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Universidade Federal de Juiz de Fora Pós-Graduação em Ciência da Religião Mestrado em Ciência da Religião Hermenegildo Ferreira Giovannoni A IMPORTÂNCIA DO SÍMBOLO PARA A COMPREENSÃO DA RELIGIÃO E DA ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG Juiz de Fora 2009

A Importância Do Símbolo Para a Compreensão Da Religião e Da Arte Segundo Carl Gustav Jung

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psicologia, simbolos, C. G. Jung

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  • Universidade Federal de Juiz de Fora

    Ps-Graduao em Cincia da Religio

    Mestrado em Cincia da Religio

    Hermenegildo Ferreira Giovannoni

    A IMPORTNCIA DO SMBOLO PARA A COMPREENSO DA RELIGIO E DA

    ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG

    Juiz de Fora

    2009

  • Hermenegildo Ferreira Giovannoni

    A IMPORTNCIA DO SMBOLO PARA A COMPREENSO DA RELIGIO E DA

    ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio, rea de concentrao: Filosofia da Religio, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Sidnei Vilmar No

    Juiz de Fora 2009

  • Giovannoni, Hermenegildo Ferreira.

    A importncia do smbolo para a compreenso da religio e da arte

    segundo Carl Jung / Hermenegildo Ferreira Giovannoni. 2010. 116 f.

    Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio)Universidade

    Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.

    1. Religio. 2. Smbolos bblicos. I. Ttulo.

    CDU 2

  • Hermenegildo Ferreira Giovannoni

    A IMPORTNCIA DO SMBOLO PARA A COMPREENSO DA RELIGIO E DA

    ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio, rea de Concentrao em Filosofia da Religio, do Instituto de Cincias Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Religio.

    Aprovada em 31 de agosto de 2009.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Gross

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    _____________________________________________ Prof. Dr. Paulo Afonso Arajo

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    _____________________________________________ Prof.dr. Maria Glria Dittrich Universidade do Vale do Itaja

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao CNPQ pela bolsa concedida, a qual me permitiu realizar as disciplinas do curso de mestrado e a pesquisa para esta dissertao. Meus sinceros agradecimentos ao professor Afonso Rodrigues, do IAD, que desde o incio do meu curso de graduao forneceu-me incentivo e orientao fundamentais para prosseguir nos estudos paralelos sobre arte, religio e simbolismo. Agradeo tambm aos amigos que me apoiaram de diversas maneiras durante a realizao deste trabalho: Juliane, Isabella, Wanessa, Tatiene, Patrcia, Alexandro, Lcia Helena, Rosani e Schubert. Agradeo tambm de forma especial aos amigos Maryanna, Ioneide e Guimares, que me ajudaram de forma decisiva, providencial e abnegada na realizao deste trabalho. Meus agradecimentos aos professores do PPCIR, com os quais cursei as disciplinas que me propiciaram os fundamentos tericos necessrios para efetuar esta pesquisa. Sou grato aos psiclogos Paulo Bonfatti e Snia Regina, que se disponibilizaram prontamente a esclarecer diversas dvidas referentes psicologia analtica. Agradeo especialmente ao meu orientador Dr. Sidnei Vilmar No, pela ateno conferida minha pesquisa e pelo interesse e dedicao em solucionar minhas dvidas e em esclarecer meus questionamentos. Agradeo pelo incentivo a prosseguir sempre nas minhas hipteses, a despeito de prejulgamentos, e por sempre confiar em meu potencial, mesmo nos momentos em que tal confiana mostrou-se imerecida.

  • RESUMO

    Partindo da hiptese de uma fundamentao comum entre religio e arte no mbito da vida

    anmica do ser humano, esta dissertao pretende realizar um estudo do conceito de smbolo

    na psicologia analtica, desenvolvida por Carl Gustav Jung, na medida em que esta considera

    tanto os fenmenos artsticos quanto os religiosos como simblicos. O primeiro captulo

    fornece uma anlise dos principais conceitos indispensveis compreenso da idia de

    smbolo, partindo das primeiras formulaes tericas e chegando at seu delineamento final.

    O segundo captulo discorre sobre a aplicao do conceito de smbolo anteriormente analisado

    aos aspectos psicolgicos da criao e da fruio artsticas e da experincia religiosa.

    Palavras-chave: smbolo, inconsciente, arte, religio, psicologia analtica, C. G. Jung.

  • ABSTRACT

    Starting with the hypothesis of a common foundation for religion and art in the context of the

    psychical life of human beings, this dissertation intends to realize a study of the concept of

    symbol in the analytical psychology developed by Carl Gustav Jung, to the extend that it

    regards both the artistic and the religious phenomena as symbolical. The first chapter provides

    an analysis of the main concepts needful to the understanding of the idea of symbol,

    beginning with primary theoretical formulations and coming to their final delineation. The

    second chapter deals with the application of the previously analyzed concept of symbol to the

    psychological aspects of artistic creation and fruition, and of religious experience.

    Keywords: symbol, unconscious, art, religion, analytical psychology, C. G. Jung.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ..................................................................................................... 07

    2 ASPECTOS TERICOS DO SMBOLO NA PSICOLOGIA ANALTICA.. 14

    2.1 O CONCEITO DE SMBOLO NA TEORIA DOS COMPLEXOS....................... 14

    2.2 PENSAMENTO DIRIGIDO E NO-DIRIGIDO.................................................. 20

    2.3 O CONCEITO DE SMBOLO E AS FUNES PSQUICAS............................. 25

    2.4 O CONCEITO DE SMBOLO E PONTO DE VISTA ENERGTICO ................ 40

    3 O SMBOLO NA RELIGIO E NA ARTE ...................................................... 61

    3.1 SMBOLOS E CRIAO ARTSTICA ................................................................ 61

    3.1.1 Arte e teoria dos complexos .................................................................................... 61

    3.1.2 Pressupostos fundamentais da abordagem psicolgica: arte .................................. 63

    3.1.3 Os gneros das obras de arte ................................................................................... 69

    3.1.4 Arte simblica na psicologia analtica .................................................................... 75

    3.2 SMBOLO E EXPERINCIA RELIGIOSA .......................................................... 84

    3.2.1 Pressupostos fundamentais da abordagem psicolgica: religio ............................ 84

    3.2.2 Simbolismo e experincia religiosa ........................................................................ 85

    3.2.3 Religio e conceitos fundamentais de psicologia analtica ..................................... 89

    3.2.4 O simbolismo religioso e o processo de individuao ............................................ 98

    4 CONCLUSO ....................................................................................................... 105

    REFERNCIAS .............................................................................................................. 113

  • 1 INTRODUO

    amplamente reconhecida a linha de continuidade histrica e terica entre a

    psicanlise de Freud e a psicologia analtica de Jung. A teoria freudiana constitui o quadro de

    referncia inicial para o desenvolvimento do pensamento do jovem Jung; alm disso, Freud

    foi comentador de seu trabalho clnico e terico: em 1906, Jung enviou-lhe um exemplar de

    seu Studies in Word Association, fato que iniciou uma ampla e importante troca de

    correspondncia entre ambos (SAMUELS, 1988, p. 165). reconhecido tambm que,

    inicialmente, Freud considerou Jung no somente como seu discpulo mais bem-dotado,

    como tambm o mais importante, seu prncipe coroado, o homem destinado a levar sua obra

    adiante no futuro (PALMER, 2001, p. 118). A ruptura entre ambos ocorreu somente em

    1912, ano em que Jung publica o seu Wandlungen und Symbole der Libido (posteriormente

    intitulado Smbolos da Transformao), trabalho no qual explicita pontos definitivamente

    divergentes em relao psicanlise e que constituram o ncleo da nova cincia denominada

    psicologia analtica.

    A teoria de Jung, portanto, herdeira direta da de Freud, devido ao pioneirismo deste

    na explorao do mbito psquico denominado inconsciente. Segundo Jung (1995, p.524), a

    pesquisa de Freud acerca dos complexos conjuntos autnomos de contedos psquicos com

    forte carga emocional representou a verdadeira descoberta do inconsciente. Mas, apesar dos

    fundamentos bsicos de ambos serem compartilhados, a psicologia de cada um seguiu

    caminhos diversos e muitas vezes opostos. Smbolos da Transformao , sob muitos

    aspectos, a obra decisiva no desenvolvimento da psicologia junguiana e, portanto, de uma

    nova compreenso da mente consciente (PALMER, 2001, p.125).

    O primeiro e mais importante ponto de divergncia entre os autores refere-se crtica

    de Jung em relao ao papel central que Freud concedia ao instinto sexual, ou pulso sexual, e

    s experincias sexuais infantis. As reservas de Jung em considerar as neuroses como devidas

    unicamente questo sexual j aparecem em artigos e cartas anteriores a 1912 (ibid., p. 123).

    Mas nesta data que Jung elabora explicitamente um novo conceito de libido, que no se

    refere mais a uma energia de carter sexual, sendo uma energia psquica de carter muito

    mais amplo, podendo assumir aspecto sexual, mas tambm muitos outros, to ou mais

    importantes quanto esse. Portanto, Jung abandona a teoria sexual de Freud e adota um

    modelo energtico, que tornou possvel identificar a expresso energia psquica com o

    termo libido (JUNG, 1986b, p. 122-123), que se refere agora a um impulso no-especfico,

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    um valor energtico que pode transmitir-se a qualquer rea, ao poder, fome, ao dio,

    sexualidade, religio, etc. (JUNG, 1986b, p. 124).

    O ponto de vista energtico da libido empregado por Jung, segundo ele, permite uma

    abordagem do funcionamento da psique em termos finalistas, e no causais, como na

    psicanlise de Freud. Nos termos de Jung (1984, p. 22):

    A concepo finalista v as coisas como ordenadas a um fim. Um exemplo muito fcil o da questo da regresso: causalmente, a regresso condicionada pela fixao na me, por exemplo. Finalisticamente, entretanto, a libido que regride imago da me, para a descobrir as associaes da memria, atravs das quais a evoluo pode passar de um sistema sexual, por exemplo, para um sistema espiritual.

    nesse sentido que Jung denomina o mtodo causal freudiano de redutivo, enquanto

    ao seu prprio mtodo finalista denomina sinttico ou construtivo. Referindo-se ao aspecto

    causal, ele afirma que jamais explicaremos exaustivamente por ele a psicologia do

    indivduo, tambm por ele nenhum fato psicolgico poder ser explicado, pois como

    fenmeno vivo, est sempre umbilicalmente vinculado continuidade do processo vital, de

    modo que sempre algo realizado, mas tambm algo a se realizar, algo criador (JUNG,

    1991, p. 410). Todas essas transformaes da energia e dos contedos psquicos, segundo o

    aspecto finalista, devem-se justamente ao dos smbolos, que assim despem-se de seu

    determinismo sexual.

    Por outro lado, no mbito da psicologia, o termo smbolo constitui tradicionalmente

    sinnimo de signo, indicando uma expresso ou contedo que posto no lugar de outro, o que

    lhe confere, primordialmente, uma funo apenas substitutiva. A partir desta acepo

    alegrica, o smbolo passa a ocupar freqentemente uma posio rebaixada em relao aos

    outros signos, a linguagem simblica seria expresso de um pensamento primitivo - no

    sentido pejorativo - ainda no desenvolvido, permeado de analogias estticas e elementos

    afetivos, tal como aparece no mito, sendo este entendido como tentativa frustrada de

    explicao objetiva dos fenmenos. J o pensamento racional seria expresso por uma

    linguagem composta por signos abstratos, depurados de quaisquer elementos que possam

    comprometer sua lgica intrnseca.

    A psicanlise freudiana, de certa forma, adotou esta concepo substitutiva e

    depreciativa do smbolo sua teoria, conferindo-lhe um papel apenas defensivo e

    dissimulador, constituindo-se ento de uma representao indireta, destinada a ser superada e

    ultrapassada em favor de uma representao superior. De fato, Freud utiliza mais o termo

    sintoma do que propriamente smbolo, ele prioriza o adjetivo simblico para caracterizar as

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    formas de representao indireta tpicas do sistema inconsciente, regidas pelos mecanismos de

    deslocamento, condensao, sobredeterminao e figurabilidade (LAPLANCHE, 1992, p.

    483). Esses mecanismos atuam sobre as representaes de pulses sexuais recalcadas,

    deformando-as para que se tornem compatveis com o ego; so, portanto, formaes

    substitutivas que ocultam elementos inconscientes. Ao sentido manifesto, portanto, ope-se

    um sentido latente, e a tarefa do analista ser decodificar esses simbolismos por meio de uma

    interpretao retrospectiva. Afinal, o smbolo na psicanlise considerado mormente em seu

    aspecto patolgico ou regressivo.

    A abordagem de Jung, por outro lado, ao considerar o inconsciente como uma forma

    ativa e autnoma de pensamento, confere ao smbolo no um significado preciso e consciente,

    mas uma forma prpria de constituir significao. Os smbolos adquirem grande importncia

    na economia psquica do indivduo, pois so capazes de ativar e transformar grande

    quantidade de energia. Eles no constituem apenas formaes substitutivas, que esto no lugar

    de um contedo original, mas possuem uma legitimidade prpria, ou seja, a funo simblica

    segue leis especficas de elaborao de contedos no inconsciente, ao mesmo tempo em que

    estabelece uma ponte com os contedos da conscincia, os signos. Para Jung, os smbolos so

    elementos muito mais abrangentes, em termos de significao, que os signos; estes so

    cristalizaes de um aspecto daqueles, tendo em vista que a conscincia opera por

    diferenciao e excluso, enquanto o inconsciente opera por conjuno e unificao. Os

    smbolos atuam promovendo sentido vida humana, proporcionando motivaes e

    convices especialmente frente aos sofrimentos, morte e s contradies. Se for possvel

    afirmar, de maneira geral, que o smbolo a forma de expresso da psique inconsciente, ou

    seja, constitui a linguagem prpria do pensamento simblico, torna-se evidente a extrema

    importncia do estudo dos smbolos para a compreenso da dinmica geral da psique, tanto

    em pessoas normais quanto em neurticos, e para a compreenso dos distrbios psquicos e da

    teraputica em geral.

    De acordo com Jung a religio, enquanto um fenmeno psquico, deve ser

    considerada segundo a acepo original do vocbulo latino religere; uma acurada e

    conscienciosa observao daquilo que Rudolf Otto (...) chamou de numinoso (JUNG, 1980,

    p. 3). Dessa forma, a religio seria a atitude do esprito humano caracterizada por uma

    considerao e observao cuidadosas de certos fatores dinmicos concebidos como

    potncias (ibid., p. 4).

  • 10

    Essas potncias correspondem, de acordo com Jung, aos arqutipos, estruturas

    fundamentais caractersticas, sem contedo especfico e herdadas desde os tempos mais

    remotos (JUNG, 1980, p. 524). So, portanto, padres inconscientes de estruturao de

    contedos psquicos, em si mesmos irrepresentveis, tornando-se evidentes apenas em suas

    manifestaes, sendo por esse motivo que, inicialmente, Jung faz referncia aos arqutipos

    pelo termo imagens primordiais. De acordo com Jung (1986b, p. 49), o fato psquico Deus

    um tipo autnomo, um arqutipo coletivo (...). Por isso no s existe em todas as formas

    superiores de religio, mas aparece tambm espontaneamente em sonhos individuais. J o

    arqutipo constituiria uma formao psquica inconsciente, mas que tem existncia real,

    independentemente da posio tomada pelo consciente, uma existncia anmica, que como

    tal no pode ser confundida com o conceito de um Deus metafsico (loc. cit.). Para Jung,

    portanto, a imagem de deus produzida, na psique, pela libido (energia psquica) atravs de

    modelos arquetpicos, gerando a experincia de uma fora anmica to poderosa que leva

    reverncia. Essa energia, por ser inerente ao arqutipo, isto , ao inconsciente, no est

    nossa disposio (ibid., p. 75), disposio do ego consciente.

    Por isso, as estruturas arquetpicas que constituem o inconsciente coletivo so

    experienciadas como um agente externo conscincia, fogem ao seu controle e possuem uma

    forte carga emotiva que sobrepuja a vontade do ego. Por isso, a experincia dos arqutipos

    corresponde experincia do numinoso, do divino. Segundo Jung (ibid., p. 74), os seres

    oriundos dessa estrutura arquetpica sempre foram qualificados como divinos, deuses.

    Para Samuels (1988) os deuses podem ser considerados comometforas de comportamentos

    arquetpicos e mitos como encenaes arquetpicas.

    Por outro lado, a experincia dos arqutipos s se d atravs dos smbolos. De fato,

    os smbolos refletem a dinmica do inconsciente, em especial a do inconsciente coletivo, o

    smbolo no uma alegoria nem um semeion (sinal), mas a imagem de um contedo em sua

    maior parte transcendental ao consciente (JUNG, 1986b, p. 67). Assim, o smbolo formula

    um fator essencialmente inconsciente, ou ainda operacionaliza a participao do

    inconsciente (idem, 1991, p. 446). Justamente por constiturem a linguagem tpica da psique

    inconsciente, os smbolos possuem uma significao extremamente rica e abrangente, que

    nunca se deixa exaurir ou definir com exatido (Idem, 1998, p. 189). A compreenso racional

    no capaz de definir um smbolo de maneira completa. Por outro lado, os sinais ou signos

    apontam diretamente para uma idia consciente, dessa forma, um

    sinal sempre menos do que a coisa que quer significar, e um smbolo sempre mais do que podemos entender primeira vista. Por isso no

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    nos detemos diante de um sinal, mas vamos at o objetivo para o qual aponta; no caso do smbolo, porm, ns paramos porque ele promete mais do que revela (JUNG, 1997, p. 215).

    De fato, Jung faz uma diferenciao entre o modo de pensamento no-dirigido e o

    dirigido. Este movido por motivos conscientes e voltado para a adaptao realidade

    objetiva. A linguagem correspondente a esse pensamento a dos signos, pois seu sentido

    determinado de forma consciente, por conveno. J o pensamento no-dirigido, ou

    pensamento-fantasia, pertence esfera do inconsciente, e sua forma de expresso a

    linguagem simblica, que traduz diretamente sentimentos e emoes. Assim, os smbolos so

    antes uma realidade vivencial, e no um conceito ou abstrao tpicos do signo; deve-se viver

    os smbolos, e no refletir sobre eles. Para Jung (1991, p. 117), as funes racionais so, de

    acordo com sua natureza, incapazes de criar smbolos, so capazes de criar apenas signos ou

    sinais. Por outro lado, o smbolo no deixa de ser tambm racional, pois se compe de dados

    de todas as funes psquicas, tanto as racionais (pensamento e sentimento) quanto as

    irracionais (sensao e intuio), o que caracterstico do mbito indiferenciado do

    inconsciente. O smbolo possui um lado que fala razo e outro inacessvel razo, pois no

    se constitui apenas de dados racionais, mas tambm de dados irracionais (ibid., p. 447).

    Ainda de acordo com Jung, a arte mobiliza na psique humana os mesmos

    mecanismos simblicos, ele considera uma obra de arte simblica cuja origem (...) deve ser

    procurada naquela esfera da mitologia inconsciente, cujas imagens primitivas pertencem ao

    patrimnio comum da humanidade (idem, 1985, p. 68). Dessa forma, no processo criativo, o

    artista atualiza de forma plstica ou literria as estruturas arquetpicas do inconsciente

    coletivo. Nesse sentido, pode-se afirmar que Jung prioriza, em sua investigao psicolgica,

    no tanto o artista enquanto indivduo, mas o processo criador. Se o fundamento psquico da

    criao artstica est no impulso que brota do inconsciente, tal procedimento mostra-se

    coerente, e todo o tratamento consciente ao qual o artista submete sua obra (no descartado,

    obviamente, os aspectos conscientes da criao artstica), como acrscimos, subtraes,

    substituies, efeitos ou observaes de determinadas leis de estilo, reveste-se de importncia

    secundria. De acordo com Jung (ibid., p. 65), nas obras de arte, sua linguagem prenhe de

    sentido grita para ns que elas significam muito mais do que dizem. Podemos indicar o

    smbolo de imediato, muito embora no sejamos capazes de desvendar seu significado para

    nossa plena satisfao, o smbolo na arte, assim como no mito, sempre um desafio nossa

    reflexo e compreenso.

  • 12

    Por isso, o processo criativo consiste em uma ativao inconsciente do arqutipo e

    numa elaborao e formalizao na obra acabada (JUNG, 1985, p. 71). A obra de arte, em

    Jung, reveste-se de um carter eminentemente simblico, a atividade artstica possui como

    caracterstica principal o fundamentar-se na fantasia (ou imaginao ativa), ou seja, uma

    atitude orientada para a percepo de contedos inconscientes (idem, 1991, p. 407), o que

    caracteriza a funo intuitiva. Por isso Jung afirma que o artista no mero apresentador,

    mas criador e, por isso, educador, pois suas obras tm valor de smbolos que prefiguram as

    linhas do desenvolvimento futuro (ibid., p. 411). Assim, o conceito de smbolo tal como

    formulado pela psicologia analtica, no mbito da psique humana, se relaciona tanto ao

    fenmeno religioso quanto ao artstico, tornando-se um elemento essencial no

    desenvolvimento da anlise psicolgica desses fenmenos culturais. Entre arte e religio

    estabelecida uma relao originria, pois tanto a linguagem religiosa quanto a artstica devem

    ser entendidas e analisadas enquanto linguagens simblicas, de origem inconsciente.

    Percebe-se, portanto, o lugar de destaque conferido ao pensamento simblico em

    Jung. Segundo ele, a energia psquica resultante da represso dos smbolos pode se tornar

    muito prejudicial ao equilbrio psquico. Jung chega a afirmar (1997, p. 260), de forma oposta

    a Freud, que o pensamento racional, em sua pretenso de constituir a totalidade da psique,

    nossa iluso dominadora. Segundo ele, as grandes religies do mundo ajudam os homens e

    mulheres a realizarem o seu pleno desenvolvimento psquico, isto , o processo de

    individuao. Elas atuam como base segura e orientao para que o indivduo possa ativar

    essa poderosa fonte de energia psquica, o numinoso, sem ser consumido por ele. Por isso, a

    atuao dos smbolos, atravs das experincias religiosa e artstica, fundamental para o

    pleno desenvolvimento psquico do indivduo e da coletividade. Ao contrrio, em Freud, a

    presena do smbolo indica desequilbrio e conflito, pois, segundo ele, a defesa somente se

    torna patolgica quando sujeita aos mecanismos do inconsciente, ou seja, quando se torna

    simblica. J para Jung justamente a ausncia da funo simblica no indivduo, devido a

    uma atitude unilateral da conscincia, que provoca todo tipo de distrbios e complicaes.

    Dessa forma, a viso positiva de Jung em relao ao papel da religio e da arte no

    desenvolvimento humano geral incontestvel. Mais uma vez, pode-se contrap-lo a Freud,

    j que este afirma serem religio e arte satisfaes substitutivas, construdas pelo psiquismo

    humano para suportar os problemas da vida e lidar com o desamparo, determinadas

    principalmente pelo mecanismo da sublimao. Assim, ambas estariam reduzidas, no contexto

    da psicanlise, a uma questo dos destinos da pulso sexual. Enquanto satisfaes

  • 13

    substitutivas elas so consideradas iluses em contraste com a realidade. A arte seria, para

    Freud, uma iluso incua e benfica, ou seja, no representa perigo por no possuir a fora

    necessria para invadir o mbito do real; e a religio uma iluso de imenso poder, mas

    destinada ao desaparecimento conforme o avano da cincia. Por isso, a psicologia analtica

    foi, e ainda permanece sendo, uma fonte de influncia para artistas, estudiosos e crticos de

    arte; como afirma Souriau (1995, p. 917), a psicologia junguiana recobre mais amplamente o

    domnio da arte e explica melhor a grande diversidade dos artistas do que outras abordagens

    psicolgicas.

  • 2 ASPECTOS TERICOS DO SMBOLO NA PSICOLOGIA ANALTICA

    2.1 O conceito de smbolo na teoria dos complexos

    As primeiras consideraes de Jung acerca do conceito de smbolo se do no

    contexto de sua teoria dos complexos. Segundo ele (1999, p. 55-56), o modo tpico de

    expresso de todo complexo autnomo simblico, pois devido a uma srie de fatores, o

    complexo capaz de pensar e organizar seus contedos apenas de maneira simblica. Assim,

    toda a atividade da fantasia, como os sonhos e os sintomas, cuja origem atribuda ao

    complexo (JUNG, 1984b, p. 54), constituda essencialmente por smbolos, e deve ser

    examinada e interpretada enquanto tal.

    O complexo com carga emocional (idem, 1995, p. 81), tambm chamado de

    complexo de tonalidade afetiva (idem, 1999, p. 31), caracteriza um determinado conjunto

    de idias ou imagens que se referem a uma carga emocional especfica e que por esta so

    mantidas unidas. Desse modo, a argamassa que mantm coeso o complexo a carga

    emocional comum a todas as ideias isoladas (idem, 1995, p. 336); o complexo, portanto,

    pode ser considerado, de maneira abrangente, como um conglomerado de contedos

    psquicos, caracterizados por uma carga emocional peculiar (idem, 1997, p. 65).

    Estabelecendo uma analogia com a qumica, Jung afirma que todos os contedos da

    vida psquica, sejam eles sentimentos, idias ou sensaes, agrupam-se na forma de unidades,

    tal como as molculas. Cada unidade possui trs elementos distintos: percepo sensorial, os

    componentes intelectuais (representao, imagens de memria, juzos, etc.), tonalidade

    afetiva (idem, 1999, p. 31-32), sendo que todos esto fortemente unidos, de forma que uma

    percepo sensorial referente ao complexo, por exemplo, evoca imediatamente os

    componentes intelectuais e a tonalidade afetiva. Essas unidades psquicas no permanecem

    isoladas umas das outras, elas se agrupam em um corpo maior, de acordo com uma

    determinada tonalidade afetiva comum. Desse modo, o complexo uma unidade psquica

    mais elevada (ibid., p. 33).

    Os termos carga emocional e tonalidade afetiva podem ser considerados como

    sinnimos, uma vez que Jung (1997, p. 42) d o mesmo significado tanto ao afeto quanto

    emoo, so a mesma coisa que nos afeta, que interfere em ns. Jung utiliza o conceito de

    afetividade no sentido atribudo por Eugen Bleuler, como o elemento fundamental que

    subjaz e condiciona todas as nossas reflexes lgicas, pensamentos, aes ou inaes, e que

  • 15

    designa no apenas os afetos no sentido prprio, como tambm as leves sensaes e

    tonalidades afetivas de prazer e desprazer (BLEULER, 1906, p. 6 apud JUNG, 1999, p. 31,

    nota 93). A partir da, Jung emprega de forma mais especfica o conceito de afeto ou

    tonalidade afetiva como um estado de sentimento caracterizado por inervaes corporais,

    ou seja, que possui tambm manifestaes fisiolgicas correlatas aos contedos psquicos. ,

    portanto, constitudo por um estado psquico de sentimento e por um estado fisiolgico de

    inervaes, tendo cada qual efeito cumulativo e recproco sobre o outro (JUNG, 1991, p.

    388).

    Dessa maneira, se os contedos da vida psquica so organizados na forma de

    complexos, h um destes que constitui o centro de nossa personalidade e identidade

    conscientes, o chamado complexo do eu, tambm denominado simplesmente ego ou

    eu. O complexo do eu a base da psique consciente, tanto um contedo quanto uma

    condio da conscincia (ibid., p. 406), uma vez que qualquer elemento psquico somente se

    torna ou pode ser considerado consciente enquanto estiver relacionado diretamente ao

    complexo do eu. Portanto, aquilo que no se relacionar com o eu no consciente, assim

    como a conscincia pode ser definida como a relao dos fatos psquicos ao eu (idem, 1997,

    p. 29). O complexo do eu formado principalmente pelos registros da memria pessoal e pela

    tonalidade afetiva de todas as sensaes corporais, da percepo geral do prprio corpo (loc.

    cit.). Consequentemente, exceto em casos de graves distrbios psquicos, o complexo do eu

    o mais estvel e importante dentre todos os complexos que formam a totalidade da psique,

    constituindo o cerne indispensvel da conscincia (loc. cit.).

    Portanto, exceo do complexo do eu, que constitui a esfera consciente da psique, e

    de outros complexos a ele assimilados, todos os outros complexos constituem a esfera

    psquica do inconsciente. Consoante Jung, psique no deve ser confundida com conscincia,

    j que nem todos os contedos psquicos, e nem mesmo a maior parte deles, esto

    necessariamente vinculados ao eu. Por conseguinte, deve haver um grande nmero de

    complexos inconscientes, ou seja, no associados ao eu; e outros complexos, a princpio

    conscientes, que, por alguma razo, dissociam-se do complexo do eu, tornando-se ento

    inconscientes.

    Dessa forma, os complexos podem ser considerados como aspectos parciais da

    psique dissociados (idem, 1984a, p. 100), e surge aqui a questo acerca da origem de tal

    separao. Conforme Jung, ela deve ser atribuda, algumas vezes, a um trauma, um choque

    emocional (...) que arrancou fora um pedao da psique (loc. cit.). Na maioria das vezes,

  • 16

    porm, devido a um conflito moral cuja razo ltima reside na impossibilidade de aderir

    totalidade da natureza humana (JUNG, 1984a, p. 100). A partir da, o complexo pode ser

    mais precisamente definido como a imagem de uma determinada situao psquica de forte

    carga emocional e, alm disso, incompatvel com as disposies ou atitude habitual da

    conscincia (ibid., p. 99). Assim, por causa desse conflito ou incompatibilidade intrnsecos,

    os complexos so dissociados da conscincia, tornando-se fragmentos psquicos

    desprendidos (ibid., p. 106); eles se encontram em um estado de represso, ou inibio

    emocional (idem, 1999, p. 37), isto , sua carga emocional, devido incompatibilidade,

    reveste-se de um aspecto negativo, sendo ento inconscientemente inibida e separada da

    conscincia. Nesse sentido, o termo represso ainda usado com referncia explcita

    psicanlise de Freud; conforme Jung (1995, p. 203, nota 101): usamos o termo represso

    sempre no sentido de Bleuler e Freud, a cujo trabalho Studien uber hysterie devemos valiosos

    incentivos para as nossas pesquisas

    H, portanto, uma inconscincia pronunciada a respeito dos complexos (idem,

    1984a, p. 101), eles determinam a estrutura do inconsciente, cuja existncia e organizao

    somente podemos deduzir atravs deles, as unidades vivas da psique inconsciente (ibid., p.

    104), que constituem a via regia que nos leva ao inconsciente, pois so os responsveis

    pelos sonhos e sintomas (loc. cit.). Dessa forma, a psique no mais pode ser considerada uma

    unidade nem ser identificada apenas com a conscincia. Alm disso, deve-se atentar para as

    perturbaes que os complexos podem causar na esfera consciente, comprometendo assim o

    desempenho da vontade. De fato, a principal caracterstica dos complexos a sua autonomia,

    pois eles no esto totalmente sujeitos ao controle das intenes conscientes, podendo alterar

    o curso normal de nossa volio, memria e outras disposies conscientes. O complexo atua,

    na esfera do consciente, como um corpus alienum [corpo estranho], animado de vida

    prpria (ibid., p. 99), podendo tambm ser chamado de alma fragmentria (ibid., p. 100),

    segunda conscincia (idem, 1995, p. 275) ou uma psique dentro de outra psique (ibid., p.

    524) .

    Essa autonomia do complexo devida, como foi visto, sua constituio semelhante

    ao complexo do eu. Sua forte carga emocional pode, em determinadas ocasies, a despeito da

    inibio da conscincia, adquirir um valor que supera a coeso do eu, perturbando sua

    atividade. Pode-se dizer que o complexo, devido a sua tonalidade afetiva, tende a formar uma

    personalidade parcial, dotada de uma frao mais ou menos significativa de vontade prpria

    (Idem, 1997, p. 86), no havendo, portanto, diferena marcante entre o complexo do eu e um

  • 17

    complexo autnomo, sendo ambos os contedos psquicos dotados de carga afetiva e vontade

    prprias (JUNG, 1997, p. 87). Por isso o complexo pode ser comparado a uma

    personalidade fragmentria (Idem, 1984a, p. 100), que atua em diversos distrbios da

    conscincia, como os da memria e das associaes. Pode atuar tambm em forma

    personificada (loc. cit.), nos personagens da mitologia, da arte em geral e nas vozes e vises

    da religio ou psicopatologia; pode, alm disso, devido a uma represso excessiva que o

    fortalece ainda mais, assimilar at mesmo o eu, provocando uma modificao momentnea e

    inconsciente da personalidade, chamada identificao com o complexo (ibid., p. 101), como

    nos fenmenos de possesso na Idade Mdia. Essa relativa independncia do complexo na

    estrutura psquica evidenciada quando Jung enfatiza que no se deve apenas dizer que temos

    complexos, mas tambm que os complexos podem ter-nos (ibid., p. 98).

    A teoria dos complexos comeou a ser formulada por Jung no mbito de suas

    primeiras pesquisas em psicologia experimental, atravs do teste de associao de palavras.

    Tal experimento consistia em se pronunciar, uma a uma, determinada lista com

    aproximadamente cem palavras pessoa experimental, que deveria responder a cada uma com

    a primeira palavra que lhe ocorresse como reao palavra estmulo. O tempo de reao era

    cronometrado e seguia-se imediatamente o experimento de reproduo, que consistia em

    averiguar se a pessoa testada era capaz de se lembrar das prprias reaes anteriores. O

    objetivo inicial do teste, j conhecido na psicologia experimental, era o estudo de possveis

    leis gerais de associao mental e a determinao de tipos intelectuais particulares.

    Jung acrescentou ao teste o objetivo de se averiguar a influncia do fator da ateno

    no mecanismo das associaes mentais, propondo, para isso, o teste de associao com

    distrao, ou seja, perturbaes propositais na ateno da pessoa testada. Tal experimento

    gerava diversos distrbios associativos, comparados aos resultados da mesma pessoa sem o

    emprego da distrao, como o prolongamento do tempo de reao, falhas na reproduo,

    repetio da palavra-estmulo e aumento das associaes superficiais, como as associaes

    por semelhana de som. Assim, o que anteriormente eram consideradas falhas no experimento

    passou a ser sistematicamente observado.

    Entretanto, o mais surpreendente foi a constatao de que tais distrbios no

    ocorriam somente no experimento com distrao, mas tambm muitas vezes nos experimentos

    normais, em determinadas palavras-estmulo. A partir da anlise desses distrbios, das

    conexes entre as palavras que os suscitavam e de determinadas informaes ou omisses

    que os indivduos testados forneciam que Jung formulou sua hiptese da existncia dos

  • 18

    complexos com carga emocional, os quais perturbavam o desempenho normal da ateno

    consciente nas associaes.

    Jung considera a ateno como um mecanismo psquico que liga com inmeros fios

    o processo associativo a todos os outros fenmenos representados na conscincia (JUNG,

    1995, p. 14), ela pode ser considerada como um foco visual da conscincia (loc. cit.), fator

    especfico e ao mesmo tempo condio desta. O mecanismo da ateno atua de duas formas

    distintas: promovendo todas as idias associadas, principalmente todas as que esto

    associadas com direo, e tambm inibindo todas as idias no associadas, especialmente as

    no associadas com direo (ibid., p. 144). Essa coeso diretiva na associao de contedos

    psquicos acompanhada por um correlato fsico, uma tenso que fornece sua base

    psicofsica (loc. cit.). De fato, seguindo mais uma vez Bleuler, Jung afirma que a ateno

    um tipo especfico de tonalidade afetiva, capaz de promover certos contedos e inibir outros

    (BLEULER, 1906, p.031 apud JUNG, 1999, p. 33, nota 99), estando diretamente relacionada,

    portanto, ao mecanismo da apercepo, ou seja, o processo particular atravs do qual

    qualquer contedo psquico alcana uma compreenso clara (WUNDT, 1902, p. 249 apud

    JUNG, 1999, p. 9), isto , uma compreenso consciente, o que evidencia a correlao entre a

    ateno e o complexo do eu. Ateno e apercepo estruturam, segundo Jung, um

    desempenho psquico que permite a adaptao ao meio ambiente e s condies novas,

    estando, nesse sentido, tambm relacionadas ao conceito de funo do real (fonction du rel)

    de Janet (JUNG, 1999, p. 8, nota 33).

    Assim, quando um complexo inconsciente ativado por determinada palavra-

    estmulo, ele promove um desvio da idia diretiva, ou seja, impede o funcionamento normal

    do mecanismo da ateno. Na verdade, o complexo atrai para si a tonalidade da ateno, mas,

    devido ao estado de represso no qual se encontra, esta tambm inibida, o que impede que o

    complexo venha tona e se torne consciente. Por outro lado, como foi visto, o complexo,

    devido sua carga emocional prpria, atua como um ser independente no mbito da psique,

    possui autonomia e pode ser comparado a uma personalidade separada. Por isso, embora no

    possua o domnio da ateno, o complexo determina o curso das associaes psquicas atravs

    de sua tonalidade prpria, que atua de forma diversa daquela da tonalidade da ateno.

    Conforme Jung, na atividade normal do complexo do eu, ou seja, da conscincia, os demais

    complexos devem ser inibidos, pois, do contrrio, a funo consciente capaz de dirigir a

    associao seria impossvel (ibid., p. 55). Falta aos complexos, portanto, o domnio da

    ateno, que sempre conseguido atravs do complexo do eu (loc. cit.), o que lhes permite

  • 19

    um modo de expresso indireto, no explcito, ou seja, suas associaes possuem um carter

    mais ou menos simblico (JUNG, 1999, p. 55).

    O smbolo, portanto, est associado ao modo de expresso tpico do inconsciente, ao

    qual falta o controle da ateno, dessa forma, a represso do complexo nada mais do que a

    subtrao do domnio da ateno, ou seja, da clareza (ibid., p. 57). A atividade consciente,

    regida pelo mecanismo da ateno, caracterizada pela diretividade, pela clareza de ideias e,

    portanto, pela sensibilidade para a diferena. J o modo de funcionamento do pensar

    inconsciente se processa de forma oposta, pois se caracteriza pela no-diretividade e pela

    deficincia de sensibilidade para as diferenas (ibid., p. 54), o que implica em uma

    diminuio da clareza das idias (loc. cit.). Isso ocorre porque a diferena funo

    unicamente da ateno ou da clareza (loc. cit.), mais precisamente, da conscincia.

    Por conseguinte, o modo de expresso simblico no se pauta pela diferenciao,

    mas pela semelhana, pelas analogias. As associaes simblicas se revestem de

    semelhanas verbais (sonoras) ou das imagens visuais (ibid., p. 46), dessa forma elaboram

    as produes inconscientes, seja nos sonhos, fantasias, sintomas ou reaes ao teste de

    associao. O complexo inconsciente, portanto, se expressa de forma simblica, por

    semelhanas de imagens ou sons, o que confere ao conceito de expresso por semelhana de

    imagens (ibid., p. 49) uma grande importncia no estudo das manifestaes do inconsciente,

    ou seja, dos smbolos. Estes, atravs do concretismo das conexes imagticas ou sonoras,

    podem constituir-se atravs das mais variadas combinaes analgicas ou metafricas (ibid.,

    p. 47), o que evidencia uma forma de configurao que no leva tanto em considerao as

    diferenas de sentido abstratas entre os contedos psquicos, mas a sua semelhana de sentido

    concreta. Essa no-difereniao do simbolizar inconsciente permite tambm a configurao

    de imagens que possuem diversos significados aglutinados, como ocorre nas produes

    onricas. Essa multiplicidade de sentidos das imagens isoladas (ibid., p. 54) conseqncia

    natural da falta de sensibilidade para as diferenas, ou falta de clareza do pensar simblico.

    Nessa concepo de smbolo formulada por Jung, ainda h grande influncia e

    referncias explcitas s idias de Freud e o termo simblico usado em sentido anlogo ao

    de sintomtico (ibid., p. 55). Nesse contexto, as associaes simblicas so consideradas

    como qualitativamente inferiores e s quais falta algo, no caso o domnio da ateno, da

    diretividade e diferenciao de idias. Citando Madeleine Pelletier, Jung afirma que o

    smbolo uma forma muito inferior de pensamento, e que poderia ser definido como a

    percepo falsa de uma relao de identidade ou de analogia muito grande entre dois objetos

  • 20

    que na realidade s apresentam uma vaga analogia (PELLETIER, 1903, p. 128 apud JUNG,

    1999, p. 56). Ele prope uma diferenciao entre os conceitos de alegrico e simblico: a

    alegoria seria uma interpretao intencional do pensamento intensificada por imagens

    (JUNG, 1999, p. 56), ou seja, uma operao consciente, j os smbolos seriam associaes

    subsidirias, obscuras de um pensamento que vela bem mais do que revela (loc. cit.),

    associaes de um complexo inconsciente.

    Apesar dessa perspectiva a princpio negativa em relao ao conceito de smbolo, a

    descrio que Jung elabora do modo de expresso inconsciente dos complexos j aponta para

    elementos que podem revestir-se de um aspecto extremamente positivo, o que de fato ocorre

    em seus escritos posteriores. A riqueza de imagens e analogias do pensar simblico possui um

    paralelo evidente com as caractersticas do pensamento mitolgico (ibid., p. 54); assim, o

    smbolo caracteriza tambm as produes da mitologia, seja em seu contexto folclrico ou

    religioso. Da mesma forma, os smbolos podem ser comparados, como foi visto, s analogias

    e metforas, figuras de linguagem tpicas da poesia e outras formas de arte; de fato, Jung

    afirma que o modo de pensar simblico um modo de pensar inato num poeta, mas que

    cuidadosamente evitado precisamente no pensar cientfico que deve ser constelado por idias

    claras (idem, 1995, p. 305). Aqui est implcita a idia, que posteriormente ser desenvolvida

    por Jung, de que a superioridade do pensar consciente e diretivo, uma superioridade relativa,

    pois se refere a objetivos especficos. No mbito da religio e da arte reveste-se de maior

    importncia justamente o pensar simblico inconsciente, que no deve ser considerado tanto

    pelo que lhe falta no caso, a ateno mas pelo que ele torna presente e pelo que lhe

    especfico. Ambos possuem modos de atuao e finalidades diferentes, mas no devem

    sobrepor-se um ao outro, pois fazem parte da totalidade psquica do ser humano, a qual, para

    entrar em um estado de equilbrio, deve alcanar a harmonia entre suas partes constituintes, e

    no permanecer em um conflito improdutivo.

    2.2 Pensamento dirigido e no-dirigido

    A tendncia de atribuio de um valor positivo aos mecanismos simblicos do

    inconsciente se confirma quando Jung prope a diviso das atividades psquicas em duas

    formas distintas de pensamento e as examina de forma detalhada. H, portanto, um

    pensamento consciente, com suas caractersticas prprias, e um pensamento inconsciente, cuja

    forma de apresentao eminentemente simblica e que obedece a leis e propsitos

  • 21

    totalmente diferentes da atividade psquica consciente (JUNG, 1986b, p. 9). Aqui o pensar

    simblico ou inconsciente analisado em sua especificidade, como uma atividade plenamente

    desenvolvida, um processo em si totalmente normal (ibid., p. 24), e no patolgico ou

    infantil. As duas formas de pensar atuam segundo estruturas prprias, com objetivos

    diferentes e em campos distintos. Portanto, uma no pode ser julgada segundo os critrios da

    outra.

    Jung denomina o pensar consciente de pensamento dirigido ou lgico (ibid., p. 9),

    atravs dele nos adaptamos realidade e agimos sobre ela. Ele permite uma compreenso

    objetiva da experincia, o que permite despoj-la de todo elemento subjetivo e encontrar

    aquelas frmulas que conferem natureza e s suas foras a expresso melhor e mais

    adequada (ibid., p. 17); nesse sentido que tal pensamento imita a realidade (ibid., p. 16).

    Pode tambm ser chamado de pensamento com ateno dirigida (ibid., p. 10), sendo que o

    termo ateno deve ser entendido no mesmo sentido anteriormente descrito, ou seja, como o

    mecanismo tpico da conscincia, a tonalidade afetiva que acompanha e permite a apercepo;

    ou seja, a compreenso de determinados contedos psquicos de forma clara. O pensamento

    tpico da conscincia, portanto, caracterizado pela ateno ou clareza e pela diretividade,

    aquele que permite a adaptao ao meio ambiente. Ele tambm pode ser distinguido por

    provocar esgotamento e cansao mental.

    Outra particularidade do pensamento dirigido dar-se atravs de palavras, na forma

    de linguagem, o que devido, principalmente, a sua finalidade ltima de comunicao. Pode-

    se afirmar, portanto, que a matria com que pensamos a linguagem e o conceito

    lingstico, e que ao pensarmos de modo dirigido, pensamos para outros e falamos a outros

    (loc. cit.). Por isso, outra denominao possvel do pensar dirigido pensamento lingstico

    (ibid., p. 14), mas linguagem aqui deve ser entendida num sentido muito mais abrangente que

    o das lnguas faladas, como uma organizao do pensamento de forma dirigida, de maneira

    que este possa desenvolver-se de uma forma subjetiva e individual para uma forma objetiva e

    coletiva, compartilhada (loc. cit.). Assim, esta linguagem ideal corresponde ao prprio

    pensamento dirigido (ibid., p. 12), o que evidenciado pela evoluo da linguagem primitiva,

    caracterizada por termos de sentido concreto e especfico para a linguagem atual, cujos termos

    possuem sentido muito mais abstrato e geral (WUNDT, 1902, p. 365 apud JUNG, 1986b, p.

    12). Pensamento e linguagem condicionam-se mutuamente, sendo a questo da primazia de

    um sobre o outro alvo de especulaes diversas.

  • 22

    O desenvolvimento do pensamento com ateno dirigida se deu de forma

    relativamente recente na histria cultural. Na antiguidade grega ainda predominava um

    pensamento mtico, somente alguns poucos indivduos comeavam a voltar seu interesse para

    a realidade objetiva. A partir da o pensamento dirigido progrediu gradualmente, alcanando

    elevado grau de desenvolvimento na poca contempornea. Atualmente as expresses mais

    ntidas do pensamento dirigido so a cincia e a tcnica por ela alimentada (JUNG, 1986b, p.

    16).

    Anteriormente ao pensamento dirigido, portanto, prevalecia um pensar que se

    aproximasse mais do tipo fantstico (...) impregnado de mitologia (ibid., p. 17). O

    pensamento no dirigido ou pensamento-fantasia (ibid., p. 24), tambm chamado por

    Jung de sonhar ou fantasiar (ibid., p. 15), aquele no qual no predomina o sentido de

    direo de idias tpico do mecanismo de ateno consciente. Por outro lado, no possvel

    um pensamento sem direo, pois os elementos psquicos devem possuir alguma conexo de

    sentido entre si, mesmo que esta seja inconsciente, sem o que no haveria pensamento

    propriamente dito. Dessa forma, o pensamento no dirigido, na verdade, dirigido por

    motivos inconscientes (ibid., p. 15-16).

    Esses motivos inconscientes coincidem com os mecanismos associativos do

    complexo inconsciente descritos anteriormente. Destacam-se as associaes por analogia e

    semelhana de imagens e sons entre os contedos, e no por leis abstratas ou conceitos

    lingsticos gerais. Aqui termina o pensamento em forma de linguagem, imagem segue

    imagem, sensao a sensao (ibid., p. 15). Os elementos de tal pensamento no se conectam

    arbitrariamente ou absolutamente sem direo alguma, mas de acordo com uma diretividade

    prpria, que no se estrutura segundo critrios abstratos e leis gerais que os delimitam e

    diferenciam em categorias mais ou menos fixas. No pensamentofantasia, os elementos se

    configuram consoante analogias concretas, sensveis, o que ocorre de modo espontneo e

    involuntrio, ou seja, inconsciente, embora as configuraes finais apaream na conscincia,

    exercendo grande influncia sobre ela, devido a sua forte tonalidade afetiva subjacente.

    O pensamento no dirigido, portanto, motivado, sobretudo subjetivamente, e isto

    menos por motivos conscientes do que inconscientes (ibid., p. 25). Por estar imbudo de

    elementos subjetivos, falta-lhe a objetividade do pensar dirigido que permite a adaptao

    realidade, ele afasta-se da realidade, liberta tendncias subjetivas e improdutivo com

    relao adaptao (ibid., p. 16). Entretanto, essa improdutividade refere-se apenas

    adaptao imediata, pois a longo prazo, justamente a fantasia despreocupada revela foras e

  • 23

    contedos criativos, exatamente como os sonhos (JUNG, 1986b, p. 16, nota 22). Alm disso,

    tal fantasia no deve ser considerada a princpio como to despreocupada, pois expressa

    verdades psicolgicas e preocupaes fundamentais do ser humano.

    Assim, as tendncias subjetivas que o pensamento no dirigido liberta geram os

    smbolos que caracterizam o nosso sonhar e fantasiar atuais e toda a riqueza e expressividade

    da mitologia dos povos antigos (ibid., p. 17). Tal atividade do esprito antigo agia de modo

    essencialmente artstico. O alvo do interesse no parece ter sido compreender o como do

    mundo real com a maior objetividade e exatido possveis, e sim adapt-lo esteticamente a

    fantasias e esperanas subjetivas (ibid., p. 18). Por isso, a imagem do mundo gerada por tal

    atividade determinada mais pelas fantasias subjetivas do que por critrios objetivos da

    realidade, fato que, entrementes, no indica uma desvantagem ou desqualificao dessa forma

    de pensamento, pois inteligncia no deve ser identificada com o pensar dirigido. Jung

    ressalta que seria arrogncia ridcula e injustificada se afirmssemos que somos mais

    energticos ou mais inteligentes que os homens da Antiguidade (ibid., p. 17), somente

    podemos constatar que aumentou o nosso cabedal de conhecimento, (...) mas no a

    inteligncia (ibid., p. 17). O potencial criador de ambas as formas de pensamento permanece

    o mesmo, o que difere so seus mecanismos e focos de interesse especficos.

    O simbolismo do pensar no dirigido, portanto, no caracteriza apenas o pensamento

    dos povos primitivos e da Antiguidade, mas tambm os sonhos de todas as pocas, o

    pensamento das crianas e os sintomas psicopatolgicos da esquizofrenia e da neurose. Isso

    deu azo a uma srie de interpretaes relativistas e desfavorveis ao pensamento simblico,

    tido como inferior, infantil ou patolgico, incapaz de promover uma adaptao satisfatria

    realidade por distorcer a viso objetiva do mundo com elementos subjetivos fantasiosos. Tais

    elementos subjetivos seriam tpicos da psique infantil e se manifestariam na vida adulta

    apenas em estados de conscincia enfraquecida, como o sonho, ou em patologias, como no

    auto-erostismo das neuroses e no autismo da esquizofrenia.

    Entretanto, de acordo com Jung, as bases inconscientes dos sonhos e fantasias s

    aparentemente so reminiscncias infantis, (...) trata-se se de formas de pensamento primitivas

    ou arcaicas (ibid., p. 25). O fato de despontar com mais evidncia na infncia apenas

    confirma a hiptese de que tambm na psicologia a ontognese corresponde filognese

    (ibid., p. 20). Assim, o pensar simblico no deve ser entendido como um pensar dirigido que

    ainda no se desenvolveu, infantil, mas como um pensar plenamente desenvolvido, afinal, o

    mito o que h de mais adulto na produo da humanidade primitiva (...) no uma fantasia

  • 24

    pueril, mas um dos requisitos mais importantes da vida primitiva (JUNG, 1986b, p. 21). O

    pensamento simblico tambm no deve ser considerado como auto-ertico ou autista, mas

    simplesmente como no determinado por motivos racionais e objetivos.

    Mesmo essa no-objetividade do pensamento no dirigido pode ser questionada

    considerando-se justamente que os motivos inconscientes que dirigem os processos da

    fantasia se baseiam no instinto que, certamente, um fato objetivo (ibid., p. 25). O

    pensamento-fantasia, refletindo a condio psquica de nossos ancestrais, corresponde a um

    instinto herdado que repete o modo arcaico de pensar, assim, a base instintivo-arcaica de

    nosso esprito um fato objetivo, preexistente, que no depende da experincia pessoal nem

    de qualquer arbitrariedade subjetiva pessoal (loc. cit.). Portanto, as supostas tendncias

    subjetivas liberadas pela fantasia correspondem, na verdade, a fatores psquicos bem

    objetivos, que determinam amplamente o comportamento e o pensamento do homem

    contemporneo, tanto quanto o pensamento dirigido mais recente. E isso ocorre no apenas no

    mbito da vida onrica, da infncia e da psicopatologia, mas em todas as produes da fantasia

    presentes na vida adulta desperta e nas manifestaes artsticas e religiosas das culturas em

    geral.

    Essa capacidade do esprito de manifestar-se simbolicamente (ibid., p. 24)

    corresponde, portanto, ao modo de pensar do esprito primitivo, herdado pelos indivduos

    atuais atravs de um instinto psquico. Isso possvel porque, segundo Jung, a psique, da

    mesma forma que o corpo, conserva as marcas ou vestgios das etapas de desenvolvimento e

    evoluo pelas quais passou (ibid., p. 25). Por isso, as manifestaes simblicas do

    pensamento no dirigido constituem puras condensaes de motivos tpicos de mitos (ibid.,

    p. 27), uma vez que, como foi visto, a mitologia a manifestao por excelncia da vida

    espiritual primitiva. O pensar simblico, ao acessar as camadas mais antigas do esprito

    humano (ibid., p. 25), configura-se segundo a estrutura de mitos tpicos, tambm chamados

    de complexos psicolgicos dos povos (ibid., p. 28). Esses padres psquicos de estruturao

    correspondem ao conceito de arqutipo posteriormente desenvolvido por Jung.

    O pensamento dirigido se processa por motivos conscientes, de forma inteiramente

    consciente, enquanto o pensamento-fantasia se configura de forma inconsciente e por motivos

    inconscientes, pois seus produtos surgem na conscincia de forma espontnea e autnoma,

    muitas vezes personificados nos sonhos e fantasias individuais e nos mitos coletivos.

    Portanto, o modo de pensar simblico ou fantstico pode ser considerado como

    correspondente ao pensamento do complexo autnomo, assim como o pensar dirigido pode

  • 25

    ser entendido como correspondente ao modo de pensar do complexo do eu. Essas

    equivalncias podem ser estabelecidas levando-se em conta, por um lado, as caractersticas de

    diretividade, adaptao, objetividade e forma lingstico-abstrata do pensamento dirigido, e,

    por outro lado, as caractersticas de ausncia de direo, no-adaptao, subjetividade e forma

    imagtico-concreta do pensamento-fantasia. Tais caractersticas correspondem,

    respectivamente, ao modo de funcionamento psquico do complexo do eu, regido pela

    tonalidade afetiva da ateno, e atividade dos complexos inconscientes, dotados de

    tonalidade prpria.

    Assim como os complexos so constitudos por determinados contedos psquicos

    dissociados da conscincia, devido a um conflito ou incompatibilidade gerados pela atitude

    dirigida e exclusiva desta, o pensamento-fantasia decorre de certas tendncias da prpria

    personalidade que ainda no foram reconhecidas ou no mais so admitidas (JUNG, 1986b,

    p. 27). Ele revela tendncias e contedos excludos pela atitude consciente e dirigida, no de

    forma velada ou indireta, mas configurados conforme o modo simblico de expresso tpicos

    do mbito inconsciente da psique, o qual, como foi visto, estruturado por complexos de

    tonalidade afetiva . Por isso os mitos, produtos tpicos do pensamento-fantasia, podem ser

    comparados a complexos coletivos, assim como qualquer expresso deste pensamento em

    indivduos isolados, pois sua configurao ocorre no mbito inconsciente psique.

    2.3 O conceito de smbolo e as funes psquicas

    Os modos de funcionamento da psique foram at aqui descritos, de maneira geral,

    segundo dois aspectos distintos, o consciente e o inconsciente. Este seria constitudo pela

    atividade dos complexos autnomos e do pensamento simblico ou fantstico, e aquele pela

    atividade do complexo do eu e do pensamento com ateno dirigida. Posteriormente, no

    entanto, estabelecida por Jung uma distino mais pormenorizada dos modos de

    funcionamento psquico, que abrange certas particularidades ignoradas na classificao

    anterior, indispensveis para um melhor entendimento da psicologia de cada indivduo e da

    psicologia humana em geral (idem, 1991, p. 475). Assim, a atividade psquica subdividida

    em diferentes funes e atitudes, que podem estar tanto sob o domnio da conscincia quanto

    do inconsciente, adquirindo, em cada caso, caractersticas especficas.

    A constatao da existncia de complexos inconscientes e sua atuao atravs de um

    pensamento simblico no suficiente para esgotar a variedade dos fenmenos observados,

  • 26

    especialmente no que se refere s peculiaridades das disposies individuais (JUNG, 1991,

    p. 488), pois o mesmo complexo, como o complexo parental, por exemplo, pode gerar reaes

    diversas em diferentes indivduos, mesmo que estes sejam irmos e tenham sofrido a mesma

    influncia materna e paterna. Assim, o fator determinante a constituio psquica individual,

    o modo especial como o complexo atua no indivduo, (ibid., p. 487) e no a existncia em si

    do complexo, ou seja, a particularidade psquica que determina o complexo em si e seu

    modo de atuao no sujeito, mesmo que, aparentemente, se trate do mesmo complexo em

    diferentes indivduos. nessa distino que deve estar, segundo Jung, a resposta questo do

    porque, numa famlia neurtica, uma criana reage com histeria, outra com neurose

    compulsiva, uma terceira com psicose e uma quarta talvez com nada disso (ibid., p. 488).

    O mesmo ocorre em relao conscincia, pois evidente a diversidade de formas

    que pode assumir em cada indivduo a atividade do complexo do eu. A constituio psquica

    individual determina o predomnio de uma funo especfica, gerando contedos equivalentes

    e um modo prprio de adaptao. A funo psicolgica constitui uma forma psquica de

    atividade que, em princpio, permanece idntica sob condies diversas (ibid., p. 412),

    havendo ao todo quatro funes fundamentais: a sensao, o pensamento, o sentimento e a

    intuio. A conscincia, enquanto um rgo de orientao em um mundo de fatos exteriores

    e interiores (idem, 1984a, p. 127), pode dispor dessas quatro funes para se relacionar com

    os dados provindos do meio ambiente e com os processos do prprio inconsciente.

    A funo da sensao abarca todas as percepes atravs dos rgos dos sentidos, ou

    seja, no se refere apenas a uma atividade especfica de qualquer um dos sentidos, mas da

    percepo em geral (loc. cit. ). Atravs dela se d a percepo de estmulos fsicos, sejam

    eles externos ou internos, isto , do prprio organismo; ela fornece a representao ou

    imagem psquica dos objetos externos, dos instintos fisiolgicos e das transformaes

    corporais, inclusive dos estados afetivos (idem, 1991, p. 438). Por isso os dados perceptivos

    da sensao so os primeiros fornecidos psique, sendo posteriormente trabalhados por outras

    funes, como o pensamento e o sentimento.

    O pensamento, por outro lado a funo psicolgica que, de acordo com suas

    prprias leis, faz a conexo (conceitual) de contedos de representao a ele fornecidos(ibid.,

    p. 434). No um processo perceptivo, mas aperceptivo, ou seja, estabelece uma articulao

    entre contedos novos e contedos relacionados pr-existentes, a fim de que aqueles possam

    ser assimilados conscincia, sendo ento apreendidos e compreendidos (ibid., p. 393). O

    pensar, portanto, submete os contedos psquicos de representao a um processo de

  • 27

    comparao e diferenciao fundamentados na memria (JUNG, 1984a, p. 147),

    estabelecendo conexes significativas que permitem o reconhecimento e o julgamento de tais

    contedos, chegando assim a determinadas interpretaes e concluses.

    A funo do sentimento tambm uma espcie de julgamento (idem, 1991, p.440),

    mas distinto daquele operado pelo pensar. O sentimento julga a partir da carga emocional ou

    tonalidade afetiva de certos contedos psquicos, estabelecendo assim o seu valor, em termos

    de rejeio, prazer, desprazer, agrado ou desagrado. Entretanto, o sentimento no se confunde

    simplesmente com o afeto ou sua percepo o que funo da sensao um processo de

    julgamento, de avaliao, auxiliado tambm pela memria, que atribui aos contedos

    psquicos valores emocionais especficos. Todo processo de percepo ou apercepo sempre

    acompanhado de determinada carga emocional que provoca uma reao anloga no

    indivduo; o sentimento , portanto, a funo que avalia essa reao emocional e nos informa

    acerca de seu valor (idem, 1997, p. 30).

    Atuando de forma relativamente distinta das demais funes h a intuio, a funo

    psicolgica que transmite a percepo por via inconsciente (idem, 1991, p. 430). Portanto,

    tambm possui um carter perceptivo, mas que se processa diferentemente daquele que ocorre

    na funo da sensao. Nesta, os dados fornecidos pelos sentidos configuram-se a nvel

    consciente, j na intuio a percepo registra-se ao nvel do inconsciente (idem, 1997, p.

    32), a partir de dados perceptivos subliminares, ou seja, percepes sensoriais to sutis que

    escapam nossa conscincia (ibid., p. 33). A intuio fornece conscincia, portanto, certas

    percepes que, ao contrrio da sensao, foram elaboradas no mbito inconsciente, o que

    torna muito difcil ou mesmo impossvel restabelecer os elos associativos utilizados no

    processo, assim, qualquer contedo se apresenta como um todo acabado sem que saibamos

    explicar ou descobrir como este contedo chegou a existir (idem, 1991, p. 430). A percepo

    subliminar ou inconsciente no se fixa apenas em objetos isolados no espao e situados no

    tempo presente, ela capaz de vislumbrar que, espacialmente, qualquer objeto est em

    conexo ilimitada com uma multiplicidade de outros objetos (idem, 1984a, p. 127) e que,

    temporalmente, o objeto representa apenas uma transio daquilo que ele era antes para

    aquilo que ser posteriormente (loc. cit.). A intuio, portanto, permite a percepo das

    infinitas possibilidades de relao entre os objetos no espao e no tempo, o que s possvel

    porque ela atua segundo dados perceptuais inconscientes, muito mais vastos que os

    conscientes e menos restritos em termos de possibilidades associativas. Por isso a intuio

    chamada vulgarmente de palpite, adivinhao, anteviso, ou mesmo considerada como uma

  • 28

    faculdade mgica ou miraculosa (JUNG, 1997, p. 31). importante ressaltar que a

    intuio, enquanto percepo atravs do inconsciente, no se limita aos dados de percepo ou

    sensaes subliminais, mas abrange tambm os pensamentos e sentimentos subliminais (idem,

    1991, p. 431) o que amplia ainda mais as suas possibilidades associativas.

    A descrio acima corresponde s funes de orientao da conscincia (idem,

    1984a, p. 128), ou seja, do uso consciente das funes com a finalidade de adaptao ao meio

    externo. Entretanto, nos indivduos isolados, as quatro funes bsicas ou fundamentais nunca

    esto igualmente desenvolvidas, o que ocorre principalmente devido a uma constituio

    psquica particular e inata. Esta determina um modo de adaptao conduzido essencialmente

    por uma das quatro funes, sendo as demais meras auxiliares ou quase totalmente excludas

    da atividade consciente. Essa funo que predomina, chamada de funo superior ou funo

    dominante, aquela que d a cada indivduo a sua espcie particular de psicologia (idem,

    1997, p. 34), estabelecendo assim certas disposies tpicas (idem, 1984a, p. 128), que

    correspondem ao tipo pensamento, tipo sentimento, tipo sensao e tipo intuio, conforme a

    predominncia das respectivas funes fundamentais.

    A funo superior ou dominante aquela que est mais voluntariamente disponvel

    ao eu, justamente por ser a funo mais conscientemente desenvolvida ou diferenciada,

    enquanto as outras funes permanecem relativamente indiferenciadas e indisponveis

    utilizao consciente. Em um sentido geral, diferenciao significa o desenvolvimento de

    diferenas, a separao de partes de um todo (idem, 1991, p. 404), j no mbito da atividade

    psquica, significa a capacidade que possui a conscincia de separar certas partes estruturais,

    de modo a foment-las por meio da concentrao da vontade e conduzi-las ao mximo de

    desenvolvimento (idem, 1984a, p. 126). Esse procedimento caracteriza uma unilateralidade

    da atitude consciente diferenciadora, que favorece certas capacidades e negligencia outras,

    seja por motivaes externas, sociais, seja por disposies subjetivas inatas. Assim, no que se

    refere s funes fundamentais, a diferenciao consiste em separar as funes umas das

    outras e seus elementos individuais um dos outros (idem, 1991, p. 404), o que est de acordo

    com a atitude tpica da conscincia, uma vez que sem diferenciao impossvel a direo,

    pois a direo de uma funo, ou sua orientabilidade, consiste em separar e excluir o que

    irrelevante (...): somente a funo diferenciada prova ser capaz de direo (loc. cit.). Fica

    evidente aqui a relao da funo dominante na conscincia, e sua caracterstica de

    diferenciao e direo com o mecanismo da ateno do complexo do eu e a atividade do

    pensamento dirigido descritos anteriormente.

  • 29

    Em contrapartida, as funes psquicas que so negligenciadas ou excludas pela

    atitude unilateral e diferenciadora da conscincia acabam tornando-se total ou parcialmente

    inconscientes, ou seja, indiferenciadas. No inconsciente, uma determinada funo est

    fundida em suas partes e com outras funes (JUNG, 1991, p. 404). A funo pensamento

    no diferenciada, por exemplo, no pode pensar sem se mesclar a outras funes, como a

    sensao ou a intuio; o mesmo ocorrendo com as demais funes. A funo no

    diferenciada tambm se mistura em suas prprias componentes distintas, a funo sensao

    no diferenciada, por exemplo, pode misturar as diferentes esferas dos sentidos (audio

    colorida): um sentimento no diferenciado, (...) misturar amor e dio (loc. cit.). H, portanto,

    uma oposio entre as atitudes consciente e inconsciente que se reflete no funcionamento das

    funes fundamentais. As funes conscientemente desenvolvidas, ou diferenciadas, podem

    tambm ser chamadas de funes dirigidas (ibid., p. 286), enquanto as funes

    inconscientes no diferenciadas podem ser consideradas como no dirigidas, ou

    inautnticas, uma vez que possuem elementos que no lhe pertencem necessariamente

    (ibid., p. 479), ou seja, elementos de outras funes.

    Como foi dito, os tipos psicolgicos, ou isto , os tipos pensamento, sentimento,

    sensao e intuio, surgem quando h o predomnio das respectivas funes e, a partir do

    momento em que uma funo predomina habitualmente surge uma atitude tpica (ibid., p.

    397). Atitude deve ser entendida aqui no sentido de disposio, ou seja, a presena de

    determinada constelao subjetiva, o que significa uma certa combinao de fatores

    psquicos ou contedos que determinem o agir nesta ou naquela direo prefixada, ou que

    concebam um estmulo desse ou daquele modo predeterminante (ibid., p. 395). Atitude,

    portanto, pressupe uma combinao apriorstica de determinados contedos que vo

    funcionar como um ponto direcional (loc. cit.) no processo de assimilao de novos

    contedos, ou seja, no processo de apercepo. Nesse processo psquico, ocorre uma escolha

    ou um julgamento que exclui os elementos irrelevantes. O que relevante ser decidido pela

    constelao prvia dos contedos (ibid. p. 395-396). A atitude, por conseguinte, corresponde

    a certa expectativa, que opera sempre de forma seletiva e direcionadora. A conscincia e

    todos os seus contedos atuam como uma forte constelao subjetiva, o que significa que h

    uma atitude, uma expectativa que fomenta a percepo e apercepo de tudo o que

    homogneo e inibe as do heterogneo (ibid., p. 396). Tal processo constitui a base essencial

    da unilateralidade da orientao consciente (loc. cit.). Assim, a funo dominante na

  • 30

    conscincia, de acordo com a sua particularidade, determina certas constelaes de contedos,

    que por sua vez determinam uma atitude correspondente.

    Conforme Jung, poucos contedos efetivamente alcanam elevado grau de

    conscincia e tambm poucos contedos podem estar presentes simultaneamente no campo

    consciente. Disso resulta a unilateralidade da orientao consciente, sua atividade

    selecionadora. A seleo exige direo. E direo exige excluso de todo o irrelevante

    (JUNG, 1991, p. 399). A atitude geral da conscincia, portanto, levaria a um estado de total

    desequilbrio, mas o aparelho psquico possui um mecanismo de auto-regulao, que equilibra

    a unilateralidade da conscincia atravs da atividade do inconsciente. Justamente por abarcar

    os contedos excludos pela atitude consciente, o inconsciente atua de maneira compensadora

    em relao conscincia. Essa a funo compensadora (ibid, p. 479) do inconsciente, que

    complementa ou corrige a orientao consciente fornecendo-lhe todos aqueles contedos que

    no poderiam faltar no cenrio consciente, se tudo fosse consciente (ibid., p. 426). Assim, o

    inconsciente atua atravs de sonhos e fantasias, por exemplo, a fim de equilibrar a

    unilateralidade da atitude consciente, configurando os contedos por esta excludos, cujo

    conhecimento seria indispensvel para a conscincia se adaptar plenamente (ibid., p. 400).

    Normalmente, essa tenso ou oposio entre consciente e inconsciente equilibrada pela

    funo compensadora deste, mas a conscincia pode acentuar ainda mais a sua

    unilateralidade, inibindo a compensao pelo inconsciente. Desse modo a tenso entre os

    contedos aumenta de tal forma que a compensao se manifesta em forma de funo

    contrastante (loc. cit.), o que representa um caso extremo tpico das neuroses e outras

    psicopatologias, quando o inconsciente, atravs de sintomas, no mais atua de forma a

    complementar ou equilibrar a atitude consciente, mas estabelecendo um forte contraste que

    gera a dissociao entre as partes.

    Essa dinmica psquica de oposio e compensao entre consciente e inconsciente

    manifesta-se de forma clara no mbito das funes fundamentais. funo superior ou

    dominante, totalmente consciente e diferenciada, corresponde uma funo inferior especfica,

    inconsciente e indiferenciada. Se o pensamento a funo superior, o sentimento ser,

    necessariamente, a funo inferior e vice-versa, o mesmo ocorrendo com as funes que

    formam o par da sensao e da intuio. Esses pares de funes se contradizem mutuamente

    no mbito da conscincia, por isso um dos componentes excludo e cai sob o domnio do

    inconsciente. O julgamento conceitual do pensamento e a avaliao emocional do sentimento

  • 31

    se contrapem, assim como a percepo imediata e objetiva da sensao e a percepo de

    possibilidades da intuio.

    A funo superior corresponde ao mximo de diferenciao e disponibilidade

    vontade consciente, enquanto a funo inferior mais indiferenciada e inconsciente. J as

    funes do par secundrio, aquele que no corresponde s funes superior e inferior,

    permanecem relativamente desenvolvidas ou diferenciadas, dependendo da constituio

    psicolgica particular ou outros fatores. Seus componentes inconscientes vo se juntar

    funo inferior, conferindo-lhe o carter de indiferenciao; j os componentes

    conscientemente utilizados de uma ou outra dessas funes vai auxiliar a funo principal no

    processo de adaptao, conferindo-lhe um carter particular. Esta a chamada funo

    secundria ou auxiliar (JUNG, 1991, p. 382), que no est em oposio, como a funo

    inferior, funo superior. Dessa forma, a cada tipo distinto podem se acrescentar dois

    subtipos, no caso do pensamento, por exemplo, ao lado da forma pura, lgico-matemtica,

    pode haver a forma indutiva e especulativa, mesclada funo da intuio, e a forma

    emprica, baseada na percepo sensorial, ou seja, mesclada funo da sensao (ibid., p.

    482). O mesmo processo vale para cada uma das outras trs possibilidades de funo

    predominante, gerando ento doze tipos psicolgicos distintos.

    Considerando-se ainda o caso do pensamento como funo dominante, ao compor-se

    seja com a funo sensao ou intuio, ele perde parcialmente seu carter racional, tornando-

    se tambm parcialmente irracional. Isso ocorre a partir do momento em que Jung estabelece

    uma classificao das funes em racionais e irracionais: o par pensamento e sentimento

    considerado racional, enquanto o par sensao e intuio, irracional. Racional tudo aquilo

    que est em conformidade com a razo, sendo esta considerada uma atitude que tem por

    princpio conformar a atividade psquica, o comportamento e a ao a determinados valores

    objetivos, estabelecidos pela mdia das experincias de fatos psicolgicos que podem ser

    externos ou internos (ibid., p. 437). a atitude racional, portanto, que permite a configurao

    e a considerao de certos valores objetivos, ou seja, vlidos em geral, processo que ocorre no

    mbito da histria humana, e no do sujeito particular. So as leis da razo, por conseguinte,

    que designam e regulam a atitude mdia, correta e adaptada, pois so expresso da

    adaptabilidade mdia das ocorrncias que se sedimentou aos poucos em complexos

    firmemente organizados de representaes que constituem os valores objetivos (loc. cit.). O

    pensamento e o sentimento so considerados como funes racionais na medida em que

    efetuam sua finalidade quando concordam plenamente com as leis da razo (loc. cit.), e

  • 32

    tudo o que concorda com as leis da razo racional, enquanto o que no concorda

    irracional. Essas leis racionais ou valores, portanto, equivalem a complexos de representaes

    psquicos pr-existentes que condicionam o pensar, o sentir e o agir. Percebe-se aqui a

    analogia com o conceito de apercepo e atitude, uma vez que as leis da razo funcionam

    como ponto de orientao no processo de aquisio de novos contedos, o que pressupe a

    excluso de tudo que no-racional (JUNG, 1991, p. 437), ou seja, que no est em

    conformidade com estas leis. Racionalidade, portanto, tambm pressupe a diferenciao,

    direo e excluso do que considerado irrelevante.

    J as funes da sensao e da intuio possuem justamente o carter oposto da

    irracionalidade, no no sentido de anti-racional, mas extra-racional, isto , que no se pode

    fundamentar com a razo (ibid., p. 431). So funes perceptivas, e no aperceptivas,

    atingem sua plenitude na percepo absoluta do que se passa em geral (ibid., p. 432), seja

    dos contedos em si ou de suas relaes no tempo e no espao. Seus contedos possuem

    portanto, o carter de algo dado, e no de algo derivado ou produzido dos produtos das

    funes racionais (ibid., p. 430), seu objetivo uma percepo completa, e no derivada de

    certas leis pr-estabelecidas; por isso as funes irracionais no devem possuir uma direo

    racional e nem operar por diferenciao e excluso. Dessa forma elas esto aptas a captar o

    que irracional, ou seja, os fatos elementares, o acaso, enfim, tudo o que est relacionado

    a um fator existencial (ibid., p. 432) que no pode ser racionalmente compreendido. A

    completa explicao racional de um objeto que possui existncia real, que no um objeto

    hipottico, algo impossvel, visto que apenas um objeto que foi suposto pode ter explicao

    plena, pois nada existe nele alm do que foi suposto pelo pensar racional (loc. cit.). Por seu

    carter de percepo absoluta, portanto, o modo de funcionamento das funes irracionais

    deve ser no-diferenciado e no-dirigido, tpico dos processos inconscientes.

    importante observar que, de acordo com Jung, tanto a sensao quanto a intuio

    so a terra-me a partir da qual se desenvolvem o pensamento e o sentimento como funes

    racionais (ibid., p. 431), estas ltimas desenvolvem-se ontogentica e filogeneticamente

    (ibid., p. 439) a partir daquelas. Percebe-se aqui, portanto, o carter de derivao do racional

    em relao ao irracional, da apercepo em relao percepo, do diferenciado em relao

    ao indiferenciado e, em ltima anlise, do consciente em relao ao inconsciente.

    Entretanto, a racionalidade e a irracionalidade no so qualidades necessrias,

    respectivamente, do par pensamento e sentimento e do par sensao e intuio, correspondem

    apenas a seu modo ideal de funcionamento. Uma funo racional, como o pensamento,

  • 33

    atuando como funo superior pode assumir parcialmente aspectos irracionais ao mesclar-se

    com uma funo irracional, como a intuio, relativamente consciente. Nesse mesmo caso a

    funo inferior, o sentimento, apesar de ser a princpio racional, atua de forma

    acentuadamente irracional, uma vez que est no inconsciente e mesclada com os elementos

    tambm inconscientes de outras funes. J uma funo irracional, como a sensao, ao atuar

    como funo principal, assume um carter racional, uma vez que cai sob o domnio da atitude

    selecionadora e diferenciadora da conscincia, tornando-se uma percepo diferenciada ou

    abstrata. H, por conseguinte, a possibilidade tanto de uma sensao quanto de uma intuio

    abstratas, em oposio a uma sensao e uma intuio concretas, assim como pensamento e

    sentimentos abstratos opostos a pensamentos e sentimentos concretos.

    Abstrao consiste em se extrair determinado contedo especfico, como um

    significado ou uma caracterstica, de seu contexto mais amplo, composto por outros

    elementos que juntos formam uma totalidade nica, singular. Dessa forma, a abstrao

    constitui uma forma de atividade mental que liberta o contedo ou o dado, tido como

    essencial, de sua vinculao aos elementos irrelevantes, dele os distinguindo ou

    diferenciando (JUNG, 1991, p. 386). Abstrao, portanto, pressupe a seleo de certos

    elementos significativos e a extrao de outros elementos considerados significativamente

    irrelevantes. Os conceitos ou leis que determinam a seleo e a excluso abstrativas j existem

    na psique do indivduo, por isso abstrao um processo anlogo ao que ocorre na

    apercepo e na razo. A atitude abstrativa (ibid., p. 387), portanto, aquela que assimila

    novos contedos de acordo com contedos abstratos j existentes, que assimila apenas a parte

    considerada essencial, segundo suas prprias leis racionais, do objeto. O que no se conforma

    ao contedo abstrado excludo como irrelevante e no conscientemente levado em

    considerao.

    Por outro lado, concreto significa propriamente crescido junto (ibid., p. 400),

    coincidindo com a qualidade de indiferenciado. As funes concretas so aquelas cujos

    contedos esto unidos aos de outras funes. O termo usado, especialmente, referindo-se

    ao caso das funes pensamento e sentimento fusionadas com a sensao. Dessa forma, o

    pensamento concretista se movimenta dentro de conceitos e concepes exclusivamente

    concretos, est sempre relacionado com a sensao, assim como o sentimento concretista

    nunca est separado de seu contexto sensorial (loc. cit.). O concretismo caracteriza as

    funes inferiores do indivduo contemporneo, assim como o funcionamento geral da psique

    do primitivo, tal como descrita no conceito de pensamento-fantasia.

  • 34

    A atitude geral da conscincia, portanto, pode ser caracterizada por seguir os

    princpios acima descritos de diferenciao, direo, apercepo, racionalidade e abstrao,

    todos inter-relacionados e referindo-se ao mesmo processo psquico. J o inconsciente, em

    contrapartida, atua de forma indiferenciada, no-dirigida, perceptiva, irracional e concreta.

    Nesse sentido, pode-se falar de uma atitude inconsciente (JUNG, 1991, p. 322), no como a

    atitude unilateral consciente, mas uma atitude que segue leis especficas que permitem,

    inclusive, manter uma relao compensatria com a conscincia. As duas atitudes podem

    estar presentes nas quatro funes fundamentais, independentemente de seu carter racional

    ou irracional, conforme a atuao destas ocorra de forma consciente ou inconsciente.

    A funo principal est disposio da vontade do eu, opera segundo motivos

    conscientemente escolhidos, enquanto a funo inferior, excluda da atitude consciente, no

    est disponvel, atua de forma espontnea e autnoma, apenas seus produtos aparecem na

    conscincia, seguindo uma intencionalidade prpria. Podem, portanto, ser comparados aos

    complexos autnomos, pois atuam por estmulo inconsciente, constituem como que uma

    contrapersonalidade (ibid., p. 479). Os complexos surgem no apenas devido a traumas ou

    experincias desagradveis, mas da atitude consciente que exclui aquilo que considera

    irrelevante, por isso, ter um complexo no significa logo uma inferioridade; mas apenas

    que existe algo discordante, no assimilado e conflitivo (ibid., p. 487). Os complexos so o

    oposto da atitude consciente, aquilo que foi excludo ou que no foi desenvolvido, justamente

    por isso representam a possibilidade de uma compensao, de uma complementao dessa

    atitude unilateral, so precisamente focos ou entroncamentos da vida psquica que no

    gostaramos de dispensar, que no deveriam faltar, caso contrrio a atividade psquica entraria

    em estado de paralisao fatal (loc. cit.).

    Portanto, a atividade simblica do complexo em sonhos, fantasias ou mesmo

    sintomas compensam os distrbios do equilbrio psquico causados pela atitude unilateral

    consciente, levando at conscincia os contedos excludos. Da mesma forma, no mbito

    das funes psicolgicas, cujos contedos formam os elementos especficos dos complexos,

    h as funes menos desenvolvidas e inibidas, tornadas ento inconscientes. No entanto,

    mesmo que os processos de determinada funo inferior sejam totalmente inconscientes, seus

    resultados aparecem na conscincia, pois cada funo possui sua carga emocional prpria que

    no pode ser eliminada; no possvel a algum optar, por exemplo, por no pensar, pensar

    inevitavelmente (idem, 1997, p. 33), mesmo que por motivaes inconscientes. Dessa forma

    a funo inferior, atravs de seu pensar, sentir, sensualizar ou intuir simblicos, que

  • 35

    caracterizam a atitude inconsciente, compensam a atitude consciente regida pela funo

    superior.

    A atividade da funo inferior, devido a seu aspecto irracional e indiferenciado, ou

    seja, mesclado a outras funes, possui um carter estranhamente fantstico (JUNG, 1991,

    p. 480). De fato, de acordo com Jung, o modo de funcionamento geral do inconsciente o

    fantasiar, uma forma especfica de atividade que pode apresentar-se em todas as funes

    bsicas (ibid., p. 412). A fantasia constitui um complexo de representaes que se distingue

    de outros complexos de representao por no lhe corresponder externamente uma situao

    real (ibid., p. 407). Em ltima instncia, a fantasia recorre a elementos derivados de

    vivncias reais, mas seu contedo nunca o equivalente de uma realidade externa, pois ela

    fundamentalmente o escoamento da atividade criadora do esprito, uma ativao ou produto

    da combinao de elementos psquicos (loc. cit.), provindos das diferentes funes

    fundamentais. Enquanto manifestaes da atividade inconsciente da psique, as fantasias

    podem ocorrer na forma de irrupo de certos contedos na conscincia ou atravs de uma

    atitude intuitiva de expectativa da prpria conscincia. O primeiro caso corresponde s

    fantasias passivas e o segundo s fantasias ativas (loc. cit.).

    A funo compensatria do inconsciente em relao conscincia se d atravs da

    atividade geral da fantasia, frequentemente em sua forma passiva, uma vez que os contedos

    por ela constelados representam algo conflitante incompatvel com a atitude consciente. Dessa

    forma, as fantasias inconscientes irrompem quando a ateno consciente se enfraquece,

    durante o sono, por exemplo, atravs dos sonhos; ou quando uma atitude excessivamente

    unilateral da conscincia configura uma disposio inconsciente igualmente forte capaz de se

    opor a vontade do eu, tornando-se autnoma. Em ambos os casos, os smbolos, os produtos da

    atividade da fantasia inconsciente, apesar de se manifestarem na conscincia, no so em

    geral, assimilados de fato atitude consciente. Como foi visto na teoria dos complexos, esses

    contedos so facilmente esquecidos, como os sonhos e as reaes de complexos no teste de

    associao, so projetados em situaes ou indivduos externos ou mesmo assimilam o eu,

    nos estados de identificao com o complexo. Por isso, apesar de influenciarem realmente o

    comportamento e a ao, tais manifestaes no eliminam o estado de oposio ou

    dissociao entre a conscincia e o inconsciente, o que impede a realizao plena da funo

    compensatria, que ocorreria atravs de uma verdadeira cooperao entre as atividades

    consciente e inconsciente.

  • 36

    A unio das personalidades consciente e inconsciente do sujeito em uma

    personalidade unificada, a unio dos opostos em uma unidade se torna possvel atravs da

    fantasia ativa, de uma atitude orientada para a percepo de contedos inconscientes

    (JUNG, 1991, p. 407). Ela expresso e ao mesmo tempo condio dessa unidade na

    condio psquica do indivduo, por isso pertence, no raro, s atividades espirituais mais

    elevadas do homem (ibid., p. 408). A fantasia passiva corresponde a um estado de acentuada

    dissociao psquica, uma vez que a forte unilateralidade consciente gera uma oposio

    inconsciente igualmente unilateral. J a fantasia ativa produto de atitude consciente no