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A IMPORTÂNCIA DE UM TRIBUNAL SUPRANACIONAL NO CONTEXTO DE UM PROCESSO DE INTEGRAÇÃO: O DILEMA DO MERCOSUL Cláudia Maria S. Trabuco FDUNL N.º5 - 1999

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A IMPORTÂNCIA DE UM TRIBUNAL SUPRANACIONAL NO CONTEXTO DE UM

PROCESSO DE INTEGRAÇÃO: O DILEMA DO MERCOSUL

Cláudia Maria S. Trabuco

FDUNL N.º5 - 1999

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Working Papers

Working Paper 5/99

A IMPORTÂNCIA DE UM TRIBUNAL SUPRANACIONAL

NO CONTEXTO DE UM PROCESSO DE INTEGRAÇÃO:

O DILEMA DO MERCOSUL

Cláudia Maria S. Trabuco

© autor Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa são

textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de textos

destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como Working Papers

não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação

como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de

Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro, [email protected], Ana

Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova

de Lisboa, Travessa Estevão Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

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INTRODUÇÃO É difícil a qualquer pessoa há muito familiarizada com os meandros do processo de integração europeu descobrir de repente as peculiaridades de uma outra realidade, na qual os países se envolveram numa aventura em muitos aspectos semelhante àquela que deu origem ao que hoje conhecemos como União Europeia. Tão difícil como o é partirmos em busca do que é diferente e distante, sem conseguirmos deixar totalmente para trás os preconceitos que nos foram incutidos por anos de uma vivência no seio de uma organização com características muito originais. No entanto, os extraordinários resultados alcançados pelo Mercado Comum do Sul (Mercosul), são por si mesmos suficientes para motivar a curiosidade de todos aqueles que sabem residir na capacidade de compreender e estar atenta ao mundo à sua volta a razão de boa parte do sucesso da União Europeia. Mais importante ainda, o exame atento de realidades distintas pode perfeitamente contribuir, através das lições que das suas experiências seja possível retirar, para a compreensão da nossa própria actualidade, dos seus defeitos e das suas virtudes. Criado pelo Tratado de Assunção em 1991, o sistema jurídico e institucional do Mercosul foi depois complementado e desenvolvido por diversos protocolos e, desde os seus primórdios, haveria de dar lugar a severas críticas referentes a uma sua alegada insuficiência institucional. A questão fundamental que ocupa o centro de todas as preocupações dirige-se à ausência, até ao momento, no quadro das suas instituições, de um verdadeiro organismo judicial encarregado de controlar e regular o respeito pelo direito comum da organização e supervisionar as acções quer das restantes instituições quer dos Estados que fazem parte do Mercosul. Tal facto, sobretudo se despido de contexto e de mais explicações, parece inevitavelmente estranho a quem, como nós, conhece as ambições do Mercosul e o percurso de integração gradual e progressiva a que se propôs. Mais difícil de entender parece a quem possui plena consciência do impagável contributo dado por uma instituição como o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia à evolução e intensificação dos esforços de integração entre os países europeus. O Mercosul é, presentemente, uma zona de comércio livre e, por enquanto, uma união aduaneira incompleta, não integrando ainda a totalidade dos produtos importados. Todavia, o objectivo que os Estados - partes tinham em mente quando iniciaram o processo era o de atingirem uma situação de mercado comum entre si, tendo este intuito constituído um dos maiores estímulos para o aparecimento e divulgação da ideia de futura criação de um sistema judicial onde figurasse um tribunal funcionando em moldes similares ao Tribunal de Justiça europeu. A unanimidade de opiniões relativa a esta matéria não foi, contudo, alcançada até ao momento. Todavia, esse não é, só por si, um impedimento para a importância e actualidade da questão. Parece-nos sobretudo interessante indagar se um processo de integração que persiga objectivos indubitavelmente relacionados, e até muitas vezes idênticos, com os da Comunidade Europeia, pode funcionar na prática, ainda que não seja o caminho escolhido por si exactamente o mesmo. Talvez a questão correcta a colocar fosse a de saber se existem, de facto, diversos meios de chegar a uma mesma meta e se os mesmos são igualmente válidos desde que os objectivos das partes que os constituem sejam alcançados. Pretendemos com este estudo demonstrar o papel essencial que um tribunal supranacional, equipado com os instrumentos necessários para desempenhar correctamente a sua função, pode ter na garantia do avanço do processo de integração em que se insere e na garantia do cumprimento dos objectivos inicialmente estabelecidos. Relativamente ao método a utilizar na pesquisa, as características da análise que entendemos

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desenvolver reclamam uma aproximação de cariz comparativo ao tema. Consequentemente, não deve surpreender que tenhamos optado por um estudo que se desenvolve em muito através do aproveitamento de um confronto, não exaustivo, entre diferentes realidades. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias é talvez o exemplo que surge na mente de todos quando se trata de identificar um caso de contribuição bem sucedida de uma instituição judicial para um processo de integração. A sua análise surgia, portanto, como algo que se impunha por natureza. No entanto, não apenas o papel deste organismo como motor de integração reunia suficientes razões para merecer a nossa atenção. De facto, não seria próprio esquecer a relevância de outra experiência de justiça supranacional, mais próxima em termos geográficos do Mercosul e, por isso mesmo, exemplar no que concerne ao possível resultado de uma ideia deste género. Mesmo se os efeitos do processo de integração andino não são geralmente vistos como satisfatórios pela comunidade internacional e pelos seus próprios membros é, apesar de tudo, importante tomar a sua tentativa em devida conta. Precisamente devido aos seus aspectos negativos, sobejamente conhecidos, a instituição criada pelo Acordo de Cartagena não deve deixar de ser considerada, nem que seja para que futuras organizações possam evitar cair nos mesmos erros. Escolhemos, finalmente, o Mercosul como centro da nossa análise, não só pela actualidade da questão neste sistema, ainda nos inícios do seu desenvolvimento, como pela curiosidade que nos desperta uma organização que, apesar da sua ainda breve história, alcançou já feitos notáveis sobretudo a nível económico. Exigindo o tema um estudo essencialmente analítico, esta foi uma regra que tentámos respeitar em todos os tópicos que nele incluímos. Assim, apesar de em alguns pontos nos termos concentrado na análise de aspectos essencialmente jurídicos e legais, e, muito embora reconhecendo a importância destes parâmetros, tentámos não descurar a relevância dos factores políticos e económicos envolvidos. Mantendo estas considerações em mente, depois de uma análise cuidada do papel do tribunal supranacional como motor de integração, em que inevitavelmente as experiências da União Europeia e do Pacto Andino são utilizadas como demonstrações dos argumentos avançados, levaremos a cabo uma espécie de visita guiada ao sistema do Mercosul, abordando de forma resumida os seus principais aspectos históricos, políticos, económicos e institucionais. Seguidamente, procuraremos dar uma ideia geral dos principais meios de solução de controvérsias que, em um momento ou outro, já foram utilizados internacionalmente, concentrando-nos inevitavelmente nos modelos judicial e arbitral, que para nós se revestem de maior importância. Para terminar, concluiremos com uma investigação sobre as vantagens e desvantagens que uma instituição judicial supranacional pode comportar, em geral e para o sistema do Mercosul em particular, tomando em devida conta as opiniões doutrinais sobre o assunto e procurando fornecer algumas pistas que nos possibilitem compreender o dilema em que esta organização presentemente se encontra.

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1. OS TRIBUNAIS SUPRANACIONAIS E OS PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO

1.1. Funções e Importância de um Tribunal Independente O processo de integração é geralmente visto como “um processo levando gradualmente, com o passar do tempo, a um aumento das trocas entre as várias sociedades envolvidas e a uma maior centralização da forma de governo”.1 Se a relevância assumida pelos tribunais é facilmente compreensível ao nível da ordem jurídica de um Estado, a sua acção no interior de um processo de integração que pretende coordenar diferentes sistemas legais e tradições, não pode igualmente ser depreciada. Na maior parte das situações, na sua existência reside a chave para o equilíbrio fundamental e o harmonioso desenrolar do processo pois que só o poder judicial parece possuir a aptidão necessária para servir de suporte a uma ordem jurídica internacional cujas normas sejam uniforme e igualmente aplicáveis a todos os membros da organização. De forma a reflectir em cada momento a imagem da realidade que regula, é necessário que a ordem jurídica se transforme de modo a se adaptar às circunstâncias que essa mesma realidade oferece. No entanto, o direito não deve ser visto como uma mera imagem reflectida dos acontecimentos que surgem a outros níveis, uma vez que ele mesmo apresenta uma dinâmica de integração própria, capaz de em determinados momentos funcionar como impulsionador de uma mudança no processo de integração. Este pode bem ser o caso de uma entidade judiciária eventualmente criada para regular os potenciais conflitos que surjam numa zona de integração regional, como é nomeadamente o caso do Mercosul, mas também da União Europeia ou mesmo da recentemente criada Comunidade Andina. Mesmo quando mantêm a sua tradicional aparência exterior de imparcialidade e isenção e agem como meros intérpretes da lei, e por vezes precisamente por causa dessa aparência, os tribunais podem assumir um poder criativo e levar a cabo uma tarefa de incentivo à evolução do processo de integração. É natural que, no curso da execução desta tarefa, os tribunais vão além das atribuições que os tratados constitutivos do sistema originalmente lhes haviam atribuído. Este foi, sem sombra de dúvida, o caso do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, cujo desempenho foi a dada altura apelidado de “activismo judicial”2 devido ao forte envolvimento no desenvolvimento dos princípios contidos no Tratado de Roma. Uma análise objectiva e desapaixonada do papel dos tribunais supranacionais num processo de integração deve, contudo, passar por uma consideração cuidada do impacto das suas sentenças e opiniões no estreitamento das relações entre os Estados que deste fazem parte e da sua contribuição para o desenvolvimento do próprio processo, evitando sempre, na medida do possível, conclusões apressadas sobre a natureza das suas acções. Talvez por isso, hoje, a tendência generalizada seja para encarar o tribunal como mais um elemento do sistema de integração regional, uma peça de um engenho para o funcionamento do qual a sua prestação não deve ser menosprezada. De forma a melhor compreendermos a sua importância no contexto internacional,

1 R.D. DEHOUSSE, J.H.H. WEILER, “The Legal Dimension”, in W.WALLACE (ed.), The Dynamics of European Integration, Londres, Pinter Publishers, 1990, p. 246. 2 H.J. RASMUSSEN, On Law and Politicy in the European Court of Justice”, Holanda, Martinus Publishers, 1986, p. 381.

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será porventura vantajoso tentar analisar o seu papel sob diversas perspectivas. Na verdade, vários são os actores em cena num processo de integração e cada um parece possuir a sua própria opinião sobre a importância do tribunal supranacional. Em termos conceptuais, longe estamos já do esquema tradicional em que os governos nacionais, porta-vozes dos interesses dos Estados, pareciam assumir todo o protagonismo no que se refere ao ritmo a imprimir ao processo de integração. Apelidado de redutor por diversos autores3, este esquema tendia a esquecer a maior parte dos intervenientes num processo de integração, como é o caso dos orgãos supranacionais criados e em funcionamento, os grupos de interesses ou mesmo os simples particulares. Visto por diferentes entidades, o papel do tribunal supranacional parece adquirir novas vertentes que devem ser tidas em devida conta. Na realidade, se, visto pelo prisma dos Estados Membros, o tribunal tem como objectivo e função a solução de eventuais conflitos e a supervisão do respeito pelas autoridades nacionais das normas que regulam o normal funcionamento do processo de integração, já aos olhos dos particulares o tribunal supranacional encarna a veste de entidade jurisdicional independente capaz de proteger os seus legítimos interesses. No que se refere às instituições a operar no seio do processo de integração, o tribunal de justiça parece desempenhar duas tarefas fundamentais: internamente, controla a validade dos seus actos e, no plano externo, tem por missão apreciar a legitimidade e pertinência dos acordos celebrados com terceiros Estados ou com outras organizações internacionais. Finalmente, na perspectiva dos tribunais nacionais dos Estados Membros, o tribunal supraconstitucional pretende ser a instância responsável pela harmonização da interpretação e aplicação das normas de direito comunitário, tendo em vista evitar os inconvenientes que adviriam de uma aplicação controlada pelos diversos tribunais nacionais no território dos Estados a que pertencem, que poria indubitavelmente em risco a desejada uniformidade do sistema. Na maior parte dos países da Europa Ocidental, a concepção dominante da função do juiz aparece fortemente impregnada do espírito do princípio da separação dos poderes. De acordo com a visão tradicional deste princípio proposta por Montesquieu4, o juiz não é mais que um “ser inanimado cuja boca não deve pronunciar mais que as palavras da lei”. No entanto, a realidade construída passo a passo em sistemas tão inovadores como o processo de integração europeia parece contrariar esta tendência. Aí, o papel de carácter inegavelmente criador assumido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias parece ir bastante além da missão tradicionalmente atribuída aos orgãos judiciários. Não devemos obviamente esquecer que a fronteira entre as tarefas de interpretação da lei e criação do direito é na maior parte das vezes ténue e duvidosa. Na verdade, em muitos casos, a tarefa de interpretação passa por uma escolha, de entre os diversos caminhos possíveis, aquele que pareça o mais adequado. Contudo, mesmo partindo deste pressuposto, parece inegável a constatação de que, no caso do Tribunal de Justiça, se já ultrapassou há muito a barreira da simples interpretação e se abriu passagem para um terreno fértil em que a instituição judiciária contribui substancialmente para o desenvolvimento do processo de integração e os juizes assumem um papel criador sem precedentes na história das organizações internacionais. Além da sua função primordial de manutenção da coerência da estrutura legal da zona de

3 R. DEHOUSSE, La Cour de Justice des Communautés Européennes, 2ª ed., Paris, Montchrestien, 1997, pág. 65. 4 MONTESQUIEU, Esprit des Lois, Livro XI, capítulo VI .

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integração da qual faz parte, o tribunal supranacional pode igualmente dedicar-se ao desenvolvimento de novos conceitos e integração das eventuais lacunas que surjam no seio da mesma, função esta que assume especial relevância se nos estivermos a reportar a um sistema recentemente criado ou que esteja ainda a dar os seus primeiros passos rumo a estádios de integração mais avançados. Na opinião de boa parte da doutrina, aqui reside aliás a verdadeira essência do processo de criação levado a cabo por um poder judiciário.5 Mesmo assim, tem parecido preferível para muitos juizes manter uma atitude discreta no desempenho das suas funções, sendo que só muito raramente podemos testemunhar o reconhecimento aberto de um papel criativo por parte destes profissionais. Na verdade, em boa parte depende desta mesma discrição e modéstia a legitimidade das suas decisões. O recurso a um tribunal para dar solução a uma disputa entre partes, quer a nível interno de um Estado quer mesmo a nível internacional, nasce de uma tentativa de ver a questão resolvida por uma entidade pretensamente isenta e objectiva, dessa mesma neutralidade advindo a legitimidade social do juiz. Consequentemente, se, em algum momento de todo o processo, pudesse ser visível para uma das partes o exercício de um poder discricionário pelo magistrado, tornar-se-ia para esta crível que a decisão final pretenderia favorecer os interesses da parte contrária. Em grande medida, a aparência exterior de simples intérprete da lei, mesmo que tal aparência não corresponda inteiramente à verdade, permite pois ao juiz manter a legitimidade das suas decisões e o seu papel de garante do respeito pelas normas. Um dos pilares que sustentam uma sociedade que se pretende democrática, será inegavelmente o princípio segundo o qual as escolhas políticas procedem mais ou menos directamente da vontade popular. No entanto, dificilmente um juiz se poderia arrogar do papel de representante dessa vontade popular. A sua independência e o seu modo de designação fazem parte de um conjunto de características de um corpo de profissionais que encontra fortes obstáculos pela frente quando intenta impor as suas próprias opiniões. Opor-se aos ditames de instituições que encarnam o papel de representantes do povo, representa para um juiz opor-se à vontade popular, pelo que a atitude dos magistrados tem sido, ao longo do tempo, de alguma prudência no exercício da sua função e sobretudo na justificação das decisões proferidas. É necessário não esquecer que a missão do juiz é a de aplicar a lei e não a de impor as suas próprias soluções aos conflitos que lhe são submetidos, sob pena de vir a enfrentar graves acusações de activismo e de desenvolvimento de acções antidemocráticas. Grande parte da eficácia da acção judiciária depende, por isso, do sucesso da sua justificação, que deve ser suficiente para poder permitir convencer os seus destinatários de que a mesma não ultrapassou os estreitos limites da lei. Não parece possível nem adequado falar da importância da acção de um tribunal supranacional sem passar pela análise atenta do papel do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no processo de integração no qual este se integra. Esta instituição, que pelo seu carácter perfeitamente atípico se distingue da maior parte das restantes jurisdições internacionais, apareceu no panorama internacional munida de características específicas, sem precedentes, e que lhe permitiram desenvolver um percurso inigualável no seio de um processo de integração. Aliás, será talvez esta sua especificidade e originalidade que nos levam hoje a confundir a história da Comunidade Europeia e do seu direito com a evolução da sua jurisprudência, e a identificar o estudo da relevância dos tribunais internacionais com a análise desta instituição europeia. Contudo, o modelo europeu não deixou de ter visível impacto em outros processos de integração e em outras realidades geográficas. Um dos casos mais evidentes foi sem dúvida o da

5 Como exemplo dessa opinião, ver P.B. CASELLA, Mercosul: exigências e perspectivas de integração e consolidação de espaço econômico integrado, S. Paulo, 1996.

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experiência do Pacto Andino, onde os Estados expressamente assumiram a opção de seguirem tal modelo no desenvolvimento da construção da sua própria zona de integração, apenas admitindo divergências pontuais em relação às directrizes seguidas na Europa quando as mesmas se tornavam necessárias a uma maior adequação do modelo à realidade vivida pelos países andinos. O reconhecimento generalizado da utilidade da criação de um tribunal supranacional em algumas zonas de integração regional, leva-nos a colocar a inevitável questão sobre a pertinência e viabilidade de uma instituição semelhante no processo de integração do Mercosul e em eventuais novos processos que venham a surgir no futuro. No processo de integração a decorrer no Cone Sul o dilema coloca-se com especial visibilidade no momento presente, mesmo se o Protocolo de Ouro Preto é por muitos encarado como o passo definitivo no que concerne ao estabelecimento de um sistema institucional definitivo para suportar o desenvolvimento do processo. A análise do presente não deve esquecer as lições que se podem retirar do passado. Por esta mesma razão se torna inquestionavelmente relevante uma investigação sobre o papel de motor de integração assumido em alguns casos por instituições judiciais que, através da sua dimensão supranacional e em realidades tão diversas, pretenderam dar uma contribuição importante para o desenrolar de um percurso rumo a uma integração estreita e para o cumprimento dos objectivos definidos pelos Estados.

1.2. O tribunal supranacional como motor da integração: o Tribunal de Justiça

das Comunidades Europeias e a experiência do Pacto Andino De acordo com alguns autores6, a relação entre a União Europeia e o Mercosul pode ser vista quase como uma relação de natureza filial, assumindo a primeira o papel de precedente ou pelo menos de um “irmão mais velho” do segundo. Não obstante a natureza filial desta relação, a mesma não exclui, pelo contrário dá inclusivamente lugar, a uma tensão dialéctica entre as duas organizações e entre os princípios que lhe servem de inspiração e as estruturam: o princípio da integração na União Europeia e o princípio da cooperação no Mercosul. Não é de todo absurdo falar de uma similitude entre os dois processos de integração, que tem sobretudo origem nos seus fins e aspirações comuns. Contudo, um estudo atento das duas realidades dar-nos-á uma percepção clara das diferenças entre os modelos adoptados. Respeitando o dogma da soberania tradicional, o Mercosul permanece fiel ao modelo de intergovernamentalidade geralmente escolhido pela grande maioria das organizações tradicionais, fazendo parcas concessões ao conceito de supranacionalidade. Em contrapartida, a Comunidade Europeia há muito avançou para uma construção predominantemente supranacional que denuncia a sua natureza sui generis e a distingue dos demais esquemas de integração de que temos conhecimento. O contraste entre as duas entidades pode ser atestado por variadíssimos aspectos, sendo que um dos mais evidentes sinais dessa divergência se encontra no simples facto de o Mercosul possuir um carácter marcadamente económico ao passo que a União Europeia caminha gradualmente em direcção a vertentes cada vez mais políticas.

6 R.M. RAMOS, “Comentário à comunicação: Hacia el desarollo comunitário del Mercosur desde la experiencia de la Union Europea”, in M. PORTO, F.A. MOURÃO, O Mercosul e a União Europeia, Coimbra, 1994, p.103.

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O processo de integração europeu enquadra um perfeito exemplo de dinamismo judicial. Criado em 1957 pelo Tratado da Comunidade do Carvão e do Aço, o Tribunal de Justiça viu os seus poderes serem definidos claramente pelo tratado que estabeleceu a Comunidade Económica Europeia, sendo então encarregado da missão de garantir “o respeito do direito na interpretação e aplicação do presente Tratado” (artigo 164º). Em conjunto com o artigo 219º, esta norma viria a constituir a base para o desenvolvimento do papel do Tribunal de Justiça como motor da integração na Europa. Com efeito, os dois artigos, lidos em articulação um com o outro, afirmam a jurisdição exclusiva do Tribunal no respeito pelo direito em todos os Estados - membros, prevenindo assim o uso de outros mecanismos de solução de conflitos de Direito Internacional Público. Esta base jurídica para a missão do Tribunal foi mais tarde confirmada nas Opiniões 1/91 e 1/927 referentes ao Espaço Económico Europeu. Deixando para trás a tradicional caracterização dos juizes como simples intérpretes da lei, o Tribunal de Justiça viria então a estabelecer-se como um dos principais actores no processo de integração europeia. Os mecanismos utilizados na performance do seu papel foram muitos e diversos, indo desde a interpretação lata e abrangente dos princípios fundamentais previstos no Tratado até à tendência para ver esses mesmos princípios como fonte inesgotável de direitos e obrigações tanto para os Estados - membros como para os particulares, não esquecendo a possibilidade que a estes últimos foi atribuída de invocarem os direitos que lhes advinham do Direito Comunitário em tribunal devido ao funcionamento do princípio do primado. Em grande medida, a tarefa do Tribunal foi facultada pelas próprias características do Tratado, um tratado – quadro em que se enuncia de forma geral um certo número de objectivos e se põe em funcionamento um quadro institucional no âmbito do qual devem ser postas em execução as políticas destinadas a alcançar os objectivos enumerados. Ora, não foi difícil ao Tribunal do Luxemburgo tirar partido das imprecisões inerentes ao texto do Tratado, nomeadamente no que respeita a certos princípios fundamentais do mesmo. Um dos exemplos flagrantes que podemos lembrar a este respeito pode ser encontrado na inovação contida na sentença Dassonville8, onde o Tribunal alargou consideravelmente a amplitude do artigo 30º do Tratado, vendo neste uma interdição, não apenas de medidas discriminatórias relativamente a produtos importados, mas também de “toda a regulamentação comercial (…) susceptível de entravar, directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, o comércio intra-comunitário” O Tratado que constituiu as Comunidades Europeias criou um sistema judicial híbrido, baseado na coabitação dos tribunais nacionais e dos tribunais da Comunidade. Só esta coabitação permite que, nos casos em que a própria Comunidade, através das suas instituições, actua de uma forma contrária ao direito, e porque estas não são um fim em si mesmas mas um meio de atingir determinados fins aprioristicamente determinados, seja recordada de que ultrapassou a regra. Na

7 O acordo do Espaço Económico Europeu, que estende o mercado comum aos países da EFTA, é um acordo que cria direitos e obrigações entre as partes e que não implica qualquer transferência de direitos soberanos para as instituições intergovernamentais que cria. Uma primeira proposta de criação de um tribunal do EEE foi rejeitada pelo Tribunal de Justiça europeu, alegando que essa criação iria afectar a autonomia da ordem jurídica comunitária (Opinião 1/91, Proposta de Acordo do Espaço Económico Europeu, (1991) ECR I-6084). A solução acabou por ser encontrada no estabelecimento de um tribunal da EFTA que existisse em paralelo com o TJCE, dentro de condições bem determinadas (Opinião 2/91, EEA II (1992) ECR I-282). O procedimento estabelecido para assegurar a uniforme interpretação por ambos os tribunais das mesmas disposições, tenta em todos os casos salvaguardar a autonomia da ordem jurídica comunitária. 8 Caso 8/74, Dassonville (1974) Rec. 837.

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verdade, seria impossível que a tarefa de lembrar a Comunidade do seu erro e obrigá-la a corrigi-lo ficasse a cabo dos tribunais nacionais por razões de uniformidade. Não seria lógico que um mesmo acto comunitário fosse julgado diferentementemente consoante o tribunal nacional que fizesse a sua apreciação. Talvez por isso não seja surpreendente que toda a sindicância dos actos e omissões das instituições seja efectuada pelo tribunal da própria Comunidade. Da mesma forma e pelas mesmas razões, também parece pertinente submeter os actos dos Estados – membros que desrespeitem o Direito Comunitário ao julgamento pelo Tribunal de Justiça. De acordo com o sistema judicial criado pelo Tratado de Roma, é possível distinguir duas grandes vertentes de garantia do respeito pelo Direito Comunitário: os recursos directos dirigidos contra os Estados – membros ou as instituições por um lado, e as respostas às questões prejudiciais colocadas pelas jurisdições nacionais por outro. A estas vias principais ainda se juntam as não menos importantes competências consultivas do Tribunal de Justiça. No interior deste sistema, cumpre destacar a importância de alguns dos recursos onde a actuação do Tribunal se tem revelado de extrema importância. O primeiro destes casos é a chamada acção por incumprimento dirigida contra um Estado – membro por outro Estado ou, mais frequentemente, pela Comissão Europeia na sua qualidade de guardiã dos tratados, e que permite, tal como o próprio nome indica, pôr em evidência a acção das autoridades nacionais que seja contrária às normas e princípios comunitários. Os contenciosos de legalidade (recursos de anulação e de omissão, em que estão em causa respectivamente o ataque a actos reconhecidamente contrários ao Direito Comunitário e, no segundo caso, a constatação de uma carência no seio da actividade das instituições da Comunidade) e de responsabilidade (que visa a condenação da Comunidade à reparação dos eventuais danos causados pela sua actuação), assim como a apreciação da validade dos actos comunitários por via prejudicial, em contrapartida, asseguram o controle das instituições comunitárias. Estes mecanismos são depois completados por um instrumento que permite ao juiz nacional, antes de decidir uma questão perante si colocada, interrogar o Tribunal da Comunidade sobre uma questão de direito posta pela interpretação ou pela aplicação de uma norma comunitária pertinente nesse caso. Com efeito, a criação do Tribunal de Justiça não conduziu à perda de soberania judiciária por parte dos tribunais dos Estados que compõem a Comunidade. Estes mantém os seus poderes no que respeita ao controlo da legalidade dos actos emanados dos orgãos nacionais, campo em que o Tribunal de Justiça nunca ousou interferir. Contudo, mesmo a este nível, a relação que se estabelece entre estes dois níveis de jurisdição pode ser apelidada de “relação de cooperação judiciária”9, pois que, uma vez feita a consulta e obtida a resposta pelo Tribunal de Justiça, competirá ao tribunal nacional responsável retirar as devidas consequências da indicação dada pela primeira instituição e decidir assim do fundo da questão. Este procedimento de colaboração entre as duas entidades visa obviamente assegurar a conformidade de interpretação e de aplicação do Direito Comunitário em todos os Estados – membros e tem sido aquele em que o poder criador do Tribunal de Justiça se tem afirmado com maior destaque. A posição de quase legislador, ou pelo menos de inegável criador de direito, em que o Tribunal de Justiça se tem vindo a colocar é, no fundo, a consequência de um persistente uso de algumas técnicas enumeradas por Burley e Mattli10. Os autores, aplicando os princípios inerentes a uma abordagem que se diz neofuncionalista, afirmam que o actual processo de integração se baseia em três grandes figuras: o uso pelas autoridades jurisdicionais de “métodos de interpretação

9 FAUSTO QUADROS, “O modelo europeu”,(1997)Ano I REVISTA CEJ,Mercosul: uma nova realidade jurídica, Centro de Estudos Judiciários/Conselho da Justiça Federal, Ano I,Agosto de 97,p. 15. 10 A.M. BURLEY, W. MATTLI, “Europe before the Court: a political theory of legal integration”, (1993)47 n. 1 International Organisation.

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construtivos” que expandem as competências das instituições na medida necessária ao cumprimento dos objectivos dos Estados – membros, a expectativa criada pelas decisões do Tribunal e a sua subsequente utilização como argumentos válidos e frutuosos, e, finalmente, a interpretação teleológica das provisões do tratado à luz naturalmente dos objectivos do processo de integração e não propriamente dos interesses das partes envolvidas no conflito. Paralelamente a estes instrumentos e técnicas, o Tribunal de Justiça encontra ainda outras possibilidades ao seu dispor. Falamos nomeadamente da sua capacidade de exercer pesada influência sobre as decisões políticas das outras instituições comunitárias, sugerindo-lhes novas direcções e caminhos a explorar no curso do processo de integração, legitimando determinadas escolhas políticas ou discordando de outras, e igualmente instigando os poderes legislativos a intervir sempre que considere existir necessidade para tal intervenção. Nesta “juridificação do jogo político”11, é igualmente importante mencionar o papel desempenhado pela lei como elemento de estratégia política, sendo a apresentação de um caso perante o Tribunal muitas vezes não mais que um dos meios possíveis de reconhecimento dos próprios interesses dos demandantes. Alguns Estados – membros descobriram assim as vantagens do recurso a um processo judicial para proteger as suas prerrogativas contra um desenvolvimento das competências comunitárias12 ou contra o recurso ao voto por maioria qualificada13. Também os grupos de interesse cedo compreenderam que um recurso ao Tribunal do Luxemburgo poderia fazer mais pelo seu caso que anos consecutivos de lobbying junto das autoridades políticas. Um outro caso típico de utilização do recurso a esta instituição judicial para reconhecimento das próprias prerrogativas, terá sido o combate jurídico levado a cabo pelo Parlamento Europeu com vista a ver reconhecido o seu direito de demandar a anulação de actos adoptados pelas outras instituições (legitimidade activa) e que se juntasse à legitimidade passiva que havia já adquirido. Apesar das veementes críticas dirigidas ao seu activismo, que se tornou particularmente evidente na constitucionalização dos tratados14 e na definição dos direitos humanos que as instituições comunitárias deveriam obrigatoriamente respeitar15, a acção do Tribunal, que

11 R. DEHOUSSE, supra nota 3, p.90. 12 Casos 281, 283-285 e 287/85, R.F.A. e outros v. Comissão(1987) ECR 3203; (1988) 1 CMLR 11. 13 Caso 68/86, Reino Unido v. Conselho (1988) ECR 855. 14 De acordo com o Tribunal de Justiça (Caso 6/64, Costa v. Enel, infra nota 17), o TCE instituiu uma ordem jurídica própria, com um carácter inovador. Afirmar a especificidade do sistema jurídico comunitário corresponde a uma ideia de autonomia da norma fundamental desta ordem jurídica frente tanto ao direito internacional como ao direito interno dos Estados - membros. Esta norma fundamental é a constituição comunitária (função desempenhada pelos tratados comunitários), que sustém a hierarquia normativa e garante a coerência interna da ordem jurídica comunitária 15 Confrontado desde cedo com a dificuldade de os tratados não conterem um verdadeiro catálogo de direitos fundamentais, o TJCE teve inicialmente uma atitude defensiva , não querendo comprometer a autonomia do direito comunitário. Contudo, reagindo às críticas que lhe eram dirigidas sobretudo pelos tribunais e advogados alemães, o Tribunal optou por consagrar um conceito comunitário de direitos humanos e esclarecer que não permitiria nenhuma provisão de direito comunitário contrária a estes direitos (caso 29/69, Stauder v. City of Ulm (1960) ECR 423). No caso Internationale Handelgesellschaft (Caso 11/70 (1970) ECR 1125), o TJCE, muito embora afirmando que a validade do direito comunitário não poderia ser julgada de acordo com os princípios do direito nacional, a sua análise deve passar por um exame de princípios gerais de direito, equivalentes aos do direito interno dos Estados, na ordem jurídica comunitária. A proteccção desses direitos, inspirados nas tradições constitucionais comuns aos Estados - membros, deveria ser assegurada. Mais tarde, na sentença Nold v. Comissão (Caso 4/73 (1974) ECR 491), iria ainda mais além ao entender que qualquer medida comunitária contrária aos direitos fundamentais, entendidos desse modo, deveria ser anulada, acrescentando que uma outra fonte de inspiração para esses direitos deveria ser tida em conta - os tratados internacionais de protecção dos

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ultrapassou inegavelmente a fronteira da mera interpretação e se envolveu numa actividade de criação do direito, tirou enormes vantagens das justificações de carácter não político que atribuiu às suas decisões, e isto mesmo nos casos em que o impacto político das mesmas viria a revelar-se posteriormente da maior importância. A atitude de utilizar a lei e o direito como uma espécie de máscara para a sua actividade política pôde apenas funcionar devido à posição deliberadamente discreta assumida pelos juizes do Tribunal do Luxemburgo e à sua perfeita consciência da necessidade de prudência nas suas decisões. Este será talvez o verdadeiro sentido da expressão L’Europe des juges proposta por Lecourt na sua obra com o mesmo título16. Com a sua crucial contribuição para a criação e desenvolvimento do Direito Comunitário, que transcende os Estados e é directamente aplicável aos indivíduos que o podem assim invocar perante os tribunais nacionais, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias deu um novo impulso à integração económica na Europa. De facto, a própria criação dos fundamentais princípios do efeito directo e do primado do Direito Comunitário17 revela a dinâmica escondida do processo de integração legal. Aliás, apenas este factor e as vantagens que dele se retiraram ao longo de todo o processo foi capaz de persuadir os restantes actores do sistema a evitarem criar substanciais obstáculos à acção judicial desenvolvida por este orgão. Um inquestionável contributo para a aceitação generalizada das actividades do Tribunal terá sido dado pela sua própria legitimidade social, originada por uma imagem de neutralidade e objectividade de que os juizes beneficiam, e também pela natureza sobretudo económica das suas decisões, que em larga medida não contendem com os interesses pessoais e directos dos cidadãos. Poder-se-á tentar imaginar como teria sido o processo de integração europeu no caso de o Tribunal de Justiça não ter sido criado. Certamente, as respostas e soluções dadas pelos princípios do efeito directo e do primado relativamente ao problema da falta de uniformidade do sistema legal comunitário nunca teriam sido possíveis apenas pela acção, mesmo que coordenada, dos tribunais nacionais dos Estados – membros operando segundo as regras do Direito Internacional Público. Além disso, a Comissão Europeia teria porventura enfrentado muitos mais obstáculos na construção da sua estratégia de mercado comum, e não seria certo que os Estados – membros houvessem aceitado facilmente as reformas institucionais que foi necessário levar a cabo. A “máscara da lei e do direito” produziu resultados impossíveis de alcançar num período tão curto de tempo através de qualquer outro meio, e nesta impossibilidade se revela hoje a extrema relevância da acção desempenhada pelo Tribunal de Justiça. Seguindo de perto uma linha de raciocínio desenvolvida a propósito do Tribunal de Justiça a funcionar no seio do sistema do Pacto Andino18, mas que pode perfeitamente considerar-se extensível a situações similares ocorrentes em outros processos de integração, é possível afirmar-se que nenhuma ordem jurídica pode adquirir suficiente eficácia se não contar com um controlo jurisdicional que desempenhe uma tríplice função. Assim, o tribunal supranacional deve ser encarregado do controlo da validade das acções levadas a cabo pelas instituições que compõem o

direitos do homem que tivessem contado com a colaboração ou adesão dos Estados - membros, o que visava sobretudo consagrar a importância da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Para mais esclarecimentos sobre este assunto, ver T.C. HARTLEY, The Foundations of European Community Law, 3ª ed., Oxford, Clarendon Press, 1994, p.139ss. 16R. LECOURT, L’Europe des juges, Bruxelas, Bruylant, 1976. 17 Caso 26/62, Van Gend & Loos v. Nederlandse Administratie der Belastingen, (1963)RTJ 1; Caso 6/64, Costa v. Enel, (1964) RTJ 585. 18 Vide L.C. SÁCHICA, “El Ordenamiento Juridico Andino y su Tribunal de Justicia”, in L.C. SÁCHICA, J.G. ANDUZA, E.H. LARNEA (editores), El Tribunal de Justicia del Acuerdo de Cartagena, Buenos Aires, Instituto para la Intégración de América Latina, 1995, p. 12.

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sistema de integração, de forma a assegurar a conformidade do seu comportamento com os princípios e regras básicos que vigoram no mesmo, e deve sancionar qualquer desrespeito das provisões dessa ordem jurídica pelos destinatários das normas que dela fazem parte. Finalmente, deve ser também uma função do tribunal a de estabelecer uma interpretação obrigatória para tais provisões desse direito da integração que lhe permita avançar numa única direcção, válida para todos os seus actores, criando efeitos uniformes e dando lugar a um direito comum, geral e igualitário que tenha um influxo moderador e directivo sobre aqueles que o aplicam. Só assim poderá dizer-se que este direito pode servir de motor para a evolução do processo de integração. Mesmo se o momento de reflexão cuidada sobre o tema surgiu apenas uma década depois da criação deste processo de integração regional, os membros da organização do Pacto Andino cedo perceberam a necessidade de criação de uma instituição judicial independente e estável à qual pudessem atribuir competência jurisdicional exclusiva para as matérias relacionadas com a consolidação da zona económica integrada. O Tribunal de Justiça do Pacto Andino, a que também é vulgar chamar-se Tribunal Andino, foi criado por um tratado independente assinado em Cartagena das Índias em 1979, o qual acabou por adicionar duas novas instituições às já existentes no sistema – um tribunal supranacional e o Parlamento Andino. De acordo com a Declaração de Cartagena de 1978, a criação de um tribunal independente a tão alto nível constituiria a resposta necessária e natural aos desejos de plenitude institucional, autonomia e permanência dos objectivos e mecanismos criados pelo Acordo de Cartagena de 1969. Pretendia-se dispor de um orgão que controlasse a legalidade das normas emanadas da Comissão e da Junta, dirimisse as controvérsias sobre o cumprimento das obrigações dos países – membros e interpretasse os princípios que conformam a estrutura jurídica do Acordo. O Tribunal foi assim concebido como um dos elementos da essência do processo de integração e a sua criação representou a mais clara demonstração da vontade política dos governos dos Estados – membros de respeitar e cumprir as obrigações e responsabilidades assumidas previamente, bem como uma afirmação de irreversibilidade do próprio processo de integração. As esperanças de um desenvolvimento sustentável de um esforço de integração sério, baseado numa organização com poderes similares aos de um Estado soberano, onde o princípio da maioria dos votos é aceite como regra geral e onde existe um verdadeiro interesse comum que prevalece sobre os interesses individuais e circunstanciais de cada momento histórico, residiam no estabelecimento de um controlo judicial permanente – eventualmente o elemento–chave que faltava a esta construção. O tribunal criado assume três classes de acções ou de competências: a competência para decidir demandas por incumprimento contra os países – membros (que acabou por ser um dos campos onde o falhanço deste tribunal viria a ser mais evidentemente notado. Nenhum dos países em causa se atrevia a “atirar a primeira pedra” pois que nenhum se apresentava isento de culpas, chegando mesmo a existir um “acordo de cavalheiros” entre os governos no sentido de não recorrerem ao tribunal para resolverem as suas disputas), a acção de nulidade, para tratar de assegurar aos governos dos Estados – membros e aos seus habitantes que os inusitados poderes atribuídos aos organismos comunitários serão usados correctamente, e, finalmente, a competência judicial comunitária de maior importância, não somente por se tratar de pronunciamentos doutrinais com repercussão directa e imediata nos processos submetidos aos juizes nacionais como também porque com esta acção se tenta cumprir na prática os mesmos objectivos que se buscam através das acções de incumprimento e de nulidade – o recurso prejudicial. Escapam a estas competências as controvérsias entre particulares no âmbito do processo de integração, assim como as que surjam entre particulares e países – membros e entre pessoas privadas e orgãos comunitários. Da mesma forma, de acordo com o artigo 23º do Tratado do Tribunal, que modifica o artigo 23º do Acordo de Cartagena, apenas serão submetidos ao Tribunal Andino os eventuais conflitos entre membros do Grupo Andino, sendo que polémicas que surjam envolvendo

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outros Estados pertencentes ao Tratado de Montevideo que não sejam membros do Pacto Andino continuarão a ser solucionados através do mecanismo de solução de controvérsias da ALALC. Criado para ultrapassar a frustração do funcionamento dos mecanismos de Direito Internacional Público originalmente estabelecidos, utilizados apenas nas transacções bilaterais de interesses e fora do âmbito da associação e do seu sistema legal, o Tribunal de Justiça do Pacto Andino, mesmo seguindo o modelo europeu, apresenta características que revelam as diferenças básicas entre os dois sistemas. Seguramente tal facto terá inevitavelmente que ver com o próprio estádio de evolução em que o tribunal foi criado, que não é de todo comparável com o caso do Tribunal de Justiça europeu, que apareceu como é sabido ao mesmo tempo que as próprias Comunidades. Contudo, os próprios poderes das duas instituições encontram diferenças substanciais entre si. Aproveitando a experiência acumulada pelo Tribunal do Luxemburgo, o Tribunal Andino apresenta, como vimos, as mesmas competências básicas, que são aliás indispensáveis ao funcionamento de todo o ordenamento jurídico comunitário. No entanto, o processo de integração europeu apresenta, justificadamente, muito maior vigor e maturidade, resultante sobretudo da milenária cultura compartilhada por países na sua maioria desenvolvidos e com uma personalidade própria. Em contrapartida, o processo andino é eventualmente um processo de evolução mais difícil pois que reúne países com uma cultura comum incipiente e ainda em vias de desenvolvimento. Simultaneamente, as próprias circunstâncias que rodearam o aparecimento das duas zonas de integração foram divergentes. A Europa, assolada e destruída por uma guerra mundial, empreendeu um projecto de integração que funcionasse como uma garantia para a paz, ao mesmo tempo que fazia frente ao poder económico dos Estados Unidos e do Japão. Já no Pacto Andino, estas motivações que imprimiram um singular impulso ao processo europeu não estiveram presentes. Contudo, a regulamentação vigente para o Tribunal Andino apresenta ainda assim alguns aspectos nos quais supera, pelo menos teoricamente, o previsto para o Tribunal da Comunidade Europeia. Assim, o primeiro tem a possibilidade de sancionar o país – membro responsável por um incumprimento se este não cumprir a sentença na qual este incumprimento é declarado no prazo de três meses. Esta sanção, que consiste em “restringir ou suspender, total ou parcialmente, as vantagens do Acordo de Cartagena” e que pode ser imposta pelo tribunal sumariamente e sem prévia aprovação da Junta19, não é um poder ao dispor da instituição europeia. Paralelamente, existe no ordenamento comunitário andino uma maior clareza em relação ao papel desempenhado pelos juizes nacionais na aplicação do direito comunitário, o que aliás não é mais que um aproveitamento da experiência europeia para o melhoramento das características da instituição judicial. Mesmo assim, ainda é possível observar algum desfasamento das funções do Tribunal Andino relativamente ao seu congénere europeu, de que, a ausência de um seu poder para , no seio de uma acção de incumprimento, julgar as omissões em que tenham incorrido os organismos comunitários mesmo a pedido de pessoas particulares, constitui apenas um exemplo. Outra diferença pode ser encontrada na ausência de poderes consultivos, nomeadamente no que diz respeito à assinatura de acordos com terceiros Estados. Como vimos já na análise que atrás fizemos da importância do tribunal supranacional no processo de integração europeia, o papel por este desempenhado foi extraordinariamente activo e deu um impulso e uma dinâmica particular ao sistema que, até então, não tinha encontrado paralelo

19 Artigo 25º do Tratado Constitutivo do Tribunal de Justiça do Acordo de Cartagena.

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em qualquer outra organização internacional. A constatação deste facto poderia levar-nos a pensar que esta nova dimensão da actividade judicial deveria ser automaticamente aplicável a qualquer outro processo de integração regional de características ou objectivos semelhantes que se viesse a constituir no futuro, como se a própria actividade criativa de um tribunal supranacional fosse uma exigência feita pela natureza do direito comunitário. A ser assim, o Tribunal Andino estaria por assim dizer obrigado a seguir semelhante rumo num futuro mais ou menos próximo pois que desse facto decorreria o progresso da própria integração. Ora, não parece possível esquecer o princípio segundo o qual o direito tem por função regular condutas e não produzi-las, proporcioná-las ou dirigi-las, tarefa a cabo dos agentes políticos. Ao tribunal supranacional cabe assim, antes de tudo o mais, proporcionar um ambiente de segurança jurídica adequado ao desenvolvimento dos interesses comuns dos governos, e não direccionar a evolução no seio do processo de integração regional. Há mesmo quem vá mais longe e afirme que fazer o contrário seria atribuir-lhe “uma tarefa que não se compagina com a natureza própria do organismo judicial, obrigando-o a aplicar critérios práticos ou de simples conveniência, próprios do político mas não do juiz”20. No entanto, devido à natureza da estrutura institucional criada pelo Acordo de Cartagena (onde tanto a Comissão como a Junta são dotadas de poderes normativos e são capazes de emitir disposições vinculantes e aplicáveis no território dos países - membros21) necessitava-se de um mecanismo de controle da legalidade muito mais eficiente que o de simples solução de controvérsias por unanimidade dos seus componentes, como existia no seio do processo de integração da ALALC. Simultaneamente, existia o problema da uniformidade do ordenamento jurídico, impossível de atingir através do mecanismo existente. Havia necessidade de um sistema que, respeitando a soberania e competências das jurisdições nacionais, permitisse uma estreita colaboração entre estas e um tribunal supranacional com vista a assegurar a interpretação e aplicação uniformes do direito comunitário, essenciais ao desenvolvimento do processo de integração. Assim, comprometeram-se os Estados – membros do Grupo Andino (posteriormente consagrado como Comunidade Andina), através do artigo 33º do Tratado que criou o Tribunal, a não submeter nenhuma controvérsia que surja devido à aplicação das normas que compõem o ordenamento jurídico andino a nenhum sistema de arbitragem ou procedimento distinto dos contemplados no mesmo tratado, o que na prática equivale a afirmar a competência jurisdicional exclusiva do tribunal supranacional, como já acontecia aliás no modelo europeu. Como se pode constatar pela análise a que procedemos, são muitíssimo semelhantes a natureza jurídica e institucional do Tribunal de Justiça europeu e do Tribunal de Justiça andino. Prova disso é, por exemplo, a tarefa de que foi encarregado este último no artigo 2º do seu Estatuto – a de “assegurar o respeito do direito na aplicação e interpretação do ordenamento jurídico do Acordo de Cartagena” – que tem uma formulação retirada quase textualmente do artigo 164º do Tratado de Roma. Não obstante esta identidade de modelos, o Pacto Andino é hoje visto como uma experiência frustrada, não apenas por causa da ausência de um claro e decisivo avanço para estádios mais completos do processo de integração regional e de uma definição definitiva dos seus objectivos, mas também devido à avaliação negativa que foi feita da sua estrutura institucional, da qual a sua parca actividade constitui uma importante evidência. Crê-se que o excessivo optimismo

20Supra nota 18. 21Note-se que, para além da criação de novas instituições, o Tratado que criou o Tribunal reveste-se ainda de importância por ter também consagrado a importância dos princípios da aplicabilidade directa e imediata das decisões da Comissão a partir da sua publicação na Gazeta Oficial do Acordo, bem como do primado das normas que integram o ordenamento jurídico comunitário do Acordo de Cartagena.

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que caracterizou os primórdios da sua evolução (e que acabou por obrigar os governos a alterarem por diversas vezes a definição das suas obrigações básicas22) e a utopia em que se traduziu o seu sistema jurisdicional muito contribuíram para este estado de coisas. Quanto a este último aspecto - o fenómeno das violações generalizadas e sistemáticas do direito comunitário andino - a explicação poderá eventualmente ser encontrada num conceito de supranacionalidade que nunca passou de um ideal jamais concretizado, bem como no simples facto de as violações terem atingido um carácter crónico tal que dificilmente poderiam ser travadas pela simples actuação de um juiz. A primeira vítima do clima de desmoralização e de relaxamento generalizado no seio da organização acabou por ser o próprio tribunal, sendo a sua ineficácia para muitos a principal causa da normalidade dos incumprimentos que se testemunhavam. Mesmo o Protocolo de Trujillo de 10 de Março de 1996, que deu origem à Comunidade Andina e pretendia conceder um novo fôlego a toda a organização, não provou até ao momento presente ser a solução que faltava para todos estes problemas. No que concerne à posição do tribunal, a opinião geral é a de que não há ainda uma verdadeira possibilidade de este vir a desenvolver uma actividade realmente independente, com suficiente capacidade para solucionar os conflitos interinstitucionais que ocorram e revitalizar os esforços de integração. O estudo feito sobre a Comunidade Andina é, antes de tudo o mais, uma fonte de preocupações para todos aqueles que se dedicaram à sua análise e que tentaram demonstrar a viabilidade do conceito de tribunal supranacional e a adequação da sua acção à por vezes instável realidade política dos países da América Latina. Talvez seja prematuro afirmar que a experiência preconizada pelos países andinos foi um completo falhanço, especialmente porque os esforços para entrar numa nova fase do processo de integração parecem ser suficientemente sérios para provar precisamente o contrário e mesmo manter a esperança num seu resultado favorável. Mesmo assim, seria impossível não tomar em consideração a história e vicissitudes deste processo quando questionamos os futuros desenvolvimentos de outros processos de integração, como é o caso do Mercosul. Aliás, talvez não seja despropositado defender que qualquer esforço de integração futuro deve atentar não só nos resultados alcançados por experiências bem sucedidas, como a da União Europeia como também nas lições que nos deixam processos como o da Comunidade Andina. Salvaguardadas as diferenças entre as condições presentes nas duas realidades e os distintos passos dados pelas duas organizações, é inegavelmente necessário manter no espírito os pontos positivos e negativos da evolução de ambos os processos para tentar evitar cometer erros semelhantes.

22Vejam-se, a este propósito, os Protocolos de Lima de 1979 e do Quito de 1987.

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2. MERCOSUL: O PROCESSO DE INTEGRAÇÃO E O QUADRO INSTITUCIONAL

2.1. Enquadramento histórico Muito foi já anteriormente escrito sobre os processos de integração hoje em curso na América Latina em geral, e mesmo sobre a recente experiência do Mercado Comum do Cone Sul, em particular. Evitando repetições desnecessárias, o que tentaremos por isso fazer neste capítulo não é analisar detalhadamente todas as vertentes deste complexo processo, mas tão somente fornecer uma visão geral dos seus aspectos mais relevantes, de forma a podermos assim ter uma base sólida sobre a qual possamos desenvolver a análise a que nos propusemos. As primeiras tentativas de criação de blocos económicos regionais entre os países da América Latina enfrentaram a forte e clara oposição no plano internacional da parte dos Estados Unidos da América, que os encaravam como portadores de efeitos nefastos para o continente americano em geral. A intenção deste último país terá sido sempre a de levar por diante a intenção de formar uma associação entre todos os países do continente, de forma a melhor poder exercer a sua influência sobre os demais e consolidar as relações económicas, nomeadamente com os membros dos blocos regionais entretanto formados. No entanto, vários acontecimentos, entre os quais se pode incluir a própria assinatura do Tratado de Roma entre alguns países europeus que deu origem à formação da Comunidade Económica Europeia, encorajaram os Estados da América Latina a desenvolverem um projecto de criação de uma zona de livre comércio, o qual viria depois a dar origem à criação da chamada Associação Latino Americana de Livre Comércio (ALALC) em 1960. Em finais dos anos setenta, contudo, os países latino - americanos possuíam já uma clara percepção do carácter obsoleto do processo de integração a que tinham dado origem através do tratado celebrado em Montevideo. As razões da frustração do projecto podem ser encontradas nas diferenças de desenvolvimento entre os Estados que dele faziam parte, assim como na instabilidade política que se verificava na maioria dos casos. Apesar disso, a determinação de alguns Estados de implementar um processo de integração regional das suas economias, levou-os a desenvolver novo projecto conducente desta feita à criação de um verdadeiro mercado comum: a Associação Latino Americana de Integração (ALADI), estabelecida em 1980 através de um tratado igualmente celebrado em Montevideo. Esta iniciativa viria também a mostrar-se infrutuosa, sendo que a frustração dos seus amplos e algo pretensiosos objectivos viria a dar lugar à ideia de que qualquer desígnio de integração na América Latina teria mais probabilidades de ser bem sucedido se reunisse menos mas mais similares países. A generalização deste entendimento favoreceu a constituição entre o Brasil e a Argentina de um programa de integração e cooperação económicas levado a cabo de 1985 a 1988 com a clara intenção de resolver os seus graves problemas de dívida externa e servir de suporte ao desenvolvimento económico e comercial destes países. O Tratado de Buenos Aires, celebrado entre estes dois países, viria a estabelecer um prazo de 10 anos para a criação de uma área económica comum, mais tarde antecipada para a data de 31 de Dezembro de 1994. O diálogo estreito entre a Argentina e o Brasil seguiu de perto o precedente criado pela experiência do Pacto Andino e viria a ser gradualmente intensificado até ao encorajamento do Uruguai, Paraguai e mesmo do Chile (que viria, no entanto, a preferir adoptar uma posição cautelar, requerendo a atribuição de um período em que pudesse manter um estatuto de observador) para aderirem ao programa. Preocupados com a formação de uma nova unidade económica, que necessariamente os

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afectaria, Uruguai e Paraguai não hesitaram em mostrar o seu interesse em fazer parte de tal processo de integração e, após um período de negociações multilaterais, integrariam o núcleo de Estados que assinariam o Tratado de Assunção que em 26 de Março de 1991 criou o Mercosul. O Tratado de Assunção é um tratado internacional que assume a tarefa de prosseguir a criação de um mercado comum entre os países do Mercosul, e que deve ser considerado como um tratado de integração, e não meramente um acordo de cooperação, uma vez que, para além do incentivo às trocas comerciais, os seus objectivos incluem a completa eliminação dos direitos aduaneiros entre as partes, a criação de uma união aduaneira, a adopção de uma política comercial comum relativamente a terceiros Estados bem como a harmonização dos sistemas legais nacionais na medida necessária à implementação do processo integracionista. A sua decisão definitiva de criar um mercado comum marca o contraste com o seu carácter transitório. De facto, o Tratado de Assunção prevê dois estádios de evolução para atingir tal objectivo, um provisório e outro definitivo (tendo este último sido estabelecido pelo Protocolo de Ouro Preto de 1994 que, no seu artigo 34º, atribuiu personalidade jurídica internacional à organização). Esta divisão em fases segue de perto um processo já anteriormente utilizado na evolução das Comunidades Europeias, em que cada etapa tem o propósito de permitir a adaptação das economias à nova realidade com que se deparam. Assim, no momento presente, o Mercosul pode ser descrito como uma zona de livre comércio, incluindo mais de 90% da produção nacional, e como uma união aduaneira incompleta que abrange já mais de 85% das importações da região. Tem sido afirmado que, apesar das diferenças entre os interesses das partes que permanecem subjacentes, o Mercosul está condenado ao sucesso pelo menos a longo prazo. A prova do seu inquestionável êxito reside nas recentes afirmações produzidas pelos governos argentino e brasileiro, claramente favoráveis à criação de uma moeda única para os países do Mercado Comum do Cone Sul, o que se deve em larga medida ao fantástico desenvolvimento das trocas comerciais que entre estes se tem vindo a verificar. Com a aproximação de processos eleitorais em todos os Estados - Partes, é improvável que se assista a alguma actividade criativa digna de nota antes do ano 2000. No entanto, tanto a Bolívia e o Chile (que possuem desde já estatuto de Estados associados), como também a Venezuela, a Colômbia e o Peru manifestaram o seu ensejo em aderirem ao Mercosul, possibilidade aberta pelo próprio Tratado de Assunção, o qual se caracteriza por ser um tratado multilateral de âmbito regional com o fim último de abrir o processo de integração a todos os Estados Membros da ALADI.

2.2. Enquadramento político e económico O Mercosul apresenta uma profunda assimetria entre os Estados que dele fazem parte, sendo esta realidade, ao mesmo tempo, tanto um factor de estabilidade como um presságio de vulnerabilidade. Na verdade, a presente estabilidade económica e política no Brasil e na Argentina pode ser bem sucedida na tarefa de assegurar o êxito do objectivo fulcral do mercado comum. Contudo, não é aconselhável esquecer que uma eventual crise interna em qualquer destes dois países poderá pôr em perigo a coordenação necessária para que o processo de integração possa alcançar os resultados desejados. Simultaneamente, a assimetria verificada entre os membros da organização é susceptível de afectar negativamente a correcta elaboração do sistema jurídico que servirá de suporte à construção do mercado comum. O problema enunciado contém, com efeito, considerável importância no que se refere à harmonização legislativa de áreas cruciais da integração regional. O processo de integração na América Latina terá de ultrapassar a barreira causada pela

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existência de economias nacionais internamente desorganizadas e vítimas de sérias contradições. Paralelamente, estamos perante países que muito divergem entre si e, dentro da mesma organização regional, é possível encontrar tanto áreas que atingiram já um nível de desenvolvimento económico considerável como outras que continuam a apresentar alguns dos mais baixos rendimentos per capita do planeta. Não será incorrecto afirmar que, se as políticas de desenvolvimento do Brasil e da Argentina por um lado, e as políticas do Uruguai e do Paraguai por outro, demonstram uma tão grande dissemelhança (resultante sobretudo das suas diferentes características económicas, demográficas e geográficas), qualquer estrutura de que se venha a dotar o processo de integração não deverá ser demasiado rígida. De facto, é do conhecimento comum que o sentimento geral entre a elite política brasileira é mesmo o de que esta rigidez seria demasiadamente desvantajosa pois impediria a sua nação de perseguir o seu grande plano – afirmar o Brasil como país capaz de um nível de desenvolvimento técnico e económico compatível com as suas dimensões geográficas. Esta constatação parece suficiente para explicar a expressão “miopia do geocentrismo”23 com que alguns autores resumem as severas críticas que fazem à tendência deste Estado para se considerar o centro do Universo e esquecer assim as necessidades dos seus parceiros e do processo de integração em geral. As disparidades sociais entre os Estados – membros do Mercosul são também assinaláveis, sendo que os níveis de pobreza e as suas características variam bastante de país para país e de região para região. Todavia, em conjunto, estes Estados continuam a apresentar um total de 80 milhões de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza. Um estudo cuidado do Mercosul, que procure ir além das suas provisões legais, deve ainda considerar outro factor. No processo de criação institucional daqueles que serão os suportes do sistema, o debate central concerne o estabelecimento dos critérios que irão regular os procedimentos de decisão política. Na verdade, se o actual sistema de unanimidade parece incompatível com os prazos a que se propuseram os países para atingir os seus principais objectivos, a possibilidade de adopção de decisões por formas semelhantes às que são utilizadas há já vários anos na Comunidade Europeia, encontra um forte obstáculo nas características específicas do Mercado Comum do Sul. De facto, é praticamente impossível obter uma ponderação dos votos que seja adequadamente proporcional ao peso geográfico, económico e demográfico dos participantes no Mercosul. O modelo europeu não pode, assim, ser simplesmente transposto para esta integração subregional. É necessário proceder a atentas análises que tenham em devida conta a heterogeneidade dos seus membros pois, no caso contrário, um país como o Brasil, com um território de 8,5 milhões de quilómetros quadrados, 155 milhões de habitantes e a maior economia dentre os membros do Mercosul, poderia acabar por ser ou subrepresentado ou, eventualmente, colocado numa posição que lhe permitiria tomar decisões quase exclusivamente, situação que seria absolutamente inaceitável para as outras partes. Este é, além disso, um problema que não terá solução imediata apenas pela possível entrada de outros membros para a organização. Parece correcto predizer que, mesmo com a acessão por parte de outros candidatos, o futuro do Mercosul continuará a depender em boa parte das políticas seguidas por dois países – a Argentina e o Brasil. A acrescer a isto, existe ainda o problema da falta de condições deste último país para desempenhar as funções de “Estado – âncora”, base de todo o sistema e seu suporte, pois não nos devemos esquecer que falamos de um país que acaba de emergir de um longo período de instabilidade política e macro-económica.

23P.B. CASELLA, “Significado do Mercosul para Advogados Europeus”, (1996) 33.

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A assimetria entre os países pode ainda ter consequências a outro nível. De facto, existindo esta diferença de condições económicas entre os membros, não é totalmente impossível que as condições de mercado possam dar lugar a uma concentração das trocas comerciais e da indústria nas áreas mais desenvolvidas do Mercosul, o que acarretaria um distribuição desequilibrada dos benefícios da integração. Ora, a reacção natural do Paraguai e do Uruguai numa situação deste género seria naturalmente um insurgimento contra os inaceitáveis custos sociais do processo de interacção, pelo que também a este nível o factor assimetria não deve ser menosprezado. Por este motivo, o problema, ainda existente, da ausência de fundos estruturais que possam fazer face a eventuais disparidades deve ser solucionado com a maior brevidade possível. Apesar de a experiência da União Europeia não poder funcionar como espelho para os esforços integracionistas dos quatro países que compõem o Mercosul, pois não seria razoável aplicar os mesmos métodos a realidades política e economicamente distintas, a União Europeia, reconhecendo a relevância internacional de um bloco económico que depressa se tornou o quarto maior do mundo, cedo percebeu a necessidade de definir a sua estratégia relativamente ao Mercosul. Baseando-se nas conclusões de um estudo apresentado pela Comissão Europeia em 1994, foi celebrado um tratado entre a Comunidade Europeia e os seus membros por um lado e o Mercosul e os seus membros por outro, com o explícito propósito de estreitar as relações entre os dois blocos e “preparar as condições que possibilitem a criação de uma associação interregional”. Apesar da tímida aparência do alcance desta intenção, parece ainda assim apropriado defender que este acordo representa apenas o primeiro passo na direcção dessa mesma associação interregional, não sendo de momento ainda acompanhado pelos mecanismos adequados à sua implementação. Antes mesmo do acordo – quadro de 1995, os Estados Unidos da América tinham já apresentado a sua própria proposta de criação de um acordo de comércio para todo o continente americano, posteriormente discutida em Belo Horizonte em Maio de 1997. Contudo, as pressões americanas encontraram forte resistência por parte dos Estados latino – americanos, que preferem concentrar os seus esforços na consolidação do Mercosul para só numa fase posterior considerarem a hipótese de adesão desta organização, como um todo, a tal acordo de comércio.

2.3. Estrutura institucional O Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto de 1995 fixaram as bases da estrutura institucional do Mercosul, criando não só o Conselho Mercado Comum como o Grupo Mercado Comum, tendo ambas as instituições iniciado o seu funcionamento logo desde o começo da fase de transição do processo. É generalizada a opinião que aponta o Protocolo de Assunção como o momento de definitiva institucionalização do Mercosul e como ponto final do processo de criação dos seus orgãos administrativos, cumprindo assim aquilo que o artigo 18º do Tratado de Assunção estipulava a este respeito. A norma em questão obedecia naturalmente ao princípio segundo o qual as instituições deveriam ser criadas em consonância com o estádio em que o processo de integração se encontrasse, de forma a que não se caísse no surgimento de organismos burocráticos que pudessem vir a representar um obstáculo à dinâmica evolutiva da integração. Dentre as instituições já existentes, o Conselho do Mercado Comum é a mais alta instância do Mercosul, encarregado da tomada das decisões políticas desta associação de Estados. Reunindo os ministros dos negócios estrangeiros e da economia (ou equivalentes) dos quatro países –

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membros, o Conselho reúne-se sempre que necessário, mas pelo menos uma vez por ano24, e as suas decisões são tomadas por consenso2526. O Grupo do Mercado Comum, por seu lado, personifica o poder executivo e é coordenado pelos ministros dos negócios estrangeiros dos Estados – membros, que assim desenvolvem todos os esforços necessários para pôr em prática as tarefas que o Tratado lhes atribui. A sua missão passa pela garantia do cumprimento do Tratado de Assunção e pela tomada de resoluções necessárias à implementação das decisões do Conselho, apenas para citar alguns exemplos27. Para além de outras funções igualmente importantes, o Grupo do Mercado Comum pode também participar, quando a sua presença for indispensável, na resolução de disputas de acordo com um procedimento que teremos ocasião de analisar mais adiante. Tal como acontecia já com o Conselho, também as decisões do Grupo do Mercado Comum são tomadas por consenso (princípio fundamental que perdurou mesmo depois do fim do período transitório da evolução do processo), o que se justifica por esta ser a regra mais realista numa zona de integração com estas características, mas também porque parece ser a que melhor assegura a aplicação efectiva da lei em todos os Estados – membros numa organização que é ainda reconhecidamente intergovernamental. Para além dos orgãos administrativos, categoria em que poderíamos incluir igualmente o Fórum Consultivo Económico – Social e a Secretaria Administrativa do Mercosul, a organização a que nos referimos inclui ainda uma agência política: a Comissão Parlamentária Conjunta, com funções consultivas e também decisórias, e onde os problemas de adequada representação dos Estados acima mencionados se colocam igualmente com especial relevância. Com efeito, esta Comissão Parlamentária, que é no fundo a representante dos parlamentos nacionais no seio do Mercosul, é composta por um número máximo de 64 membros, 16 por cada Estado, designados pela assembleia parlamentária à qual pertencem28. Esta foi, no entanto, uma estrutura implementada sem uma consideração aturada e precisa das diferentes condições económicas e demográficas dos países – membros, e que tem, devido a essa mesma razão, sido alvo de duras críticas justificadas pela falta de prudência na sua constituição que não obedeceu a uma lógica de representatividade. Finalmente, é importante dizer algumas palavras sobre uma instituição que, sendo titular de funções verdadeiramente essenciais no campo da solução de controvérsias entre os Estados, tem vindo progressivamente a alcançar maior projecção e relevância no âmbito da estrutura institucional do Mercosul. O Protocolo de Ouro Preto criou a Comissão de Comércio do Mercosul para coadjuvar os trabalhos do seu corpo executivo e para actuar como uma espécie de guardiã da correcta aplicação da política comercial comum desta associação de países, mas, não se contentando com esse papel já de alguma importância, tratou de o complementar através da atribuição a este organismo do poder necessário para examinar as queixas apresentadas pelas divisões nacionais e que têm origem em petições feitas pelos próprios Estados – membros ou pelos particulares, desde que as mesmas estejam directamente relacionadas com os actos que fazem parte da competência da Comissão de Comércio e com área em que esta exerce as suas funções29. Este foi um mecanismo institucionalizado com o propósito de possibilitar uma solução mais rápida das eventuais divergências de interesses entre os países – membros, que não chegam a alcançar o verdadeiro estatuto de controvérsias e que por isso não dão lugar à instauração de um

24 Artigo 11º do Tratado de Assunção. 25 Artigo 16º. 26 Artigo 16º do Tratado. 27 Artigo 13º do Tratado. 28 Artigos 23º e 24º do Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção sobre a Estrutura Institucional do Mercosul – Protocolo de Ouro Preto. 29 Artigo 21º do Protocolo de Ouro Preto.

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processo de solução de disputas ao abrigo do Protocolo de Brasília, bem como para evitar pôr em funcionamento o próprio processo que este protocolo regula, já de si complexo e moroso. Uma apreciação geral da estrutura institucional do Mercosul, tal como regulamentada quer pelo Tratado de Assunção quer pelo Protocolo de Ouro Preto, deverá já habilitar-nos a traçar algumas conclusões gerais quanto ao posicionamento desta organização no que se refere à clássica divisão que opõe os conceitos de intergovernamentalismo e supranacionalidade, e eventualmente a entender a verdadeira natureza do processo com que lidamos. É bastante provável que não existam significativas hesitações em reconhecer o carácter manifestamente intergovernamental do modelo com que somos confrontados, o qual beneficia aliás de larga aceitação por parte dos governos envolvidos e da maioria da doutrina. O argumento fundamental utilizado para defender este sistema consiste na afirmação de que os bons resultados que temos vindo a observar nos últimos anos nos autorizam a dizer que o modelo necessita apenas de ser complementado, e mesmo intensificado em certos e determinados aspectos, sem contudo perder a sua natureza original e sem se desviar das suas características essenciais. O caminho a seguir consistiria, portanto, “na criação de orgãos administrativos especializados e na sua manutenção num contexto cooperativo, reduzindo a supranacionalidade aos aspectos normativos de menor importância dessas instituições”30 Seguindo esta linha de raciocínio, as instituições intergovernamentais deveriam conservar poder para estabelecerem as políticas fundamentais, mas de uma forma cooperativa e consensual, posição que parece perfeitamente compatível com o reconhecimento das dificuldades de que qualquer sistema supranacional, utilizador de técnicas como a da ponderação dos votos, é portador. A ponderação de votos será mais facilmente aceite pelas partes cujo interesse é predominante e quando a mesma não possa vir a revelar-se desvantajosa para o país, o que mais provavelmente virá a acontecer nos aspectos técnicos, e não políticos ou económicos, da integração. A posição descrita acima não é, contudo, unanimemente apoiada, e algumas vozes já evidenciaram uma visão divergente sobre este mesmo assunto. É o caso de Borba Casella31, que se tem vindo a afirmar como um defensor veemente e convicto da necessidade de definir claramente o rumo que o Mercosul deseja seguir antes de qualquer avanço para o estabelecimento de quaisqueres modificações na sua estrutura institucional. Apelando a uma mais cuidada e atenta observação do processo de integração europeu, que poderá bem funcionar não como o modelo a imitar de uma maneira acrítica, mas como um projecto bem sucedido de onde várias e valiosas lições podem ser retiradas, o autor questiona o eterno carácter provisório das instituições do Mercosul. De acordo com a sua opinião, o Protocolo de Ouro Preto limitou-se a adiar a decisão final a este respeito, que deveria necessariamente ter em linha de conta a necessidade de mecanismos supranacionais que possibilitassem o alcançar dos objectivos delineados pelos membros desta associação. Enquanto o pressuposto da soberania nacional for aceite como um dogma directamente herdado de Jean Boudin, diz o autor, não será, no entanto, possível ir além “do discurso e dos estádios incipientes de implementação” do suporte institucional e da ordem jurídica da qual este faz parte. A ausência de verdadeiras instituições supranacionais no Mercosul conduz necessariamente a uma inexistência de um direito comunitário, de que é prova o facto de as decisões do Conselho do Mercado Comum terem necessidade de uma ratificação posterior por parte dos parlamentos

30 L.O. BAPTISTA, “ As instituições do Mercosul: comparações e perspectiva”, in D.F.L. VENTURA (org.), O Mercosul em movimento, Série Integração latino – americana, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1995, p. 70. 31 P.B. CASELLA, supra nota 5.

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nacionais dos Estados, pois que as mesmas, sendo muito embora obrigatórias, não revestem as características essenciais à sua aplicabilidade directa no território dos países – membros. Este é um dos factores que nos habilita a classificar o Tratado de Assunção como um normal tratado de Direito Internacional Público, sendo que as normas que partem das instituições do Mercosul necessitam de uma actividade de recepção na ordem jurídica dos seus membros para se poderem aplicar.

2.4. A presumível insuficiência institucional do Mercosul Apesar de não estar ainda totalmente implementado, o mercado comum do Cone Sul mostrou já ter obtido extraordinários resultados durante os seus primeiros anos e faz acreditar na continuação do seu sucesso económico nos anos vindouros. No entanto, numa perspectiva estritamente judicial e institucional, o resultado deste modelo permanece ainda no segredo dos deuses. O que temos até este momento é uma estrutura inegavelmente provisória, cuja existência foi prolongada e mesmo institucionalizada e, se no início parecia impossível prever como funcionaria este mecanismo, é-nos agora mesmo aconselhável reflectir sobre a viabilidade e adequação da estrutura institucional de que cuidamos. Apesar do êxito geralmente reconhecido a este projecto, algumas vozes criticaram já a estrutura orgânica do Mercosul, afirmando que a mesma não reúne as condições necessárias para ser eficaz e questionando a sua excessiva flexibilidade relativamente aos interesses dos Estados – membros, chegando-se inclusivamente a uma situação em que a segurança e a instabilidade se instalam32. De facto, o palco para os debates cujo tema era a integração acabou por não ser a estrutura institucional, mas os media, o mundo dos negócios e os próprios encontros a nível governamental. O sentimento de descontentamento relativamente ao presente suporte institucional do Mercosul é naturalmente independente do apoio geralmente dado ao projecto de integração em si mesmo e não se baseia numa ideia de transposição do modelo europeu para esta realidade. Na verdade, mesmo aqueles que acreditam no ideal de integração política e económica entre os países latino – americanos, têm sérias dúvidas no que respeita ao modo como esse ideal deve ser institucionalmente concretizado. As críticas dirigem-se , apenas para citar alguns exemplos, à incapacidade do Conselho do Mercado Comum para garantir o cumprimento dos objectivos do tratado, ao papel crucial desempenhado pelo Grupo do Mercado Comum que vai muito além da sua função executiva e contende em alguns casos com as competências do Conselho, e, principalmente ao sistema de solução de controvérsias existente o qual, muito embora capaz de resolver conflitos de menor dimensão, não parece apropriado para enfrentar problemas causados por um política comercial não totalmente harmonizada entre os países – membros. Aqueles que defendem a insuficiência institucional da organização avançam com algumas razões para esse facto. Assim, um dos principais factores que teria contribuído para este estado de coisas seria, sem dúvida, a ausência de previsão no tratado de uma instituição que pudesse funcionar como uma garantia eficaz dos interesses da própria organização, desempenhando uma missão em alguma medida semelhante ou paralela à que, na União Europeia, se encontra a cargo da Comissão. Simultaneamente, também a inexistência de um orçamento direccionado para a actividade das instituições contribuiria para a sua ineficácia, uma vez que, não possuindo recursos próprios,

32D.F.L. VENTURA, “Avaliação da estrutura institucional definitiva do Mercosul”, in Direito Comunitário do Mercosul, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p.103.

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estariam estes organismos muito mais dependentes dos Estados e dos seus interesses. Não falta quem afirme que a estrutura institucional do Mercosul, simples e pragmática, se encontra perfeitamente em consonância com a sua natureza intergovernamental e tem já dado mostras de grande dinamismo e flexibilidade. Contudo, é preciso não esquecer que um conjunto de organismos que aparentam estar adaptados ao desenvolvimento da integração durante o período transitório da sua evolução, onde, como se sabe, se exige ainda um baixo nível de institucionalização, devem ser alvo de uma nova análise quando se atingem estádios mais avançados do processo. Finalmente, cumpre ainda referir a opinião, que se tem vindo a generalizar, segundo a qual a estrutura institucional do Mercosul peca por não oferecer meios de participação efectivos no processo de integração quer aos cidadãos quer aos importantes agentes sócio – económicos que poderiam, através da sua intervenção, legitimar o próprio processo. Este seria eventualmente um problema a solucionar através do estabelecimento de uma verdadeira estrutura parlamentária, que poderia passar por um aperfeiçoamento da actual Comissão Parlamentária Conjunta, a qual se aproxima ainda muito dos primórdios do Parlamento Europeu numa época em que este não beneficiava de uma eleição por sufrágio directo universal. Nenhum processo de integração pode ser bem sucedido sem uma coexistência pacífica entre os seus membros e, mesmo quando existe tal harmonia, o projecto só pode sobreviver se for suportado por meios pacíficos de solução das eventuais controvérsias que possam surgir. Esta era já uma preocupação na altura da primeira conferência de Haia de 1899, conduzindo então à assinatura da Convenção para a solução pacífica de conflitos internacionais. Esta convenção previa alguns mecanismos para a resolução de disputas entre os Estados que vieram a ser mais tarde objecto de desenvolvimento doutrinal, tal como os bons ofícios, a mediação, o inquérito e a própria arbitragem internacional. A ordem jurídica do Mercosul baseia-se, em larga medida, nos chamados “equivalentes jurisdicionais” que poderiam ser descritos como formas alternativas de resolver um conflito sem recorrer a um poder jurisdicional previamente estabelecido. Nenhum dos tratados ou convenções do Mercosul optou pela criação de um tribunal permanente de justiça e este facto só por si poderia considerar-se suficiente para justificar a importância dada a estes substitutos no seio da organização. A existir, o tribunal de justiça do Mercosul poderia ter competências para supervisionar as relações entre os particulares e os Estados – membros, o respeito pelo direito comunitário e as desavenças entre os países que compõem esta associação. Isto, evidentemente, se estes países decidissem atribuir-lhe poderes semelhantes ou próximos daqueles que o Tratado de Roma atribuiu ao Tribunal de Justiça europeu. Contudo, a institucionalização de um tal orgão teria que enfrentar forte oposição constitucional em alguns dos Estados, nomeadamente no Brasil onde a Constituição Federal estabelece que, apesar de todos os danos e ameaças a um direito deverem ser submetidos a exame judicial, existe um numerus clausus dos tribunais considerados admissíveis, o que poderia significar que uma hipotética criação de um tribunal supraconstitucional deveria ser precedida de uma alteração da Constituição que passasse por um alargamento deste elenco de tribunais.

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3. A SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS ENTRE OS ESTADOS

3.1. Solução pacífica de disputas no Direito Internacional Público De acordo com Rezek33,é possível classificar os meios pacíficos de solução de disputas entre os Estados em três grandes categorias: diplomáticos, políticos e jurisdicionais. Sendo os meios políticos, na maior parte das vezes, os instrumentos de trabalho para a diplomacia, não nos parece haver necessidade de os descrever aqui, especialmente se considerarmos que os mesmos estão sobretudo relacionados com a influência das organizações internacionais na solução dessas disputas. Em contrapartida, a diplomacia assume uma notável importância na solução de conflitos internacionais uma vez que é o instrumento especialmente orientado para esse efeito. Mantendo a distância em relação ao recurso formal aos poderes judiciais, os diplomatas procuram uma solução rápida e adequada para as divergências, solução essa que deve ter sobretudo em atenção os interesses das partes e evitar destruir a harmonia entre estas, ao mesmo tempo que procura não entrar em rota de colisão com o sensível princípio da soberania dos Estados. Não querendo entrar em detalhes e afastar-nos do cerne deste estudo, parece-nos mesmo assim razoável fazer uma breve análise dos mecanismos aos quais nos referimos. Assim, as negociações directas constituem o procedimento através do qual se torna possível às partes envolvidas negociar a questão em litígio sem recorrerem a uma terceira pessoa ou entidade, num bilateral ou mesmo multilateral tête-à-tête. Pelo contrário, os chamados bons ofícios e a mediação demandam ambos a intervenção de uma terceira parte de forma a tornar viável a resolução de uma disputa, apesar de o mesmo propósito ser atingível de formas distintas pelos dois mecanismos. Para além dos mecanismos informais acima citados, é ainda necessário referir a existência de dois procedimentos de cariz formal que constam também do elenco posto à disposição pelo Direito Internacional Público para a solução de diferendos internacionais. São eles a conciliação e o inquérito, sendo este último não mais que um mecanismo utilizado pelos Estados para clarificar alguns dos factos que deram origem à discórdia. Em contrapartida, a conciliação é uma espécie de “mediação institucionalizada”, usando os mesmos métodos de persuasão e conselho que a mediação mas sujeitando-se, no decorrer da sua actividade, a regras de procedimento previamente estabelecidas. Relativamente aos mecanismos jurisdicionais de decisão, o mesmo conceito de aplicação da lei à situação em litígio, tomando decisões consideradas vinculativas para ambas as partes, deve, contudo, ser decomposto em dois mecanismos: a arbitragem e o resolução judicial. A distinção entre estes dois meios é sobretudo formal. Na arbitragem, existe uma entidade especialmente criada para esse propósito e o árbitro é escolhido pelas partes envolvidas na contenda. A constituição deste orgão ad hoc tem lugar após o surgimento do conflito e a decisão final não só tem simplesmente efeitos inter partes, como ainda depende da boa vontade das partes para se tornar efectiva, pois que não existem meios ao dispor dos árbitros para executarem as suas próprias decisões. Pelo contrário, a solução judicial pressupõe a existência de um tribunal permanente cuja actividade reveste carácter constante. Não obstante a importância por vezes atribuída à arbitragem internacional, alguns autores sentem que esta está em parte limitada à tarefa de formação de precedentes internacionais. “Os

33 J.F. REZEK, Direito Internacional Público: curso elementar, S.Paulo, 5ªed., 1995.

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árbitros contribuem mais para a formação de jurisprudência internacional que para a solução jurisdicional de disputas entre os Estados”34. Por outro lado, é igualmente importante questionar se a submissão dos Estados às decisões judiciais tomadas por um tribunal internacional não serão ofensivas para a soberania nacional. Apesar da inegável pertinência desta questão, é-nos mesmo assim possível contra-argumentar, dizendo que o problema fulcral aqui não é o de uma eventual ofensa ao conceito de soberania, mas o de uma distinta forma de conceber o seu significado face ao crescente processo de internacionalização que se observa um pouco por todo o planeta.35 Se os Estados que compõem o Mercado Comum do Cone Sul decidissem constituir um tribunal permanente cujo poder fosse além das suas soberanias nacionais e submeter-se às decisões ditadas por este organismo, seria possível falar de uma soberania partilhada, representada na existência de uma única instituição judicial competente para dar resposta a todos os conflitos que tivessem origem no interior desta comunidade. Naturalmente, tal opção não teria que encontrar obstáculos no conceito de soberania entendido na sua tradicional acepção, e poderia sempre contar com o apoio do precedente do Tribunal europeu de Justiça, mesmo se o modelo a criar não fosse totalmente condicente com este último. No entanto, este não foi o caminho seguido pelos membros do Mercosul, que preferiram estabelecer um sistema de solução de disputas nos moldes clássicos do Direito Internacional Público.

3.2. A Solução Judicial dos Conflitos entre os Estados – membros.

O modelo do Tribunal de Justiça europeu. No processo de integração europeu, não foram muitas as dúvidas sobre a adopção desde o primeiro momento de um modelo judicial que pudesse funcionar como garante de todo o sistema. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias aparece, assim, como a instituição não política encarregada de assegurar o respeito pela lei (independentemente de considerações políticas), actuar como uma espécie de mediador entre os Estados - membros e a Comunidade por estes criada, bem como entre as instituições entre si, e garantir a interpretação e aplicação uniformes do direito comunitário em todo o território da Comunidade. Em consequência do último alargamento, o Tribunal de Justiça é hoje composto por 15 juizes e 9 advogados - gerais, sendo estes últimos encarregados de apresentar, com imparcialidade e independência, considerações sobre as questões jurídicas que o Tribunal será depois chamado a julgar. Tanto os juizes como os advogados - gerais são nomeados por comum acordo pelos governos dos Estados - membros e devem ser personalidades que reunam as qualificações necessárias para o desempenho das mais altas funções jurisdicionais bem como garantias de independência36. Apesar de não ser imposta pelo Tratado de Roma qualquer limitação em termos de nacionalidade dos membros do Tribunal, faz já parte de uma longa tradição que cada Estado escolha um juiz da sua nacionalidade que cumprirá um mandato de 6 anos renovável. De forma a que a sua

34 J. COMBACAU, S. SUR, Droit International Public, 2ª. Ed., Paris, Montchrestien, 1995, p.584. 35 Vide K. da SILVA RAUPP, “Solução de controvérsias entre os Estados – partes do Mercosul”, in H.W. RODRIGUES (org.), Solução de Controvérsias no Mercosul, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p.51. 36 Artigo 167º do Tratado que instituiu as Comunidades Europeias.

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independência seja assegurada, beneficiam os juizes de alguns privilégios e imunidades e, a acrescer a isso, as suas funções apenas terminarão em casos bem determinados: expiração do mandato, demissão voluntária ou afastamento pronunciado pelo próprio Tribunal por unanimidade dos seus juizes e advogados - gerais. Em virtude dos tratados originais e de uma convenção relativa às instituições comuns de 1957, o Tribunal de Justiça foi durante muito tempo a jurisdição única e exclusiva da ordem jurídica comunitária. Contudo, dado ao volume de casos que o mesmo era chamado a solucionar, foi sentida a necessidade de criar um outro organismo que pudesse de certo modo aliviar o peso por ele suportado. Assim, aquando do Acto Único Europeu , introduziu-se a possibilidade para o Conselho de criar uma jurisdição de primeira instância, possibilidade esta que o Conselho aproveitou numa decisão de 24 de Outubro de 1988. O Tribunal de Primeira Instância, que compreende hoje também 15 membros designados de forma semelhante à do Tribunal de Justiça, mas que não são coadjuvados por advogados - gerais, foi mais tarde “constitucionalizado” pelo Tratado da União Europeia (novo artigo 168º A) mas sem que , em momento algum, lhe fosse reconhecido o estatuto de instituição comunitária. O verdadeiro significado da expressão “jurisdição comunitária” compreende, no entanto, mais do que estes dois organismos criados pelos tratados constitutivos da Comunidade. Como tivemos já ocasião de constatar, foi atribuída complementarmente aos juizes nacionais uma missão de “juiz comunitário de direito comum”37, estabelecendo-se entre estes e o Tribunal de Justiça uma relação de “cooperação judiciária”. Esta expressão pretende, no fundo, traduzir a intenção subjacente dos fundadores da Comunidade que, apesar das semelhanças com o modelo federal, pretenderam não ir até às últimas consequências desse sistema e evitaram, por isso, constituir uma relação de hierarquia entre os dois níveis de jurisdição. A especificidade e carácter sui generis do sistema jurídico comunitário impede-nos de levar a cabo uma tarefa de qualificação simples e categórica. Na verdade, “uma pluralidade de atribuições contenciosas e não contenciosas confere ao juiz comunitário um estatuto complexo, irredutível a toda a transposição analógica das definições clássicas”38. Deste modo, se o Tribunal de Justiça pode ser caracterizado como uma instância com jurisdição internacional, equipado com poderes exclusivos para regulamentar os conflitos entre os Estados que surjam devido à aplicação do Tratado (artigo 182º CE, 89º CECA, 154º CEEA), bem como para decidir qual a solução a dar aos recursos interpostos por um Estado - membro contra outro ou pela Comissão contra um Estado - membro por incumprimento das suas obrigações (artigo 170º CE, 142º CEEA), não é menos correcto defini-lo como uma jurisdição constitucional. E isto por diversas razões, pois não só o Tribunal de Justiça tem por missão controlar o respeito da divisão de competências estabelecidas pela “carta constitucional de base” entre a Comunidade e os seus membros e entre as próprias instituições comunitárias (com base nos princípios das competências por atribuição, separação de poderes e do equilíbrio constitucional), como também lhe pode ser atribuída a tarefa de avaliar a compatibilidade com os tratados de um acordo internacional antes da sua assinatura pela instituição comunitária competente, como se de uma avaliação da “constitucionalidade” deste acordo se tratasse (artigo 228º§5 e 6). Finalmente, a própria verificação da compatibilidade dos actos adoptados pelas instituições com os tratados se aproxima em grande medida de um controlo da constitucionalidade das leis. Contudo, a caracterização tradicional do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem sido como jurisdição administrativa, o que se deverá naturalmente à sua instituição pelo Tratado de Paris como organismo encarregado de controlar as responsabilidades administrativas da Alta

37 Expressão consagrada pelo acordão Tetra Pak, TPI 10 de Julho de 1990, T - 51/89, Rec. II-309, p.364. 38 D.SIMON,Le système juridique communautaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1997, p.309.

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Autoridade da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Com a extensão dos poderes do Tribunal à CE e à CEEA, também o seu elenco de competências sofreu considerável transformação, passando a integrar um sistema de controlo da legalidade e da responsabilidade administrativa materializada em meios de recurso a esta instituição que elencámos em momento anterior: recurso de anulação, por omissão, acção de indemnização, entre outros. Existe ainda a assinalar a vertente de jurisdição reguladora do Tribunal de Justiça, exigência do próprio sistema que atribui poderes de aplicação do direito comunitário aos vários tribunais nacionais. Espera-se, assim, da instituição judicial comunitária uma actividade de normalização destinada a assegurar a uniformidade de aplicação das regras comuns em todo o território comunitário, levada a cabo através do mecanismo original, também ele até então desconhecido, do reenvio prejudicial. Muito embora a doutrina do precedente, típica dos sistemas anglo - saxónicos, não funcione no sistema judicial da Comunidade, o Tribunal de Justiça tem mesmo assim o hábito de seguir as direcções das suas sentenças anteriores na maior parte dos casos, citando decisões prévias quando delas necessita para justificar as suas conclusões. Existe, apesar de tudo, um número importante de julgamentos em que o Tribunal não seguiu uma decisão anterior, devido quer a uma mudança das circunstâncias quer a uma mudança de opinião dos juizes. Nos casos em que tal aconteceu, o Tribunal preferiu, como regra, ignorar pura e simplesmente a decisão prévia e não ir contra esta. A grande excepção a esta regra terá sido a sentença Hag II39, referente a um direito de marca, em que os juizes do Tribunal de Justiça anunciaram explicitamente estar a distanciar-se e a ir contra uma decisão anterior proferida num caso que reunia os mesmos factos e circunstâncias40. Uma dos traços distintivos do Tribunal de Justiça europeu será sem dúvida o facto de basear muitas das suas decisões nos valores dos juizes e nos objectivos que estes pretendem ver atingidos - o desenvolvimento da Comunidade e o intensificar do processo de integração, o incremento da eficácia e do âmbito do direito comunitário e o alargamento dos poderes das instituições. Esta sua característica pode servir-nos para justificar muitas das suas sentenças, nomeadamente aquelas que não encontram apoio na simples leitura das disposições dos tratados. Um dos exemplos deste seu modo original de agir que mais se celebrizou foi o do caso Parti Ecologiste “Les Verts” v. Parlamento Europeu41, no qual o Tribunal reconheceu legitimidade passiva a esta instituição apesar das palavras do artigo 173º do Tratado da Comunidade indicar que este a não possuía. Os juizes do Luxemburgo procederam a um raciocínio desenvolvido em vários passos que logrou demonstrar que, apesar da disposição não mencionar a revisão da legalidade dos actos do Parlamento, os mesmos deveriam estar cobertos, pelo que deveriam igualmente ser revisáveis42. O mesmo tipo de actuação do Tribunal, em detrimento das provisões legais, possibilitou ao Parlamento Europeu ver reconhecida também a sua legitimidade activa em processos perante este orgão (antes de a mesma vir a ser reconhecida, para defesa das suas prerrogativas, pelo TUE) no caso Chernobyl43.

39 Caso C-10/89, HAG GF(1990) ECR I-3711. 40 Caso 192/73, Van Zuylen v. HAG ou Hag I (1974) ECR 731. 41 Caso 294/83 (1986) ECR 1339. 42 O Tribunal apresentou, como justificação quatro argumentos vitais: a afirmação da necessidade de controlar os actos de todos os Estados - membros e de todas as instituições para assegurar o respeito pelo direito comunitário; a afirmação de que a ausência de referência ao PE no artigo apenas se justifica por, na altura em que o mesmo foi incluído no Tratado, esta instituição não possuir ainda os poderes que possuía já à data da sentença, a referência aos amplos poderes actuais do PE (nomeadamente a nível orçamental); e, finalmente, a conclusão de qualquer interpretação em contrário seria contrária ao espírito do sistema do Tratado. 43 Caso C-70/88, Parlamento Europeu v. Conselho, (1990) ECR I-2041.

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De acordo com alguns autores, decisões deste género foram apenas possíveis porque não colidiram com os interesses dos governos dos Estados - membros. No entanto, se o contrário estiver em risco de acontecer, a técnica utilizada pelo Tribunal de Justiça será mais discreta e cautelosa. Hartley descreve esta estratégia e os passos fundamentais para atingir o objectivo que os juizes têm em mente de uma forma gradual, referindo o caso Second Defrenne44 como exemplo mais significativo do seu êxito. Assim, começará o tribunal por, no primeiro caso que perante ele se apresente, sugerir que está o mesmo sujeito a diversas qualificações, podendo eventualmente encontrar uma razão que justifique a sua não aplicação naquela questão concreta. Contudo, o princípio estará já enunciado, o que facilitará a tarefa de, em futuros julgamentos, e se o mesmo não houver merecido forte contestação, o reafirmar em toda a sua extensão e o aplicar aos casos que tem perante si45.

3.3. Solução de Controvérsias no Mercosul

3.3.1.O Protocolo de Brasília Segundo as directrizes estabelecidas pelo Tratado de Assunção, quaisqueres controvérsias que surjam durante o período de transição, ou seja até 31 de Dezembro de 1994, entre os Estados – partes, ou entre pessoas privadas e os Estados – partes, com origem na construção, aplicabilidade ou desrespeito das provisões do tratado, ou nos actos executados em desenvolvimento destas provisões, ou ainda nas decisões tomadas pelo Conselho do Mercado Comum, são sujeitas ao sistema de solução de disputas descrito no “Protocolo de Brasília para a Solução de Controvérsias”. A criação deste protocolo obedece ao disposto no Anexo III do Tratado de Assunção (parágrafo 2º.), que afirmava a necessidade de estabelecimento de um sistema de solução de eventuais conflitos entre os Estados durante a fase de transição do processo. De acordo com o mesmo anexo (parágrafo 3º.), os Estados – partes deveriam estabelecer um sistema definitivo com a mesma função para o mercado comum que entrasse em vigor no final deste período. Tendo em conta as classificações a que procedemos em páginas precedentes, é possível afirmar que o sistema proposto pelo Tratado de Assunção e mantido até 1994 pelo Protocolo de Brasília de 17 de Dezembro de 1991, dá clara predominância aos mecanismos diplomáticos de solução de divergências. Na verdade, o protocolo, que desenvolve e regula as directrizes gerais já estabelecidas, prevê primeiro que tudo o recurso a negociações directas entre as partes para resolver o conflito, negociações essas que devem ter lugar num prazo relativamente curto46. No caso de, findas as negociações, não se chegar a qualquer acordo, ou se a controvérsia for apenas parcialmente resolvida, o estádio de negociações dará lugar a uma submissão da disputa ao Grupo do Mercado Comum47. Esta instituição procederá a um exame num plano mais técnico que diplomático ou legal, e formulará recomendações para a resolução da contenda48. A intervenção do

44 Caso 43/75, Defrenne v. Sabena (1976) ECR 455. 45 Para mais informações sobre esta técnica e sentença referida, ver HARTLEY, supra nota 15, p. 88ss. 46 Artigo 2º do Protocolo de Brasília. 47 Artigo 4º. 48 Artigo 5º.

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Grupo do Mercado Comum corresponde, no fundo, aos procedimentos de conciliação e inquérito, devidamente adaptados ao nível de integração do processo do Mercosul. Este organismo cuidará de ouvir as partes envolvidas e, de acordo com o disposto no artigo 29º do protocolo, poderá requerer a participação e o conselho de especialistas, se necessário. Após esta fase, a que Rezek chama de “preliminares da instância”49, terá lugar a conciliação, a cargo do Grupo do Mercado Comum. Se as suas recomendações forem aceites, a questão considerar-se-á solucionada. Apenas no caso de estas serem rejeitadas ou ignoradas, por uma ou ambas as partes, deve ser considerada a possibilidade de utilizar a arbitragem, que funciona assim como uma solução de último recurso. O procedimento de arbitragem será conduzido por um tribunal ad hoc instituído pelo Grupo do Mercado Comum a pedido de qualquer dos Estados – membros envolvidos50. O tribunal arbitral do Mercosul, que se encarrega de se estabelecer no território de um dos Estados – membros e que seguirá, no curso da sua actividade, as suas próprias regras de procedimento, é, em muitos aspectos, similar ao Colégio Arbitral do Tratado do Benelux. De facto, era também da “responsabilidade de tal tribunal arbitral estabelecer a interpretação do tratado, como regras comuns para as partes, e averiguar da legalidade da aplicação dessas regras no território de cada país”51, o que é, no fundo, equivalente ao que sucede no Mercosul. Contudo, no caso do Mercosul, o mecanismo é bastante mais flexível e menos estruturado e só tem lugar no caso de estar esgotada a possibilidade de recurso a outros meios, o que vai ao encontro à tradição latino – americana de predominância das soluções racionais e consensuais de forma a evitar longos e pesados processos formais – traduzida na expressão popular que diz que qualquer mau acordo é preferível a um bom litígio52. O Benelux, organizado por governos que resolveram ir além do mercado comum e criar mesmo uma união económica e até política entre si, ficou conhecido pelo seu bom funcionamento, constituindo para muitos ainda hoje um bom exemplo em como a arbitragem pode dar bons resultados. Este sistema é por isso utilizado como argumento por aqueles que defendem a permanência do modelo do Mercosul nos moldes em que foi descrito pelos seus documentos constitutivos. Os árbitros serão escolhidos pelas partes de entre uma lista de árbitros nacionais depositada na Secretaria Administrativa53, sendo que cada Estado – parte designará um árbitro e o terceiro elemento será seleccionado por mútuo acordo entre os outros dois. O tribunal arbitral deverá chegar a uma decisão final, por maioria, num prazo de dois meses e esta decisão será irrevogável54. Simultaneamente, esta decisão será considerada obrigatória para os Estados envolvidos, dispondo da força de res judicata, o que significará que, no caso de um desses Estados não cumprir o estipulado num prazo de 30 dias, poderá ver-se imposto medidas compensatórias temporárias pelos restantes membros da organização até que decida ter um comportamento consentâneo com a decisão dos árbitros55. Obviamente, esta é uma provisão de duvidosa eficácia pois que o peso e o grau de desenvolvimento das economias que fazem parte do Mercosul são extremamente diferentes. Para levar este argumento ao extremo, dificilmente se conceberá uma situação em que o Uruguai, por exemplo, possa impor uma medida compensatória temporária ao Brasil. Mesmo que o primeiro país não actue isolado, permanece a dúvida sobre se tal medida em especial, e o próprio sistema do protocolo em geral, poderão ser considerados eficazes. Finalmente, cumpre dizer algumas palavras sobre o acesso dos particulares a este procedimento. A estrutura do Mercosul assenta sobre uma relação entre os governos dos Estados

49 REZEK, supra nota 33, p.349. 50 Artigo 7º. 51 BAPTISTA, supra nota 30, (1992) IBLJ 580. 52 Idem. 53 Artigo 9º do Protocolo de Brasília. 54 Artigos 20º, n.º 2 e 1, e artigo 21º, respectivamente. 55 Artigo 23º.

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que dele fazem parte, facto que é comprovado pelo Protocolo de Brasília que não prevê, em momento algum, um acesso directo pelos particulares ao mecanismo instituído. A única referência feita a queixas pelas pessoas privadas faz-nos compreender que o seu acesso ao mecanismo de solução de disputas é indirecto e dependente de uma intervenção por parte da secção nacional do Grupo do Mercado Comum, a qual acaba por assumir, afinal, o carácter de queixosa, ficando os indivíduos confinados a um mero papel de assistentes durante todo o procedimento56. Este facto, por si mesmo, conduz-nos à questão, que será discutida adiante, da pertinência e adaptação do sistema do Mercosul aos conflitos entre indivíduos e Estados – membros, especialmente se tivermos em conta que um Estado terá sempre um poder negocial e uma influência muitíssimo maiores que um simples indivíduo. A improbabilidade de existir um confronto entre Estados – membros e pessoas privadas resolvido satisfatoriamente através da utilização de mecanismos diplomáticos ou mesmo através do recurso à arbitragem, dá assim lugar à questão sobre a necessidade de uma resposta judicial para este problema. Parece inevitável a comparação com o sistema que vigora na Comunidade Europeia, que abre uma série de vias de recurso às pessoas físicas e morais que queiram ver resolvidos pelo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Primeira Instância os diferendos que tenham com as instituições comunitárias. Esta característica da Comunidade, que contraria a tradição segundo a qual o indivíduo não tem acesso a uma jurisdição tradicional, aparece como uma consequência natural da natureza da própria ordem jurídica da Comunidade Europeia. Esta “concerne directamente os justiciáveis da Comunidade”, na medida em que os sujeitos do direito comunitário “são não somente os Estados - membros, mas igualmente os seus habitantes”57. No seu artigo 43º, o Protocolo de Ouro Preto de 1995 extende a validade do sistema de solução de controvérsias entre os Estados – partes para o futuro por intermédio de uma referência expressa ao Protocolo de Brasília. Considerando que não existiu uma derrogação de nenhuma das provisões do dito protocolo, a criação, num anexo ao Protocolo de Ouro Preto, de um procedimento geral de apresentação de queixas à Comissão de Comércio do Mercosul deve ser vista como uma instituição de um procedimento alternativo, cuja utilização é apenas possível quando a matéria cai no âmbito das competências deste organismo.

3.3.2.Exemplos práticos de utilização do modelo Em termos estritamente jurídicos, é possível dizer-se que os pais do Mercosul viram o modelo institucional intergovernamental por eles construído em 1991, manter o seu carácter nos seguintes anos sem concessões significativas à ideia de supranacionalidade. Em contraste com este factor, o mundo dos negócios desenvolvia-se rapidamente, surpreendendo tudo e todos pela sua extraordinária vitalidade, e, inevitavelmente, os problemas começaram a aparecer. No entanto, é até este momento impossível registar um uso frequente e completo dos mecanismos postos à disposição dos Estados pelo Protocolo de Brasília, uma vez que a tendência tem sido para resolver todos os conflitos que têm surgido através de simples negociações directas entre as partes envolvidas. Com efeito, dividindo o sistema criado pelo protocolo em três grandes partes – negociações directas, intervenção do Grupo do Mercado Comum e arbitragem – torna-se bastante óbvio que

56 Artigos 26º e 29º. 57 Caso 26/62, Van Gend en Loos, supra nota 17.

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apenas as duas primeiras tiveram já aplicação prática, ao passo que a constituição de um tribunal ad hoc não foi ainda necessária para resolver qualquer disputa. Um exemplo concludente desta inclinação para a solução diplomática dos problemas, foi um caso verificado no ano de 1997 e que envolveu o Estado brasileiro e um importador de automóveis argentino. Como foi anteriormente mencionado, o Mercosul é presentemente uma união aduaneira imperfeita e a indústria automóvel é precisamente um dos sectores que permanece no exterior da pauta aduaneira comum desta organização, funcionando ainda no âmbito de um sistema de quotas. Ora, o Brasil, indubitavelmente o maior importador de automóveis de entre os países que compõem o Mercosul, tomou a decisão de alterar o sistema sem efectuar previamente uma consulta às outras partes. Os argumentos com que o ministro das finanças Pedro Malan tentou justificar esta medida provisória resumiam-se na essência à afirmação de que a mesma era necessária para travar a especulação por parte dos importadores (que estariam a aplicar o dinheiro contratado no mercado e a comprar produtos por valores menores) e evitar uma desvalorização devido ao défice da balança comercial do país. Esta decisão unilateral daria origem ao conflito que ficou conhecido como o caso automotriz, sendo talvez o mais controverso da ainda curta história do Mercosul. O assunto foi levantado pela empresa argentina junto da Comissão de Comércio do Mercosul e foi discutido inter partes. Curiosamente, acabaria por vir a ser resolvido num encontro informal entre os presidentes dos dois países envolvidos na querela, sem necessidade de utilização dos restantes mecanismos do protocolo. Numa reunião que teve lugar a 27 de Abril de 1997 no Rio de Janeiro, Fernando Henriques Cardoso e Carlos Menem afirmaram claramente que quando fosse considerado necessário tomar uma medida de cariz económico que afectasse os países do Mercosul, deveria existir um anúncio prévio e transparente sobre a mesma aos restantes parceiros da organização. Ambos os presidentes reconheceram a crucial importância do Mercosul, e chegaram a acordo sobre quase todos os assuntos económicos que estavam pendentes entre as partes, nomeadamente o que se refere às quotas adicionais para a importação de automóveis, que estava a ser negociado há já mais de um ano58.

4. O DESAFIO DA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA ESTRUTURA

INSTITUCIONAL DEFINITIVA

4.1. O desenvolvimento do sistema judicial do Mercosul visto pela doutrina Dados os últimos desenvolvimentos do Mercado Comum do Sul e a sua natureza persistentemente intergovernamental, mantida aliás na passagem do período transitório para uma fase definitiva do processo, o enfoque concedido à discussões que têm dividido a doutrina autorizada sobre este tópico pode parecer meramente académico e sem sentido. Na verdade, parecem não existir planos imediatos dos governos dos Estados – partes do Mercosul que nos autorizem a dizer que a criação de um tribunal supranacional é um projecto no horizonte. No entanto, muito foi já dito sobre o assunto e inúmeras vozes se continuam a levantar e a fazer-se ouvir

58 Eurosur, nº.14, Abril de 1997.

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em defesa da criação de tal instituição. Uma das últimas opiniões a este respeito, produzida por um grupo de proeminentes juristas argentinos, incluindo nomes como Rodolfo Barra (ex – ministro da justiça), Héctor Masnatta e Alicia Perugini (destacados professores de Direito Internacional Público), argumentava que a criação de um tribunal de justiça permanente no Mercosul era “indispensável” uma vez que não existia nenhuma outra forma de ditar normas supranacionais com supremacia sobre os tribunais nacionais. Considerando que o sistema jurídico do Mercosul é um sistema imperfeito e, consequentemente, originador de insegurança, afirmam estes autores que um sistema suportado por tribunais arbitrais, que não se encontra mesmo sedimentado na realidade latino – americana, não será capaz de dar à luz uma verdadeira jurisprudência internacional, da qual o Mercosul necessita para avançar em direcção a uma área regional perfeitamente integrada, e é sim, pelo contrário, passível de criar um sentimento de decepção entre os investidores estrangeiros. Possivelmente devido à forte oposição demonstrada pelo seu governo à hipótese de criação de um tribunal internacional de justiça, a doutrina brasileira é provavelmente aquela onde uma mais vincada divergência de opiniões é possível notar. De facto, é entre os autores brasileiros que esta divisão entre as vozes que inequivocamente defendem o estabelecido sistema arbitral de solução de controvérsias, e os que apelam à necessidade de o substituir por um modelo comparável ao do Tribunal do Luxemburgo, é mais evidente. Um dos autores brasileiros com maior projecção internacional cujo nome tivemos já oportunidade de mencionar, Borba Casella59, um tradicional apoiante da ideia do tribunal supranacional, argumenta que, mesmo se o sistema introduzido pelo Protocolo de Brasília foi útil durante a fase transitória do processo, uma vez esta chegada ao seu final, deveria existir uma restruturação do quadro institucional de modo a incluir uma instituição judicial independente, equipada com os meios necessários para desenvolver uma prática estável e capaz de obrigar os tribunais dos diferentes Estados – membros e os próprios particulares. Só uma instituição deste género poderia promover a tomada de decisões com o raciocínio técnico e a justificação adequados, de forma a possibilitar a aceitação fácil das suas orientações por toda a organização e, especialmente, pelos Estados soberanamente independentes do Mercosul, e isto mesmo nos casos em que tais decisões fossem claramente desvantajosas para os seus destinatários. Não parece possível esperar os mesmos resultados de um sistema de arbitragem, que Borba Casella considera muito complexo, amador nos seus mecanismos e difícil de operar na prática. De acordo com o autor, este papel, “ao mesmo tempo politicamente delicado e tecnicamente exigente”, pode apenas ser desempenhado por juizes especializados que, para além de politicamente e culturalmente imparciais, possam “combinar a experiência técnica e visão política”. Uma alteração como esta pode beber imenso na experiência da União Europeia e não pode ser considerada incompatível com as condições latino – americanas pois que uma realidade algo semelhante, como vimos, pode ser encontrada na Comunidade Andina. Contudo, requererá uma transformação substancial que envolverá naturalmente não só a mentalidade das pessoas como a divisão de competências entre tribunais. Mesmo não sendo esta uma tarefa fácil, está nas mãos dos governos decidirem até onde querem chegar no processo de integração porque parece impossível atingir o objectivo do mercado comum sem começarem a pensar na criação de um modelo híbrido e inovador. Nas palavras relativamente irónicas do autor, “falar de integração sem reestruturar tanto o conceito como a implementação da soberania do Estado parece-me semelhante a querer fazer omeletes sem partir ovos”60.Isto não significa, claro está, que o conceito de soberania tradicional

59 P.B. CASELLA, supra nota 5,p.156ss. 60 P.B. CASELLA, A comparative approach to competition law in the European Communities and the Mercosur, University of Saarlandes, Saarbrücken, 1993, p.46.

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tenha que ser posto de parte. Contudo, é possível reestruturar e desenvolver as actividades da jurisprudência interna em áreas que não estejam directamente relacionadas com a gestão do processo de integração. Outra maneira, igualmente válida, de defender esta ideia consiste em afirmar que a enorme transformação que o aparecimento de um tribunal supranacional implica, reflectir-se-á num reconhecimento de um interesse comum a todos os Estados – partes e que prevalece sobre os interesses particulares de cada um dos membros do Mercosul, o que é definitivamente um passo no sentido da sua maturação61. Outros autores62 preferem justificar a necessidade de um orgão supranacional através de um critério de eficiência. Apesar de admitirem a importância dos actuais mecanismos de solução de disputas, afirmam que o sistema precisa de meios adequados, que garantam a eficácia das suas regras e princípios e que permita que a segurança jurídica seja mantida. Contudo, os mesmos autores reconhecem a possibilidade de tal organismo não vir a revestir natureza judicial, parecendo dispostos a aceitar iniciativas que cheguem aos mesmos resultados seguindo vias eventualmente diferentes, não chegando, no entanto, a avançar com propostas concretas quanto a estas alternativas que dizem defender. Não obstante a aparente razoabilidade dos argumentos supracitados, estes não chegam a recolher um número suficiente de apoiantes para que possamos falar de uma posição unânime da doutrina brasileira. Com efeito, muitos são os que perfilham teorias completamente opostas e que nos mostram, no fundo, o outro lado da moeda. Klaus da Silva Raupp63 e Luiz Olavo Baptista64 são apenas dois dos nomes pertencentes a este sector da doutrina. O primeiro menciona o risco adveniente da criação de um tribunal supraconstitucional, nomeadamente devido aos seus altos custos e à provável lentidão dos seus procedimentos, concluindo que, sendo os referidos “equivalentes jurisdicionais” métodos viáveis e perfeitamente adaptados à presente realidade do Mercosul, devem estes continuar em funcionamento pelo menos para a solução dos conflitos entre Estados. Contrariamente, admite o autor que, no que concerne os conflitos entre indivíduos e Estados – membros ou apenas entre indivíduos, a solução judicial parece a mais adequada. Afinal, apenas perante o tribunal podem as partes ter a certeza de serem tratadas com igualdade e apenas aí podem os assuntos ser considerados de uma forma atenta e cuidadosa. Para além deste factor, como já tivemos oportunidade de salientar atrás, num processo diplomático de negociações entre as partes, terá um Estado sempre armas ao seu dispor que lhe permitirão vencer a resistência dos indivíduos que com ele se confrontem. Luiz Olavo Baptista, por seu turno, diz que o presente sistema ainda tem o que nos dar, não se vendo por enquanto sinais da sua incapacidade ou não – operacionalidade. Contudo, não deixa, mesmo assim, de avançar com futuras alternativas. Assim , de acordo com o seu ponto de vista, a transição natural entre um sistema arbitral ad hoc e um tribunal de justiça passaria pela existência de um tribunal arbitral permanente, solução que apresentaria a vantagem inegável de não acarretar a criação de uma burocracia pesada nem despesas de vulto permanentes, existindo e actuando na medida das necessidades e resolvendo simultaneamente o problema de instabilidade do Mercosul. O modelo seria semelhante ao que podemos encontrar no Tribunal Permanente de Arbitragem da Haia ou no Benelux, e constituiria o meio adequado de evitar as críticas ao chamado “governo dos juizes” dirigidas ao modelo do Tribunal de Justiça europeu. Finalmente, o autor chama ainda atenção para o

61 A.A. JÙNIOR, “Mercosul: questões políticas e institucionais”, in Mercosul: desafios a vencer, S.Paulo, CBRI, 1994, p.13. 62 L. GRECO, “Transcrição da palestra proferida em 21/11/96”, in Direito Comunitário do Mercosul, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p.188. 63 K.S. RAUPP, supra nota 33, p.39. 64 L.O. BAPTISTA, supra nota 30, p.55.

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facto de os dois famosos tribunais arbitrais citados não terem tido de resolver um número elevado de disputas durante a sua existência. Similarmente, pelo menos no curso dos seus primeiros anos, o sistema de solução de controvérsias do Mercosul não foi confrontado com muitos casos para julgar, facto que, por si mesmo, de acordo com a opinião do autor, seria suficiente para demonstrar a inutilidade da criação de um tribunal supranacional.

4.2. Vantagens e desvantagens da existência de um tribunal supranacional. Será o modelo do Tribunal de Justiça europeu adaptável à realidade do Mercosul ? Depois de um estudo como o feito acima, em que tentámos pôr em evidência os traços essenciais de um modelo de sucesso com é o da União Europeia ao mesmo tempo que analisávamos a presente realidade do Mercosul, parece possível já fazer uma tentativa, eventualmente despida de pormenor, sobre as vantagens que um processo de integração poderá retirar da existência no seu quadro institucional de um tribunal de justiça independente e supranacional. Acima de tudo, parece certo dizer que um organismo deste género poderá contribuir de sobremaneira para a manutenção de um equilíbrio estável na por vezes difícil relação entre as instituições, bem como na interacção entre estas e os Estados – membros da organização e mesmo destes últimos entre si. No entanto, muitos outros méritos haverá que reconhecer-lhe. Assim, o tribunal pode encontrar um importante papel a desempenhar na interpretação uniforme das provisões que constituem a ordem jurídica da organização bem como na formação gradual dessa mesma ordem jurídica, missão esta que pode ser levada a cabo através de uma acção criativa, que muitas vezes irá além do quadro de atribuições e poderes reconhecidos originalmente a esta instituição. Contudo, a análise de modelos de integração onde o conceito de tribunal supranacional produziu resultados que superaram largamente as expectativas iniciais, suficientemente documentado, como vimos, pelo estudo do processo de evolução da jurisprudência europeia, deixa espaço ainda ao reconhecimento de alguns aspectos negativos. A principal crítica feita a esta ideia reduz-se na essência à afirmação do medo de que mesmo os juizes mais imparciais, escolhidos através de um procedimento pré – estabelecido, possam não ser capazes de se libertarem dos seus sentimentos patrióticos e tornarem-se assim não mais que simples representantes dos Estados de onde são nacionais, o que evidentemente poria em causa a independência do tribunal. Seguindo esta ordem de ideias, é assim crucial manter a imparcialidade dos juizes, o que pode ser alcançado, nomeadamente, através da concessão a estes de uma garantia de imunidade e também através da atribuição aos magistrados de uma remuneração digna e de estabilidade no desempenho das suas funções, de forma a que seja possível evitar problemas como o da corrupção ou das tentativas de exercer influência política sobre as suas decisões. Por muito independente que seja um árbitro, é mesmo assim difícil assegurar a sua imunidade relativamente a pressões políticas pois que, após o fim do litígio que teve entre mãos, a sua missão terá terminado e o mesmo acontecerá necessariamente com a protecção a que tem direito por pertencer a uma instituição ad hoc. Com medo da desprotecção a que virá a ser sujeito, não é de todo impossível que o árbitro troque a sua independência durante o processo por uma garantia de compensações monetárias ou segurança findo este. As questões colocadas pela hipótese de criação do tribunal supranacional são complexas e, na maioria dos casos, não têm uma resposta linear. Um exemplo disto é-nos dado pelo problema da nomeação dos juizes. Estando nós a operar no quadro de uma instituição judicial supranacional, parece lógico que a designação dos membros dessa mesma instituição seja efectuada por comum acordo entre os Estados – membros da organização a que ela pertence. Esta questão tem, é claro,

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dois tipos de implicações. De facto, por um lado, se a intenção dos governos for a de criar um tribunal supraconstitucional, uma adequada qualificação dos profissionais que vão fazer parte dessa instituição, mesmo não sendo essa qualificação necessariamente de carácter judicial, não pode ser esquecida. Por outro lado, existe ainda a questão da representatividade e legitimidade do tribunal. Mesmo se as diferenças entre os países que compõem a organização são notórias, qualquer decisão tomada pelo tribunal comum será apenas aceite como legítima se todos os países puderem sentir que se encontram adequadamente representados nessa instituição. Isto requer, obviamente, o respeito pelo princípio da igualdade na composição do tribunal a ser criado, pois que só um tribunal que represente verdadeiramente a comunidade como um todo pode pretender controlar as atitudes de todos os Estados – membros de um modo uniforme e será capaz de sancionar eventuais infracções à ordem jurídica comunitária. Contudo, este desejado equilíbrio é difícil de atingir quando estamos perante um sistema que reúne países com tantas dissemelhanças entre si como o Mercosul. A resolução do dilema sobre a criação de um tribunal supranacional depende directamente de uma questão não menos controversa, ou seja a de saber se existe verdadeiramente uma vontade dos Estados de abdicarem da concepção tradicional de absoluta soberania nacional, e nomeadamente do poder ilimitado dos seus tribunais. A uniformidade de interpretação e de aplicação do direito comunitário pode apenas ser atingida se existir uma espécie de sólida e estável coordenação entre o tribunal de justiça da comunidade e os tribunais dos seus Estados – membros, obtida quer através da aplicação das decisões tomadas pelo primeiro nestes últimos, quer através da instauração de um procedimento de consulta ao tribunal supranacional sempre que surja uma dúvida num tribunal interno sobre qualquer disposição do direito comunitário. De outra maneira seria muito difícil, senão mesmo impossível, alcançar a pretendida uniformidade de interpretação e aplicação deste direito na ordem jurídica interna dos Estados – membros. Um problema significativo nesta matéria continuará a ser causado pela execução das decisões supranacionais tomadas pelo tribunal. Este é um problema geral mas que existe já no presente sistema para a solução de controvérsias do Mercosul. A resolução desta questão poderia consistir na introdução no sistema do Mercosul de preciosos conceitos formulados na Europa pelo Tribunal de Justiça, tais como os princípios da aplicabilidade directa e do primado do direito comunitário. No entanto, estes princípios não poderão funcionar sem serem devidamente coadjuvados por um mecanismo apropriado que os suporte e assegure o respeito pelas provisões contidas no Tratado de Assunção e pelos actos produzidos pelas instituições do Mercosul no âmbito das suas respectivas competências. Os mecanismos criados terão naturalmente um grau de eficácia impossível de conseguir através de um sistema de arbitragem. Todavia, haverá sempre um limite a respeitar que se situa ao nível da soberania nacional dos Estados – membros, e é intrigante a questão de saber se, num futuro próximo, países com uma tão intrincada e tradicional noção de soberania estarão dispostos a tolerar a imposição de limites aos poderes dos seus tribunais internos em nome de um controlo jurisdicional internacional das suas políticas e actividades. Evidentemente, os benefícios advenientes da actividade do tribunal internacional podem ser vastos na medida em que a sua acção criativa e o seu controlo independente, desenvolvidas através do uso de conceitos como o do princípio da igualdade entre os Estados por exemplo, podem perfeitamente contribuir para o progresso dos esforços de integração e manter o sentimento de segurança jurídica no seio da área integrada. Contudo, o principal factor a ter em consideração quando toda esta questão é levantada, consiste na vontade política dos países e nas suas reais intenções relativamente ao futuro. Um sistema de solução de controvérsias como aquele que foi avançado pelo Protocolo de Brasília pode funcionar adequadamente se o propósito dos países do Mercosul for o de manter, nos anos vindouros, um processo que não trespasse a barreira da cooperação intergovernamental e se aventure nos terrenos férteis da verdadeira integração. Está a cargo dos governos imprimir o ritmo e determinar a direcção e o caminho a serem seguidos. O presente estádio de integração no Cone Sul

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parece apontar para um grau de supranacionalidade tão restrito quanto possível. Contudo, é sabido que o verdadeiro objectivo do Tratado de Assunção é chegar à formação de um verdadeiro mercado comum, sendo que se notaram já, por parte das mais altas instâncias, sinais de uma ainda tímida vontade de avançar até ao estádio mais completo da união monetária. Todas estas questões virão sem dúvida a ser respondidas pelas ambições dos governos pois que só estes possuem o poder de determinar o sentido dos futuros desenvolvimentos do Mercosul. Apesar de tudo, deverá ser contemplado um certo grau de supranacionalidade nos próximos passos do processo de integração, sendo difícil de imaginar um mercado comum a funcionar de forma satisfatória sem que esse funcionamento seja alicerçado por um aparelho de controlo jurisdicional das acções levadas a cabo pelas instituições e pelos próprios governos nacionais. Não querendo menosprezar o mérito de um modelo de arbitragem como o do Mercado Comum do Cone Sul, parece-nos apesar de tudo importante questionar a sua viabilidade em estádios mais avançados da sua provável evolução. Quanto às características que o tribunal supranacional deverá revestir, muito está ainda por ser dito. É precisamente neste ponto, contudo, que a experiência europeia pode funcionar para o Mercosul como um verdadeiro laboratório. Mesmo não sendo o seu modelo inteira e perfeitamente copiado pelos países latino – americanos, e mesmo que o Mercosul opte por partir da sua própria estrutura em busca de novos caminhos, haverá sempre bastante a retirar das imperfeições deste modelo e, acima de tudo, das enormes contribuições para os bons resultados que os países europeus alcançaram com o processo de integração. Identificada a questão – chave do problema, todas as outras questões assumem já uma natureza acessória. No entanto, porque mesmo assim não perdem a sua importância, e para dar uma visão geral do imenso número de transformações que o Mercosul terá que enfrentar se desejar criar um tribunal comum, podemos referir alguns dos problemas que começaram já a ser discutidos. Na verdade, no caso de tal instituição deixar o campo das hipóteses académicas e se tornar uma realidade, é necessário decidir da sua relação com os restantes organismos do quadro institucional., sendo que a eficácia judicial pode apenas ser alcançada se forem dados ao tribunal os meios necessários para afirmar a sua posição face aos outros agentes bem como a natureza das suas decisões. A dúvida fica no ar. Será este orgão equipado com o poder necessário para executar as suas decisões, particularmente através de uma eventual aplicação de sanções pecuniárias nos casos de desrespeito dos seus julgamentos ?65 Terão as suas decisões efeitos erga omnes de forma a que todos os actores da comunidade estejam obrigados a respeitar a interpretação dada por esta instituição às provisões dos seus tratados constitutivos e demais actos comunitários ? Finalmente, deverão ainda ser aqui cuidadosamente ponderadas todas as considerações feitas acima sobre o quadro político e económico do Mercosul. Será justa a atribuição aos países grandes da organização de um número de representantes exactamente idêntico ao número atribuído ao Uruguai e ao Paraguai e a outros eventuais países pequenos que venham a demonstrar vontade de aderir ao processo ? E, no caso de ser posto em prática um modelo de representação proporcional , estarão estes últimos dispostos a aceitar que lhes sejam impostas decisões predominantemente tomadas pelo Brasil e pela Argentina ? Estes problemas não causaram tantas dúvidas na Europa, onde as diferenças existentes entre os países não assumem a dimensão e a importância de que se revestem no Cone Sul. Todavia, mesmo no velho continente europeu, se anteriormente às recentes perspectivas de alargamento não

65 Cfr., por exemplo, Artigo 171º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, através do qual são concedidos ao Tribunal de Justiça os poderes necessários para aplicar sanções pecuniárias aos Estados que não ajam em conformidade com o estipulado nos seus acordãos.

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existia propriamente uma situação de confronto entre países pequenos e países grandes, este problema tem vindo a assumir considerável relevância nos últimos anos e está ainda longe de uma resolução considerada satisfatória para todos. Com efeito, se até hoje os alargamentos verificados exigiram apenas algumas alterações numéricas na composição dos diferentes orgãos ou no cálculo das votações, aqueles que se prevêem para os próximos anos levantarão já problemas mais complicados, de que é exemplo uma das questões mais discutidas (e, apesar disso, não solucionada) durante a Conferência Intergovernamental de 1996 – a da composição e número de membros da Comissão Europeia. O processo que conduziu à aprovação do Tratado de Amsterdão deixou para momento posterior as decisões consideradas essenciais relativas ao quadro institucional da União Europeia, entre as quais se conta o problema respeitante à provável alteração a nível da representação das diversas nacionalidades na Comissão, sob pena de, a deixar-se subsistir o sistema actualmente em vigor, se correr o risco de comprometer a sua eficácia e operacionalidade. No entanto, o problema da representação institucional, que tem tido mais destaque nos últimos anos e que se agudiza graças aos riscos de formação de núcleos duros e divisões abissais entre países ricos e países pobres como resultado da passagem apenas de alguns Estados à terceira fase da União Económica e Monetária66, tinha já tido outras manifestações da sua importância em épocas anteriores. Foi, nomeadamente, o caso das discussões sobre a reforma das modalidades de voto no seio do Conselho da União Europeia, nomeadamente sobre o nível a que se deveria situar a chamada “minoria de bloqueio”, que conduziriam à elaboração e aprovação do famoso Compromisso de Ioannina de 1994. Esta questão, provocada por alterações subsequentes ao último alargamento da Comunidade, reflectia bem uma tentativa de conciliação das preocupações dos diferentes países – as dos pequenos países, interessados em manter a anterior minoria de bloqueio, e as dos grandes países, apostados em manter a parcela de poder de que dispunham anteriormente67. Outro bom exemplo da existência do problema previamente à antevisão dos futuros alargamentos, é sem dúvida o já histórico combate espanhol para aumentar a sua representação nas instituições comunitárias e ver reconhecido finalmente o seu carácter de país grande. Considerados todos os dados que enunciámos no curso desta análise, o mero facto de que a questão hipotética da criação de um tribunal supranacional no seio do Mercosul esteja a ser discutida, pode ser visto como o “ponto de partida para uma longa e contínua viagem”68. No entanto, tem que ser recordado que todos os processos de integração são diferentes, e igualmente que o simples facto de um sistema ou modelo ter produzido bons resultados num desses processos não significa automaticamente que venha a alcançar os mesmos objectivos numa realidade completamente diferente. Esta preocupação teve, aliás, adequado reflexo no Acordo-quadro Interregional entre a Comunidade Europeia e os seus Estados - membros e o Mercosul e os seus Estados - partes, o qual, muito embora providencie uma cooperação institucional dos primeiros para com estes últimos, em momento algum chega a impor soluções.

66 Sobre este assunto, ver P. PITTA E CUNHA, “A revisão institucional e a convergência económica – problemas dos pequenos e médios Estados – membros” (1995)Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol. XXXVI. 67D. SIMON, supra nota 37, p.126. 68 M. PERRY, “Liberalisation: a tough decision, but the right one” (1994) ICC World Business and Trade Review 78.

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CONCLUSÃO Ao longo dos últimos anos, as vozes que clamam por uma necessidade de criação de um tribunal supranacional para o Mercosul, têm conseguido tornar a sua posição visível aos olhos do público, ganhando novos adeptos dia após dia. Mesmo não fazendo a criação de tal instituição parte dos projectos imediatos desta organização, as necessidades do sistema jurídico do Mercosul, que deve pretender acompanhar os avanços do seu processo de integração económica, estão na ordem do dia e continuam a justificar estudos como aquele que agora concluímos. É notório que mais e mais apoiantes da ideia de uma solução judicial para o problema parecem surgir. Actualmente, é mesmo possível afirmar-se que todos os países do Mercosul, com excepção do Brasil, demonstram uma posição flexível relativamente a esta questão, sendo a mesma visão partilhada igualmente pelo sector privado brasileiro, o qual parece temer que qualquer indício de instabilidade, nomeadamente a nível jurídico, no seio da organização possa afastar os preciosos investidores estrangeiros. A maior oposição ao projecto é representada, no momento presente, pelo sector público do Brasil, que apresenta dois grandes argumentos em defesa da sua posição. Por um lado, teme o governo brasileiro que, paralelamente ao aparecimento de outras instituições supranacionais, o tribunal conduza igualmente à emergência de uma nova classe burocrática, similar à que existe hoje na Europa, o que envolveria sem dúvida custos insustentáveis e criaria toda uma máquina processual difícil de manejar na prática. Por outro lado, existe ainda a considerar a relevância do instinto de auto - preservação do poder pois, no fundo, o Brasil não parece querer permitir que os seus poderes soberanos se dissolvam numa organização com características supranacionais que poderiam comprometer o seu actual peso político. No entanto, os problemas levantados pelo estabelecimento de um tribunal comum no seio do Mercosul deveriam ser tratados de forma diferente dos que têm origem na criação de outras instituições supranacionais, com poder decisório ou executivo. Na realidade, estas últimas colocam questões complicadas relacionadas com o seu processo de votação e a representatividade dos Estados - membros que não são totalmente pertinentes quando consideramos uma instituição judicial. Se fosse submetida a debate uma eventual criação de organismos que seguissem o modelo da Comissão Europeia ou de um verdadeiro Parlamento do Mercosul , cujos poderes fossem bastante além dos que a Comissão Parlamentária Conjunta possui actualmente, a assimetria que vimos existir entre os países teria necessariamente que ser considerada. É preciso não esquecer que o Brasil representa cerca de 75 % do acordo do Mercosul, o que cria problemas à organização no que se refere à possibilidade de existência de um justo procedimento de votação pois, se um sistema de ponderação de votos daria a este país uma fácil vitória em qualquer matéria, mesmo actuando sozinho, a regra “um país, um voto” não seria melhor solução para o problema uma vez que, no caso de abstenção de um dos membros, o Brasil poderia ainda ver a sua proposta chegar a bom porto. Sendo verdade que esta situação poderia ser alterada com a entrada de novos países para a organização, um rápido olhar aos candidatos que até ao momento já apresentaram as suas propostas leva-nos a supor que a posição preponderante do Estado brasileiro dificilmente será alterada. Um tal dilema não terá que revestir-se da mesma importância se a instituição em causa for um tribunal, onde a designação de um representante por país (como acontece, por tradição, na Comunidade Europeia), trabalhando este de uma maneira imparcial e nos limites da lei, parece já perfeitamente aceitável. Afinal, a função do juiz é a de aplicar a lei, não existindo tantas razões para temer um seu apego aos interesses nacionais dos Estados - membros. De um ponto de vista estritamente técnico e jurídico, a criação do tribunal supranacional seria, por isso, concretizável. Contudo, a questão deve ser colocada de uma forma que nos permita ter em conta também a dimensão política do problema, residindo a resposta, em boa parte, na vontade política dos Estados -

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membros de levarem por diante tal projecto. Algumas indicações foram já dadas pela experiência do Pacto Andino, a qual é suficiente para provar que a mera existência de uma instituição judicial não é suficiente para produzir resultados vantajosos, se não for devidamente complementada pelo contexto político e económico adequado ao efeito. Certamente, o Mercosul surpreende pelos seus resultados admiráveis para os seus primeiros anos de existência, mas o seu quadro institucional não está ainda perfeitamente consolidado e pode sofrer ainda significativas transformações nos anos vindouros. Se procurarmos antecipar o futuro, talvez seja mais fácil imaginar um desenvolvimento do quadro institucional que não passe pela inclusão no mesmo de uma instituição supranacional similar ao Tribunal de Justiça europeu, mesmo sendo este modelo tido cuidadosamente em consideração pelos membros do Mercosul. Mais importante que criticar essa opção parece, todavia, observar com atenção o papel que tem vindo a ser desempenhado pela sua Comissão de Comércio. Desde a sua criação pelo Protocolo de Ouro Preto, esta instituição, cujas competências incluem essencialmente a gestão e o controlo da aplicação da pauta aduaneira comum, dedicou muito do seu tempo e esforços à interpretação e aplicação das provisões da ordem jurídica do Mercosul. Na verdade, esta tarefa tornou-se já tão importante que ocupa hoje cerca de 2/3 do volume de trabalho da Comissão de Comércio, o que lhe confere, afinal, uma natureza em alguma medida comparável à de um tribunal. Algumas personalidades alvitraram já o ensejo de se vir a discutir, em futuros encontros do grupo institucional ad hoc, a possibilidade de criar uma instituição colegial com competências para interpretar e aplicar as provisões do Mercosul, bem como para produzir recomendações acerca da solução a aplicar a determinados conflitos entre os Estados, ou seja uma espécie de Comissão de Comércio com poderes sobejamente alargados. Este poderia mesmo vir a ser apenas um primeiro passo no caminho para a futura criação de um tribunal supranacional de justiça ou de outro qualquer modelo que se viesse a revelar mais adequado às condições que o Mercosul apresenta. No corrente estádio de desenvolvimento do Mercado Comum do Sul, é, no entanto, arriscado fazer previsões sobre uma mudança súbita e revolucionária do seu quadro institucional. Mesmo assim , a eventual transformação das suas instituições e da sua natureza intergovernamental permanece como uma questão em aberto. Qualquer viragem no curso da história dependerá acima de tudo da vontade política dos seus membros e do nível de integração que estes países pretendam obter.

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INDICE

1. OS TRIBUNAIS SUPRANACIONAIS E OS PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO ..................................... 4

1.1. FUNÇÕES E IMPORTÂNCIA DE UM TRIBUNAL INDEPENDENTE ....................................................................... 4

1.2. O TRIBUNAL SUPRANACIONAL COMO MOTOR DA INTEGRAÇÃO: O TRIBUNAL DE JUSTIÇA.............................. 7

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS E A EXPERIÊNCIA DO PACTO ANDINO ......................................................................... 7

2. MERCOSUL: O PROCESSO DE INTEGRAÇÃO E O QUADRO INSTITUCIONAL ......................... 16

2.1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO .................................................................................................................. 16

2.2. ENQUADRAMENTO POLÍTICO E ECONÓMICO............................................................................................... 17

2.3. ESTRUTURA INSTITUCIONAL ..................................................................................................................... 19

2.4. A PRESUMÍVEL INSUFICIÊNCIA INSTITUCIONAL DO MERCOSUL................................................................... 22

3. A SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS ENTRE OS ESTADOS ................................................................. 24

3.1. SOLUÇÃO PACÍFICA DE DISPUTAS NO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO................................................... 24

3.2. A SOLUÇÃO JUDICIAL DOS CONFLITOS ENTRE OS ESTADOS – MEMBROS. ................................................... 25

O MODELO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EUROPEU. ....................................................................................................... 25

3.3. SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NO MERCOSUL ......................................................................................... 28

3.3.1.O Protocolo de Brasília ........................................................................................................................... 28

3.3.2.Exemplos práticos de utilização do modelo ............................................................................................ 30

4. O DESAFIO DA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA ESTRUTURA ............................................................. 31

INSTITUCIONAL DEFINITIVA............................................................................................................................. 31

4.1. O DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA JUDICIAL DO MERCOSUL VISTO PELA DOUTRINA .................................. 31

4.2. VANTAGENS E DESVANTAGENS DA EXISTÊNCIA DE UM TRIBUNAL SUPRANACIONAL. SERÁ O MODELO DO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA EUROPEU ADAPTÁVEL À REALIDADE DO MERCOSUL ? ............................................................ 34

CONCLUSÃO ............................................................................................................................................................ 38

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................................................ 40