deve preparar sua mente para finalmente
adentrar no universo de Imatéria.
3. Promethea, terceiro capítulo: visitando A Misteriosa Terra Encantada
Na parte três do primeiro volume de Promethea, a história tem início com um
conflito entre os Cinco Caras Bacanas, que começam a se mostrar menos perfeitos do
que aparentavam, depois de um deles levar um tiro de seu arquiinimigo, o Boneco
Pintado. Enquanto isso, a protagonista da série finalmente conhece Imatéria, a
anunciada terra das histórias nas palavras de Thot-Hermes. Nessa Misteriosa Terra
Encantada do título ela não apenas reencontra sua amiga Stacia como também dialoga
com diversas personagens dos contos de fadas, como Chapeuzinho Vermelho e Lobo
Mau, além do já mencionado Gorila Chorão.
Seguindo as orientações de Bárbara, Sophie aprende que apenas recorrendo a
sua própria imaginação poderia chegar à Imatéria. Também escuta da amiga que
representações físicas de Imatéria, como pinturas, poemas, desenhos e outras, seriam
somente a representações simbólicas que visariam fortalecer a mente do viajante para
chegar até lá, mas em nada correspondendo à beleza e à perfeição do lugar. Seguindo as
instruções de Bárbara sobre a organização poética ou artística desses símbolos,
gradualmente Sophie percebe o hospital em que a amiga está, ou em outras palavras o
mundo físico como um todo, desaparecer e em seu lugar surgir Imatéria, um mundo
construído unicamente pelas percepções mentais de Sophie. É um lugar onde as ficções,
as histórias, os símbolos, toda e qualquer idéia humana já concebida, são inteiramente
reais para o observador. Sua intensidade é indissolúvel e justamente por isso o perigo de
se perder ou de enlouquecer nesse nível de existência onírica.
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Figura 05 – A misteriosa terra encantada de Imatéria Promethea 03, p. 10 e 11. Moore, Williams III, Gray e Klein
Maravilhada pelo que vê, ruínas antigas, animais de diferentes cores, leis físicas
sendo ultrapassadas, entre outras coisas, Sophie começa a perder sua lucidez nesse
mundo tão dissonante em relação às leis e precisões físicas e materiais do mundo que
deixou para trás. Seu próximo passo, recuperar a Clareza e a Coerência, particularidades
fundamentais do mundo físico que também são úteis ali. Retomar essas capacidades da
mente racional não teria por objetivo destruir as criaturas exóticas e os cenários
simbolistas de Imatéria e sim clarear a mente para melhor desfrutá-los. Quem ensina a
Sophie a importância dessas ferramentas mentais é uma Chapeuzinho Vermelho mais
cínica do que se poderia esperar.
Além de Clareza, Sophie também percebe outros filtros de percepção racional e
analítica, como Distanciamento e Ironia, que seria igualmente de auxílio nessa primeira
visita a Imatéria. Após encontrar uma série de outras ilusões atraentes, Sophie encontra
Stacia, chorando e lamentando sua própria existência enquanto escuta as elucubrações
sentimentais da personagem Gorila Chorão. Enquanto Promethea, inicialmente vê na
deprimente personagem a coleção de clichês que ele comporta e o ícone comercial que
é, Stacia se deixa levar pelo sentimentalismo exagerado dele. Sophie consegue superar o
estarrecedor efeito emotivo provocado pela série de jargões do Gorila por lançar contra
ele uma série de postulados antitéticos de cunho otimista. Ao fim, o personagem vai a
nocaute diante de uma percepção imaginaria que já começa a dar amostras de seu
amadurecimento.
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Figura 06 – Promethea, Stacia e o Gorila Chorão Promethea 03, p. 18 e 19. Moore, Williams III, Gray e Klein
Embora Moore pareça superficial ao tratar de Imatéria como uma série de
sentimentos ou idéias puras, essa simplicidade inicial ilustra muito bem o início do
desenvolvimento de Sophie, que pela primeira vez acessa um tipo de realidade ficcional
imaginária tão diferente de sua realidade anterior. Por outro lado, Moore está discutindo
algo mais sério aqui do que a aparente presença de personagens das fábulas poderia
indicar. Na verdade, Imatéria corresponde a própria noção platônica do mundo das
idéias. Segundo o filósofo, nesse universo de imagens, idéias e elementos, seres e
objetos que ali vivem, em estado puro e único, não apresentariam nem a profundidade
nem a substancialidade dos seus correlativos físicos. Essa relação de Imatéria com o
Mundo das Idéias de Platão será aprofundada e mais detalhada em capítulos posteriores
de Promethea.
Nesse sentido, essa fase da jornada de Sophie tem por objetivo ensinar a jovem
viajante como esses estágios iniciais de percepção mediada não pelos sentidos, mas
pelas potencialidades da mente, podem ser alcançados. Nesse sentido, não falaríamos
de um entregar-se totalmente, mas em um espontâneo lançar-se à imaginação, porém
filtrado pelas camadas do raciocínio, da clareza e da observação mais atenta.
Ao fim dessa primeira jornada pelos reinos oníricos de Imatéria, Sophie volta ao
mundo da realidade pretendendo continuar, agora mais atentamente, sua pesquisa sobre
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as várias encarnações de Promethea, bem como sobre a própria constituição e
organização de um mundo como Imatéria. É partir desse ponto que o verdadeiro
aprendizado de Sophie terá início.
4. Promethea, quarto capítulo: A tragédia de Chalton Sennet e seu Romance de
Fadas
A partir dessa edição, a jornada de Sophie será dupla. Além de conhecer cada
uma das encarnações anteriores do mito de Promethea, ela também aprenderá como usar
as quatro armas psíquicas mais importantes para adentrar de fato no mundo da
imaginação. Para o início dessa jornada, Sophie faz o que qualquer interessado em
assuntos ocultos poderia fazer: visita uma biblioteca. Lá, enquanto Sophie pesquisa no
livro de Sennet, a primeira aparição de Promethea, Stacia pesquisa na internet páginas a
respeito da expressão “Promethea”.
Enquanto isso, o leitor testemunha os esforços dos médicos de Bárbara para
salvá-la da misteriosa infecção provocada pelo ferimento da entidade Smee. Para saber
sobre suas chances de sobrevivência, Bárbara decide “desconectar-se” de seu corpo e ir
para Imatéria, onde, pela primeira vez, observamos todas as encarnações anteriores de
Promethea. Nas páginas quatro e cinco da quarta edição podemos observar essas
personagens na seguinte ordem: primeiramente Bárbara, fechando a porta que a trouxe
da realidade física, Anna, de costas para nós, Grace Brannagh em pé, Margaret Taylor
Case, flutuando e Bill Woolcott, deitada no chão, com a pequena Margie atrás dela.
Figura 07 – As Prometheas Bárbara, Anna, Grace, Margareth e Bill Promethea 04, p. 04 e 05. Moore, Williams III, Gray e Klein
Chegando lá, Bárbara conversa com as outras Prometheas sobre os
acontecimentos das últimas horas e sobre a nova heroína escolhida como recipiente
humana, Sophie Bangs. As cinco heroínas tecem comentários sobre a fragilidade de sua
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nova emanação terrestre e também da “confusão e do deslumbre do mundo mortal”
(Promethea 4, p 8) no ano de 1999. Elas deixam claro que o atual período da vida de
Sophie corresponde a uma fase de transição na qual sua inexperiência será testada pelos
antigos inimigos da heroína.
De volta à biblioteca na qual Sophie e Stacia pesquisam, a primeira mais uma
vez lê o livro Um Romance de Fadas, no qual há a primeira menção ao mito de
Promethea. Junto com a protagonista, o leitor descobre, na biografia do autor do livro,
como Promethea passou a existir na década de 1790. O poeta romântico Sennet havia se
mudado para uma cabana no território rural londrino com sua esposa Emily e a jovem
empregada Anna. O escritor passava seus dias compondo um longo poema sobre fadas
no qual Promethea aparecia como uma coadjuvante menor, uma das quatro fadas que
acompanham a Rainha Titânia. Como Sophie havia escrito no seu artigo, um “plágio
direto de Sonho de uma Noite de Verão, sobre o qual Sennet parece ter tido a idéia de
criar seu próprio poema” (Promethea 1, p. 30). Ela passa então a citar os versos nos
quais a menção à heroína apareceram pela primeira vez.
E, então, das clareiras como por diamantes iluminadas, Surge um numeroso cortejo, de doçura fantástica, De fadas, demônios e criaturas não nomeadas: Asas em ansiedade enorme e frenética Em torno de sua Rainha, quatro ninfas em alerta, Cada uma com belezas raras, por armaduras enlaçadas: Prímula e Linho, e Jenny da Floresta E a doce Promethea, com suas mechas trançadas. (Promethea 4, p.12)
Com tais versos, que fazem Sennet associar sua criação poética com a imagem
da humilde empregada da casa, Anna, surge pela primeira vez Promethea. Nesse
instante, Moore passa a aprofundar a oposição Realidade/Imaginação, tão caro a ele
quanto a outros autores, em especial para o poeta do mesmo período de Sennet, William
Blake. Poeta de quem o escritor inglês tem grande influência. Mas não apenas ele. Em
especial na história de Sennet, há um diálogo muito interessante com o conto do escritor
austríaco o conto de Arthur Schnitzler, Meu amigo Ypsilon, que apresenta um poeta de
definidos traços românticos como o próprio Sennet.
Com a trágica história de Sennet, Moore demonstra o quanto as advertências
dadas à Sophie no capítulo anterior eram verdadeiras, sobre quanto o vivenciar uma
fantasia, sem os filtros da Clareza, do Distanciamento e da Ironia, poderiam ser
devastadores num intelecto despreparado. O relato de Sennet, ilustrado pelo artista de
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Contos de Fadas e também quadrinista Charless Vess, conta o modo como ele e Anna,
imersos em seu próprio desejo um pelo outro, não percebem a chegada da esposa do
poeta. Após ter o casamento arruinado, Sennet assiste ao nascimento de seu filho, meio
real, meio história, nascimento que leva o corpo de Anna à Morte. “Não era Anna que
eu amava. Era a fantasia que eu criara sobre ela” (ibidem, p. 17), afirma ele, tendo fadas
simbolicamente dançando ao redor de sua cabeça e tendo sua vida destruída.
Na história de Sennet, Sophie aprende o que há de perigoso em entregar-se a
uma ilusão. Para ela a concretização de sua jornada deve ser física e espiritual, não uma
entrega irresoluta a uma fantasia ou a algum universo de sonhos e desejos realizados
apenas na mente do seu criador. Enquanto lê, Sophie não percebe o jovem homem que
se aproxima. Deixando a história de Sennet para trás, quando fecha seu romance e sua
biografia, Sophie percebe que não está mais sozinha.
Como um alter-ego do próprio Moore, dentro da sua história, somos
apresentados ao mago Jack Faust, que usa os mesmo anéis do escritor nas fotos em que
aparece. Enquanto Sophie aparece frágil e cabisbaixa, Faust se apresenta como um
homem belo e jovem, extremamente atraente. Num rápido diálogo, as duas ilusões são
desfeitas. A vigorosa Promethea e um decadente e nada sedutor Jack são reveladas por
suas essências mágicas. Promethea é muito mais bela que a frágil e franzina Sophie.
Jack Falst é bem menos fascinante do que sua ilusória aparência prometia. Ele “gosta de
manter as aparências” (ibidem, p. 20), dizem as Prometheas de Imatéria, que assistem
ao diálogo.
Figura 08 – Sophie, Promethea e as duas aparências de Jack Faust Promethea 04, p. 16 e 17. Moore, Williams III, Gray e Klein
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O diálogo com Faust revela dois segredos importantes para Sophie: que ela deve
preparar-se para os inimigos anteriores de Promethea, que já foram revelados como o
ocultista Benny Solomon e a organização chamada O Templo. O segundo segredo
elucida o porquê do ódio destes por Promethea: Benny e o Templo acreditam que ela
“irá acabar com o mundo” (ibidem, p. 22). Essa revelação corresponderá ao principal
efeito dramático pretendido pelos autores de Promethea: apresentar uma leitura
destoante da comum interpretação da expressão bíblica Apocalipse, grande evento que
findará a série em seu quinto volume. Nas palavras das cinco Prometheas, que
continuam observando Sophie, Jack a estaria desviando de sua verdadeira jornada, na
medida em que revela a ela conhecimentos futuros que ainda não estaria preparada para
receber.
Sophie é liberta da ilusão provocada por Jack com a chegada de Stacia que traz
seus “resultados” sobre Promethea obtidos na Internet. A história termina com Sophie
narrando a amiga o efeito emocional que a história de Sennet teve sobre ela. Diferentes
das informações fugidias obtidas por Stacia na rede mundial – algo sobre um livro
chamado O Livro de Promethea, uma banda de rock alternativo e uma espécie de
borboleta rara – Sophie deixa a biblioteca fascinada pelo poder dos grandes contos do
passado. Como Sennet, ela poderia ter escrito: “Abraçando o céu, a terra escorre pelas
nossas mãos, assuntos mundanos se fragmentam e desabam. Nós alcançamos aquele
lugar que homem algum compreende, onde a razão fraqueja e o cego amor impera”
(ibidem, p. 15).
5. Promethea, quinto capítulo: soldados e heroínas perdidos numa Terra de
Ninguém
A capa do quinto capítulo é inspirada na arte de Joseph Christian Leyendecker,
autor do pôster Armas pela Liberdade, usado para ajudar no recrutamento de soldados
americanos na primeira Guerra mundial. A história tem início justamente no ano de
1915, em Ypres, Bélgica, com um soldado ferido num campo de batalha. Entre lama,
arame farpado e rosas, rodeado dos corpos de outros combatentes mortos, Promethea
surge para resgatá-lo, dizendo que a guerra, diferente do que o soldado acredita, não se
origina da vontade divina e sim do egoísta poder humano. Segundo ela, é de sofrimentos
como aqueles que Ele estaria “tentando nos livrar” (Promethea 5, p. 3).
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Na mesma página há também uma indicação das origens milenares de
Promethea. O soldado diz que ela tem uma voz que parece árabe e ianque ao mesmo
tempo. “Sou um pouco dos dois” (idem), responde ela, aludindo às crenças do ocidente
e do oriente. Não lados opostos, mas diferentes visões de uma mesma unidade. Essa
leitura ganhará ainda mais relevo no capítulo vinte e quatro da série, quando os autores
de Promethea mostrarão as Cruzadas medievais e seus dois exércitos, católicos e
muçulmanos, cada um deles possuindo diferentes personificações da heroína.
Figura 9 – Capa de Promethea 5, por Moore, Williams III, Gray e Klein e cartaz Armas para Liberdade, de Christian Leyendecker
No presente, Sophie e Stacia, na Escola de Mentes Elevadas, estão discutindo
justamente as lendas de Promethea que surgirem entre alguns sobreviventes da primeira
guerra. Stacia descobriu o livro de Hélène Cixous, citado no final do último capítulo,
que data de 1984. Enquanto ela cita o livro para Sophie, essa recebe uma ligação do
hospital informando que o estado de saúde de Bárbara está piorando. A amiga lembra
Sophie que ela tem que se preparar para os futuros ataques de Solomon e do Templo.
Para isso, deve retornar a Imatéria. Lá, Sophie, com a ajuda de Margareth Taylor Case,
que atuou como heroína no conflito mundial, tomará conhecimento das armas psíquicas
necessárias a sua existência como Promethea.
Chegando em Imatéria, Sophie encontra estranhos animais chamados
Pandelírios. Nas palavras de Margareth, que a recebe, são animais que devem ser
afastados de qualquer jornada espiritual. “São apenas distrações”, informa ela,
“pensamento tagarelas e inquietos para desviar a mente. Temos que ser severos com
eles” (ibidem, p. 12). Numa página em que Sophie e Margareth trilham uma escada
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descendente que leva ao conhecimento, dialogam a respeito das principais
características desse mundo de idéias.
Margareth: As regras são muito simples, assim que você as conhece. Fico feliz por ter vindo, Sophie. Você precisa de orientação, de conselhos. Sophie: É. Foi o que a Bárbara disse. Escuta, antes de tudo, ainda estou no hospital imaginando essa conversa, certo? Margareth: Bem, sim. Seu corpo esta em um lugar físico, e isto aqui fica na imaginação. Não na sua imaginação, no entanto. Mas nA imaginação. Sophie: “A imaginação”? Você fala como se só houvesse uma delas. Margareth: Exato. Há um mundo material e um mundo imaterial. Ambos existem, mas sob formas diferentes. Por exemplo, cadeiras existem. Como a idéia de cadeiras. Sophie: Bom... sim, mas... digo, as imaginações das pessoas são separadas, não são? Quero dizer, todo mundo tem seu espaço mental particular... Margareth: Claro que têm. Assim como suas casas são seus espaços físicos particulares. Mas o território externo pertence a todos. Sophie: Mas se sua mente fosse como um lugar... então, sempre que alguém seguisse uma linha de pensamento... Margareth: ... estaria trilhando um caminho em Imatéria. Humanos são anfíbios, Sophie. Isso significa que vivem em dois mundos ao mesmo tempo: matéria e mente... Mas muitas pessoas vêem apenas o mundo sólido ao qual foram condicionadas a pensar como mais real... enquanto ao redor delas geleiras de diamantes rangem e vulcões de estrelas retumbam. (ibidem, p. 13-14)
O diálogo interessa a esta análise por dois aspectos. Primeiramente por ele
estabelecer, ao lado de visionários como São João da Cruz, William Blake e outros, que
os seres humanos vivenciam duas experiências distintas: aquela propiciada pelo mundo
físico, que é percebido pelos cinco sentidos – audição, visão, olfato, paladar e tato – e
outra propiciada por sua capacidade mental. Assim, os homens trabalhariam, estudariam
e se relacionariam com outros seres humanos na realidade física, ao passo que
imaginaria, pensaria e sonharia numa outra realidade que nomearam de realidade
psíquica ou espiritual. Sobre essa segunda realidade, Margareth deixa claro a Sophie
que ela pode tanto ser múltipla, por dizer respeito ao número de todos aqueles que
imaginam, pensam ou sonham, como também uma, uma grande cidade, feita de muitas
ruas.
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Figura 10 – Contraste entre a realidade física e o mundo imaterial no romance Promethea 05, p. 7-8 e 11-12. Moore, Williams III, Gray e Klein
Em segundo lugar, o diálogo também reforça a relação entre a noção de Moore
para Imatéria e a noção platônica do Mundo das Idéias. Enquanto o último exemplifica
a imagem ideal de um cavalo, a personagem do escritor inglês usa a imagem de uma
cadeira. Essas imagens ideais seriam conceitos abstratos, generalizações, que
corresponderiam não às especificidades de suas contrapartes físicas – cores, tamanhos,
matérias, espécies no caso de seres vivos – mas às suas particularidades gerais.
Nesse ponto, é necessário interromper a discussão sobre o quinto capítulo do
romance, para especificar o tipo de descrição que Imatéria recebe na obra de Moore,
bem como sobre a opinião do próprio autor sobre esse universo ficcional de idéias.
Primeiramente, devemos esclarecer que o Espaço-Idéia, nome que Moore dá a essa
realidade de idéias, sensações e histórias em entrevistas e outros ensaios, está muito
próximo da sua versão ficcional de Promethea. Que, por sua vez, encontra um co-relato
muito próximo com o Mundo das idéias de Platão. Trata-se de um espaço etéreo, não
visto nem perceptível empiricamente, que seria o responsável pelos principais conceitos
que se fazem presentes em nossa realidade física.
Segundo Stephen Law em Filosofia, o Mundo das Idéias de Platão é mais
abstrato do a história o interpretou. É mais uma realidade mental, individual, em cada
aspecto do mundo físico possui um correlato conceitual geral que estabelece a natureza
de um carvalho ou de um animal qualquer, ou até da diferença entre um homem e uma
mulher, por exemplo. Segundo o autor, o homem poderia acessar indiretamente esse
mundo quando usasse sua “visão intelectual” (2008, p. 246). Agora contrastamos essa
conceituação geral com as palavras do próprio autor.
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A conceituação de Moore para esse Mundo das Idéias é anterior à Promethea, já
tendo sido usado em duas outras obras, Supreme e Glory, personagens de Rob Liefield,
da Image Comics, e praticamente ignorados até serem escritos por Moore. Em Supreme,
o Espaço Idéia era um mundo conhecido pelo herói, que culminava com o deus criador
daquele mundo povoado de heróis patrióticos, grupos de aventureiros e outros
arquétipos dos quadrinhos, numa brincadeira com o pai do universo Marvel, Jack Kirby.
Esta entidade gigantesca explica a Supreme que ele foi um artista de carne e osso e sangue, mas agora ele está completamente no reino das idéias, que é muito melhor porque a carne e os ossos e o sangue tem suas limitações, já que ele podia fazer somente quatro ou cinco páginas em um dia de trabalho; mas agora ele existe puramente no mundo das idéias. As idéias só podem fluir sem interrupções. Ele fala sobre todo um conceito de um espaço onde idéias são reais, que é o tipo de lugar onde, de algum modo, todos os criadores de quadrinhos trabalham durante toda a sua vida, talvez Jack Kirby mais do que a maioria. É como se uma idéia se tornasse livre do corpo físico, e este artista pode então explorar os mundos infinitos da imaginação e das idéias.4
Antes de concluir nossa definição do Espaço-Idéia de Moore, é necessário
contrapormos o tempo ao seu oposto, aquilo que chamamos de Realidade. No texto “O
que é a realidade?”, o autor escreve sobre o texto de Moore, “Holy Smoke”, baseada
numa rápida aparição no London Weekend Television, no qual é ele convidado a
responder a pergunta acima. Moore afirma que a Realidade, aparentemente é uma coisa
simples: tudo aquilo que o homem tem fisicamente ao seu redor. A Televisão a sua
frente, o sofá em que está sentado, o copo de vidro em sua mão e o líquido dentro dele.
São objetos que podem ser medidos e pesados, estudados e pesquisados em suas
características físicas, materiais. Em oposição a essas coisas, o homem também tem
algo, nas palavras de Moore, “inquantificável”, que é a consciência. Essa seria formada
por suas “memórias, idéias e sentimentos, aquilo que chamamos identidade subjetiva”, e
que os homens sabem que existe, embora não saibam dizer exatamente o que seria.
Essas idéias, segundo Moore, não são novas, tendo mais de dois séculos de existência.
Até o século dezoito, o famoso século das luzes, da Razão, a humanidade havia
“polido estratégias para interagir com o mundo do imaginário e do invisível:
complicados sistemas mágicos; abrangentes panteões de deuses e espíritos, imagens e
nomes que nós classificamos como poderosas forças internas, de forma que poderíamos
4 Esse e outros artigos sobre Moore podem ser encontrados no site: http://www.alanmooresenhordocaos.hpg.ig.com.br.
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entendê-las melhor”. A ciência, ao lado da história e da antropologia, conseguiu
tranqüilamente provar que tais criações, mitos, lendas, ou qualquer outra terminologia
que se queira dar para as crenças dos antigos, nunca existiram realmente. Entretanto, os
efeitos de tais crenças eram e ainda são, insiste Moore, bem reais. Embora possam não
ter poder sobre o mundo material ao redor do homem, tais crenças significaram uma
determinada realidade mental, e daí sua validade na vida das pessoas.
Se o Cristo, alguma vez, tivesse sido considerado apenas ficção, uma idéia divina, isto invalidaria as mudanças sociais inspiradas por esta idéia, feito das guerras santas menos terríveis ou o aperfeiçoamento humano menos real, menos sagrado? O mundo das idéias é, de certo modo, mais profundo e mais verdadeiro que a realidade; esta televisão sólida é menos significante que a idéia de televisão. Idéias, ao contrário de estruturas sólidas distintas, não perecem. Elas permanecem imortais, imateriais e em todos os lugares, assim como todas as coisas divinas. Idéias são uma paisagem dourada e selvagem onde vagamos inadvertidamente sem um mapa. Tenha cuidado: em última análise, a realidade pode ser exatamente o que achamos que ela seja.5
O reconhecimento dessas duas realidades distintas, a física e a mental, seria o
início da jornada espiritual de Sophie em Promethea. Na concepção de Moore,
experimentar e aventurar-se por essa terra de pensamentos, idéias e sonhos, seria
objetivo de toda a jornada mística. Mais adiante, num cenário multicolor que amalgama
os elementos de Alice no país das maravilhas com uma loja de doces contemporânea,
Margareth explica a Sophie porque o poder de Promethea é tão temido. Ela “torna as
pessoas mais cientes deste vasto reino imaterial. Talvez as incite a explorá-lo”, talvez as
ensine a irem “da matéria... para a mente” (ibidem, p. 15). Esse salto de percepção no
qual a humanidade veria as coisas como elas realmente são, “infinitas”, para usarmos
uma expressão de Blake, é o que Promethea prenuncia àqueles que, assim como Sophie,
buscarem se aventurar dentro de suas próprias percepções. O resultado final dessa
jornada corresponderia ao que muitos chamam de Apocalipse.
As palavras de Margareth assustam Sophie que sempre ouviu a expressão
Apocalipse ou Fim do Mundo associada à destruição do planeta e do cosmos. Williams
III e Gray ilustram essas diferentes interpretações do termo por meio de dois painéis de
página dupla. No primeiro, há a representação de imagens envolvendo nações, guerras e
campos de batalhas. No segundo, a representação pictórica dos “temíveis” quatro
5 Originalmente traduzido no site www.alanmoore.cjb.net, também outra fonte de informações sobre o escritor.
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cavaleiros do Apocalipse. Segundo Margareth, o mundo que terá fim será o mundo que
representa o atual “sistema, nossa política, nossa economia... nossas idéias do mundo!”.
Para esse mundo, Promethea não é apenas um salto de imaginação, mas a
destruição completa de uma sociedade que permite e incentiva a morte de inocentes dos
mais variados modos. Promovida por pessoas que desejam que o mundo continue como
está, no qual continuarão tendo poder sobre os outros, a guerra seria, segundo
Margareth, a antítese de Promethea. Se essa representaria a imaginação, a guerra
simbolizaria a falência da imaginação, restando apenas atos de violência, de morte e
destruição.
Figura 11 – O mundo atual na visão de Promethea Promethea 05, p. 17-18. Moore, Williams III, Gray e Klein
Para contrastar o reino material da guerra e do sofrimento, o reino sobre o qual
os quatro cavaleiros cavalgam, Margareth passa a ilustrar a Sophie os sete elementos ou
esferas, os planetas da antiga tipologia astronômica clássica, que simbolizariam as
qualidades de Imatéria. Para os antigos, essas esferas simbolizavam não apenas
qualidades ou características, mas também estados tanto individuais quanto universais.
Eram eles Terra, Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte e Júpiter, tendo por qualidades
respectivas a percepção física, imaginação, intelecto, emoção, equilíbrio, julgamento e
poder criador.
Em Promethea, Margareth organiza esse conhecimento estelar e planetário, num
belíssimo painel em que Williams III, Gray e o colorista Jerome Cox não apenas
representam as respectivas cores de cada astro (Marrom, Roxo, Laranja, Verde,
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Amarelo, Vermelho e Azul) como também seu respectivo símbolo. Da Terra, Margareth
diz que ela é apenas a “ponta do iceberg que é visível acima da linha da maré da
realidade. Matéria é uma parte que foi cristalizada, onde a luz da mente se petrificou em
substância concreta”. Sobre a Lua, que ela representa “a imaginação, o enluarado
mundo do sonho e ficção, fantasias sexuais e mente inconsciente. Estes atributos
lunares, imaginação e romance, são os portões cravejados de jóias de Imatéria”. Ao
observarem o terceiro planeta da constelação antiga, Mercúrio, Margareth diz que “além
da esfera lunar, está o domínio mercurial do intelecto e da ciência, da magia e da
linguagem. O presente mais precioso da humanidade, a comunicação tem sua fonte
aqui.” De Vênus, Promethea informa que ele é “o rico cenário venusiano da emoção”.
Depois dele, no Sol, “mais tênue que os sentimentos amor, alegria ou aflição, dos
dourados raios solares atingirem a alma humana. Este é o polimento que nos damos às
nossas manchas, quando alcançamos a Imatéria”. De Mercúrio, penúltimo planeta,
Promethea diz que elas estão “movendo através da severa estratosfera do julgamento
universal, que inclina o balanço do cosmos”. Em Jupiter, é onde, após o julgamento, os
“deuses dos raios e das tempestades brincam. Além disso, há o precipício de todas as
coisas” (Ibidem, p. 21 e 22).
Figura 12 – O sistema astronômico clássico, recriado em Promethea Promethea 05, p. 21-22. Moore, Williams III, Gray e Klein
É interessante também anotarmos que a arte de Williams III e Gray também
apresenta uma série de elementos iconográficos para reforçar o sentido de cada uma
dessas esferas. Na Terra é representada por espigas de milho e nuvens. A lua, com o
beijo de dois amantes. Mercúrio com a diagramação de números, fórmulas e, em
primeiro plano, as cabeças dos deuses Toth e Hermes. Vênus pela famosa pintura de
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Boccitelli, além de flores e cúpidos. O Sol pela dupla de cruzes e abaixo delas, seus
significados: a coragem do Leão e a benevolência do Cordeiro. Mercúrio com a balança
associada à justiça e Júpiter, por raios que cortam a página. Também é necessário
apontar que Moore e os artistas de Promethea voltarão a esses mesmos reinos
planetários quando embarcarem sua protagonista numa jornada os sephiroth da Árvore
da Vida da cabala, jornada que se mostrada dos capítulos treze ao vinte e quatro do
romance.
O quinto capítulo termina com Sophie, ainda em Imatéria, perdida no reino de
Hy Brasil, terra imaginária que tem a Promethea Grace Brannagh por heroína. Enquanto
isso, na realidade física, a jovem é encontrada inconsciente no hospital. Levada a uma
outra sala, ela chama a atenção do vidente Kenneth, integrante dos Cinco Caras
Bacanas. Ao fim desse capítulo, o leitor correrá o risco de ficar um tanto exausto pelo
número de referências e “revelações” feitas pela Promethea Margareth Taylor à Sophie.
Mas esse é apenas o primeiro de muitos outros capítulos nos quais Moore continuará
“bagunçando” a mente do leitor desavisado, com suas inúmeras referências históricas e
místicas.
Para este estudo, surpreende o modo como Moore espalha pistas importantes no
decorrer de toda a série para serem apenas compreendidas mais a frente. Como exemplo
dessa estratégia narrativa complexa e surpreendente do autor, quando Margareth diz, em
meio a explicação dos elementos planetários, que “os mundos dentro e fora de nós têm a
mesma estrutura e o mesmo padrão”. Aqui, Moore alude à visão espiritual da
Imanência de que a estrutura do corpo humano, em sua organização molecular, é
curiosamente parecida com a própria estruturação do universo. Sendo homem e
universo “iguais”, na opinião dos defensores da Imanência, estudar o homem seria
estudar o próprio cosmos ou o divino. Futuramente, Moore e os artistas de Promethea
mostrarão isso ficcionalmente, quando Sophie visitar cada um desses planetas, embora
continue aprofundando ainda mais a pesquisa e o conhecimento de si própria.
6. Promethea, capítulo seis: Sophie encontra a violenta Princesa Guerreira de Hy
Brasil
O capítulo começa com Sophie sendo perseguida, em Hy Brasil, por estranhas
criaturas parte homens parte répteis. Essa estranha terra é governada pelo temível Marto
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Neptura. Nele, Moore aproveita para ironizar os escritores fantasmas da década de vinte
e trinta que assinavam vários títulos de quadrinhos com pseudônimos nada originais.
Grace diz que autores fantasmas como ele, tiraram todo o trabalho que ela poderia tido
naquelas décadas. Nessa estação de Imatéria, Grace Brannagh é a Promethea e Neptura
o deus inimigo que desejaria sua destruição. Para Grace, suas histórias repetitivas e
inverossímeis indicavam o quanto ele “era um escritor, mas não um bom escritor. Ele se
repete excessivamente. Há pouquíssimas surpresas em sua manga e, francamente, você
as vê a um quilômetro de distância” (Promethea 6, p. 15).
Após ser salva pela violenta Grace, segunda encarnação, esta revela a Sophie o
significado do encontro anterior com Margareth. Segundo Grace, “o forte dela é a
compaixão, simbolizada pelo cálice. Foi o que ela lhe ensinou, o caminho do cálice.
Agora eu vou te ensinar o caminho da Espada” (Promethea 6, p. 12). A partir dessas
duas chaves, Cálice e Espada, chegamos aos quatro elementos que compõem essa
primeira grande jornada proposta pelos autores de Promethea, pelo conhecimento
místico. Futuramente, Moeda e Bastão também serão ensinados a Sophie, pelas outras
encarnações da Heroína.
Figura 13 – Sophie, Promethea Grace Brannagh e os monstrous de Hy Brasil - Promethea 06, p. 10 e 11. Moore, Williams III, Gray e Klein
Grace também esclarece que tais objetos são meramente simbólicos, como tudo
nessa jornada. São signos que significam outras coisas. Espadas nesse reino, embora
afiadas, representam a razão e a compreensão, armas que destroem a superstição e as
ilusões nocivas. Enquanto Sophie recebe esse aprendizado de Grace, as duas são
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perseguidas pelas entidades nada originais (crocodilomens e folhas parasitas, entre
outras) enviadas por Neptura, para as destruir.
Essa perseguição acontece pelas pequenas ruas e becos de Hy Brasil. Este
território de Imatéria também não é uma invenção aleatória de Moore e sim uma alusão
à mística terra perdida da idade de ouro. Em algumas versões Hy Brasil estava
relacionada com a Atlântida perdida, em outras, as misteriosas Índias buscadas pelos
navegadores renascentistas. Nos contos de fadas seu correlato seria a Terra Encantanda
ou o Tir-Na-Nog celta. Sobre a origem dessa representação, Geraldo Cantarino, no texto
“De onde vem o nome Brasil: da madeira ou de uma ilha?”, o nome do país não viria da
árvore de mesma nomeação que era exportada e usada, sobretudo para tingir de
vermelho as vestes da nobreza européia. Antes, adviria de uma antiga tradição celta de
serem eles os primeiros colonizadores da distante terra. Sobre as particularidades
exóticas e fabulosas da ilha, o autor afirma:
Mais do que um simples punhado de terra cercado de água por todos os lados, a Ilha Brasil foi um lugar mitológico, mágico, sagrado, considerado a morada de fadas e divindades. O próprio nome viria de um semideus, Breasal, considerado o grande rei do mundo e que vivia no país chamado Hy-Brasil ("Hy" vem de "í", abreviação de island-ilha). A Ilha Brasil pode ser vista hoje como uma representação simbólica do chamado "Outro Mundo", uma expressão cunhada pelos celtas para explicar o inexplicável. A morte, para eles, não significava o fim. A vida continuava neste outro mundo, que ficava em algum lugar, aqui na Terra, como a Ilha Brasil, e não no céu concebido mais tarde pelo Cristianismo.6
Na mudança da tradição celta para a mitologia cristã, Hy Brasil havia ganhado a
relação com o paraíso original, o Éden. Daí tantos textos, tanto no início da colonização
portuguesa quanto no século dezenove por autores românticos ou pré-modernistas,
como Euclides da Cunha, tratarem da flora e fauna brasileira como o Éden perdido.
Ao termino dessa jornada de perseguição e batalhas em Hy Brasil, Sophie
compreende o que deve aprender do símbolo da espada não é a violência obvia usada
por Grace, mas sim que precisaria ali usar a inteligência e a lógica para derrotar
Neptura. Como se trata de um pseudômino que era usado por uma série de escritores
“mal pagos e nada talentosos”, Sophie passa a citar seus nomes verdadeiros e suas
principais características narrativas. Neptura, enfraquecido, dividi-se no mesmo número
de autores fantasmas que usaram seu nome.
6
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Nas palavras de Margareth, o que Sophie empreendeu foi o uso da lâmina da
razão, numa de suas formas mais afiadas, “o reducionismo. Que é o processo de dividir
um problema maior... em vários problemas menores” (ibidem, p. 22). Conforme as
diferentes personalidades – que tinham em comum apenas as ultrajantes metáforas
sexuais para a heroína – que o compunham, ele mostra-se um personagem frágil e
insignificante, em contraste com a imagem assustadora que havia criado para si mesmo.
Figura 14 – Sophie, Promethea Grace Brannagh e Neptura Promethea 06, p. 21-22. Moore, Williams III, Gray e Klein
A seguir, Sophie precisará aprender sobre os símbolos da Moeda e do Bastão.
Segundo Grace, Will Billcott a ajudará com o primeiro deles. A história termina com a
chegada de Benny Solomon à Nova York. O primeiro volume de Promethea termina
com o personagem trancando-se em uma suíte de hotel, abrindo um livro de
demonologia e invocando uma série de estranhas entidades. Serão eles os demônios que
Solomon enviará novamente para destruir a nova encarnação de Promethea. O livro de
Solomon lembra muito em sua simbologia, o livro Gotia, de Aleister Crowley, que,
escrito numa língua estranha, trazia uma série de símbolos e descrições ocultistas. Como
veremos no segundo volume de Promethea, o próprio Crowley será um dos grandes
homenageados do romance gráfico de Moore, Williams III, Gray e Klein.
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Conclusão: entre Solve e Coagula
Em Mindscape of Alan Moore, o escritor inglês define a importância de
repensarmos os termos alquímicos Solve e Coagula, ou Análise e Síntese, na medida em
que nossa sociedade cada vez mais fraciona elementos e saberes humanos sem aparentar
preocupação alguma em recolocá-los em ordem original. Segundo ele, todo
conhecimento cientifico é, na maior parte dos casos, Solve, ao passo que a obra de arte
corresponderia ao Coagula alquímico. Depois da ênfase na desconstrução, na
experimentação e na meta-ficção, que de certa forma definem a arte contemporânea,
estaríamos novamente num período que exigiria Coagula, uma arte que recolocasse
todos os elementos humanos e culturais novamente num mesmo ambiente, numa mesma
poção. Nesse sentido, Promethea, do selo ABC Comics corresponderia a colocar
novamente todos os elementos místicos e imaginários da cultura humana num mesmo
lugar. Segundo o autor, no texto “Umas poucas palavras sobre o selo America Best
Comics” que abria as edições da linha,
Quando eu tinha oito anos, desmantelar relógios de pulso era fácil e divertido. Remontá-los, ao contrário, era quase impossível. Apesar disso, era um método eficaz de se trabalhar a criatividade: deixar coisas em pedaços e depois reuni-los novamente. Nossos primeiros cientistas, os alquimistas, descreveram esse processo pela fórmula solve et coagula, desmontar e remontar. Em tempos mais recentes, preferem-se outros termos, tais como análise e síntese, mas a idéia permanece a mesma. Quando analisamos algo, nós o fazemos em pedaços e o examinamos. Quando sintetizamos algo, nós pegamos todos os seus pedaços e os reunimos numa forma mais aperfeiçoada. Nos últimos anos, os quadrinhos têm sido analisados e desmontados; reduzidos a pedaços e estudados sob várias posições possíveis. (...) America's Best Comics representa um esforço honesto em coagular e sintetizar todos os elementos acima; recombinar as engrenagens dentro da caixa, na esperança que a montagem não apenas funcione, mas funcione melhor. (1999)
Ao final do sexto capítulo de Promethea, no meio de uma viagem pelos quatro
símbolos psíquicos de esclarecimento espiritual, o primeiro volume termina. Essa cisão
entre o sexto e o sétimo capítulo parece mais uma necessidade editorial do que parte do
planejamento ficcional dos autores. Mesmo assim, ao interromper a história em um de
seus momentos dramáticos, a curiosidade do leitor é despertada para o que vêm a seguir.
Em nosso caso, ao estudarmos cada um dos capítulos do romance, surpreende o
número de referências e relações culturais, históricas e místicas que a história de
Ano V, n. 10 – outubr0/2009
Promethea comporta. No próximo volume, a jornada pelas quatro ferramentas psíquicas
usadas no mundo da imaginação continuará, com Sophie aprendendo também sobre o
significado espiritual da união sexual e dos arcanos maiores do taro, além de uma aula
de história que vai desde a criação do cosmos até o apocalipse iminente. Obviamente,
nossa análise funciona como um desmontar o relógio para perceber suas diferentes
partes, seus diferentes mecanismos do imenso relógio ficcional montado por Moore e
pelos artistas do romance gráfico.
Referências
MOORE, Alan. WILLIAMS III, J. H. GRAY, Mick. KLEIN, Todd. Promethea -Volume Um. Rio de Janeiro, Pixel Media, 2008.
LAW, Filosofia. Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Referencias Virtuais
CANTARINO, Geraldo. De onde vem o nome Brasil: da madeira ou de uma ilha?.
http://henriquecosta.com/?p=172
NALA, Eroon. Notas para Promethea.
www.angelfire.com/comics/eroomnala/Promethea.htm
MOORE, Alan. O que é realidade?
http://br.geocities.com/alanmooresitebr/realidade.html.