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ECONOMIA GLOBAL, MERCADORIZAÇÃO E INTERESSES COLECTIVOS CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC 2008 - 2009 SESSÃO 6 A INSEGURANÇA ALIMENTAR DA ECONOMIA GLOBAL: SITUAÇÃO, CONSEQUÊNCIAS E VIAS DE RESPOSTAS

A INSEGURANÇA ALIMENTAR DA ECONOMIA GLOBAL: … · o ciclo da pobreza e da fome no mundo a inseguranÇa alimentar da economia global: ... economia global, omc e agricultura 2. a

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ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

SESSÃO 6

A INSEGURANÇA ALIMENTAR DA ECONOMIA GLOBAL: SITUAÇÃO, CONSEQUÊNCIASE VIAS DE RESPOSTAS

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ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/

SESSÃO 6

A REPARTIÇÃO DOS RENDIMENTOS,

O CICLO DA POBREZA E DA FOME NO MUNDO

A INSEGURANÇA ALIMENTAR DA ECONOMIA GLOBAL:

SITUAÇÃO, CONSEQUÊNCIAS E VIAS DE RESPOSTAS

26 DE FEVEREIRO DE 2009

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26 DE FEVEREIRO DE 2009

TEATRO ACADÉMICO DE GIL VICENTE 21:15 HORAS

FILME/DOCUMENTÁRIO

NÓS ALIMENTAMOS O MUNDO A MARCHA DA FOME

(WE FEED THE WORLD, 2007)

DE ERWIN WAGENHOFER

DEBATE COM

FERNANDO NOBRE (AMI)

JOSÉ MANUEL PUREZA (CES/FEUC)

LUÍS PERES LOPES (FEUC)

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A COMISSÃO ORGANIZADORA

AGRADECE

A OLIVIER SCHUTTER,

RELATOR ESPECIAL DA ONU

PARA O DIREITO À ALIMENTAÇÃO,

O APOIO DADO À ELABORAÇÃO

DA PRESENTE BROCHURA

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© We Feed the World, 2007.

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ÍNDICE

A INSEGURANÇA ALIMENTAR DA ECONOMIA GLOBAL:

SITUAÇÃO, CONSEQUÊNCIAS E VIAS DE RESPOSTAS

PARTE I

A CRISE ALIMENTAR NO SÉCULO XXI

1. INTRODUÇÃO

2. A SITUAÇÃO DE CRISE ALIMENTAR NO MUNDO

2.1. A SITUAÇÃO DE FOME NO MUNDO SEGUNDO A FAO

2.2. A CRISE ALIMENTAR E A INDÚSTRIA AGRO-ALIMENTAR

3. AS CONSEQUÊNCIAS A LONGO PRAZO DA FOME,

SEGUNDO O BANCO MUNDIAL

4. ALGUMAS VIAS DE RESPOSTA,

NA LINHA DOS DIREITOS DO HOMEM

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PARTE II

ECONOMIA GLOBAL, OMC E CRISE ALIMENTAR

1. ECONOMIA GLOBAL, OMC E AGRICULTURA

2. A OMC E A INSEGURANÇA ALIMENTAR

PARTE III

ESPECULAÇÃO FINANCEIRA E CRISE ALIMENTAR

1. TERMINAR COM A ESPECULAÇÃO FINANCEIRA EXCESSIVA

NOS MERCADOS DE MATÉRIAS-PRIMAS

2. A DESREGULAÇÃO DOS MERCADOS GLOBAIS E A FOME NO MUNDO

3. A ESPECULAÇÃO FINANCEIRA E A INSEGURANÇA ALIMENTAR

4. DUAS CARTAS E DOIS PRESIDENTES

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A INSEGURANÇA ALIMENTAR DA ECONOMIA GLOBAL:

SITUAÇÃO, CONSEQUÊNCIAS E VIAS DE RESPOSTAS

PARTE I

A CRISE ALIMENTAR NO SÉCULO XXI

1. INTRODUÇÃO

A fome mata diariamente 11 000 crianças.

A FAO estima que 75 milhões de pessoas em 2007 e mais 40 milhões em 2008 vieram aumentar as fileiras dos subalimentados do planeta, devido principalmente à subida dos preços dos bens alimentares. Isto conduz a que o número de pessoas com fome no mundo atinja os 963 milhões contra os 923 milhões em 2007 (FAO, Setembro e Dezembro de 2008).

Segundo dados publicados pelo Ministério da Agricultura dos Estados Unidos: “em 2006, 36,2 milhões de americanos estão na situação de insegurança alimentar, incluindo 12,4 milhões de crianças”.

Estima-se que a situação de crise económica nos Estados Unidos da América, dados de Janeiro de 2009, lance em situação de pobreza mais 2,6 a 3,3 milhões de crianças.

Face a isto, face a este “Inverno do nosso descontentamento”, face à certeza de que se trata de um resultado de políticas aceites ao longo de dezenas de anos, editar uma brochura sobre a fome nos tempos que correm, não é tarefa cómoda,

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mas é uma tarefa obrigatória no âmbito da temática do Ciclo. A este nível vale a pena relembrar a afirmação de Einstein: “O mundo não será destruído pelos que lhe fazem mal mas, sim, por aqueles que os olham e sem nada fazer”.

Trata-se de uma brochura que compila textos dirigidos maioritariamente a estudantes de economia e ciências afins e, por outro, sendo textos que estão inseridos no âmbito do Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios denominado Economia Global, Mercadorização e Interesses Colectivos, destinam-se também a um outro tipo de público conjuntamente com o qual se pretende reflectir sobre a violência das relações mercantis actuais na nossa sociedade global, violência na apropriação dos recursos naturais, violência na apropriação do produto, violência na apropriação do excedente económico, com consequências sobre a desigualdade na repartição dos rendimentos, o acentuar do ciclo da pobreza e o agravar dos problemas da fome no mundo.

Tomando estas linhas de referência, procurou-se não apenas descrever a situação de fome e dos seus horrores presentes, como também sublinhar a hipoteca do futuro da Humanidade que esta situação cria. Como a estas questões está indissociavelmente ligado o modelo neoliberal que tem como resultado não só a crise económica e financeira actual como também a fome, pretendemos igualmente mostrar a ligação entre esta, a fome, as crises alimentares e a insegurança alimentar, e o modelo económico vigente nos últimos trinta anos. Com este modelo tudo o que é considerado um obstáculo ou uma distorção à livre concorrência dos mercados, mercados de trabalho, mercados de produtos, mercados de dinheiro, mercados de títulos, tem que necessariamente lhes ficar subalterno e onde qualquer atitude de regulação era ou é considerada sempre pior, menos eficiente do que a sua ausência.

Se esta perspectiva estiver certa, deduz-se então que a fome, mais do que uma situação, é um resultado, o produto de uma política, é então um produto da violência mercantil, tema este central do Ciclo deste ano. Sendo então o produto de uma política, tudo o que com ela foi feito pode ser desfeito com políticas diferentes, desde que se perceba primeiro como é que tudo foi feito. A selecção de textos tem assim

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também esse sentido, o de procurar explicar como das políticas económicas resultou a actual situação de fome no mundo, sendo esta então um produto de um sistema.

Iniciamos com uma descrição da fome no mundo, a partir do relatório da FAO e, por contraponto, um texto de Wall Street Journal onde se evidencia como face à situação de fome no mundo, se encara esta situação pelo lado das grandes multinacionais do sector agro-alimentar. Em seguida, com as análises do Banco Mundial, pretendemos mostrar que se está a hipotecar o futuro quando existem milhões de pessoas hoje em situação de fome, de insegurança alimentar ou, por outras palavras, mostrar a gravidade social e económica da situação futura de milhões de crianças que, exactamente pelos efeitos da fome de hoje, sofrerão perdas irreparáveis no seu desenvolvimento físico e intelectual. Sem mais nada, somente isto já dá que pensar.

Em seguida, apresentamos, na íntegra, o relatório de Olivier de Schutter, Relator especial da ONU para o direito à alimentação, onde o autor evoca a incidência das escolhas a fazer sobre o direito à alimentação, situando-as no âmbito das obrigações que incumbem aos Estados, a nível nacional e internacional, para se garantir o direito a uma alimentação condigna num quadro fundado sobre os Direitos do Homem.

Na segunda parte da brochura, procuramos explicar a razão de ser da crise alimentar presente, quando muitos têm vivido no reino da abundância enquanto mais de novecentos milhões de pessoas sofrem hoje de situação crónica de fome. São duas as vias de explicação que reputamos de fundamentais na explicação desta realidade: a desregulação ao nível da economia real e a desregulação ao nível dos mercados financeiros, sobretudo dos mercados derivados, em que a especulação assumiu tragicamente uma boa quota-parte da responsabilidade na subida dos preços dos bens alimentares. Para o efeito, iniciamos com um texto de síntese sobre a globalização, a agricultura e a OMC, a que segue um texto fundamental do mesmo Relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, texto este a ser apresentado na ONU no próximo mês de Março. Aqui, o Relator especial da

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ONU é bem claro quanto aos efeitos da desregulação nos mercados de produtos ao afirmar: “se o comércio está ao serviço do desenvolvimento e contribui para a realização do direito à alimentação adequada, é então preciso reconhecer a especificidade dos produtos agrícolas, em vez de os tratar como quaisquer outros produtos, e garantir uma maior flexibilidade aos países em vias de desenvolvimento, a fim de proteger, em especial, os seus produtores agrícolas da concorrência dos agricultores dos países industrializados”. Mais ainda, neste mesmo texto, Olivier Schutter analisa a bisturi o conceito de vantagens comparadas de Ricardo, pedra de toque do neoliberalismo ao nível das trocas internacionais, quando afirma: “a vantagem comparativa na produção de um dado produto particular… depende, não somente das suas dotações naturais, tais como o solo ou o clima, mas também, e cada vez mais, das políticas de interesse público específicas, ou da ordem em que os parceiros comerciais respectivos conseguiram alcançar as economias de escala, em dadas linhas de produção. A vantagem comparativa é sobretudo construída, mais do que revelada. Embora os países estejam constrangidos por factores naturais sobre o que podem produzir, serem ou não competitivos na produção de produtos agrícolas depende fundamentalmente de escolhas que são de natureza política – de quanto se investe nas infra-estruturas rurais, na irrigação, ou no desenvolvimento do acesso a linhas de microcrédito, ou de quanto deve ser o apoio dada aos agricultores para os compensar do facto de os preços serem insuficientemente remuneradores. A questão fundamental é aqui, então, de saber quais os incentivos que resultam para os Estados, isto é, na construção da sua vantagem comparativa, a partir da abertura ao comércio internacional. De um lado, os Estados podem procurar melhorar a capacidade dos seus produtores para tirarem proveito das oportunidades do comércio internacional e, em particular, para os países em vias de desenvolvimento, tirarem proveito do melhor acesso aos mercados de alto valor acrescentado dos países industrializados. Por outro lado, os Estados podem considerar que importar determinados bens, tais como alimentos já processados, pode ser mais barato do que os produzir localmente, e podem consequentemente aumentar a sua dependência em importações para alimentar a sua população. A especialização feita de acordo com a vantagem comparativa conduz assim a duas vias de dependência: primeiramente, para a aquisição de divisas estrangeiras, dependência do valor das exportações; em

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segundo, para a capacidade dos países em alimentar a sua população, dependência do preço das importações”.

Importa, aliás, frisar que a perspectiva crítica face à teoria dominante do comércio internacional de Olivier De Schutter presente neste relatório constitui mais um ponto de apoio às posições críticas que têm sido sistematicamente expostas na disciplina de Economia Internacional.

Na elaboração da brochura, da economia real passamos então à economia financeira utilizando textos que consideramos da maior importância porque se trata dos testemunhos feitos no Congresso dos Estados Unidos sobre os mercados derivados, com textos do senador Joe Libermann e Michael Masters, que julgamos serem pela primeira vez traduzidos para português. O testemunho de Masters assume um eco internacional importante, uma vez que se trata de alguém que vem de dentro, do “milieu”, conhecedor por dentro dos mecanismos de especulação e que no Congresso tem a coragem de afirmar o seguinte: “Devo sublinhar que eu não estou envolvido actualmente em mercados futuros sobre matérias-primas e bens alimentares, não represento aqui nenhuma empresa financeira ou grupo de pressão. Estou aqui a testemunhar como um cidadão interessado cuja base profissional de conhecimentos me dá a certeza de estarmos numa situação prejudicial à economia dos Estados Unidos. Enquanto alguns dos meus colegas de profissão deverão ficar desapontados com o meu testemunho a este Congresso, eu sinto que é a atitude correcta a tomar. Puseram-me a questão: “estão os investidores institucionais a contribuir para a inflação dos preços dos bens alimentares e da energia?” E a minha resposta inequívoca é “SIM.” Neste testemunho eu explicarei que os investidores institucionais são um dos factores principais, se não mesmo o factor principal, que afecta os preços dos bens alimentares e das matérias-primas, hoje”.

É essa base de conhecimentos que o texto revela e que colocamos à disposição do leitor desta brochura. Nesta mesma linha e porque é a fome o assunto principal que estamos a tratar, reproduzimos um texto do Institute for Agriculture and Trade Policy, conceituada organização não governamental internacional, sediada em

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Minneapolis, sobre os mercados especulativos em bens alimentares cujo título é Commodities Market Speculation: The Risk to Food Security and Agriculture.

Os textos falam por si e dizem-nos que a fome resulta das escolhas de políticos, mesmo que se traduzam na ausência de políticas. Não se pode esquecer, por exemplo, que o anterior secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry M. Paulson, de acordo com o jornal New York Times foi, enquanto Presidente do Goldman Sachs, o líder de um grupo que pressionou o Governo americano, para que os bancos especialistas nas novas formas de especulação, Goldman Sachs, Morgan Stanley, Lehman Brothers, JP Morgan e Bear Stearn, ficassem isentos das reservas de capital, reservas prudenciais. Argumentavam que estavam tão bem capitalizados e que tinham uma gestão de riscos sofisticada e segura que a U. S. Securities and Exchange Commission (SEC) lhes devia conceder a isenção de reservas exigidas a todos os outros bancos, bancos comerciais. Conseguida esta isenção, estes bancos ficaram com milhões de dólares disponíveis para aumentar a sua capacidade especulativa. E assim se criaram mais condições para se dinamizar a subida dos preços dos bens alimentares, para se atear a crise alimentar mundial e a situação explosiva da fome.

Posteriormente, praticamente todos estes bancos entraram em situação de falência pela excessiva especulação, para utilizar a expressão do senador Joe Libermann, e foi então o mesmo Henry M. Paulson, mas já na qualidade de secretário do Tesouro, que vem salvar estes mesmos bancos, mas agora com dinheiro público. Mas, entretanto, a crise mundial, global, estava instalada.

A concluir reproduzimos uma carta aberta enviada ao então Presidente eleito Obama sobre a questão da fome, particularmente nos Estados Unidos, carta esta assinada por muitas organizações não governamentais. Contudo, os dados desta carta lamentavelmente já estão ultrapassados, pois a situação que actualmente se vive nos Estados Unidos degradou-se significativamente com a crise económica que se está a viver. Mas os americanos, tendo noção do que se está a passar, já começaram a avaliar o custo económico futuro dos efeitos actuais da crise, visto

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somente pelo ângulo da fome, o ângulo de análise da nossa brochura. Estima-se já que entre 2,6 a 3,3 milhões de crianças serão colocadas na situação de pobreza. Quais os custos futuros deste “facto” para a economia americana, custos estes que urge evitar? Vejamos o que nos dizem do outro lado do Atlântico.

Um aumento de 3 milhões de crianças na categoria de “pobres” significaria uma perda económica total de pelo menos 1,7 milhões de milhões de dólares ao longo da vida destas crianças. Dito de outra maneira, no mínimo, mantendo o índice actual de pobreza na infância, a economia dos Estados Unidos não perderá, pelo menos, 1,7 milhões de milhões de dólares durante as próximas décadas. Isto representaria uma perda anual de aproximadamente 0,27% do PIB, ou seja, de 35 mil milhões de dólares por ano.

Esta análise é baseada em estimativas precedentes dos custos agregados da pobreza na infância, incluindo os efeitos sobre o salário esperado ao longo da vida e sobre os custos esperados com a saúde. Especificamente, estes estudos sugerem que as crianças que vivem mais de metade da sua infância na pobreza ganham, em média, 39% menos do que o rendimento mediano. Além disso, uma criança pobre perde aproximadamente o valor de 250 mil dólares em qualidade de vida no decurso de sua vida.

Para além destes efeitos, porque as ramificações negativas que resultam de uma infância passada na pobreza são particularmente agudas para as crianças que passam um grande número dos seus primeiros anos na pobreza, é importante saber se a pobreza induzida pela recessão é persistente ou “meramente” provisória. Estudos recentes indicam que mais de metade das crianças que caem na situação de pobreza durante uma recessão provavelmente permanecerão no mínimo nesta situação de pobreza durante algum tempo mais depois da retoma económica. De facto, cerca de um quarto das crianças que sofrem de pobreza induzida pela recessão gastarão pelo menos metade de sua infância restante nessa situação.

Muita da discussão sobre a saída da crise à volta de um potencial programa de despesa federal para melhorar a situação económica centra-se nos investimentos

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produtivos que fornecerão um impulso imediato e que simultaneamente abrirão a via para o crescimento económico de longo prazo. Tem havido porém pouca discussão sobre o impacte desta recessão económica no desenvolvimento a longo prazo da futura população activa, elemento chave na capacidade produtiva do país. Não há qualquer dúvida que todas as situações de recessão, mesmo aquelas menos severas do que a que agora estamos a passar, têm um impacte mensurável sobre a força de trabalho actual. De facto, uma recessão está sempre associada a uma subida significativa na taxa de desemprego de que se leva depois, e em geral, vários anos a recuperar. Um aumento no desemprego representa salários perdidos, experiência e saber fazer que não são aproveitados, qualificações que se desvalorizam. As perdas, nestes casos, podem levar vários anos a recuperar. Mas há um outro aspecto das recessões que é frequentemente negligenciado, o impacte a longo prazo que resulta do aumento da pobreza na infância que sempre acompanha, e de modo prolongado, a redução prolongada da actividade económica, conforme já mencionámos.

É claro que os Estados Unidos têm um interesse moral em evitar que milhões de crianças vivam a sua infância, ou parte dela, na situação de pobreza, mas o que é menos ouvido é que há uma base material e mensurável do impacte económico de se deixar cair em definitivo as crianças em situação de pobreza na infância. Se a pobreza, tem geralmente um efeito negativo no crescimento, então a pobreza na infância tem certamente aí um papel especial a desempenhar.

Por exemplo, na recessão económica do início dos anos 90 houve 39% das crianças que caíram em situação de pobreza na infância e que se mantiveram nessa situação até vários anos depois da saída da recessão, enquanto apenas 3% das crianças que não estavam na situação de pobreza na recessão nela vieram a cair depois. Por outras palavras, neste caso, as crianças que caíram em situação de pobreza na infância com a recessão tiveram treze vezes mais probabilidades de viverem mais anos da sua infância nessa mesma situação, mesmo depois da saída da recessão.

É pois claro que a queda em situação de pobreza na infância durante uma recessão acarreta consigo uma forte probabilidade de a criança persistir na pobreza,

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mesmo para além da recessão. As estimativas apontam para que, se nada for feito, 60% dos três milhões de novas crianças a caírem em situação de pobreza na infância terão períodos intermitentes ou mesmo constantes de situações de pobreza que lhes trarão profundos prejuízos a longo prazo. Considerando apenas os efeitos de longo prazo sobre a saúde e sobre as remunerações passíveis de não serem ganhas resultantes da pobreza na infância destas crianças, os custos futuros de se ter adicionalmente três milhões de crianças em situação de pobreza ultrapassa os 35 mil milhões de dólares por ano e ao longo do tempo de vida esperado para essas crianças, estes custos, este prejuízo económico, ascendem a 1,7 milhões de milhões de dólares.

A mensagem é aqui clara: é preciso preocuparmo-nos com as “gerações futuras” mas não no sentido neoliberal, para quem o relançamento da economia é e deve ser apenas uma questão de mercado e qualquer expansão orçamental no presente é entendida como um encargo que a estas deve ser poupado. Por exemplo, o Pacto de Estabilidade e Crescimento assenta nestes pressupostos, restringindo as políticas orçamentais discricionárias e sugerindo até uma situação orçamental a médio prazo excedentária ou equilibrada. Mesmo no que respeita aos estabilizadores automáticos de estabilização, permitidos por este Pacto, políticas paralelas designadamente de emprego e dos mercados de trabalho têm reduzido a capacidade de funcionamento destes mecanismos. Paradoxalmente, defende-se este ponto de vista quando a União Europeia se soube rodear de paraísos fiscais para as classes de rendimentos altos e permite a concorrência fiscal no seu seio. Um argumento que só um certo cinismo ou o desprezo pelo que é futuro pode sustentar. Aqui o que os americanos nos dizem é exactamente o inverso, que a salvaguarda das gerações actuais mais novas no futuro exige défices públicos no presente.

26 de Fevereiro de 2008

Júlio Marques Mota

Luís Peres Lopes

Margarida Antunes

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2. A SITUAÇÃO DE CRISE ALIMENTAR NO MUNDO

2.1. A SITUAÇÃO DE FOME NO MUNDO SEGUNDO A FAO

Introdução

O relatório “O estado da insegurança alimentar no mundo 2008” constitui o nono relatório intercalar da FAO sobre a fome no mundo desde a Cimeira Mundial da Alimentação (CMA) de 1996. Nos relatórios precedentes, a FAO exprimiu a sua profunda preocupação quanto à ausência de progressos na redução do número de pessoas que sofrem da fome no mundo, que continuou a ser elevado. No relatório deste ano, a tónica é colocada nos efeitos da evolução dos preços elevados dos bens alimentares que têm sérias consequências para as populações mais pobres do mundo, dado que reduzem consideravelmente o seu poder de compra, já de si muito fraco. Os preços elevados destes bens agravaram a escassez alimentar, tornando ao mesmo tempo indispensável a realização dos objectivos internacionais de redução da fome até 2015. Este relatório examina igualmente como é que os preços dos bens alimentares elevados apresentam uma ocasião para relançar a pequena agricultura nos países em desenvolvimento. Como se indica no relatório, as estimativas da FAO sobre a subalimentação para o período compreendido entre 1990-92 e 2003-05 foram reexaminadas com base nas novas normas relativas às necessidades energéticas do ser humano estabelecidas pelas Nações Unidas e nos dados revistos sobre as populações (2006).

Milhões de pessoas suplementares atingidas pela insegurança alimentar – é necessário agir urgentemente e aumentar os investimentos

Principais mensagens

1. A fome no mundo progride. O objectivo da Cimeira Mundial da Alimentação (CMA) – reduzir para metade o número de pessoas subalimentadas no mundo até 2015 – torna-se mais difícil de atingir em numerosos em países. As estimativas mais recentes da FAO estimam em 923 de milhões o número de pessoas

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que sofrem da fome em 2007, ou seja, um aumento mais de 80 milhões em relação ao período de referência de 1990-92. As estimativas a longo prazo (disponíveis até 2003-05) mostram que antes da crise alimentar, alguns países estavam no bom caminho para realizar o objectivo da Cimeira Mundial da Alimentação e os Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento (OMD). No entanto, mesmo estes países poderão ter sofrido alguns revezes.

2. Os preços elevados dos bens alimentares são os principais responsáveis. Foi nestes últimos anos, isto é, entre 2003-05 e 2007 que a fome crónica mais progrediu. De acordo com as estimativas provisórias da FAO, 75 milhões de pessoas vieram acrescentar-se, em 2007, ao número total de pessoas esfomeadas existentes no período 2003-05. Ainda que vários factores possam ser invocados, os preços dos bens alimentares elevados fazem com que milhões de pessoas passem a ficar na situação de insegurança alimentar, para além de agravarem as condições de numerosas pessoas que estavam já nesta situação e, a longo prazo, ameaçam a segurança alimentar mundial.

3. As famílias mais pobres, sem terra e dirigidas por mulheres, são as mais duramente atingidas. A grande maioria das famílias urbanas e rurais dos países em desenvolvimento assenta o seu sistema alimentar em compras feitas, isto é, no mercado, pelo que são, por conseguinte, perdedores na crise alimentar, pelo menos a curto prazo. Os preços dos bens alimentares elevados reduzem os rendimentos reais e agravam a insegurança alimentar e a desnutrição na população pobre diminuindo a quantidade e a qualidade dos alimentos consumidos.

4. As intervenções iniciais dos governos tiveram apenas efeitos limitados. Para conter os efeitos negativos do aumento dos preços dos bens alimentares, os governos adoptaram diversas medidas como o controlo dos preços e as restrições à exportação. Estas medidas, tomadas para proteger, de imediato, o bem-estar social, são frequentemente pontuais e correm o risco de se revelarem ineficazes e não viáveis. Algumas de entre elas tiveram efeitos prejudiciais para os níveis e para a estabilidade dos preços dos bens alimentares no mundo.

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5. Os preços elevados dos bens alimentares são também uma ocasião a não perder. A longo prazo, os preços elevados dos bens alimentares representam uma ocasião a não perder para a agricultura dos países em desenvolvimento, incluindo para os pequenos agricultores, com a condição de ser acompanhada, paralelamente, com o fornecimento dos bens públicos essenciais. Os lucros dos pequenos agricultores poderiam estar na base de um desenvolvimento económico e rural mais vasto. Vêem-se, pois, lucros imediatos para as famílias agrícolas mas a mais longo prazo, outras famílias rurais poderiam beneficiar desta conjuntura se os preços mais elevados permitissem aumentar a produção e criar empregos.

6. É essencial adoptar uma abordagem global sobre duas frentes. Os governos, os mutuantes de fundos, as Nações Unidas, as organizações não governamentais, as ONGs, a sociedade civil e o sector privado devem imediatamente combinar os seus esforços de modo a poderem adoptar uma abordagem em duas frentes para fazer face aos preços elevados dos bens alimentares e às suas consequências para a fome no mundo: i) medidas que permitam ao sector agrícola, e sobretudo aos pequenos agricultores nos países em desenvolvimento, responder à crise alimentar; e ii) redes de segurança e programas de protecção social minuciosamente bem direccionadas para as pessoas que mais sofrem de insegurança alimentar e que são as mais vulneráveis. É um desafio mundial, que exige uma resposta mundial.

Declaração de Jacques Diouf (Director Geral da FAO)

Por toda a parte no mundo, o aumento dos preços alimentares suscitou apreensões quanto à segurança alimentar à escala mundial, após a indiferença injustificada suscitada por muitos anos de géneros alimentares baratos. De 3 a 5 de Junho de 2008, representantes de 180 países e a União Europeia, muitos numerosos chefes de Estado e de governo, reuniram-se em Roma para exprimir a sua convicção de que “a comunidade internacional deve tomar medidas urgentes e coordenadas para lutar contra os efeitos negativos do aumento dos preços dos géneros alimentares sobre os países e as populações mais vulneráveis do mundo”. Aquando da Cimeira do G8 no Japão, em Julho de 2008, os líderes das nações mais industrializadas do

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mundo exprimiram a sua profunda apreensão em relação “ao forte aumento dos preços alimentares no mundo que, conjugado a problemas de escassez em certos países em desenvolvimento, ameaça a segurança alimentar mundial”.

Afastar-se dos objectivos de redução da fome

As preocupações da comunidade internacional são bem fundadas. Pela primeira vez desde que a FAO começou a acompanhar as tendências da subalimentação, o número de pessoas que sofrem cronicamente da fome é mais elevado que aquando do período de referência. A FAO considera que o número de pessoas que sofre cronicamente dae fome no mundo aumentou de 75 milhões em 2007 para atingir 923 milhões de indivíduos, principalmente devido à crise alimentar.

Aos efeitos devastadores dos preços elevados dos géneros alimentícios sobre o número de pessoas que sofrem da fome vêm-se acrescentar as tendências já inquietantes a longo prazo. A nossa análise mostra que durante o período 2003-2005, antes do recente aumento dos preços alimentares, o número de vítimas de fome crónica já tinha aumentado de 6 milhões de pessoas em relação a 1990-92, o período tomado como referência quando os objectivos da CMA e da Cimeira do Milénio para a redução da fome foram estabelecidos. Somos obrigados a considerar, com efeito, que os primeiros progressos obtidos em meados dos anos 90 em matéria de redução da fome em várias regiões em desenvolvimento não foram mantidos. Nestes últimos dez anos, a fome aumentou enquanto o mundo se enriquecia e produzia mais produtos alimentares que nunca. O presente relatório sublinha repetidamente que estes resultados decepcionantes mostram a ausência de acções concertadas para combater a fome apesar dos compromissos tomados a nível internacional. O aumento dos preços dos bens alimentares destruiu alguns ganhos já obtidos na luta contra a fome, tornando ainda mais árdua a realização dos objectivos internacionais necessários para a redução da fome. Será necessário agir com determinação, realizar esforços de grande amplitude à escala mundial e tomar medidas concretas para reduzir de 500 milhões o número de pessoas vítimas da fome durante os sete anos que nos separam de 2015.

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Os mais pobres e os mais vulneráveis são os mais atingidos

O aumento dos preços dos bens alimentares agravou a situação de numerosos países que tinham já necessidade de intervenções de emergência e de ajuda alimentar por outras razões, como intempéries e conflitos. As nações já atingidas por este tipo de crise devem, além disso, preocupar-se com a incidência dos preços dos bens alimentares sobre a segurança alimentar; quanto aos outros países, estão mais expostos à insegurança alimentar, devido ao aumento dos preços. Os países em desenvolvimento, sobretudo os mais pobres, serão confrontados com escolhas delicadas: manter certa estabilidade macroeconómica ou instaurar políticas e programas destinados a contraporem-se aos efeitos negativos dos preços elevados dos bens alimentares e dos combustíveis sobre as suas populações. Os motins e as perturbações sociais que se deram em numerosos países em desenvolvimento e de fracos e médios rendimentos mostram o desespero gerado pelo aumento dos preços destes bens e dos combustíveis em milhões de famílias pobres, mas igualmente também nas classes médias. A análise efectuada neste relatório demonstra que os preços elevados dos alimentos têm efeitos particularmente devastadores para as camadas mais pobres, nas cidades assim como nos campos, bem como sobre os camponeses sem terra e nas famílias dirigidas por mulheres. Se as medidas não forem tomadas urgentemente, a crise alimentar pode ter repercussões negativas a longo prazo sobre o desenvolvimento humano dado que as famílias, para fazer face ao aumento dos custos da alimentação, reduzem a quantidade e a qualidade dos alimentos consumidos, limitam as despesas consagradas à saúde e à educação ou vendem os seus bens. As crianças, as mulheres grávidas e as mães que amamentam são as mais expostas. A experiência adquirida aquando dos precedentes aumentos de preços justifica plenamente tais temores.

Uma resposta estratégica: a abordagem em duas frentes

É necessário dar uma resposta urgente e concreta à crise alimentar provocada pelo aumento dos preços de numerosos bens alimentares nos países em desenvolvimento. É necessário, contudo, reconhecer que preços dos bens alimentares

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elevados são o resultado de um equilíbrio frágil entre a oferta e a procura. Estes dois elementos mostram que, mais do que nunca, a abordagem em duas frentes para reduzir a fome, como é preconizado pela FAO e pelos seus parceiros de desenvolvimento, é essencial não somente para se atacarem as ameaças que o aumento dos preços dos bens alimentares faz pesar sobre a segurança alimentar, mas igualmente para gerir as perspectivas que se abrem com este aumento. É necessário e o mais rapidamente possível criar redes de segurança completamente orientadas e programas de protecção social para que todos possam ter acesso aos alimentos dos quais têm necessidade para efectuar uma vida sã. Paralelamente, é necessário unirem-se a ajudar os produtores, particularmente os pequenos agricultores, para lhes permitir aumentar a produção alimentar, graças a um melhor acesso às sementes, adubos, alimentos para animais e aos outros factores de produção. Esta medida deveria aumentar a oferta alimentar e reduzir os preços nos mercados locais. A médio e longo prazo, será necessário que nos concentremos no reforço do sector agrícola dos países em desenvolvimento para lhes permitir responder ao aumento da procura. O crescimento da produção alimentar nos países pobres graças à melhoria da produtividade deve estar no centro das políticas, estratégias e programas que visam assegurar a segurança alimentar numa base duradoura. Preços dos bens alimentares elevados e os estimulantes que eles geram podem ser explorados para relançar a agricultura nos países em desenvolvimento. É um elemento essencial, não somente para fazer face à crise actual, mas igualmente para responder ao aumento da procura de bens alimentares, alimentos para o gado e biocarburantes assim como para evitar tais crises no futuro. Relançar a agricultura dos países em desenvolvimento é fundamental para se chegar a resultados significativos na luta contra a pobreza e a fome e para inverter as tendências inquietantes que notamos hoje. Será necessário, em conformidade, dar aos numerosos pequenos agricultores do mundo inteiro os meios dos quais têm necessidade para aumentar a produção agrícola. Para fazer do crescimento agrícola uma arma contra a pobreza, é necessário atacar os constrangimentos estruturais que a agricultura enfrenta, nomeadamente milhões de pequenos produtores que vivem em países onde a economia é fortemente tributária da agricultura. Tudo isto supõe um aumento dos investimentos públicos nas infra-estruturas rurais e nos serviços essenciais (estradas, irrigação, recolha de água, armazenamento, matadouros, portos

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de pesca e créditos bem como abastecimento em electricidade, escolas e serviços de saúde) para instaurar condições propícias aos investimentos privados nas zonas rurais. Ao mesmo tempo, meios suplementares devem ser consagrados a tecnologias mais duradouras para uma agricultura mais intensiva, que ao mesmo tempo ajudem os agricultores a aumentar as capacidades de adaptação do seu sistema de produção alimentar e a fazer face às mudanças climáticas.

É indispensável adoptar uma estratégia coerente e coordenada

São numerosos os países em desenvolvimento que adoptaram medidas unilaterais para tentar remediar os efeitos negativos do aumento dos preços dos bens alimentares: controlos dos preços, subvenções e restrições à exportação. Tais respostas correm o risco de não ser duradouras e de aumentar mesmo os níveis e a instabilidade dos preços no mundo. Para fazer face às ameaças e explorar eficazmente as possibilidades oferecidas pelo aumento dos preços dos bens alimentares, as estratégias devem prever uma resposta multilateral, completa e coordenada. É necessário, de qualquer urgência, consentir investimentos de grande amplitude para atacar de maneira duradoura os problemas crescentes da insegurança alimentar que atingem os pobres e as pessoas que sofrem da fome. Nenhum país, nenhuma instituição, não chegará, sozinha, a resolver esta crise. Os governos dos países em desenvolvimento e dos países desenvolvidos, os mutuantes de fundos e as instituições especializadas das Nações Unidas, as instituições internacionais, a sociedade civil e o sector privado, têm todos um papel importante a desempenhar na luta mundial contra a fome.

É indispensável que a comunidade internacional tenha uma visão comum das medidas a tomar para ajudar os governos o melhor possível a erradicar a fome crónica e que todas as partes devem, juntas, unirem-se para concretizar esta visão, à escala necessária. É chegado o momento de passar à acção.

A determinação apresentada pelos líderes do mundo aquando da Conferência de alto nível sobre a segurança alimentar mundial de Roma, tida em Junho de 2008, e a importância atribuída ao aumento dos preços dos bens alimentares e dos

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combustíveis pela Cimeira do G8 são a prova de uma vontade política crescente de reduzir a fome. Além disso, um apoio financeiro claramente superior foi anunciado para ajudar os países em desenvolvimento a combater as ameaças que o aumento dos preços faz pairar sobre a segurança alimentar. No entanto, se esta vontade política e os compromissos dos mutuantes de fundos não forem traduzidos em factos de imediato, milhões de pessoas correm o risco de caírem, elas também, na pobreza e na fome crónica. Nunca uma acção concertada para combater a fome e a desnutrição foi tão necessária como agora. Tenho grande esperança que a comunidade internacional enfrentará este desafio.

A subalimentação no mundo

Preços elevados dos produtos alimentares: 75 milhões de pessoas vêm engrossar as filas dos que têm fome.

O aumento dos preços dos bens alimentares determinou um aumento do número de pessoas que sofrem da fome no mundo. De acordo com estimativas provisórias da FAO, o número de pessoas a sofrer cronicamente da fome aumentou de 75 milhões em 2007, vindo acrescentar-se aos 848 milhões que, de acordo com a FAO, sofriam da fome em 2003-05. Uma grande parte deste aumento é atribuída ao aumento dos preços dos bens alimentares. Isto significa por conseguinte que o número total de pessoas subalimentadas no mundo atingia 923 milhões, em 2007. Como os preços dos cereais alimentares básicos e das oleaginosas permanecem em forte aumento durante o primeiro trimestre de 2008, o número de pessoas que sofrem cronicamente da fome corre o risco ainda de crescer.

Em 2007, o número de pessoas subalimentadas ascendia então a 923 milhões, ou seja, 80 milhões mais do que em 1990-92, o período de referência para o objectivo de redução da fome da CMA. Será assim ainda mais difícil reduzir o número de pessoas subalimentadas para 420 milhões até 2015, sobretudo num contexto de preços dos bens alimentares elevados e de perspectivas económicas mundiais incertas.

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O impacto do aumento dos preços dos alimentos na proporção de pessoas subalimentadas (indicador da fome do primeiro dos Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento (OMD)) é preocupante. Progressos satisfatórios tinham sido realizados em matéria de redução da proporção de pessoas que sofrem da fome no mundo em desenvolvimento, passando de cerca de 20% em 1990-92 para menos de 18% em 1995-97 e um pouco ligeiramente mais de 16% em 2003-05. As estimativas mostram que o aumento dos preços dos bens alimentares inverteu esta progressão: a proporção de pessoas subalimentadas no mundo retornou a 17%. Resulta daqui que com o aumento dos preços dos bens alimentares, os progressos realizados para atingir os objectivos internacionais de redução da fome tiveram um retrocesso, e ao mesmo tempo, quer no que diz respeito ao número de pessoas subalimentadas quer quanto à predominância da fome.

Índice da FAO dos preços dos bens alimentares, 1998-2000=100

Fonte: FAO.

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Os efeitos previstos dos preços elevados sobre a subalimentação mundial foram confirmados por uma análise de dados recolhidos ao nível das famílias. A análise confirma que o aumento dos preços dos alimentos teve repercussões negativas, sobretudo sobre as populações pobres e mais vulneráveis.

A subida dos preços trava o progresso

Ao nível regional, os aumentos mais fortes do número de pessoas subalimentadas em 2007 ocorreram na região da Ásia e Pacífico e na África subsariana. Em conjunto, estas duas regiões contabilizavam 750 milhões de pessoas que sofriam da fome em 2003-05 (ou seja, 89% do total mundial). De acordo com a FAO, o aumento dos preços fez cair mais 41 milhões de pessoas na região da Ásia e Pacífico e 24 milhões na África subsariana abaixo do limiar da fome.

Em conjunto, a Ásia e a África contam mais de três quartos dos países com fracos rendimentos e com défice alimentar do mundo em desenvolvimento. É igualmente em África que se reencontram 15 dos 16 países onde a predominância da fome excede já 35%, tornando-os particularmente vulneráveis ao aumento dos preços dos bens alimentares.

Ainda que os números sejam menos impressionantes, a América Latina e as Caraíbas, o Médio Oriente e a África do Norte conhecem igualmente aumentos do número de pessoas que sofrem da fome devido à crise alimentar (um duro revés para a América Latina, uma vez que tinha conhecido mais de uma década de progressos regulares a caminho do objectivo do CMA).

À escala mundial, o aumento da predominância da fome e o crescimento considerado de 75 milhões de pessoas subalimentadas em 2007 confirmam as apreensões quanto à crise de segurança alimentar mundial provocada pelo aumento dos preços dos bens alimentares, pelo menos a curto prazo.

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As estimativas da FAO serão elas prudentes?

…O cálculo do número de pessoas subalimentadas assenta na hipótese segundo a qual a distribuição do contributo energético alimentar num país ou de uma região não evoluiu entre os períodos “de diminuição” e “de aumento” dos preços dos bens alimentares. Por outro lado, a análise à escala das famílias mostra que, a curto prazo, as pessoas pobres, proporcionalmente, sofrem mais com o aumento dos preços dos alimentos que as pessoas ricas.Uma análise detalhada realizada em oito países revela que na sequência do aumento dos preços dos bens alimentares, a distribuição das disponibilidades energéticas alimentares por pessoa deteriorou-se nas famílias. A FAO considera por conseguinte que o impacto mundial do aumento dos preços dos alimentos na fome poderia estar subestimado. É por isso que se pode avançar, sem riscos, que a crise alimentar gerou um aumento pelo menos de 75 milhões do número de pessoas que sofrem da fome, pessoas que não têm assim acesso a uma quantidade suficiente de alimentos por dia. Por seu lado, o Departamento da Agricultura dos Estados Unidos, utilizando uma metodologia diferente, considerou que o aumento dos preços dos alimentos provocou um aumento de 133 milhões do número de pessoas subalimentadas nos 70 países analisados. Os dois métodos de estimativa da fome diferem na sua maneira de calcular a desigualdade da distribuição dos alimentos disponíveis para o consumo humano. Em relação ao método da FAO, o do Departamento da Agricultura dos Estados Unidos serviu-se de um limite definitivo mais elevado (e constante) para determinar o limiar da fome. Baseou-se no número de 2 100 quilocalorias por pessoa e por dia enquanto os utilizadas pela FAO flutuam em função da idade e do sexo em cada país, variando geralmente entre 1600 e 2 000 quilocalorias por pessoa e por dia.

As causas do aumento dos preços dos produtos alimentares

Os preços dos produtos agrícolas aumentaram fortemente em 2006 e 2007 e prosseguiram a sua corrida no início do ano 2008.As causas do aumento dos preços dos alimentos foram analisadas sob vários ângulos a fim de se esboçarem respostas. Retomemos, agora, alguns dos principais factores que explicam o aumento dos preços dos bens alimentares. A acreditarmos nas projecções a médio prazo, os preços dos produtos alimentares deveriam estabilizar-se em 2008-09 para seguidamente diminuírem, mas permaneceriam, num futuro próximo, superiores a níveis antes de 2004.

O índice FAO dos preços nominais dos produtos alimentares duplicou entre 2002 e 2008. Em termos reais, o aumento é menos marcado mas continua a ser importante. O índice dos preços dos bens alimentares em termos reais começou a crescer em 2002, após quatro décadas de tendência principalmente em baixa, e subiu

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em flecha em 2006 e 2007. Em meados de 2008, os preços reais dos alimentos eram 64% mais elevados que em 2002. O outro único período de aumento significativo dos preços reais dos bens alimentares desde que estas informações estão disponíveis situa-se no início dos anos 70, na aurora da primeira crise petrolífera internacional.

Antes de se tomarem medidas adequadas – medidas de política geral, decisões de investimento ou intervenções de emergência – a fim de se atenuarem as consequências humanas e económicas do aumento dos preços dos bens alimentares, é necessário compreender plenamente as causas subjacentes. Estas causas são múltiplas e complexas e comportam factores ligados tanto à oferta como à procura. As tendências estruturais de longo prazo que estão subjacentes ao aumento da procura de alimentos coincidiram com factores cíclicos de curto prazo ou temporários que tiveram consequências negativas na oferta de bens alimentares, o que fez com que o aumento da procura tivesse sido sempre mais elevado que o da oferta.

Factores ligados à oferta

Níveis das existências e instabilidade dos mercados. Vários dos principais produtores de cereais no mundo (a China, os Estados Unidos da América, a Índia e a União Europeia) têm recentemente alterado a sua política agrícola. Um dos resultados desta mudança de política foi uma importante diminuição das existências de cereais em relação aos anos precedentes.

A relação entre as existências e a utilização dos cereais à escala mundial é considerada em 19,4% para 2007/08, a mais baixa desde há 30 anos. A redução do valor das existências contribui para uma maior volatilidade dos preços nos mercados mundiais devido às incertezas quanto às disponibilidades no caso de baixa de produção.

Baixas de produção. Episódios climáticos extremos, incluindo secas e inundações, atingiram os principais países produtores de cereais em 2005-07. A produção cerealífera mundial caiu de 3,6% em 2005 e de 6,9% em 2006 antes de

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se restabelecer em 2007. Dois anos sucessivos de fraca produção num contexto de existências já em baixa geraram uma situação preocupante da oferta nos mercados mundiais. A apreensão crescente a propósito dos efeitos possíveis das mudanças climáticas sobre as disponibilidades futuras em produtos alimentares apenas veio agravar estes temores.

Preços dos produtos petrolíferos. Até meados de 2008, o aumento de preços da energia foi muito rápido e brutal: um dos principais índices de preços dos produtos básicos (o índice Reuters-CRB dos preços da energia) mais que triplicou desde 2003. Ora, os preços do petróleo e dos bens alimentares estão intimamente ligados. O rápido aumento dos preços dos produtos petrolíferos pressionou o aumento dos preços dos bens alimentares, os preços dos adubos quase que triplicaram e as despesas de transporte duplicaram em 2006-08. Os preços elevados dos adubos têm consequências negativas nos custos de produção e na sua utilização pelos produtores, sobretudo pelos pequenos agricultores.

Factores ligados à procura

Procura em biocarburantes. Os mercados emergentes de biocarburantes exigem volumes importantes de produtos agrícolas como o açúcar, o milho, a mandioca, as sementes oleaginosas e o óleo de palma. O aumento da procura destes produtos fez com que os seus preços tenham subido em flecha nos mercados mundiais, o que provocou, por sua vez, um encarecimento dos bens alimentares. A produção e a utilização de biocarburantes são ambas apoiadas por políticas governamentais em diversos países e o aumento rápido dos preços do petróleo bruto provocou um novo aumento da procura de matérias-primas agrícolas que servem para produzir biocarburantes. A produção de biocarburantes deveria utilizar 100 milhões de toneladas de cereais (4,7% da produção mundial) em 2007-08.

Modos de consumo. A primeira década deste século é marcada por um crescimento económico rápido e contínuo bem como pela urbanização acrescida em vários países em desenvolvimento, nomeadamente na China e na Índia. Estes

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dois países representam por si só mais de 40% da população mundial. O poder de compra de centenas de milhões de pessoas tem aumentado, a sua procura de bens alimentares tem aumentado também. Esta nova riqueza provocou uma modificação no regime alimentar, verificando-se a intensificação do consumo de carnes e de produtos lácteos que dependem consideravelmente dos cereais destinados à alimentação do gado. No entanto, o recente aumento do preço dos bens alimentares não parece provir destes países emergentes. As importações de cereais da China e da Índia diminuíram, passando de uma média de cerca de 14 milhões de toneladas no início dos anos 80 para cerca de 6 milhões de toneladas nestes três últimos anos, o que indica que as novas necessidades geradas pela modificação dos modos de consumo estiveram cobertas em grande parte pela produção nacional. O desenvolvimento económico constante da China e da Índia poderia afectar cada vez mais os preços dos bens alimentares, mas isto não constitui ainda um factor excepcional.

Outros factores

Políticas comerciais. Para tentar minimizar os efeitos do aumento dos preços dos bens alimentares nos grupos de população vulneráveis nos seus países, diversos governos e actores do sector privado adoptaram medidas que às vezes acentuaram os efeitos das tendências supracitadas sobre as cotações internacionais dos bens alimentares. A adopção de restrições e de proibições à exportação por certos países diminuiu a oferta mundial, agravou a escassez e reduziu a confiança nos parceiros comerciais. Em certos países, estas medidas tiveram igualmente como efeito a redução dos estímulos que podiam conduzir os agricultores a responderem ao aumento das cotações internacionais. A reconstituição das existências e os pré-armazenamentos especulativos operados por certos grandes importadores, que dispõem de uma tesouraria relativamente sólida, participaram igualmente no aumento dos preços.

Mercados financeiros. As recentes perturbações que agitaram os mercados de activos tradicionais tiveram consequências nos preços dos bens alimentares na medida em que novos tipos de investidores passaram a interessar-se pelos mercados

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dos derivados baseados em produtos agrícolas na esperança de obter melhores rendimentos que os oferecidos nos mercados tradicionais. As actividades bolsistas mundiais sobre os contratos futuros, a prazo, e as opções mais que duplicaram nestes cinco últimos anos. Nos nove primeiros meses de 2007, progrediram 30% em relação ao ano precedente. Estas intensas actividades de especulação nos mercados dos produtos agrícolas conduziram alguns analistas a designar o aumento da especulação como um importante factor responsável pelo aumento dos preços dos bens alimentares. É contudo difícil determinar se é a especulação que faz subir os preços ou se, ao contrário, esta é atraída por preços que aumentam mesmo sem ela. Nos dois casos, as importantes entradas de fundos poderiam em parte explicar a manutenção de preços de bens alimentares elevados e a sua instabilidade acrescida. Outras investigações devem ser efectuadas nesta linha de análise. Os especialistas interrogam-se cada vez mais sobre o papel dos investidores financeiros no aumento dos preços dos alimentos e sobre a necessidade de regulação que limite o impacto das bolhas especulativas nos preços dos bens alimentares (sobre este tema, ver PARTE III, Ponto 3. desta brochura).

Ir-se-ão os preços manter a um nível elevado?

A produção cerealífera inverteu a sua tendência: aumentou de 4,7% em 2007 e deveria aumentar de 2,8% em 2008. No entanto, mesmo que os preços dos bens alimentares pudessem reduzir-se com o recuo de alguns dos factores que estão subjacentes a curto prazo na manutenção dos preços elevados, os preços reais dos bens alimentares deverão, nos 10 próximos anos, continuar a ser superiores aos da década precedente. Três hipóteses principais explicam esta estimativa. Primeiro, o crescimento económico do mundo em desenvolvimento, particularmente as grandes economias emergentes, deveria prosseguir ao ritmo de cerca de 6% ao ano, aumentando tanto o poder de compra como operando a mudança de modos de consumo de centenas de milhões de consumidores. Seguidamente, a procura de biocarburantes poderia prosseguir o seu rápido crescimento, devido aos preços elevados do petróleo e às políticas governamentais e devido também à lenta evolução da adopção generalizada de biocarburantes e de tecnologias de segunda geração.

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De acordo com a Agência Internacional de Energia, a parte dos solos consagrados à cultura de biomassas para a produção de biocarburantes líquidos poderia triplicar durante os vinte próximos anos. Por último, os custos de produção em alta, ligados aos preços elevados do petróleo, que se reflectem nos adubos e nos transportes, aos quais se acrescentam as restrições em matéria de solos e água, poderiam pesar sobre a produção alimentar, o que tornará mais difícil o abastecimento alimentar do planeta.

Preços dos bens alimentares: dos mercados mundiais aos mercados nacionais

A análise das informações por país revela que os preços mundiais, expressos em dólares, só parcialmente se repercutem sobre os preços em moeda nacional. Mesmo antes das subidas de 2008, as cotações mundiais de cereais tinham consideravelmente aumentado entre 2002-07. No decorrer deste período, os preços mundiais do arroz, trigo e milho aumentaram, respectivamente, de 50, 49 e 43%, em dólares. Contudo, a repercussão em moeda nacional foi apenas parcial uma vez que os preços dos mesmos produtos expressos em moeda nacional não aumentaram tanto, como foi o caso do arroz nos países asiáticos.Vários são os factores que contribuíram para reduzir a repercussão dos preços mundiais nos mercados nacionais. O dólar americano depreciou-se deste então relativamente a diversas moedas, e nestas estão também muitas das dos países em desenvolvimento. De 2002 a 2007, os países de fraco rendimento conheceram uma subida real média do valor das suas moedas relativamente ao dólar de 20% enquanto as moedas dos países de elevado rendimento se apreciaram, em termos reais, relativamente à moeda americana em cerca de 18%. Até 2007, a apreciação das moedas nacionais relativamente ao dólar anulou parcialmente a subida dos preços mundiais expressos nesta moeda quer pelo lado das exportações quer pelo lado das importações de bens alimentares. As políticas comerciais e as iniciativas próprias a certos produtos limitaram igualmente as repercussões.As políticas nacionais e a variação das taxas de câmbio atenuaram o impacto da subida das cotações mundiais durante algum tempo, mas finalmente os preços nacionais aumentaram consideravelmente em numerosos países desde o final de 2007 e o início de 2008.

A fome no mundo: estado dos lugares e revisão das estimativas

As estimativas a longo prazo da FAO sobre a subalimentação aos níveis regional e nacional para o período compreendido entre 1990-92 e 2003-05 (a partir da base de dados principal da FAO, FAOSTAT) confirmam que os progressos realizados foram insuficientes para atingir os objectivos da CMA e os OMD relativos à redução da fome, mesmo antes dos efeitos negativos do aumento dos

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preços dos bens alimentares. Por toda a parte no mundo, 848 milhões de pessoas sofriam cronicamente da fome em 2003-05, o período mais recente em que os dados individuais por país estão disponíveis. Este número é ligeiramente mais elevado que os 842 milhões de pessoas subalimentados contadas em 1990-92, período de referência para a CMA e para os OMD.

A grande maioria da população subalimentada do mundo vive nos países em desenvolvimento onde se encontravam 832 milhões de pessoas que sofrem cronicamente da fome em 2003-05. Sete países reúnem, por si só, 65% destas pessoas: a Índia, a China, a República Democrática do Congo, o Bangladesh, a Indonésia, o Paquistão e a Etiópia. Se progressos fossem alcançados em matéria de redução da fome nestes países, onde a população é numerosa, tal facto teria evidentemente importantes repercussões sobre a diminuição geral da fome no mundo. Entre estes países, a China registou progressos significativos a nível da redução da subalimentação, após anos de crescimento económico rápido. É na África subsariana que a proporção de pessoas que sofrem da fome em relação à população total continua a ser mais elevada: uma pessoa em cada três sofre da fome crónica. A América Latina e as Caraíbas continuavam a progredir bem na via da redução da fome antes do aumento espectacular dos preços dos produtos bens alimentares. Esta última região conhece, com a Ásia do Leste, o Médio Oriente e a África do Norte, os níveis mais baixos de subalimentação do mundo em desenvolvimento.

A África subsariana

Entre o início dos anos 90 e 2003-05, a população da África subsariana aumentou de 200 milhões de indivíduos para atingir 700 milhões de habitantes. Este aumento acentuado, conjugado com um desenvolvimento insuficiente de toda a economia e da agricultura em especial, obstruiu os esforços de redução da fome. Apesar de o número total de pessoas subalimentadas na região ter aumentado de 43 milhões, passando de 169 milhões para 212 milhões de pessoas, a África subsariana chegou a fazer alguns progressos reduzindo a proporção de pessoas que sofrem da fome crónica, passando a sua taxa de 34 a 30%. Este aumento do número de

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pessoas que sofrem da fome na África subsariana deve-se, em grande parte, a um só país, a República Democrática do Congo. Perpetuamente agitado por conflitos de grande amplitude, o país viu o seu número de pessoas que sofrem da fome crónica passar de 11 milhões para 43 milhões de indivíduos enquanto a proporção de pessoas subalimentadas aumentava de 29 para 76%. Desde 1990-92, o número de pessoas subalimentadas aumentou igualmente em 25 outros países da região o que deverá por conseguinte transformar-se num desafio de grande dimensão realizar os objectivos de redução da fome da CMA e dos OMD.

Vale a pena, no entanto, precisar que dos vários países que conseguiram reduzir fortemente a parte da sua população subalimentada situam-se igualmente na África subsariana. Trata-se nomeadamente do Gana, Congo, Nigéria, Moçambique e do Malawi. O Gana é o único país que chegou a atingir os objectivos da CMA e dos OMD. O crescimento económico robusto que conheceu o Gana, incluindo no sector agrícola, contribuiu consideravelmente para o sucesso do país. Graças a políticas que permitiram aos produtores atingir lucros mais elevados e a preços do cacau relativamente elevados, o produto interno bruto (PIB) agrícola do país aumentou consideravelmente. Um recente estudo do Banco Mundial revelou que o número de ganenses que retornam à agricultura é duas vezes maior do que número de ganenses que a deixa. Nos 14 países africanos que estão no bom caminho para realizar os OMD (redução para metade da população em situação de fome até 2015), o sector agrícola conheceu um crescimento constante e relativamente rápido, caracterizado por um aumento do valor acrescentado agrícola, da produção alimentar e da produção e do rendimento dos cereais. Este caso contrasta fortemente com a situação dos 14 outros países africanos que não chegaram a reduzir o peso da população subalimentada ou mesmo que o viram crescer desde 1990-92. Nestes países, a produção de bens alimentares diminuiu fortemente, enquanto a progressão do valor acrescentado agrícola atingiu menos de um quarto da taxa obtida pelos países do grupo mais avançado. Convém igualmente notar que entre os que registaram sucessos, contam-se vários países que saíram de décadas de guerras, conflitos, evidenciando isto que a paz e a estabilidade política são essenciais para a redução da fome.

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As Américas Latinas e as Caraíbas

De todas as sub-regiões, a América do Sul foi a que obteve os melhores resultados em matéria de redução da fome com 10 dos 12 países no bom caminho para realizar o primeiro OMD. Com rendimentos nacionais relativamente elevados, um desenvolvimento económico sólido, um bom crescimento da produtividade agrícola, cinco países da América do Sul (Argentina, Chile, Guiana, Peru e Uruguai) chegaram a realizar os objectivos da CMA e os OMD. Contudo, algures na região, os progressos não foram assim tão uniformes. A Costa Rica, a Jamaica e o México juntaram-se a Cuba na lista dos países que chegaram a realizar os objectivos de redução da fome da CMA e os OMD em 2003-05. Mas, por outro lado, El Salvador, Guatemala, Haiti e o Panamá tiveram sempre dificuldades em reduzir a prevalência da fome. Enquanto isto, o Haiti, país sempre confrontado com uma forte instabilidade política e económica, com pobreza e com fome, tem registado uma fraca diminuição da subalimentação desde 1990-92. No entanto, com 58% da população a sofrer da fome crónica, tem um dos níveis de subalimentação mais elevados do mundo.

O Médio Oriente e a África do Norte

Os países do Médio Oriente e da África do Norte são em geral os países em que as taxas de subalimentação são as mais baixas do mundo em desenvolvimento. No entanto, para o Médio Oriente, os conflitos tiveram consequências importantes: o número total de pessoas subalimentadas quase duplicou, passando de 15 milhões em 1990-92 para 28 milhões em 2003-05. Tudo isto se deve em grande parte ao conflito no Afeganistão e no Iraque onde o número de pessoas subalimentadas aumentou respectivamente de 4,9 milhões e 4,1 milhões. O seu número é igualmente mais elevado no Iémen onde uma pessoa em cada três (6,5 milhões de pessoas) sofre da fome crónica. Na África do Norte, a FAO considera que cerca de 3% da população sofreu sempre da fome crónica em 2003-05 (4,6 milhões de pessoas contra ligeiramente mais de 4 milhões em 1990-92). Ainda que a predominância da subalimentação seja em geral fraca no Médio Oriente e na África do Norte, a região deveria reduzir o número de pessoas a sofrer da fome crónica, baixando os 33 milhões em 2003-05 para 10 milhões até 2015 e isto se queremos realizar o objectivo da CMA.

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A Ásia e o Pacífico

A exemplo de outras regiões do mundo, a região Ásia e Pacífico apresenta tantos sucessos como reveses na luta contra a fome. A Ásia registou progressos modestos no que se refere à redução da percentagem de pessoas com fome (de 20 para 16%) e uma redução moderada do número de pessoas que sofrem da fome (de 582 milhões a 542 milhões de pessoas). Contudo, como região é muito povoada e como os progressos são relativamente lentos em matéria de redução da fome, cerca de dois terços das pessoas que sofrem da fome vivem na Ásia. Entre as sub-regiões, a Ásia do Sul e a Ásia central sentiram reveses em matéria de redução da fome enquanto certos países muito povoados registaram progressos (por exemplo, a Índia, a Indonésia e o Paquistão). Um facto positivo deve ser assinalado: a sub-região da Ásia do Sudeste está no bom caminho para chegar ao objectivo de redução da fome dos OMD, ainda que o Vietname seja o único país da região a ter atingido este objectivo em 2003-05. Certos países, como a Tailândia e o Vietname, progrediram mesmo muito bem no sentido do objectivo mais ambicioso da CMA.

A China e a Índia

Devido à sua dimensão, a China e a Índia representam cerca de 42% das pessoas que sofrem da fome crónica no mundo em desenvolvimento. Já que é assim, já que a China e a Índia são determinantes na avaliação da situação geral, é útil analisar os principais factores que estão na origem das tendências da fome nestes países. Após ter registado progressos consideráveis entre o período de referência de 1990-92 e meados dos anos 90, a luta contra a fome marcou passo, na Índia, a partir dos anos 1995-97. Tendo em conta a forte proporção de pessoas subalimentadas durante o período de referência (24%) e o seu importante crescimento demográfico, a Índia está perante uma tarefa extremamente árdua para reduzir o número de pessoas subalimentadas.

O aumento do número de pessoas subalimentadas na Índia pode ser atribuído a um retardar do crescimento, ou mesmo a um ligeiro declínio, das disponibilidades energéticas alimentares per capita desde 1995-97. No plano da procura, a esperança

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de vida na Índia passou de 59 para 63 anos desde 1990-92. Este crescimento teve uma incidência importante na evolução geral da estrutura demográfica a ponto de, em 2003-05, o aumento das necessidades energéticas alimentares mínimas ter excedido o crescimento das disponibilidades energéticas alimentares.

Devido à acção combinada do retardar do crescimento das disponibilidades energéticas alimentares per capita e do aumento das necessidades energéticas alimentares mínimas, a Índia contava, em 2003-05, com 24 milhões de pessoas subalimentadas a mais do que em 1990-92. O aumento das necessidades alimentares da população em envelhecimento representa cerca de 6,5 milhões de toneladas por ano em equivalente de cereais. No entanto, a predominância da fome na Índia diminuiu de 24% em 1990-92 para 21% em 2003-05, constituindo um progresso para a realização do objectivo de redução da fome dos OMD.

Progresso e malogros por país

Já que o número de pessoas que sofre da fome crónica no mundo em 2003-05 permaneceu a um nível equivalente ao de 1990-92 e que aumenta rapidamente devido ao aumento dos preços dos bens alimentares, o objectivo da CMA de reduzir para metade este número até 2015, parece doravante mais difícil de atingir. Apenas um terço dos países em desenvolvimento incluído nas estimativas da FAO chegou a reduzir o número de pessoas subalimentado depois de 1990-92. Entre estes, somente 25 estavam em 2003-05 no bom caminho para realizar o objectivo da CMA, antes do aumento dos preços dos bens alimentares. O desafio da luta contra a fome será particularmente difícil de vencer se os preços dos bens alimentares continuarem a ser elevados.

Zonas sensíveis e crises

Os objectivos da CMA e dos OMD são o de “reduzir para metade a fome” até 2015. A CMA preconizava reduzir o número de pessoas que sofrem da fome de 50% até de 2015, enquanto adoptando o primeiro dos OMD, os países comprometeram-se “a reduzir a proporção de pessoas que sofrem da fome entre 1990 e 2015”.

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As tendências de longo prazo da subalimentação destacam a predominância marcada da fome crónica em países que sofreram crises alimentares durante anos consecutivos. As crises alimentares podem aparecer em qualquer momento e por toda a parte no mundo devido a más condições meteorológicas, a catástrofes naturais, a crises económicas, a conflitos ou a uma combinação destes factores. Para apoiar medidas correctivas e intervenções rápidas destinadas a prevenir qualquer deterioração da situação da segurança alimentar nos países atingidos, o sistema mundial de informação e de alerta rápida sobre a alimentação e a agricultura (SMIAR) da FAO supervisiona continuamente a situação em todos os continentes e actualiza uma lista de países em crise. Numerosos países dentro desta lista desde há muito tempo ou que aí aparecem frequentes vezes são considerados como “zonas sensíveis”, ou seja, como regiões onde um número considerável de pessoas sofre gravemente da fome e da desnutrição, regular ou recorrentemente. O mapa abaixo representa os países em crise que têm necessidade de uma ajuda externa (33 países em Agosto de 2008).

Países confrontados com crises alimentares

Nota: Agosto de 2008.

Fonte: FAO.

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É essencial efectuar uma análise retrospectiva da natureza e das causas subjacentes das crises passadas e em curso para determinar as intervenções de emergência e as medidas adequadas a desenvolver nas zonas sensíveis. Este tipo de análise estabelece uma base para avaliar o impacto do aumento dos preços dos produtos agrícolas, dos bens alimentares e dos combustíveis em países que já estão em crise (e em muitos outros fortemente vulneráveis a estes choques). Como é difícil prever as consequências do aumento dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis em países, nas famílias e nos indivíduos do mundo inteiro, a distinção entre países “em crise” e países “de risco” torna-se mais fluida, o que complica singularmente as actividades de vigilância e o lançamento em tempo útil de um alerta rápido adequado relativamente a crises alimentares iminentes.

Tendências das crises

Em 2007, um número recorde de países (47) foi confrontado com crises que exigem uma ajuda de emergência: vinte e sete países de África, dez da Ásia e dez outros repartidos noutras regiões do mundo. No período de 1993-2000, 15 países africanos em média foram confrontados, cada ano, com crises alimentares. Desde 2001, este número passou para quase 25 países. Após terem sido confrontados com uma grave insegurança alimentar durante uma estação, muitos dos países permaneceram na lista dos países em crise durante vários anos devido aos efeitos persistentes da seca e/ou de um conflito ou de uma fraca capacidade de resiliência. Outros aparecem nesta lista apenas ocasionalmente e, nestes casos, impõe-se uma vigilância atenta.

No decorrer dos últimos vinte anos, um número crescente de países foi confrontado com crises alimentares, cujas causas subjacentes se tornaram mais complexas. Em numerosos casos, as catástrofes causadas de origem humana vieram acrescentar-se às catástrofes naturais, e terminando em crises longas e complexas. Noutros casos, as crises devidas à intervenção humana foram agravadas por catástrofes naturais. Estas últimas têm sido as principais causas da insegurança alimentar até ao início dos anos 90; desde há 10 anos, as crises de origem humana aumentam de importância.

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Catástrofes naturais

As catástrofes naturais podem ser classificadas conforme ocorrem “lentamente” (por exemplo, uma seca ou vaga de secas) ou “de repente” (por exemplo, inundações, ciclones, furacões, tremores de terra e erupções vulcânicas). Ainda que a proporção de catástrofes naturais tenha diminuído geralmente com o tempo, as informações do SMIAR da FAO indicam que as catástrofes ocorridas de repente, sobretudo as inundações, aumentaram: representavam 14% de todas as catástrofes naturais nos anos 80, passaram a 20% nos anos 90 e a 27% desde 2000. Por toda a parte no mundo, a frequência das inundações aumentou: de cerca de 50 inundações por ano em meados dos anos 80, chega-se a mais de 200 inundações nos nossos dias. Em contrapartida, houve um retrocesso das crises alimentares causadas por catástrofes naturais ocorridas lentamente. As catástrofes que aparecem de repente deixam claramente menos tempo para a planificação e para a intervenção do que as que ocorrem mais lentamente. O seu aumento tem assim importantes implicações nas medidas de atenuação e de mobilização dos meios necessários para se prepararem as urgências e as intervenções para se salvarem vidas e se protegerem os meios de existência.

Factores socioeconómicos

As crises de natureza humana podem ser divididas em duas categorias: as crises que decorrem de guerras ou conflitos e aquelas que são provocados por choques socioeconómicos. Estes podem provir de factores internos – políticas económicas e sociais incorrectas, diferendos ligados à propriedade fundiária ou à deterioração da saúde pública – ou de factores externos. Entre as causas externas possíveis, está o afundamento dos preços dos produtos exportados por um país, provocando uma baixa das receitas de exportação ou um forte aumento dos preços dos bens alimentares importados (como foi o caso nestes dois últimos anos). A parte relativa das crises alimentares geradas por factores socioeconómicos aumentou nestes últimos trinta anos, passando de 2% nos anos 80 para 11% nos anos 90 e a 27% desde 2000. Ainda que a proporção relativa dos países que sofrem crises alimentares provocadas por guerras e conflitos tivesse diminuído, o número absoluto de crises

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deste tipo aumentou durante o mesmo período, provocando numerosas perdas de vidas humanas, destruições de bens e deslocações de populações.

Novas dimensões da vulnerabilidade

Os preços elevados dos bens alimentares atingiram todos os países, de uma maneira ou outra, mas tiveram consequências mais graves nos países que conhecem um défice estrutural da produção alimentar, onde os rendimentos são fracos e onde a maior parte das famílias gasta uma parte importante do seu orçamento para adquirirem alimentos. Muitos destes países tem já taxas elevadas de subalimentação e a maior parte de entre eles pertencem à categoria “dos países com rendimentos modestos e com défice alimentar”, estabelecida pela FAO nos anos 70, na sequência de uma crise alimentar mundial. Em 2008, 82 destes países deveriam gastar cerca de 169 mil milhões de dólares com as suas importações alimentares, contra 121 mil milhões em 2007, ou seja, um aumento de 40%. As suas importações de cereais de base conheceram um aumento ainda mais forte, dado que atingiram 50%. Nos finais de 2008, a factura das importações de bens alimentares dos países com rendimentos modestos e com défice alimentar poderá ser quatro vezes mais elevada que em 2000, representando uma carga enorme para estes países.

Como grupo, os países com rendimentos modestos e com défice alimentar gastam muito mais em bens alimentares básicos importados, mas existem importantes diferenças entre os países e entre as populações. Estas diferenças dependem de numerosos factores: grau de dependência a respeito das importações, modos de consumo alimentar, grau de urbanização, incidência das cotações internacionais nos preços no consumidor e na produção dos produtos básicos (grau de repercussão dos preços), variação das taxas de câmbio reais e eficácia das medidas adoptadas pelos governos para fazer face à crise. Por exemplo, entre os países que importam a maior parte de produtos petrolíferos e cerealíferos de que têm necessidade e que têm igualmente taxas elevadas de subalimentação, encontra-se a Eritreia, Haiti, Libéria, Níger, Serra Leoa e o Tajiquistão. A maior parte de entre eles situa-se na África subsariana e muitos constam já da lista dos países em crise, estabelecida pelo SMIAR.

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Implicações para os investimentos

Os países doadores e as agências de desenvolvimento, conscientes da necessidade de definir as prioridades em matéria de ajuda de emergência e quanto a decisões de investimento no contexto da crise alimentar mundial actual, desejam obter listas de países considerados “de risco”. Recentemente, a FAO analisou os principais factores que determinam o grau de vulnerabilidade dos países em relação aos preços elevados dos bens alimentares. Para o efeito, examinou em que medida os países são importadores nítidos de energia e de cereais (após ponderação da proporção de cereais na contribuição energética alimentar) e quais são os níveis relativos de pobreza e de subalimentação nestes países. Para além dos países já em crise e que têm necessidade de uma ajuda externa, numerosos foram ainda os países atingidos seriamente pelo aumento dos preços das mercadorias, sobretudo os da energia e os dos bens alimentares básicos.

Países para os quais um aumento dos preços dos bens alimentares pode agravar a insegurança alimentar

Em crise alimentar

República do Centro AfricanoRepública Democrática do CongoCosta do MarfimEritreiaEtiópiaGuinéGuiné-BissauHaitiQuéniaLesotoLibériaSerra LeoaSomáliaSuazilândiaTajiquistãoTimor-LesteZimbabwe

Em risco elevado

CamarõesComoresDjibutiGâmbiaMadagáscarMongóliaMoçambiqueNicaráguaNígerTerritório palestiniano OcupadoRuandaSenegalIlhas SalomãoTogoRepública Unida da TanzâniaIémenZâmbia

Fonte: FAO

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É importante notar que certos países que não constam hoje da lista poderão bem conhecer uma crise alimentar num futuro próximo, nomeadamente devido a uma catástrofe natural brusca, a perturbações civis, a uma crise financeira ou a uma combinação de factores. O Bangladesh é um destes países: figura sempre na lista do SMIAR da FAO como país que conhece “uma insegurança alimentar grave localizada” na sequência de inundações e da passagem do ciclone Sydr no fim de 2007, mas tem-se notado sinais evidentes de melhoria da segurança alimentar. O Bangladesh consta igualmente da lista dos países seriamente tocados pelos preços elevados dos bens alimentares que devem ser objecto de uma vigilância estreita e constante da situação. Noutros casos, o aumento dos preços dos bens alimentares em certos países é influenciado fortemente pela situação nos países limítrofes, como é o caso dos preços do trigo no Paquistão.

Repercussões sobre os alertas rápidos

Já que a situação alimentar mundial é muito dinâmica, o SMIAR teve que rever o conceito “de países em crise com necessidade de uma ajuda externa”. Para além das crises provocadas por acontecimentos naturais e choques económicos ocasionais, as pesadas repercussões do aumento dos preços dos bens alimentares vão fazer cair certos países que estão já em crise numa situação ainda mais precária ou vão agravar a situação de outros países, que poderiam tornar-se, eles também, países em crise. O SMIAR supervisiona a produção alimentar, tem em dia os desequilíbrios entre a oferta e a procura a nível nacional e produz agregados a nível mundial. Além disso, supervisiona e analisa os mercados mundiais e as trocas dos produtos básicos (incluindo os preços dos bens alimentares), redige relatórios regulares a este respeito e elabora igualmente as perspectivas gerais da alimentação. Para melhorar as suas funções, fornecendo pareceres e assistência técnica aos países para ajudá-los a fazer face ao aumento dos preços dos bens alimentares, o SMIAR reforçou as suas capacidades de recolha e análise dos dados em três grandes domínios:

– a vigilância dos preços mercadoria/produtos alimentares aos níveis internacional e nacional, incluindo o escalão infranacional;

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– a vigilância das medidas adoptadas pelos países para fazer face ao aumento dos preços dos bens alimentares;

– a análise das repercussões do aumento dos preços dos alimentos sobre as famílias, em meio urbano e rural, tomando em consideração as variáveis mencionadas acima. O SMIAR tem o mundo a par da evolução da situação, tomando constantemente o pulso da situação alimentar mundial em constante mutação e ao supervisionar os numerosos factores de risco que expõem os países a uma deterioração súbita da sua segurança alimentar.

Excertos de FAO, L’état de l’insécurité alimentaire dans le monde 2008,

disponível em http://www.fao.org/docrep/011/i0291f/i0291f00.htm.

2.2. A CRISE ALIMENTAR E A INDÚSTRIA AGRO-ALIMENTAR

Numa altura em que em várias partes do mundo há manifestações violentas, a grande agricultura está a lidar com um desafio diferente: os enormes lucros.

Na terça-feira, o gigante da indústria transformadora de cereais Archer-Daniels-Midland Co. disse que os seus lucros fiscais do terceiro trimestre aumentaram 42%, incluindo um aumento para o séptuplo do rendimento líquido da sua unidade industrial que armazena, transporta e comercializa cereais, tais como o trigo, o milho, assim como os grãos de soja. Monsanto Co., o fabricante das sementes e dos herbicidas, Deere & Co., que constrói tractores, máquinas ceifeiras-debuladoras e Mosaic Co., produtor dos fertilizantes, todos relataram o mesmo tipo de resultados nos trimestres anteriores. Os enormes lucros estão a surgir contra o contexto de uma crise alimentar que alguns peritos dizem ser a pior nestas três décadas. O Secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, apelou para a criação de um grupo de trabalho global de alto nível para tratar do impacto em cascata dos preços elevados dos cereais e do petróleo. Disse ainda que os países devem fazer mais para evitar o “mal-estar social numa escala até agora nunca vista” e que devem contribuir com dinheiro para compensar o

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défice de 755 milhões de dólares no financiamento do Programa Alimentar Mundial Alimentar, que alimenta o mundo com fome.

O Presidente Bush disse aos repórteres, na terça-feira, que “está profundamente preocupado com a situação das pessoas que, no estrangeiro, não têm comida”, e todos os três candidatos às presidenciais têm referido recentemente que os elevados preços dos bens alimentares e da energia lhes causa muita preocupação. O senador John McCain (do Arizona), candidato republicano, disse que apoia a eliminação dos subsídios de 51 cêntimos por galão (= 3,785 litros) de álcool etílico e da tarifa de 54 cêntimos por galão na importação do mesmo produto, ideias estas detestadas por agricultores e também por muitos políticos. As causas visíveis da crise entroncam num forte acréscimo da procura de bens alimentares nos países em vias de desenvolvimento, mas com crescimento rápido (como a China e a Índia), nos baixos níveis de armazenagem de cereais devido ao mau tempo, nos preços elevados do combustível e na quantidade crescente de terra usada para colheitas destinadas à obtenção de álcool etílico e outros combustíveis biológicos, em vez de serem utilizadas na produção de alimentos.

As grandes empresas que trabalham no ramo agro-alimentar dizem que não são as responsáveis pelos preços crescentes e estão empenhadas em encontrar uma solução. Dizem-nos que os grandes lucros podem ser usados para desenvolver as novas tecnologias que ajudarão em última instância os agricultores a melhorar a produtividade. Monsanto diz que está a projectar sementes geneticamente modificadas e melhoradas que podem dar ainda mais rendimento por cada acre semeado, enquanto a ADM, grande processador de cereais, disse estar a investir nas ferramentas que podem reduzir os estrangulamentos da oferta. “Talvez a pergunta não deva ser, “está então a fazer dinheiro?” mas sim, “o que está a fazer com o dinheiro que anda a ganhar?”, diz Victoria Podesta, vice-presidente de departamento de relações públicas da ADM.

Alguns observadores pensam que a especulação financeira contribuiu para a subida dos preços dos cereais quando os investidores ricos inundaram, no ano passado, os mercados de futuros dos bens agrícolas à procura de melhores rentabilidade. O total de

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investimento em fundos de índice em milho, soja, trigo, gado e porcos aumentou mais de 47 mil milhões de dólares, para além dos 10 mil milhões em 2006, de acordo com AgResource Co., uma empresa de investigação sobre a agricultura sediada em Chicago. A Commodity Futures Trading Commission realizou uma audição na semana passada em Washington para examinar se os fundos de índice e outros especuladores tiveram algum papel e se estavam a ser responsáveis pela subida dos preços das mercadorias negociadas em bolsa.

A cadeia alimentar

Nem todas as empresas agro-alimentares estão a beneficiar com a situação. As companhias que trabalham mais directamente com os agricultores estão a ganhar muito mais com os preços mais elevados dos bens alimentares, incluindo os cereais, enquanto as empresas mais distanciadas na cadeia alimentar, como a Tyson Foods e a Piligrim’s Pride Corp., sentem-se em dificuldades porque tiveram problemas em conseguir transferir os aumentos para os consumidores. A Tyson Springdale, Ark., informou na segunda-feira passada que teve 5 milhões de dólares de perdas no anterior trimestre devido aos preços mais elevados dos cereais com que alimentam as suas galinhas. Um pouco antes de se saber desta posição, a Pilgrim’s Pride, Pittsburg, Texas, anunciou os seus planos de redução semanal do processamento de frangos em 5% como reacção aos custos mais elevados dos cereais. “Qualquer um que esteja mais a montante na cadeia alimentar está a ganhar”, diz Ann Gilpin, uma analista de Morningstar. “Eu não penso que isto esteja para durar muito mais tempo, mas há alguns ventos de contra corrente significativos para fazer com que isto persista por um par de anos.”

Entusiasmados com o facto de terem tido muito mais rendimento do que nos anos anteriores, e ansiosos para se aproveitarem dos preços mais elevados que já viram desde há anos, os agricultores de cereais estão a pagar mais dinheiro pelas sementes, pelos fertilizantes e pelo funcionamento da exploração agrícola. Isso traduziu-se por elevados rendimento adicionais e por aumentos consideráveis nos lucros das empresas que vendem estes produtos. A procura global crescente dos bens alimentares foi um benefício para as companhias que compram, processam e transportam cereais.

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A empresa Monsanto viu os seus lucros no último trimestre a crescerem para mais do dobro. Os rivais Du Pont Co. e Syngenta AG subiram recentemente as suas estimativas de lucros. A empresa Deere publicou uma subida de 55% nos seus resultados no último trimestre do ano anterior. O rendimento líquido no terceiro trimestre da Mosaic terá sido aproximadamente multiplicado por doze relativamente ao período anterior. Os rivais principais de ADM estão a arrecadar também eles grandes lucros, demasiado, diremos. Os lucros da Cargill Inc. aumentaram de 86%, para um milhar de milhão no último trimestre. Os rendimentos da Bunge Ltd. cresceram cerca de 20 vezes para atingirem 289 milhões de dólares. Bunge vende fertilizantes para além de processamento e armazenagem de cereais.

A analista do Morningstar, Gilpin, disse que algumas companhias estão a usufruir de repentinas margens de lucro em determinados produtos para a indústria do agro-alimentar neste “novo bravo mundo dos preços das matérias-primas” em parte por causa de terem detectado uma redução de stocks a nível global em dados produtos, como a soja, por exemplo. Numa conversa telefónica com os responsáveis de Bunge em Fevereiro, Gilpin diz que lhe foi afirmado que “as empresas de produtos alimentares estão cheias de medo quanto às suas fontes de abastecimento”, Bunge pode cobrar o que quer no óleo de soja. O encarregado das relações públicas da Bunge diz que “a quantidade que a Bunge paga aos agricultores pelas colheitas e a quantidade que recebemos ao vender os produtos aos clientes estão associados aos preços prevalecentes de mercado, que são diariamente ajustados nos mercados de futuros e em outros mercados.” Diz ainda que estes preços subiram “enquanto o mundo entrou num período de um maior ajuste entre a oferta e a procura.”

Alimento contra o combustível

A venda de cereais da Archer-Daniels-Midland e a sua indústria de transformação constituíam a melhor expressão quanto a grandes aumentos de resultados no último trimestre, terminado a 31 de Março. Os lucros de exploração subiram de 46 milhões de dólares, no ano anterior, para 366 milhões. O negócio do pão e manteiga da ADM está à procura de cereais nos agricultores e está a vendê-los para a cadeia alimentar ou

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então a processá-los numa miríade de outros inumeráveis produtos tais como o xarope de alto teor em frutose ou álcool etílico ou ainda embalando-os nas barcas e nos navios para ser transportado e vendidos para além mar.

Patricia Woertz, Presidente Executiva (CEO) da empresa, disse lamentar que os consumidores estejam a pagar mais caro pelos bens alimentares, mas considera que a culpa é do elevado preço da gasolina que faz subir fortemente os custos do transporte dos bens alimentares, bem mais do que o uso das colheitas para combustíveis biológicos, o mesmo é dizer que o debate entre alimentação contra combustível é “errado.” Numa videoconferência, com analistas, Woertz respondeu à sugestão que a política dos Estados Unidos de incentivar a produção de álcool etílico deve ser reconsiderada, que o “recuo dos combustíveis biológicos é errado, é insensato,” disse ela. A ADM é um dos maiores produtores de álcool etílico da nação. As acções da ADM caíram 3,9% na terça-feira para 45,58 dólares. Na Bolsa de Nova Iorque, sugerindo que os investidores pudessem estar preocupados com a ideia de que os subsídios sobre o álcool etílico estão debaixo de fogo. “Muitos dos investidores com quem nós falamos parecem estar a sentirem-se inquietos quanto á afectação do seu capital num modelo comercial que confia em subsídios do Estado, mesmo que pequenos”, escreveu o analista Robert Moskow de Credit Suisse numa nota aos investidores.

A colheita dos rendimentos: As empresas agro-industriais estão a obter lucros mais elevados

Resultados, em milhões

Fonte: Chicago Board of Trade.

Preços dos bens

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O presidente da Cargill e seu CEO, Greg Page, disse ainda muito recentemente que “as dimensões da mudança na agricultura global estão a ser espectaculares” e que a empresa de Minneapolis está a fazer “um trabalho excepcional em que mede e avalia o risco do preço.” Disse que os stocks de cereais do mundo estão ao seu mais baixo nível desde há 35 anos. A subida dos ingredientes para a indústria agro-alimentar têm prejudicado algumas empresas de embalagem de alimentos, por exemplo.

Os lucros de Kraft Food’s Inc. caíram cerca de 6% no quarto trimestre do ano passado devido aos custos elevados na produção de leite, o que atingiu a produção de queijo. Outras empresas de produtos alimentares reajustaram-se melhor, cortando nos custos e fazendo cobertura das suas compras de mercadorias nos mercados de futuros, transferindo os aumentos de preços para os consumidores e impulsionando o mercado. A General Mills Inc. subiu recentemente a sua previsão de lucros para 2008 e em Março, este fabricante sediado em Minneapolis, informou que o lucro fiscal do terceiro trimestre tinha aumentado 60% relativamente ao correspondente trimestre do ano anterior.

Transferir os Custos

A Unilever, gigante consumidora de produtos, foi particularmente assolada por aumentos nos preços dos óleos vegetais, tais como o óleo de palma, que utiliza na produção de margarina e de sabão. Esta empresa está a transferir os custos derivados da subida das matérias-primas para os consumidores. “Nós transferimos de forma decisiva os aumentos dos custos através de muitas categorias de produtos e de mercados”, disse o Director Financeiro Jim Lawrence numa conferência com analistas financeiros em Fevereiro. Na Europa, a Nestlé SA e o Groupe Danone SA dois dos maiores fabricantes do mundo de produtos alimentares, passaram, também eles, através de preços mais elevados aos consumidores, o aumento dos custos de matérias-primas e, aparentemente, quase sem nenhum impacto em termos de lucros. A Nestlé aumentou os seus preços por grosso, para todos seus produtos, em 5,3% de média.

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Evolução dos cereais

Empresas ganhadoras

Empresas ActividadeResultados do último trimestre(milhões de dólares)

Variação anual(%)

Final do trimestre

ADM Transformadora de cereais 517 42 31 de Março

Bunge Transformadora de cereais 289 1,964 31 de Março

Cargill Transformadora de cereais 1030 86 29 de Fevereiro

Deere Maquinaria agrícola 369,1 55 31 de Janeiro

Monsanto Sementes, herbicidas 1130 108 29 de Fevereiro

Mosaic Fertilizantes 520,8 1,138 29 de Fevereiro

Empresas perdedoras

Empresas ActividadeResultados do último trimestre(milhões de dólares)

Variação anual(%)

Final do trimestre

Tyson Foods Pecuária - 5 Tendência para perdas 29 de Março

Smithfield Pecuária 54,6 10 27 de Janeiro

Pilgrim’s Pride Pecuária -32,3 Prejuízos ampliados 29 de Dezembro

Dean Foods Produtos lácteos 32,6 55 31 de Dezembro

Kraft Foods Transformação de bens alimentares 585 6 31 de

Dezembro

Herschey Chocolate e bombons 63,2 32 30 de Março

Fonte: as empresas.

Como muitas companhias europeias, a Nestlé não publica os seus resultados, os seus lucros, do primeiro trimestre. Mas, as vendas aumentaram 6%, ou seja, 25,7 mil milhões de francos suíços (24,84 mil milhões de dólares) no final do quarto trimestre relativamente a igual período do ano anterior. Descontando o efeito da alteração do valor da moeda, de aquisições e de desinvestimentos, as vendas

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aumentaram de 9,8% – um grande salto para uma empresa tão grande. “Este é um resultado sem qualquer precedente”, diz-nos o responsável pelas relações públicas com os investidores da Nestlé, Roddy Villiers, numa conferência com analistas financeiros. A Nestlé diz que aumentará a margem de lucro este ano, um sinal claro que pode transferir os custos mais elevados para os consumidores. Os produtos da Nestlé começam a níveis relativamente baratos, com um preço médio por produto à volta de 2 dólares. Muitos consumidores não reparam sequer que estes produtos estão a ficar mais caros. As subidas dos preços reduziram a quantidade de leite, de iogurte e de outros produtos lácteos frescos vendidos pela Danone no primeiro trimestre, mas a companhia diz que o rendimento ainda cresceu. A empresa, com sede em Paris, diz que produz um quinto dos produtos lácteos frescos do mundo. Os custos mais elevados das matérias-primas tornaram mais caro a criação das vacas assim como a sus produção de leite, subindo os preços do leite no produtor.

Nos Estados Unidos, os consumidores estão a ficar apertados por dois males, pela economia que não cresce e obrigados a lutar contra custos mais elevados dos combustíveis e dos bens alimentares. Com a inflação dos bens alimentares a atingir os 5%, o nível mais elevado desde 1990, alguns legisladores estão a considerar a necessidade de agir. O Senador Charles Schumer programou uma audição no congresso para examinar como é que os preços dos bens alimentares elevados estão a afectar as famílias dos Estados Unidos e para explorar soluções possíveis. Em alguns Estados da Federação está a crescer a ideia de que a produção do álcool etílico está a fazer subir os preços dos alimentos. Os legisladores de Missouri estão a ponderar a ideia de revogarem uma lei que incentiva a produção do álcool etílico, enquanto no Texas o Governador Rick Perry está a pedir a suspensão parcial de um mandato federal que exige às empresas petrolíferas do país que misturarem 15 biliões de galões de combustíveis biológicos produzidos a partir do milho na gasolina vendida nos Estados Unidos até 2015. Isso está bem acima dos nove biliões de galões hoje. A proposta de Perry está ser aplaudida pela Tyson e pela Pilgrim Pride.

David Kesmodel, Lauren Etter, Aaron O. Patrick, “Os lucros das grandes empresas de cereais disparam

enquanto a crise alimentar global aumenta”, Wall Street Journal, 30 de Abril de 2008,

disponível em http://www.globalpolicy.org:80/socecon/hunger/economy/2008/0430profitssoar.htm.

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3. AS CONSEQUÊNCIAS A LONGO PRAZO DA FOME,

SEGUNDO O BANCO MUNDIAL

Principais mensagens

Ainda que tenha sido moderada a subida global dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis nos últimos meses, os preços internos continuam muito mais elevados do que nos anos anteriores e mostram poucos sinais de descida. Os preços mais elevados atiraram muito mais pessoas para a situação de pobreza, embora o aumento no número de pobres seja somente uma parte dos custos emergentes da crise. A consequência mais profunda está no impacto da subida dos preços nos agregados familiares que eram já pobres. Para todos aqueles que já tinham dificuldade em conseguir alimentar-se com os mínimos diários de nutrição, o duplo impacto da subida dos preços dos bens alimentares e do preço dos combustíveis representam uma ameaça às condições básicas de sobrevivência. Os agregados familiares mais pobres estão a reduzir a quantidade e/ou a qualidade da alimentação, da educação e dos serviços básicos que consomem, com danos irreparáveis para a saúde e educação de milhões de crianças.– Os efeitos da subida dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis na má nutrição e na educação podem destruir anos de progresso nos Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento das Nações Unidas. A má nutrição precoce, apesar de ultrapassável, tem custos irreversíveis, porque as crianças subnutridas dificilmente se tornam adultos saudáveis. As estimativas apontam para que o número total de pessoas subnutridas no mundo inteiro possa aumentar em 44 milhões, só no ano de 2008, atingindo 967 milhões, bem acima dos 848 milhões de 2003. É uma perda trágica de seres humanos e de potencial económico. As populações não saudáveis, menos produtivas, são menos capazes de gerar o nível de crescimento necessário para viverem eles próprios e para tirarem o respectivo país da situação de pobreza. Estima-se que a insuficiência em ferro, só por si, pode causar um prejuízo médio de aproximadamente 0,6% do PIB nos países em vias de desenvolvimento. Os progressos na educação estão igualmente em regressão: é cada vez mais evidente que, devido à situação de crise, as crianças pobres abandonam a escola e as famílias reduzem as despesas de educação.– Uma intervenção eficaz de protecção social e alimentar pode proteger os mais vulneráveis das consequências devastadoras da privação de alimentação, da ausência de recursos e da contenção de despesas na educação e na saúde. As respostas de âmbito político precisam de equilibrar as considerações de política económica e fazer com que as medidas incidam e ajudem uma larga faixa da população afectada, face à urgência de proteger os muitos pobres. Isto exige que se dê maior atenção ao escalonamento das intervenções dirigidas aos mais pobres. As intervenções prioritárias dirigidas sobretudo aos mais carentes, usando-se indicadores rápidos e práticos de pobreza, deveriam, nomeadamente: (i) aumentar os níveis dos benefícios sociais e alargar a cobertura de dos sistemas de transferências sociais directas; (ii) centrar as intervenções no domínio alimentar sobretudo nas crianças e nas mulheres grávidas; (iii) expandir, nos programa de distribuição alimentar, as prestações em géneros, incluindo os encargos com a escola e alimentos fortemente calóricos; (iv) instituir isenções fiscais, linhas de socorro de vida e outras formas de apoios para utilizadores/consumidores pobres relativamente a produtos alimentares básicos e energia; (v) introdução de medidas adicionais para impedir que as crianças abandonem as escolas, como sejam isenções fiscais, subsídios para matrículas escolares ou transferências sociais directas.

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– Paralelamente a estas acções de curto prazo, os Estados devem actuar no médio prazo na estruturação de um sistema social mais robusto, mais consistente e mais abrangente. Investindo em melhores redes de segurança, proteger-se-ão os pobres das piores consequências da subida dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis e aumentará o leque de opções dos governos para lidar com crises futuras, independentemente da natureza das suas causas (financeiras, catástrofes naturais). Definir prioridades nas despesas públicas será essencial para identificar as despesas menos prioritárias e criar o espaço de manobra fiscal necessário para realizar programas eficazes de protecção social. Há igualmente necessidade de criar um escalonamento para os investimentos globais em alimentação, que têm sofrido um declínio gradual, e de criar sistemas de vigilância e controlo dos recursos alimentares a nível nacional, essencial na melhor utilização dos recursos em termos de custo-benefício.– A Comunidade para o Desenvolvimento tem como responsabilidade actuar rápida e incisivamente face à ameaça global que recai sobre o capital humano dos pobres. Os custos da resposta à crise para a Comunidade para o Desenvolvimento e para as finanças públicas são muito menores do que os custos potenciais relativos aos milhões de crianças mais subalimentados e de pobre nível escolar. Os países em vias de desenvolvimento devem investir em sistemas eficazes de nutrição e de protecção social, como uma prioridade do desenvolvimento. Os países industriais e a Comunidade para o Desenvolvimento devem ajudar a mobilizar os recursos financeiros e técnicos necessários para apoiar estes esforços.

3.1. A SUBIDA DOS PREÇOS DOS BENS ALIMENTARES

E DOS COMBUSTÍVEIS - ANALISANDO OS RISCOS

PARA AS GERAÇÕES FUTURAS

Introdução

A moderação da subida dos preços dos bens alimentares nos últimos meses a nível global é de fraca consolação para os milhões de pessoas que ainda enfrentam preços nacionais elevados e para os que ainda têm de reduzir as despesas de alimentação e de educação dos filhos.

Os elevados preços dos alimentos levam mais pessoas à situação de pobreza, mas os impactos a longo prazo, os mais sérios, podem vir do impacto naqueles que já eram pobres. As margens muito ténues entre os rendimentos e as despesas diárias obrigam os agregados familiares a comerem menos, a optarem por cereais de menor qualidade nutritiva e mais baratos e, também, a reduzir as despesas em tudo o que

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não é alimentação, como em educação. Estes sacrifícios podem conduzir a danos irreparáveis para a saúde e para os níveis de formação escolar de milhões de pessoas pobres no mundo inteiro. Esta é não somente uma crise de agora, mas também uma bomba-relógio para o futuro, representando uma perda em potencial humano e económico para os povos.

Assegurar a segurança alimentar face à subida dos preços dos alimentos exige uma combinação de redes de segurança eficazes e a melhoria da produtividade na agricultura. Os ajustamentos necessários para fazer face aos preços de combustíveis mais elevados exigem também redes de segurança eficazes e, para além disso, uma combinação do uso eficiente da energia e da diversificação energética relativamente aos combustíveis fósseis tradicionais. O presente trabalho centra-se nas redes de segurança necessárias para minimizar os custos da crise actual para as gerações actuais e futuras, não só através de transferências directas de rendimentos, mas também, o que é importante, com reforço da saúde e da alimentação básicas, com a disponibilização de serviços de educação de qualidade e com medidas para assegurarem que os pobres tenham acesso a estes serviços. Estabelecer estas redes de segurança reduzirá igualmente a vulnerabilidade dos agregados familiares pobres face aos choques futuros, tais como os que decorrem de tormentas climatéricas ou com turbulências na economia global.

As tendências dos preços dos produtos alimentares e dos combustíveis

Embora os preços dos combustíveis e dos alimentos tenham começado a descer dos valores máximos atingidos no passado recente, ainda permanecem elevados em termos de médio prazo. Houve um conjunto de factores que levou ao forte aumento dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis nos 12-18 meses anteriores. Os mercados do petróleo registaram fortes aumentos dos preços devido à pressão da procura, agravados por uma resposta lenta da oferta, levando à redução das reservas até ao seu ponto mais baixo e à pressão da procura sobre a oferta. As taxas de juro reais entraram em queda e, com a depreciação do dólar, ambos os factores contribuíram para a subida dos preços. O preço do crude, que atingiu 147 dólares o barril, em Julho de 2008, baixou cerca de 30%, em Setembro de 2008, mas permanece ainda temporariamente alto.

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Além disso, o preço do crude, em termos reais, está a mais do dobro do pico atingido na crise de petróleo dos anos 70. Os preços dos bens alimentares foram impulsionados por uma conjugação dos custos dos combustíveis, do aumento da produção de combustíveis biológicos e, ainda, de condições meteorológicas desfavoráveis, com restrições comerciais, que impulsionaram a subida dos preços dos principais cereais. Os preços dos principais cereais caíram, nestes últimos meses, como o preço do arroz Thai, que desceu de um pico de 1 100 dólares/ton., em Maio de 2008, para 730 dólares/ton., em Setembro. Não obstante, o preço do arroz permanece ao dobro do seu nível médio de 2007, e as projecções dos preços, relativos à maioria das colheitas dos principais dos bens alimentares, indicam que permanecerão até 2015 bem acima dos níveis de 2004.

Estas tendências dos preços nos mercados globais impulsionaram os preços a nível nacional em muitos países. A inflação média nos países de fora da OCDE subiu de 5%, em 2006, para 8,1%, em 2008. A inflação aumentou mais de 5 pontos percentuais em, pelo menos, 21 países, incluindo muitos exportadores de petróleo, com impactos muito significativos dos preços dos bens alimentares na inflação doméstica, ao longo do ano passado, em países como o Quirguistão (32%), o Vietname (26%) e o Chile (16%).

Rendimento-Pobreza crescente

O aumento no número de pobres devido à crise alimentar, sendo importante, é somente uma parte da história. O impacto menos visível, mas mais profundo, relaciona-se com aqueles que já eram pobres e que caíram mais profundamente na pobreza, com consequências a longo prazo para a sua saúde e para a sua instrução.

Há várias estimativas convergentes sobre o aumento global no número de pobres, devido à crise alimentar, calculando-se uma variação média entre 3 a 5 pontos percentuais nos índices de pobreza globais o que equivale a cerca de 100 milhões de pessoas. Mas as estimativas recentes da profundidade da pobreza – medida pela diferença entre o consumo médio dos agregados familiares pobres e o referente ao limiar de pobreza – mostram que a pobreza se está a aprofundar e que são efectivamente os pobres que estão a ser mais duramente atingidos. Oitenta e oito por cento do aumento da profundidade

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da pobreza urbana como consequência da subida dos preços dos alimentos diz respeito aos agregados familiares que já eram pobres e que se tornaram mais pobres, sendo que somente 12% respeitam aos novos agregados familiares que agora caem na pobreza. Este aumento da profundidade da pobreza é aproximadamente equivalente a 1% do PIB para um país menos desenvolvido típico. O que é consistente com o evidenciado na crise financeira indonésia, do final dos anos 90, em que o impacto na profundidade da pobreza foi mais acentuado do que no indicador estatístico do número de pobres.

As respostas a nível político devem, consequentemente, dar a prioridade aos pobres em situação mais extrema, cuja sobrevivência é ameaçada por estes choques, embora as considerações de ordem económica obriguem a procurar minorar os impactos para grupos mais amplos.

A extensão do impacte da pobreza devido aos aumentos dos preços dos alimentos varia significativamente de acordo com cada país. Os pobres urbanos são tipicamente os mais afectados, considerando que nos agregados familiares rurais se acentuam menos algumas das suas necessidades alimentares. Os agregados familiares situados em áreas afectadas por conflitos bélicos são particularmente vulneráveis, como ilustram os apelos de emergência de ajuda humanitária na Somália e na Etiópia. As áreas mais pobres são frequentemente as de maior risco (como, por exemplo, a região ocidental do Nepal). Em alguns países (como, por exemplo, o Ghana, o Senegal e o Vietname) os agregados familiares em áreas relativamente prósperas foram severamente atingidos. Os responsáveis políticos devem colher dados a partir de inquéritos nacionais para determinar em que zonas do país e em que grupos familiares devem aplicar directamente os recursos.

Os preços mais elevados dos alimentos podem obrigar as pessoas em grande dificuldade a venderem os seus bens, o que agravará ainda mais a pobreza crónica. A curto prazo, os agregados familiares reduzem pouco a pouco o seu consumo, aumentam a sua disponibilidade de mão-de-obra, reduzindo a poupança e gastando as suas economias. Quando as famílias são obrigadas a desinvestir mais nos recursos básicos da sua existência, por exemplo, consumindo em alimentação as próprias sementes ou vendendo os animais – para assegurar os seus níveis de rendimento, estão

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a aumentar o risco de pobreza crónica. Mercados de crédito inadequados podem também agravar estes constrangimentos, porque os pobres são frequentemente obrigados a recorrer a prestamistas, com taxas de juro muito elevadas.

O impacte directo sobre a pobreza derivado do aumento do preço do petróleo é geralmente menor do que o dos aumentos dos preços dos alimentos, mas os seus efeitos indirectos podem ser significativos. Embora as estatísticas habituais sobre os orçamento dos agregados familiares sugiram que a parte da despesa em combustíveis seja bastante mais baixa do que a parcela gasta em alimentação, esta realidade ameniza a importância da subida dos preços dos combustíveis, pelo menos por duas ordens de razões: primeiramente, os agregados familiares consomem indirectamente combustíveis integrados noutros bens de consumo. Em países muito pobres, o consumo indirecto pode ser muito maior do que o consumo directo, como, por exemplo, para os pobres das zonas rurais que consomem pouca energia comercializada. E, em segundo lugar, os preços mais elevados podem fazer com que os agregados familiares alterem o consumo dos combustíveis, optando por fontes alternativas, em especial da biomassa, com consequências prejudiciais: mulheres e crianças a colherem o combustível ao longo de mais horas; maiores riscos de poluição do ar e no interior das casas; e riscos de desflorestação em áreas rurais densamente povoadas.

Agravamento dos indicadores de alimentação e de saúde

Comer menos e mudar para cereais mais grosseiros e mais baratos terão consequências nutritivas irreversíveis, em especial para as crianças nascidas durante a crise alimentar. Quando os agregados familiares sofrem reduções abruptas nos seus rendimentos reais, passam a comer menos e mudam das fontes de proteína mais caras, tais como o peixe, carne e ovos, para cereais mais grosseiros, mais baratos, menos ricos do ponto de vista alimentar (ver figura seguinte). Esta mudança causa deficiências de micronutrientes (de ferro, de iodo e de vitaminas essenciais). Mais ainda, os pobres podem ser forçados a reduzir a sua despesa em produtos calóricos, levando à perda de peso e à má nutrição aguda. Os mais sensíveis são as crianças até aos 24 meses da idade, mulheres grávidas em aleitamento e todos aqueles que já sofrem de má nutrição. Há

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uma ampla evidência, mais que concludente, de que as disparidades na quantidade e na qualidade da alimentação consumida, por sexo, crescem durante as épocas de escassez. As mães deixam de comer em algumas refeições e, em muitos países, os rapazes passam a ter preferência sobre as raparigas na alimentação familiar. Assim, em famílias pobres, as raparigas e as crianças nascidas durante as crises são as que ficam mais em risco de sofrer danos irreversíveis do ponto de vista físico e do desenvolvimento mental.

Consequências da deterioração da segurança alimentar

Deterioração da segurança alimentar na família g

Con

diçõ

es d

e vi

da

Variação nas

condicões

profissionais

Redução de

despesas em bens

não essenciais e

venda de activos

não produtivos ou

disponíveis

Abandono

escolar e

migrações

internas, do

campo para a

cidade

Aumento da

utilização de

trabalho infantil

e obtenção e

renovação de

empréstimos,

tornando-se

endividados

Venda de

activos

produtivos

Venda de

todos os

activos

Redução da

despesa em

bens essenciais

(água,

alimentos)

Envolvimento em

situações ilegais

ou em actividades

perigosas como

última saída

Que

stões

liga

das à

alim

enta

ção

Mudança para

alimentos

mais baratos

de menor

qualidade

e de menor

apetência

Redução na

diversidade

alimentar, ingestão

de alimentos

menos ricos,

favorecimento de

certos membros

da família

relativamente a

outros quanto ao

consumo

Redução na

quantidade

de comida

por refeição

e redução do

número de

refeições

Consumo de bens

selvagens, colheitas

prematuras

e reservas

alimentares, envio

de elementos da

família a algures

para comer (i. e.

vizinhos)

Mendigar

para comer

Dias inteiros

sem comer

Comendo

produtos que

no passado

não se

comiam ou

que não fazem

parte da dieta

(plantas e

insectos)

Consequências para a Saúde e para a Alimentação Saudável

Resu

ltado

s sob

re a

saúd

e Redução de micronutrientes e

baixa imunidade

Aparecimento de sintomas clínicos

de carências de micronutrientes,

como a cegueira nocturna,

a anemia e o aumento da

morbilidade

Peso baixo h,

peso na gravidez i,

exaustão h

Mortalidade infantil precoce h

Aumento da mortalidade de todos g

Fonte: Adaptado de “Nutrition in the Perfect Storm: Why Micronutrient Malnutrition will be a Widespread Health Consequence of High Food Prices” (Klotz et al., Food Prices and Malnutrition, World Food Programme 2008).

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Há a clara certeza, em resultado das crises anteriores, que as crianças sofrem consequências a longo prazo na saúde por causa de choques esporádicos. Um estudo feito sobre efeitos de longo prazo mostra, por exemplo, que uma seca no Zimbabwe afectou estruturalmente as vidas das crianças. Estas crianças cresceram significativamente menos em altura durante a adolescência, atrasaram a sua entrada na escola e atrasaram igualmente a conclusão da sua formação escolar, calculando-se que tal equivale a uma perda de 7% no salário ao longo da sua vida. Calcula-se que a crise económica peruana de 1988-92 tenha conduzido a uma mortalidade infantil adicional de 17 000 crianças, e que a crise financeira na Indonésia de 1997-98 tenha aumentado a mortalidade infantil em 3 pontos percentuais. O corte nas despesas médicas essenciais durante os períodos de crise é um outro factor com consequências na má nutrição e noutros impactos na saúde a longo prazo.

Muitos dos países expostos à turbulência global dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis são aqueles que já anteriormente sofriam de níveis elevados de má nutrição. Os países classificados como mais afectados pela má nutrição são o Burundi, Madagáscar, Nigéria, Timor Leste e Iémen, estando entre os dez países mais afectados pelos efeitos no bloqueio do crescimento e nos resultados dos restantes indicadores de desenvolvimento. Todos estes países enfrentaram uma situação de inflação a dois dígitos nos bens alimentares em 2007-08.

Alguns países de elevado crescimento enfrentam igualmente dificuldades sérias para responder às situações de má nutrição (3). No sul da Ásia vivem metade das crianças do mundo no estado de subnutrição e a má nutrição das crianças explica um terço de todas as mortes antes dos cinco anos de idade. A Índia, por exemplo, regista o dobro das taxas de crianças com bloqueios de crescimento (47%), comparativamente à África subsariana (24%), sendo quase cinco vezes mais do que na China. Na Índia, de acordo com a UNICEF, estão actualmente em risco de má nutrição mais 1,5 a 1,8 milhões de crianças, dado os respectivos agregados familiares estarem a cortar nas despesas em alimentação ou a mudar para alimentos menos nutritivos e mais baratos, devido aos elevados preços dos alimentos (o preço médio do arroz aumentou 21% e o preço do trigo aumentou 15%, em 2007-08).

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No Vietname, onde 78% da nutrição calórica dos pobres provém apenas do arroz, os aumentos nos preços podem afectar significativamente a situação nutritiva, não só dos pobres rurais como dos pobres das zonas urbanas.

As projecções de longo prazo ilustram o impacto severo do aumento dos preços dos alimentos na má nutrição e na produtividade. A nível mundial, houve um progresso marginal na redução do número de crianças subalimentadas (de 20%, em 1992, para 17%, em 2007). A FAO estima que, em 2007, haverá 923 milhões de pessoas subalimentadas, comparativamente a 848 milhões, em 2004. Estimamos que, no final de 2008, serão 967 milhões de pessoas subalimentadas (ou seja, 44 milhões adicionais) devido à subida global dos preços dos alimentos. Altos níveis de má nutrição prejudicarão o crescimento futuro e a produtividade dos países em vias de desenvolvimento. Estima-se que as perdas médias devidas somente à deficiência em ferro nos países em desenvolvimento sejam da ordem de 0,6% do PIB.

Os riscos na educação

Preços mais elevados dos bens alimentares e dos combustíveis criam pressões para tirar as crianças das escolas, embora haja também efeitos de compensação. Educar impõe, explícita e implicitamente, custos para os agregados familiares, tais como matrículas, transportes, uniformes, de que resulta que, quando os agregados familiares se tornam mais pobres, podem não ter recursos para pagar as despesas escolares, e consequentemente, retiram as crianças da escola. As circunstâncias económicas que causam o aumento da pobreza são, por vezes, também acompanhadas da diminuição dos salários, aumentando, assim, as dificuldades em manter as crianças na escola. O seu impacto na educação depende, assim, do balanço geral destes efeitos e variará caso a caso. Geralmente, quanto mais pobre for o país, mais provavelmente um choque económico terá impactos mais negativos sobre a escolaridade.

As consequências dos anteriores choques nos rendimentos reais sugerem que há um risco significativo nos resultados escolares dos pobres devido aos aumentos

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do preço dos bens alimentares. Dados relativos ao Brasil mostram que a perda repentina de emprego da cabeça de casal do agregado familiar pode conduzir a uma probabilidade 50% mais elevada de uma jovem abandonar a escola para procurar trabalho. A realidade do Peru sugere que os choques económicos afectam a qualidade da instrução que uma criança recebe, devido à redução das despesas privadas na educação. Na Indonésia, a crise económica de 1997 ficou associada ao declínio significativo nas matrículas escolares dos mais pobres, particularmente nas áreas rurais, onde a percentagem dos jovens dos 7-12 anos não matriculados na escola duplicou de 6 para 12%.

Há indicações crescentes de que as crianças estão a faltar à escola e de que as famílias cortam nas despesas em educação devido à crise alimentar actual. Os aumentos dos preços dos alimentos tiveram as consequências mais severas nalguns dos países pobres onde as crises anteriores já tinham reduzido as matrículas. A análise de um inquérito recente no Bangladesh sugere que cerca de metade dos agregados familiares inquiridos reduzem as despesas na educação para conseguirem lidar com a subida dos preços dos alimentos. As respostas de índole política para minimizar os efeitos potenciais do aumento dos preços da alimentação e dos combustíveis sobre a educação são, assim, essenciais, porque, mesmo o atraso na resposta à situação pode impor custos sérios nos resultados educacionais de uma criança.

A Protecção Social, a Educação e as Soluções no Domínio Alimentar

A protecção social efectiva, a educação e as soluções de nutrição são necessárias para assegurar que a subida dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis não tenham impactos duradouros no capital humano e físico dos pobres. Estas respostas devem ser baseadas em cuidadosos diagnósticos específicos, em cada país, uma vez que zonas e grupos sociais dentro de um país podem ser muito mais afectados do que outros. Os países também diferem largamente na capacidade de resposta à crise, com alguns países a criarem redes de segurança com programas alimentares e na educação, enquanto outros não.

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A resposta da protecção social

Face à subida dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis, os programas de protecção social podem desempenhar um papel chave na prevenção do aumento da pobreza, com um desenvolvimento social mais amplo e mesmo com benefícios políticos. Ajudando a impedir o aumento da pobreza, os programas da protecção social ajudam os agregados familiares a manter o acesso à alimentação, à energia e aos serviços essenciais. As redes de segurança social podem igualmente reduzir o impacto dos choques económicos na saúde e na educação. Além disso, quando os programas de protecção social são sentidos como justos e compensatórios, podem ser importantes na manutenção do equilíbrio social e na prevenção contra o mal-estar social.

Dada a premência da crise, a ênfase a curto prazo deve situar-se no escalonamento das prioridades na utilização dos programas existentes, evitando as medidas que possam funcionar contra o desenvolvimento de um sistema de protecção social correcto a médio prazo. Para que os programas funcionem bem e de forma enquadrada é necessário assegurar o seu controlo, o registo dos beneficiários e dos subsídios pagos, em suma, a monitorização da sua aplicação é fundamental. Para isto, não se exige uma grande quantidade de recursos, mas exige tempo necessário para o seu desenvolvimento e para detalhar e garantir os investimentos. Estabelecer um programa correcto e bem enquadrado, para obstar ao risco de degradação, exige geralmente, pelo menos, quatro a seis meses, com um período mais longo para os necessários ajustamentos e correcções. Um país com um sistema bem enquadrado e bem balizado nos seus objectivos pode rapidamente reagir à evolução dos preços dos bens alimentares e de combustíveis aumentando o valor e/ou a cobertura dos benefícios. Os países que não tenham estes elementos chave a funcionar terão que esforçar-se para começar rapidamente a estabelecer este tipo de programas ou, de outro modo, vão deixar necessidades inadequadamente por tratar ou usar métodos de última hora.

A médio prazo, investir numa rede de segurança correcta é uma boa protecção, não somente para a crise alimentar e dos combustíveis, mas para todos os tipos dos choques, mesmo em economias em crescimento rápido. Na ausência de programas de

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protecção social que possam ser parametrizados para garantir uma cobertura social a um número adequado de pessoas e face à premência em assegurar padrões de vida mínimos e incompressíveis para largas camadas da população, muitos governos estão a usar subsídios a preços, restrições à exportação ou cortes gerais de impostos que podem ser regressivos e dispendiosos. Nesse caso, devem começar desde logo a trabalhar em sistemas mais adequados e de modo correcto, paralelamente a estas acções de imediatismo. Podem precisar de lançar ou de reformular os programas existentes desenvolvendo sistemas correctos, selectivos nos objectivos para as famílias, nos pagamentos, no apoio e monitorização dos agregados familiares, especialmente nos programas que tenham continuidade a longo prazo. Poderão querer mudar a estrutura ou uma outra combinação de programas sociais, por exemplo aumentando o peso das transferências sociais em dinheiro relativamente à alimentação nas escolas. A colheita regular de dados sobre os agregados familiares será um trabalho importante a desenvolver para obter indicadores quanto aos objectivos, controlar a eficácia da rede de programas de segurança social e avaliar os impactos das crises. Para todas estas actividades, será importante o auxílio internacional, incluindo o que é gerado nas relações Sul-Sul.

Opções políticas

Dentro da escala de respostas possíveis em termos de protecção social, alguns programas oferecem vantagens distintas relativamente a outros. Embora as respostas no âmbito político devam ser seleccionadas de acordo com o contexto de cada país, os programas de transferências sociais directas e indirectas podem ser classificados genericamente como segue:

Transferências Directas

– Tomar como objectivo que as transferências sociais em dinheiro garantam uma adequada cobertura, suficiente generosidade e qualidade, é a melhor opção. As transferências sociais são claramente preferíveis às prestações em natureza porque têm um mais baixo custo administrativo, são de mais fácil aplicação para o sistema de pagamentos e permitem aos consumidores escolherem.

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– Aumentar os subsídios para as pessoas que não têm rendimentos ligados ao sistema de pensões sociais, pensões de deficientes ou subsídios de desemprego e a quem possa ser mais necessitado. Mesmo quando os programas não têm a pobreza como critério de acesso, os destinatários são frequentemente mais pobres do que a média, e aqueles com rendimentos fixos poderão ser grandemente afectados pela inflação dos preços dos alimentos e dos combustíveis. Aumentar tais benefícios é igualmente administrativamente simples.

– Os instrumentos com a natureza de “quase moeda”, como cupões de alimentação ou senhas de transporte podem ser politicamente populares, mas têm custos administrativos mais elevados do que as prestações em dinheiro. Os cupões de alimentação têm sido bem sucedidos na maioria dos pequenos países onde têm sido lançados. Há menos experiência até agora relativamente aos cupões ou senhas de combustíveis ou de transportes.

– A distribuição alimentar em natureza é apropriada onde os mercados estão a funcionar mal, onde o auxílio estrangeiro é disponibilizado somente em natureza ou onde as reservas estratégicas de cereais precisam de ser mudadas. Tais programas podem incluir o seguinte:

A distribuição de alimentos pode ser tomada como objectivo e com critérios que podem ser considerados a nível dos agregados familiares. Se existem critérios ou podem ser parametrizados em função dos objectivos, pode ser uma boa alternativa ou um complemento para utilizar com prestações em dinheiro.

Os programas de alimentação nas escolas geralmente só podem ser considerados a nível da escola, não ao nível do agregado familiar, e pode assim haver erros elevados de inclusão. Têm custos administrativos elevados relativamente ao valor transferido. Porém, em muitas situações, a alimentação nas escolas é o maior e/ou o único programa de transferências sociais directas que pode ser usado como resposta rápida.

A distribuição de alimentos fortificados de desmame, caloricamente fortes

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para as crianças de 6-24 meses de idade, em especial como parte de um programa educativo de nutrição, pode ser uma intervenção importante.

A alimentação através dos centros de saúde é logisticamente complexo e implica custos elevados para os beneficiários se deslocarem aos centros para obter as refeições. É geralmente melhor quando reservado apenas para situações de crianças severa ou moderadamente subnutridas.

As receitas de vendas dos produtos nos mercados podem ser usadas para transferências sociais mais gerais em termos de rendimento quando não existem outros programas.

– Estabelecer novos programas de transferências sociais condicionadas (CCT), em dinheiro, pode levar muito tempo e, assim, excluir os mais necessitados, onde os serviços são escassos; mas, onde as CCTs já existam, podem ser parte da resposta. Os CCTs podem ajudar a uma maior utilização de serviços de saúde e de educação, mas são mais difíceis de estabelecer do que os programas não condicionados. Nos países onde CCTs estão já estabelecidos, podem ser apropriados para aumentar os subsídios ou para alargar a sua cobertura.

– Os programas de obras públicas raramente têm uma cobertura suficiente para constituir uma resposta completa. A subida dos preços dos bens alimentares e de combustíveis afectam os trabalhadores pobres, assim como os desempregados, podendo ser difícil empregar de forma útil tanta gente. A menos que, economicamente, o trabalho gere, por si mesmo, rendimentos; as obras públicas são menos eficientes do que transferências sociais directas em dinheiro.

Transferências indirectas

– A fixação de uma tabela máxima para as tarifas da electricidade ou de gás natural pode ser apropriado, sob certas circunstâncias. A fixação de uma valor de

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referência será mais eficaz se os pobres estão conectados à rede e se têm contador individual, se estão a ser usadas tarifas diferenciadas por volume, e se o serviço convencionado está de acordo com o uso da electricidade pelos pobres.

– Os subsídios pelo lado da oferta para o transporte em autocarro são comuns, mas o seu impacto do ponto de vista equitativo é variável. Estes subsídios têm o risco de beneficiar mais o fornecedor do transporte do que o consumidor, embora em países onde os pobres andem distâncias longas, possam ser benéficos. Além disso, a fixação do preço precisa de reflectir uma mistura complexa de objectivos, e por esta razão a determinação de tarifas é difícil no curto prazo.

– Os subsídios gerais aos preços da alimentação são frequentemente regressivos e difíceis de eliminar. Se os subsídios estão próximos do ponto neutro ou altamente regressivos depende do produto subsidiado e da estrutura de consumo.

Os subsídios gerais aos combustíveis tendem a ser ainda mais problemáticos do que os subsídios à alimentação e devem ser evitados tanto quanto possível. O combustível pode representar uma pequena parte no orçamento das pessoas pobres, quando comparado com as que estão em melhor situação, tendo como resultado uma distribuição regressiva dos benefícios. Na maioria dos programas os governos são levados a optar por um conjunto de preços, com riscos crescentes em termos de custos fiscais e riscos políticos ligados à alteração dos preços.

– Os aumentos dos salários do sector público não são tipicamente pro-pobres, até porque a maioria dos funcionários ganham acima da linha de pobreza. Não obstante, um aumento de excepção para aqueles que estão na base da tabela da função pública, que se podem tornar pobres com a subida dos preços dos bens alimentares, pode ser justificado em determinados casos, e possivelmente necessário por razões políticas. Contudo, uma vez que os salários do sector público constituem tipicamente uma grande parte das despesas públicas, tais aumentos precisam de ser cuidadosamente controlados, pois correm o risco de absorver grande parte da despesa anti-pobreza que se pretenda realizar.

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Escolha de objectivos

Os programas devem ter objectivos bem determinados, embora precisar qual deve ser a população mais afectada pelo aumento dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis não seja uma tarefa fácil. O impacto das subidas dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis varia significativamente de agregado familiar para agregado familiar e entre zonas geográficas dentro do mesmo país. Os programas selectivos, com objectivos seleccionados, baseados somente num ou dois parâmetros, podem conduzir a grandes erros de inclusão ou de exclusão. A determinação de parâmetros múltiplos para cada programa pode ser, consequentemente, uma necessidade. Por exemplo, as prestações em dinheiro e em natureza podem ser parametrizadas ao nível dos agregados familiares utilizando matrizes multi-dimensionais de acesso, ou podem ainda ser parametrizados em função das zonas geográficas, das características demográficas, e/ou da auto-selecção. Embora os objectivos definidos em termos dos agregados familiares possam ser mais exactos, estes sistemas levam tempo a desenvolver, de modo que os países precisam de utilizar, a curto prazo, outros métodos. Diversos países desenvolveram programas práticos de parametrização da pobreza (por exemplo um programa de segurança do Tajiquistão usa agregados familiares com a mulher como cabeça de casal com até cinco crianças) que pode rapidamente ser extraído dos dados existentes ao nível dos agregados familiares. Os programas de resposta às crises temporárias de bens alimentares e dos combustíveis devem ser desenvolvidos principalmente com critérios mais amplos do que os dos programas para as redes de segurança social temporalmente mais prolongados. Porque a subida dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis afectam toda a gente, é grande o interesse e a mobilização política em muitos países, exigindo a definição de grupos-alvo mais alargados.

Custos orçamentais

Os custos orçamentais de uma rede de segurança bem construída para os mais pobres não precisam de ser excessivamente elevados, especialmente em comparação

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com os custos presentes e futuros de não a ter a funcionar. Mesmo grandes e generosos programas de CCTs como os praticados no México e no Brasil situam-se somente em torno de 0,5% do PIB. Para uma grande parte de países em vias de desenvolvimento, os gastos globais em redes de segurança têm sido da ordem de 1 a 2% do PIB nos últimos anos. Porém, os custos das intervenções diferirão de acordo com a folga orçamental, a generosidade e o grau de escolha dos objectivos. Por exemplo, no Chile, onde a intervenção tem tido até agora um aumento muito limitado no tempo, em termos de acréscimo de transferências pretendidas – o custo foi apenas de 0,04% do PIB. Na Etiópia, os custos adicionais decorrentes da isenção do imposto sobre o valor acrescentado nos cereais e da distribuição do trigo aos pobres nas zonas urbanas a preço subvencionado é provável que excedam 1% do PIB.

Pode ser necessário criar uma folga orçamental de modo a poder adaptar-se a um aumento permanente na dimensão das redes de segurança pretendidas. Prevê-se que os preços dos bens alimentares e dos combustíveis permaneçam a níveis elevados no médio e longo e prazo. Assim, as redes de segurança poderão desempenhar um maior papel em toda a parte nos próximos anos. Muitos países têm redes de segurança inadequadas e outros estão a capacitar-se de que têm subinvestido nestes sistemas. As acções têm vindo a ser reforçadas e noutros casos a ser lançadas agora com urgência, tendendo a transformá-las em programas de longo prazo, induzindo um aumento permanente nas despesas públicas em redes de segurança. Mesmo os países que já tinham amplas e adequadas redes de segurança consideram que uma rede de segurança um pouco maior pode ser necessária para assegurar a execução dos seus objectivos. Estas expansões poderão justificar-se quando as redes de segurança são bem projectadas e bem estruturadas. Um cuidadoso exercício de planeamento orçamental será necessário em cada país para evitar que a despesa aumente para valores críticos, para eliminar as despesas de baixa prioridade e para planear uma estratégia orçamental sustentável a médio prazo. Para os países mais pobres será essencial o auxílio internacional.

Educação, saúde e intervenções no domínio alimentar

São necessárias intervenções específicas para impedir o abandono escolar e

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para ajudar a regressar à escola os estudantes que saem precocemente. A protecção social e as transferências sociais podem ajudar a reduzir a pressão para os pobres tirarem as crianças da escola de forma a proteger os rendimentos domésticos e/ou reduzir os custos em educação. O governo indonésio, por exemplo, em resposta à crise financeira de 1998, pôs em prática a concessão de bolsas de estudo para alunos pobres. As avaliações ao programa mostraram que o uso deste apoio melhorou os resultados entre os agregados familiares destinatários do programa. Outra intervenção possível consiste em reduzir ou eliminar encargos das famílias com as escolas, o que se revela muito eficaz em fazer aumentar as matrículas escolares. No Ghana, por exemplo, as matrículas na escola primária subiram 14% depois de as taxas de inscrição terem sido abolidas em 2005, como parte de um programa mais lato destinado a amortecer os efeitos dos ajustamentos nos preços dos combustíveis. Condicionando as transferências sociais à frequência escolar, pela definição dessa condicionante nos programas de transferências sociais em dinheiro e nos programas alimentares nas escolas, tem igualmente um forte potencial para melhorar o não abandono escolar.

As intervenções eficazes na saúde e no plano alimentar são igualmente necessárias para complementar os programas de protecção social. Para países com capacidade limitada em recursos financeiros, a utilização de reservas de suplementos alimentares e nutrientes pode ser a intervenção alimentar mais eficaz no curto prazo. Tais intervenções são geralmente possíveis devido ao seu baixo custo per capita, podendo facilmente ser adicionadas aos programas de saúde existentes e aos programas de alimentação escolar, os quais são dos poucos programas existentes na rede de segurança em muitos países de menores recursos. Onde é feita a distribuição de ajuda alimentar, haverá preferência para distribui-la em formato fortificado – por exemplo, farinha enriquecida, mais do que em grão não enriquecido. Considerando os impactos irreversíveis no longo prazo da má nutrição em crianças abaixo dos 24 meses de idade, as intervenções alimentares devem ter como objectivos prioritários este grupo etário e as mulheres grávidas. Se os recursos forem centrados nestes grupos e concentrados nas famílias mais pobres, os custos totais de gestão do programa serão relativamente baixos. Para além da reacção em situação de crise, os países devem centrar-se numa abordagem mais lata e detalhada do problema da nutrição,

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podendo fazer uso da capacidade desenvolvida naquela situação para desenvolverem programas sobre micronutrientes, que requerem maior capacidade de gestão.

A monitorização dos principais indicadores de saúde e alimentação são uma parte essencial do planeamento de soluções apropriadas. Acompanhar a evolução dos preços e dos rendimentos dos agregados familiares e investir em sistemas de acompanhamento dos indicadores de nutrição humana são essenciais para saber onde e sobre quem devem incidir as acções. Os principais indicadores que devem ser monitorizados incluem a diversidade das dietas alimentares, os níveis de emagrecimento das crianças, os níveis de hemoglobina e os índices de massa corporal e de vitamina A das mulheres grávidas.

Human Development Network (HDN), Poverty Reduction and Economic Management (PREM) Network, Banco Mundial, Rising Food and Fuel Rices:

Addressing the Risks to Future Generations, 12 de Outubro de 2008, disponível em http://siteresources.worldbank.org/DEVCOMMEXT/Resources/

Food-Fuel.pdf?resourceurlname=Food-Fuel.pdf.

4. ALGUMAS VIAS DE RESPOSTA, NA LINHA DOS DIREITOS DO HOMEM

Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, Promoção e protecção de todas

os Direitos do Homem, civis, políticos, económicos, sociais e culturais, incluindo o direito ao

desenvolvimento, Relatório do Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação,

Olivier De Schutter, 8 de Setembro de 2008.

Resumo

A subida vertiginosa das cotações mundiais dos bens alimentares registada durante o período 2006-08 põe os Estados perante vários dilemas. Por exemplo, será preferível lutar contra os aumentos de preços ou fazer de modo a que os seus produtores agrícolas disso tirem vantagem sem estar a prejudicar as pessoas mais

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vulneráveis, e em que condições será possível desenvolver os agrocarburantes, como substituto dos combustíveis fósseis no sector dos transportes.

O Relator especial sobre o direito à alimentação evoca no presente relatório a incidência das escolhas a fazer sobre o direito à alimentação, situando-as no âmbito das obrigações que incumbem aos Estados a nível nacional e internacional. Expõe as razões pelas quais conviria adoptar um quadro fundado sobre os direitos do homem, para simultaneamente definir as medidas a tomar perante a nova situação criada com a explosão dos preços dos bens alimentares e para controlar a sua própria aplicação. Analisando os riscos ligados a esta situação como as possibilidades que esta oferece, o Relator especial explica porque é que se impõe um acompanhamento contínuo das iniciativas adoptadas a escala nacional e internacional para obviar à crise.

I. Introdução

1. O presente relatório é submetido em conformidade com a resolução S-7/1, que o Conselho dos Direitos do Homem adoptou a 22 de Maio de 2008, à sua sétima sessão extraordinária, consagrada ao exame do impacto negativo na realização do direito à alimentação, devido ao agravamento da crise mundial da alimentação causada, designadamente, pela explosão dos preços dos produtos alimentares1. Tem por objecto propor uma análise da crise alimentar mundial e soluções possíveis fundadas sobre o direito a uma alimentação suficiente, como é reconhecido pelo direito internacional. O relatório apoia-se, quando sugere adoptar um quadro inspirado dos direitos do homem para a avaliação das iniciativas que visam obviar à crise alimentar mundial, no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 11 do Pacto Internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, como foi interpretado pelo Comité dos Direitos Económicos, sociais e culturais, assim como em outras normas internacionais pertinentes2. Tem em conta igualmente as Directivas voluntárias ao apoio da concretização progressiva do direito a uma alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional adoptadas a 23 de Novembro de 2004 pelos Estados-

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Membros do Conselho da Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura (FAO), porque fornecem indicações práticas detalhadas quanto à maneira como os Estados e outros actores deveriam levar a efeito o direito a uma alimentação suficiente em vários domínios.

2. A escolha de tal perspectiva tem diversas consequências. A esse respeito, o Relator especial está consciente de que, perante as repercussões do recente aumento dos preços alimentares sobre o direito a uma alimentação suficiente, se impõem medidas, simultaneamente, a nível nacional e a nível internacional. Incumbe de maneira essencial a cada Estado que faça de modo a que cada homem, cada mulher e cada criança dependente da sua jurisdição, sozinho ou em comunidade com outros, tenha física e economicamente acesso, em cada momento, a uma alimentação suficiente ou aos meios para a obter3. Uma análise fundada sobre os direitos do homem será centrada, antes de mais nada, nas necessidades das categorias mais vulneráveis da população, tocadas duramente pela crise ou que correm o risco de menos ganhar com as soluções postas em marcha. É, por conseguinte, primordial que os Estados: a) adoptem medidas baseadas numa cartografia adequada da insegurança e da vulnerabilidade alimentar; b) ponham em prática um dispositivo de responsabilização para as violações do direito à alimentação. O presente relatório explica, além disso, porque é que os Estados deveriam: c) melhorar a protecção dos direitos dos utilizadores das terras no contexto das pressões concorrentes acrescidas que se exercem sobre as terras e os outros recursos naturais, tais como, a água e a biodiversidade; d) reforçar a protecção dos direitos das mulheres (ver mais adiante, capítulo III). Compete, no entanto, a todos os Estados e à comunidade internacional como um todo, incluindo os organismos internacionais, pertençam ou não ao sistema das Nações Unidas, instaurar um ambiente internacional que permita aos Estados cumprirem efectivamente estas obrigações. Tudo isto exige dos Estados e de todos os organismos internacionais a que pertencem: a) reexaminem as políticas que atinjam a fruição do direito à alimentação em outros países e se abstenham de tomar novas medidas que vão nesse sentido; b) protejam o direito a uma alimentação suficiente velando para que terceiros, incluindo actores privados, não entravem a fruição do direito à alimentação; e c) contribuam para a aplicação do direito a uma

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alimentação suficiente, cooperando no recenseamento dos obstáculos à realização do direito à alimentação e à sua eliminação (ver capítulo IV).

3. Os aumentos de preços ocorridos nos mercados internacionais durante o período 2005-07 provocaram um agravamento da pobreza que, de acordo com um estudo do Banco Mundial de Abril de 2008, baseado na análise da situação de nove países com rendimentos modestos, seria de aproximadamente 4,5%, na hipótese de ausência de medidas de política geral destinadas a amortecer os aumentos dos preços, o que faria que adicionalmente 105 milhões de pessoas ficariam na situação de pobreza4. Dada a taxa anual de redução da pobreza de 0,68% registada desde 1984, este aumento de 4,5% destruiria os frutos de cerca de sete anos de luta contra esta calamidade. Calculou-se que se, em 2025, os preços dos géneros alimentícios apresentassem um aumento de 20% em relação à base de referência de 1996, o número total de pessoas subalimentadas no mundo aumentaria 440 milhões5. Além disso, o encarecimento dos géneros alimentícios obrigaria as famílias que mal podem pagar os alimentos básicos de que têm necessidade a renunciarem à compra de produtos mais interessantes no plano nutritivo. Uma inversão do processo já lento de redução da subalimentação parece inevitável. Nestas condições, é imperativamente necessário evitar levar a efeito políticas que comportem medidas susceptíveis de agravar a crise.

4. É igualmente claro que os esforços que tendem a limitar o aumento dos preços nos mercados internacionais são insuficientes. Cerca de 852 milhões de pessoas sofriam já de insegurança alimentar antes da crise actual. Esta mostra que o desfasamento entre a oferta e a procura solvente de produtos agrícolas corre o risco de agravar ainda a situação. Com um crescimento da população mundial em cerca de 75 milhões de pessoas por ano, o planeta, que conta hoje 6,7 mil milhões de habitantes, contará 8 mil milhões em 2025 e 9,2 mil milhões em 2050.

Calculou-se que para responder ao crescimento da procura, a produção alimentar deveria progredir 50% até 2030 e duplicar daqui até 2050. Contudo, seria ilusório apostar exclusivamente, para obviar à crise actual, num crescimento

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da produção agrícola global, destinado a corrigir o desequilíbrio entre a oferta e a procura de géneros alimentícios que cria tensões nos mercados mundiais de produtos básicos. Com efeito, lutar somente contra a insegurança alimentar e aumentar os investimentos agrícolas não significa combater especificamente o fenómeno da desnutrição e das carências em micronutrientes, que atinge 2 mil milhões de pessoas no mundo, mas também e sobretudo, o principal problema tem a ver não com a escassez alimentar, mas com o consumo excessivo e os desperdícios de alguns6 e a falta de poder de compra de muitos outros. Não é pois aumentando a produção que se criará o alívio da situação de fome de quem, por não ter poder de compra, não tem acesso à alimentação disponível. Devemos produzir alimentos não somente para aumentar a oferta de bens alimentares, mas também para aumentar o poder de compra dos que os produzem.

5. No âmbito da luta contra a crise alimentar mundial, deveríamos, por conseguinte, recordar constantemente quem são as vítimas da insegurança alimentar a fim de centrar os nossos esforços no aumento do seu poder de compra. A maior parte das pessoas que sofrem de insegurança alimentar vive em zonas rurais. Os trabalhadores agrícolas, que são 450 milhões e representam 40% da mão-de-obra agrícola mundial7, figuram entre as categorias de população mais vulneráveis, devido ao carácter frequentemente informal do seu emprego, que os priva de protecção jurídica por parte dos seus empregadores. Uma outra categoria fortemente atingida pela insegurança alimentar é a das famílias de pequenos agricultores8.

A menos que as medidas destinadas a estimular a produção sejam concebidas com cuidado para aumentar o seu poder de compra, estas correm o risco de interessar sobretudo às grandes explorações agrícolas, que têm acesso às tecnologias modernas e fornecem os mercados aos quais os pequenos produtores não têm acesso. Cerca de 500 milhões de famílias (1,5 mil milhões de pessoas no total) vivem de explorações com uma superfície igual ou inferior a dois hectares. Muitos de entre eles sofreram um aumento sem precedentes do preço dos factores de produção, consecutivo ao encarecimento do petróleo e, para os criadores de gado e também dos cereais, no mesmo momento em que, como compradores líquidos de produtos alimentares,

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consagram uma maior parte do seu orçamento à alimentação. A subida das cotações mundiais dos bens alimentares e do petróleo trará vantagens para alguns de entre eles, nomeadamente, na Índia e na China, mas prejudicará muitos outros, em especial na África subsariana. O aumento dos preços dos bens alimentares nem sempre tem um efeito de repercussão a nível da venda à saída da exploração agrícola, onde numerosos camponeses pobres são obrigados a escoar os seus produtos. Para aumentar os seus rendimentos, devem ter acesso ao crédito a fim de poder pagar os adubos, as sementes e os instrumentos de que têm necessidade, da mesma maneira que, para melhorar a sua produtividade, devem ter acesso à tecnologia. O que os ajudará, não é receberem alimentos, mas sim obter o apoio necessário para produzir e vender a sua produção a um preço remunerador e de passar assim da posição de compradores líquidos à de vendedores líquidos de produtos alimentares. Para eles, há apenas duas soluções: viver da exploração das suas pequenas parcelas ou ir engrossar os bairros de lata das grandes cidades, que se estão a desenvolver a um ritmo rápido.

6. Em resumo, o desafio, para nós, não é simplesmente aumentar a produção, mas também fazer de modo que a subida actual dos preços dos produtos alimentares possa trazer vantagens para se progredir na realização do direito à alimentação adoptando medidas estruturais que conduzirão a uma reforma profunda do sistema alimentar mundial. O capítulo que se segue explica porque é que assim é e porque é que a adopção de um quadro fundado nos direitos do homem contribuirá para o sucesso deste objectivo.

II. A procura de soluções duradouras fundadas no reforço da capacidade de adaptação

7. No anexo encontrará uma curta análise dos motores da crise e o contexto mais amplo no qual esta deve ser situada. A partir desta perspectiva retiram-se duas conclusões. A primeira é que o aumento dos preços observados entre 2006 e 2008 é a resultante de políticas que, ao longo de um período de trinta anos, enfraqueceram sistematicamente o sector agrícola de vários países em desenvolvimento. Para além

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de uma fragilização destes países perante as flutuações das cotações dos produtos alimentares mundiais, seguiu-se uma situação onde os pequenos empresários não puderam tirar partido do crescimento actual dos preços nos mercados internacionais, devido à falta de infra-estruturas rurais e de acessos ao crédito, do desmantelamento dos sistemas de apoio público, das consequências de uma liberalização precipitada e mal gerida do comércio, bem como da sua posição na cadeia de produção e de distribuição alimentar.

Convém ter em conta estes factores na procura de soluções duradouras face à crise actual.

8. A adopção de um quadro fundado sobre os direitos do homem pode revelar-se útil a esse respeito fornecendo orientações para a redefinição das prioridades de intervenção, tornada esta necessária pela crise actual. É importante pois que nos interroguemos quanto a saber quer a quem é que as medidas devem ser mais úteis, quer também a saber como é que se pode produzir mais. A situação sendo o que é, pode contudo temer-se que a segunda destas duas perguntas seja considerada como a mais urgente e que privilegiemos soluções específicas para aumentar a oferta alimentar sem nos estarmos a preocupar suficientemente em saber quem produz, a que preço e para quem. Seria assim um erro cheio de consequências. Um dos aspectos positivos da crise actual é que aos investimentos na agricultura, que têm sido durante demasiado tempo os parentes pobres da ajuda pública ao desenvolvimento e dos orçamentos nacionais, virá a ser atribuída no futuro a prioridade que merecem. Convirá, contudo, verificar com cuidado como é que serão distribuídos estes investimentos, quais serão os seus beneficiários e a quem servirão. Se um sentimento de urgência e uma apreciação errada dos desafios a assinalar levassem a planificar o investimento somente na óptica do aumento da oferta alimentar, correr-se-ia o risco de se fazerem más escolhas. O investimento deverá, pelo contrário, ser guiado pelo triplo imperativo de promover formas de produção agrícola duradouras, privilegiar os pequenos empresários que têm mais maior necessidade de um apoio e agir onde o impacto da intervenção sobre a redução da pobreza seja maior9.

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9. O perigo é que, face ao espectro de escassez alimentar, não se confunda possibilidades e soluções e que, com toda a preocupação em aumentar a produção, não nos preocupemos suficientemente com a perenidade social e ambiental das soluções imaginadas. Um sinal da realidade deste perigo é que praticamente se passou sob silêncio, nos debates internacionais, as conclusões da Avaliação internacional dos conhecimentos, das ciências e das tecnologias agrícolas para o desenvolvimento, patrocinadas pela FAO e pelo Banco Mundial, segundo as quais a maneira como o mundo produz os seus alimentos deverá ser radicalmente alterada, a fim de melhor servir os pobres e esfomeados, se os países quiserem fazer face ao crescimento da população e às mudanças climáticas, evitando ao mesmo tempo o desmoronamento das sociedades e o esgotamento do ambiente”10.

10. A procura de tais soluções duradouras corre o risco de se revelar mais árdua – e menos atractiva para os interesses privados – que o recurso a soluções tecnológicas desenvolvidas noutros lugares. As recomendações da Avaliação são, no entanto, o fruto de um longo processo de investigação científica e de consulta, análogo aos trabalhos efectuados pelo Grupo de peritos intergovernamental sobre a evolução do clima. Tratando-se de elaborar soluções próprias para melhorar a produtividade da agricultura, devemos antes de mais explorar os conhecimentos científicos já disponíveis sobre as repercussões sociais e ambientais devidas às tentativas de estimulação da produção por meios tecnológicos.

11. Uma segunda conclusão tirada da análise (ver o anexo) é que não é necessário ceder à tentação de um simples regresso atrás, para uma situação “normal”, em que as zonas rurais empobrecidas alimentem as cidades relativamente mais dinâmicas e onde os mercados internacionais propõem alimentos a baixos preços para compensar a destruição dos meios de existência dos agricultores de numerosos países em desenvolvimento. Devemos, pelo contrário, instaurar um sistema que garanta um grau de resistência suficiente perante a instabilidade crescente dos mercados internacionais de matérias-primas agrícolas e mantenha esta instabilidade em limites aceitáveis. De acordo com as Perspectivas agrícolas da OCDE e da FAO, 2008-17, os preços das matérias-primas agrícolas manter-se-ão a níveis médios mais

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elevados que durante a década passada, mas os preços reais recomeçarão em seguida a reduzirem-se, embora a um ritmo menos rápido que no passado. Estas previsões assentam, contudo, sobre hipóteses relativamente problemáticas11. Não foram tidos em conta os efeitos potenciais das mudanças climáticas e da escassez de água, conquanto sabemos a ameaça que representam para a agricultura, nomeadamente para a África subsariana, bem como para o Sul e Sueste Asiático, onde as mudanças climáticas influenciarão a pluviosidade e provocarão um aumento da frequência das secas e uma elevação das temperaturas médias, pondo em perigo a disponibilidade de água doce para a agricultura. Além disso, as mudanças susceptíveis de intervir na política dos poderes públicos, em especial, as prescrições relativas à utilização dos agrocarburantes, a reforma da Política Agrícola Comum da União Europeia ou as alterações que são introduzidas nas regras que governam o comércio internacional dos produtos agrícolas ou os direitos de propriedade intelectual não podem, por definição, ser tomadas em consideração nestas previsões. Por conseguinte, não é de excluir que tenhamos que fazer face, não somente aos preços superiores à média ou a uma redução do ritmo de descida dos preços, mas também às flutuações dos preços12. Como o Banco Mundial bem sublinhou, é imperativo gerir o risco ligado à evolução das cotações do preço dos cereais num mundo que, devido ao aquecimento global, conhecerá provavelmente uma maior instabilidade dos preços cerealíferos internacionais e dos choques repetidos sobre a oferta13. No momento de fazer escolhas políticas, conviria ter em conta a incerteza que existe quanto à evolução futura dos preços, em vez de nos entregarmos a previsões que poderiam revelar-se inexactas. É por isso que o presente relatório dá um lugar central à capacidade de adaptação, condição indispensável para gerir a incerteza e garantir assim o acesso à alimentação para todos.

12. O anexo apresenta também resumidamente um sumário das reacções que se seguiram à crise alimentar mundial de 2007-08. O presente relatório não tem por objecto analisar em detalhe as iniciativas tomadas a nível operacional pelos organismos de execução das Nações Unidas, as instituições financeiras internacionais ou os bancos regionais de desenvolvimento, e não seria possível expor os resultados das reuniões que foram consagradas, em diferentes quadros, à crise alimentar mundial e às respostas a

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dar. Foi admitido unanimemente que a adopção de medidas a curto prazo deveria não somente visar aliviar o destino dos que tinham fome, em especial os grupos urbanos desfavorecidos e, nomeadamente, a fornecer-lhes uma ajuda alimentar, mas também tender, pelas razões expostas acima, melhorar a produtividade dos pequenos empresários. A reflexão do Conselho deve incidir sobre a questão de saber como é que os diversos compromissos e iniciativas referenciadas poderiam ser inscritos num quadro fundado nos Direitos do Homem e o que é que isto implicaria. Se excluirmos a resolução adoptada pelo Conselho dos Direitos do Homem, na sua sétima sessão extraordinária, e a menção que é feita das directivas relativas ao direito à alimentação no documento final adoptado pela Conferência de alto nível sobre a segurança alimentar mundial, convocada pela FAO em Roma de 3 a 5 de Junho de 2008, o direito a uma alimentação suficiente tem estado, até agora, quase que totalmente ausente dos debates. Esta omissão está para além de uma simples importância simbólica ou anedótica, porque leva a negligenciar qualquer série de instrumentos que poderiam ser utilizados para lutar contra a crise alimentar mundial. Conceber respostas inspiradas no direito à alimentação permitiria melhor ter em conta as necessidades das pessoas que sofrem de fome ou desnutrição e abriria o caminho não somente à selecção das intervenções, mas também ao estabelecimento de prioridades, à coordenação, à responsabilização e à participação. Embora o direito à alimentação tenha sido ignorado deliberadamente ou por ignorância das consequências operacionais que daí decorrem, o que importa é que conviria desde já reintroduzi-lo na reflexão.

13. É nesta perspectiva que são apresentadas as observações seguintes, que têm a ver essencialmente com o futuro do sistema alimentar mundial. As reacções imediatas à crise são apenas mencionadas na medida em que ilustram o risco de ver os direitos do homem insuficientemente tidos em conta aquando da criação de mecanismos destinados a melhor garantir uma segurança alimentar e nutritiva no futuro.

III. Estratégias nacionais para a realização do direito à alimentação

14. Em conformidade com o artigo 11 do Pacto internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais, a principal obrigação dos Estados consiste em

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agir para assegurar progressivamente o pleno exercício do direito a uma alimentação suficiente, o que impõe a obrigação de progredir tão rapidamente quanto possível para este objectivo14. O direito fundamental a uma alimentação suficiente exige, por conseguinte, a adopção de medidas que, a nível nacional, seriam de natureza a melhor proteger, dos efeitos do encarecimento dos géneros alimentícios, os grupos vulneráveis da população, os compradores líquidos de alimentos, sejam eles ou não produtores agrícolas, e, em especial, os citadinos pobres e os camponeses sem terra. O Comité dos direitos económicos, sociais e culturais insistiu na necessidade de os Estados se empenharem “a adoptar uma estratégia nacional que vise assegurar a segurança alimentar e nutritiva para todos, tendo em conta os princípios em matéria de direitos do homem que definem os objectivos, e formular políticas e critérios correspondentes”15. Esta estratégia deveria compreender a criação de mecanismos institucionais adequados para: a) detectar em fase o mais precoce possível, através de dispositivos de vigilância adequados, as novas ameaças para o direito a uma alimentação suficiente; b) avaliar a incidência das novas iniciativas legislativas ou políticas sobre o direito a uma alimentação suficiente; c) melhorar a coordenação entre os ministérios competentes, assim como entre a administração central e as autoridades intra-nacionais, tendo em conta as repercussões, sobre os aspectos nutritivos do direito a uma alimentação suficiente, das medidas tomadas relativas à saúde, à educação, ao acesso à água e ao saneamento, assim como à informação; d) melhorar o dispositivo de responsabilização, por uma clara atribuição das responsabilidades e a fixação de prazos precisos para a realização das componentes do direito à alimentação que devem ser objecto de uma aplicação progressiva; e e) assegurar a participação adequada da população e, em especial, de grupos mais expostos à insegurança alimentar.

15. Para assegurar-se da justificação das medidas que tomam, os Estados deveriam a título prioritário informar-se dos riscos que existem em matéria de segurança alimentar nos territórios sujeitos à sua jurisdição e do impacto de qualquer medida que encarem aplicar. Deveriam instituir mecanismos próprios a serem capazes de fazer responsabilizar todos os ramos do Estado de modo que estes se conformem às obrigações que lhes incumbem no que diz respeito à realização do

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direito à alimentação. Deveriam, além disso, reforçar os direitos dos utilizadores das terras e os direitos das mulheres.

A. Cartografar a insegurança e a vulnerabilidade alimentares e exercer a vigilância pretendida

16. Agir num quadro fundado nos direitos do homem exige primeiro Estados que se apoiem, para desenvolver as suas intervenções, sobre uma cartografia adequada da insegurança e da vulnerabilidade alimentares que lhes permitirá orientar estas intervenções com a precisão desejada e de avaliar, antes de adoptar medidas jurídicas ou de política geral susceptíveis de infringir o direito à alimentação, qual será a sua incidência. Na secção 13 das Directivas sobre o direito à alimentação (ver parágrafo 1 acima), é recomendado que os Estados estabeleçam sistemas de informação e de cartografia sobre a insegurança e a vulnerabilidade alimentares (SICIAV), a fim de identificar os grupos expostos devido à falta de meios ou de rendimentos ou, ainda, por outras razões. O Fundo das Nações Unidas para a infância (UNICEF), por seu lado, sublinhou que era necessário reunir mais elementos de informação de apoio do processo de decisão e de recolher mais dados, nomeadamente sobre os riscos nutritivos com que se defrontam as mulheres e as crianças, por meio de indicadores nutritivos e indicadores de saúde conexos16. O facto de ter sido difícil mencionar, nos debates em curso, a importância dos direitos fundamentais dos trabalhadores na realização do direito a uma alimentação suficiente ilustra a utilidade de estabelecer tal cartografia no início de todo o processo de elaboração das políticas. Os trabalhadores agrícolas são particularmente vulneráveis: em numerosos em países, 60% deles vivem na pobreza17. O estabelecimento de uma cartografia da insegurança e da vulnerabilidade alimentares à escala nacional ajudaria a apreciar a amplitude do problema e a definir políticas adequadas. Os estudos de impacto podem do mesmo modo melhorar notavelmente a qualidade do trabalho de elaboração das leis e das políticas. A secção 17 das Directivas sobre o direito à alimentação contém uma série de recomendações relativas à execução de avaliações do impacto no direito à alimentação, ao desenvolvimento de indicadores para avaliar os processos, aos

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seus efeitos e aos seus resultados, assim como a necessidade de se acompanhar, antes de mais nada, a segurança alimentar dos grupos vulneráveis, bem como o seu estado nutritivo.

B. Trabalhar para uma responsabilização acrescida

17. Cartografar as ameaças em matéria de segurança alimentar não é, contudo, suficiente.

A abordagem fundada sobre os direitos do homem leva também a interpretar a exigência de segurança alimentar em termos de direitos jurídicos e de responsabilização. Fazer de modo que cada um tenha acesso a uma alimentação suficiente também não é suficiente. Importa reconhecer que se trata de um direito e de impor obrigações consequentes aos actores públicos e privados susceptíveis de exercer uma influência sobre a fruição deste direito. Garantindo que todo aquele que sofre de fome ou desnutrição é juridicamente fundado opor-se a qualquer acção ou omissão que influencia sobre a sua situação, o quadro acima mencionado cria uma segurança, reforçada por mecanismos institucionais. A criação de condições pretendidas para permitir aos indivíduos fornecer a si próprios a sua alimentação encontra-se facilitado. Importa velar, particularmente, por que cada um tenha esta possibilidade de direito e não devido a uma escolha de política geral, tendo em conta a capacidade respectiva dos diferentes grupos referidos pela insegurança alimentar de influenciar as instâncias de decisão. É admitido geralmente que, nos países em desenvolvimento, os pequenos agricultores constituem um grupo numericamente importante mas geograficamente disperso, que têm poucos meios, ou nem sequer os têm, para exercer pressões a nível político e para quem os custos de organização de uma acção colectiva são proibitivos. Os grupos urbanos, assim como os agricultores das economias industriais, têm mais facilidade para levar a efeito acções de protesto público18. Nestas condições, uma via fundada nos direitos constitui uma garantia contra o risco ver as políticas públicas favorecer os grupos de interesses mais influentes e melhor organizados, em vez de procurar satisfazer as necessidades das populações mais expostas, quer sejam urbanas ou rurais.

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18. Conviria que, no âmbito das suas estratégias nacionais, os Estados adoptassem uma legislação quadro que estabeleça que o direito à alimentação é oponível nos tribunais nacionais, ou oponível de qualquer outra maneira, de modo que no caso de aumento dos preços dos bens alimentares como a que conhecemos hoje, os outros ramos do Estado não possam continuar a serem passivos e que nenhuma discriminação quanto ao acesso aos alimentos ou aos meios para os obterem seja tolerada quando se trate de adoptar medidas que visem concretizar o direito à alimentação. Se a lei-quadro definir de maneira mais precisa as obrigações ligadas ao direito a uma alimentação suficiente, os tribunais ou outros mecanismos de vigilância, como as instituições dos direitos do homem, serão mais propensos a contribuir para a aplicação deste direito. Tais mecanismos de responsabilização poderiam por conseguinte facilitar a determinação precoce dos casos onde uma política macroeconómica ou social não vai no bom sentido ou não é correctamente orientada (porque as necessidades de certos segmentos da população ou certas regiões são subestimadas, por exemplo) assim como da determinação da correcção do problema.

19. O Quadro Global de Acção elaborado pelo Grupo de Acção de Alto Nível sobre a Crise Alimentar no Mundo para fornecer orientações aos governos preconiza certamente a avaliação regular da insegurança alimentar e nutricional19, mas não é concebido em termos de direitos do homem e destinado unicamente a guiar a elaboração das políticas à escala nacional. Assim, não há nenhuma questão quanto à responsabilização e não contém nenhuma recomendação quanto à instalação de mecanismos de recurso para as vítimas das violações do direito à alimentação. Seria diferente se as estratégias nacionais fossem baseadas sobre o reconhecimento do direito a uma alimentação suficiente e se os tribunais ou outros mecanismos (instituições nacionais de promoção e protecção dos direitos do homem ou mediadores, nomeadamente) fossem encarregados de verificar se as diferentes entidades do Estado cumprem as obrigações que lhes atribui a estratégia nacional. A fim de ajudar os Estados a instaurar tal quadro, conviria reforçar a unidade da FAO responsável pelo direito à alimentação a favor da reforma em curso da organização, de maneira a torná-la menos tributária, para os seus trabalhos, das contribuições voluntárias dos doadores.

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C. Garantir os direitos relativos à utilização das terras

20. É preocupante constatar que, apesar dos trabalhos que a FAO ou o Banco Mundial consagram à questão, desde há dezenas de anos, se presta ainda muito pouca atenção, à investigação de soluções para a crise alimentar mundial, aos direitos dos que cultivam a terra ou a ela devem ter acesso como meio de produção. O Quadro Global de Acção estabelecido pelo Grupo de Acção supracitado evoca certamente a necessidade de levar a efeito uma política transparente em matéria de regime fundiário para gerir a terra efectivamente, assegurando ao mesmo tempo um direito de acesso à terra às colectividades e aos particulares, nomeadamente às categorias marginalizadas, como os autóctones e as mulheres20, mas este ponto não é desenvolvido e tem feito figura de excepção no leque das propostas actualmente elaboradas para obviar à crise alimentar mundial21. A declaração dos líderes do G-8 sobre a segurança alimentar mundial na verdade não faz nenhuma menção, e nenhum das delegações governamentais presentes na Conferência de alto nível sobre a segurança alimentar mundial evocou a reforma agrária ou a necessidade de garantir a segurança de ocupação das terras22.

21. Na medida em que são centradas no crescimento da produção alimentar, as medidas destinadas a combater a crise alimentar mundial actual poderão contudo criar novas ameaças do ponto de vista da segurança de ocupação das terras. Assim, pode temer-se que a renovação de interesse pela agricultura e a corrida à produção de agrocarburantes23 venha exacerbar a concorrência pelas terras, em muitos casos, com um combate desigual entre os grandes investidores e os utilizadores locais de terras que, muitas vezes, não têm direitos jurídicos sobre elas24. O desenvolvimento do investimento transnacional nos solos agrícolas, o meio pelo qual os países procuram assegurar a sua segurança alimentar, e a extensão das monoculturas destinadas à exportação faz apenas acentuar a pressão sobre as terras.

Sendo assim, seria necessário incentivar os países em desenvolvimento a garantir a todos os utilizadores de terra a segurança da ocupação das terras em que trabalham. O aumento do preço da terra pode ser fonte de lucros para os seus

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proprietários, mas representa uma ameaça para os camponeses sem terra ou para aqueles cujos direitos sobre as terras que cultivam não estão garantidos e poderia impedir os pequenos empresários de adquirirem mais terras para aumentar a sua produção. Garantir os direitos fundiários seria um meio para incitar os investidores interessados nas culturas de exportação a optarem por formas de agricultura contratual, eventualmente passando acordos com pequenos empresários, o que contribuiria para melhorar os meios de existência destes últimos.

22. Além de garantir dos direitos dos utilizadores sobre as terras que cultivam, seria necessário evitar uma concentração excessiva das terras e, se for caso disso, proceder à uma reforma agrária para fazer de modo que as pessoas que vivem da terra tenham a ela acesso. O parágrafo 2 a) do artigo 11 do Pacto internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais menciona o desenvolvimento ou a reforma dos regimes agrários entre os meios para garantir o exercício do direito fundamental de cada um estar ao abrigo da fome. Seria conveniente acelerar as reformas agrárias, de acordo com as recomendações formuladas pela FAO, no parágrafo 8.10 das suas Directivas sobre o direito à alimentação, e pela Conferência internacional da FAO sobre a reforma agrária e o desenvolvimento rural, porque é indispensável que os camponeses sem terra, que figuram hoje entre as categorias de população mais atingidas pela insegurança alimentar, obtenham o acesso à terra. Os signatários da declaração ministerial adoptada por consenso na sessão de 2008 do Conselho económico e social constatam “que é primordial melhorar o acesso dos e das rurais pobres aos activos produtivos e, nomeadamente, à terra e à água” e, “reconhecendo ao mesmo tempo a diversidade das leis e os regimes fundiários dos países, [eles] sublinham que seria necessário dar a prioridade à adopção de medidas e à execução de leis que garantem direitos precisos e executórios quanto ao uso destes bens e que protegem os direitos fundiários”25.

Em conformidade com a resolução 2002/49 da Comissão dos direitos do homem sobre a igualdade das mulheres em matéria de propriedade, de acessos e de controlos fundiários e da igualdade do direito à propriedade e a um alojamento conveniente, conviria velar particularmente para que se eliminem todos os

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obstáculos que impedem as mulheres de usufruir dos direitos fundiários em condições de igualdade26.

D. Os direitos das mulheres

23. O precedente Relator especial sobre o direito à alimentação já analisou as razões pelas quais o pleno respeito dos direitos das mulheres reveste uma importância crucial para a fruição do direito a uma alimentação suficiente, nomeadamente sob os seus aspectos nutricionais27. Como o Banco Mundial sublinhou, são numerosas as sociedades onde são as mulheres, encarregadas, em primeiro lugar, de alimentar a família sem que tenham, por isso, o controlo dos recursos familiares. Além disso, em muitos países, é frequente ver que as mulheres e as raparigas estão, também, em desvantagem na distribuição dos alimentos no interior da família28.

O quadro global de acção é explícito quanto a este assunto29. Por conseguinte, é largamente admitido que seria necessário reforçar os direitos das mulheres, nomeadamente nas zonas rurais, como o prescreve o artigo 14 da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação em relação às mulheres, e que uma acção neste sentido poderia favorecer a segurança alimentar e nutritiva. No entanto, devido à existência de leis ou de costumes discriminatórios, subsistem muitos obstáculos quanto à aplicação dos direitos das mulheres a nível nacional. Conviria convidar os Estados a progredir mais sobre este terreno fazendo da realização dos direitos das mulheres uma componente explícita das suas estratégias nacionais de luta contra a crise alimentar.

IV. Um ambiente internacional propício

24. Adoptando, no âmbito dos Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento, o objectivo 8, prevendo a criação de uma parceria mundial para o desenvolvimento, os Estados-Membros apenas reafirmariam uma obrigação já imposta pelo direito internacional. Incumbe aos Estados não somente que respeitem e que protejam o direito a uma alimentação suficiente e de o concretizarem no território nacional, mas

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também que contribuam para a realização do direito à alimentação nos outros países e que instaurem um ambiente internacional que permita aos governos nacionais realizar o direito à alimentação nos territórios sob a sua jurisdição30. É a partir daqui que deveríamos interpretar o compromisso assumido pelos Estados, ao abrigo do Pacto, de adoptar medidas “para assegurar uma distribuição equitativa dos recursos alimentares mundiais em relação às necessidades, tendo em conta os problemas que se põem tanto aos países importadores como aos países exportadores de produtos alimentares” (art. 11.2 b)). Decorre do artigo 56 da Carta das Nações Unidas que os Estados devem agir conjuntamente para recensear e eliminar os obstáculos à plena realização do direito à alimentação. Embora o artigo 23 do Pacto não elabore uma lista exaustiva das medidas que poderiam constituir “a assistência e a cooperação internacionais” prescritas pelo Pacto, resulta claramente que a obrigação dos Estados na matéria não se limita ao fornecimento de uma ajuda financeira31. É necessário sobretudo considerar que esta obrigação é tripla: a) obrigação de não levar a efeito políticas que têm uma incidência negativa no direito a uma alimentação suficiente; b) obrigação de fazer de modo que terceiros, incluindo actores privados, não obstruam o usufruto do direito à alimentação; e c) obrigação de cooperar à escala internacional a fim de concorrer para a realização do direito à alimentação. Os organismos internacionais, pertençam ou não ao sistema das Nações Unidas, devem respeitar também o direito do homem a uma alimentação suficiente, em virtude do direito internacional público geral, e os Estados que são membros têm uma obrigação de se empenharem e verificar se as organizações internacionais, às quais delegam poderes, exercem estes direitos em conformidade com as suas obrigações em matéria de direitos do homem32.

A. A obrigação de não levar a efeito políticas que tenham uma incidência negativa sobre o direito a uma alimentação suficiente: o exemplo dos agrocarburantes.

25. O direito internacional obriga os Estados a reexaminar, para a alterar, qualquer política que tenha sido estabelecida e com uma incidência negativa no direito a uma alimentação suficiente ou sobre o direito de cada um estar ao abrigo da fome e da desnutrição. Esta regra é aplicável indiferentemente, quer a incidência

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tenha sido constatada no território do Estado que tomou a medida, ou fora das suas fronteiras nacionais, desde que exista uma relação de causalidade inequívoca entre a política em questão e a fruição do direito a uma alimentação suficiente.

26. É face a esta obrigação que convém examinar as políticas que preconizam a utilização de agrocarburantes em substituição dos combustíveis fósseis no sector dos transportes33. Estas políticas cobrem diversas formas e seria irresponsável condená-las em bloco e, por exemplo, classificar na mesma categoria a produção de bioenergia destinada a satisfazer as necessidades nacionais e a limitar a dependência de um país em relação a importações petrolíferas dispendiosas e o fabrico de agrocarburantes em grande escala para a exportação; de comparar o bioetanol produzido a partir do açúcar que provém do milho ou de outros cereais, como a mandioca, o trigo, o sorgo açucarado ou a beterraba açucareira; ou não fazer diferença entre o biodiesel procedente do óleo de colza e o que é fabricado a partir do óleo de palma ou do óleo de soja. Para avaliar a incidência da produção dos agrocarburantes sobre o direito à alimentação, convém não somente estabelecer distinções entre as plantas utilizadas como matérias-primas, mas também ter em conta os métodos de produção utilizados nos diversos sectores, porque cada um tem um impacto diferente na criação de empregos, no ambiente e sobre a segurança alimentar.

28. Primeiramente, o ritmo de desenvolvimento dos agrocarburantes tem alimentado, consideravelmente, o aumento dos preços de certos produtos agrícolas nos mercados internacionais, ameaçando assim a fruição do direito a uma alimentação suficiente. Calculou-se que cada aumento de um ponto de percentagem do preço dos alimentos básicos podia fazer deslocar 16 milhões de pessoas suplementares para a categoria de subalimentação34. As culturas alimentares actualmente utilizadas para produzir o etanol são também as que constituem o essencial do regime alimentar dos pobres. O milho, a cana-de-açúcar, a soja, a mandioca, o óleo de palma e o sorgo representam cerca de 30% do contributo calórico médio das pessoas que sofrem de fome crónica35. Os aumentos de preços

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não colocam um problema em si mesmo; em certas condições, em especial quando trazem vantagens às famílias rurais vendedores líquidas de géneros alimentícios e quando os compradores líquidos destes produtos são protegidos por medidas orientadas que visam aumentar o seu poder de compra, estes aumentos podem, então, ter efeitos benéficos, nomeadamente numa perspectiva dinâmica. No caso presente, no entanto, e devido ao facto de terem ocorrido de uma forma brutal e, também, ao nosso grau de não preparação, os seus efeitos negativos ultrapassam, e de longe, as suas repercussões positivas, pelo que conviria estar muito vigilante quanto à evolução da situação.

29. Em segundo lugar, já que a produção de agrocarburantes (em especial a de bioetanol, que é, proporcionalmente, a mais importante) tende a favorecer a concentração das terras e a expansão das grandes explorações agrícolas, cria-se uma pressão suplementar sobre os pequenos agricultores e representa uma ameaça para as populações autóctones do ponto de vista da utilização das terras. Esta aviva a concorrência para os solos aráveis e os recursos em água e constitui um perigo potencial para a biodiversidade. Pode certamente criar empregos (ainda que este ponto positivo deva ser posto na balança com o risco concomitante de destruição de meios de existência), mas as condições de trabalho nas grandes plantações características do sector dos agrocarburantes são frequentemente da competência da exploração.

30. Em terceiro lugar, a procura de agrocarburantes está concentrada nos países industrializados, enquanto é mais eficaz e mais rentável fabricar estes produtos nos países em desenvolvimento, tendo em conta a vantagem comparativa natural destes países na ausência de medidas de distorção do mercado. Os agrocarburantes favorecem uma forma de desenvolvimento económico baseada na expansão das culturas de rendimento da pequena agricultura, que põem ainda mais em confronto os interesses divergentes de um punhado de actores que produzem para a exportação e os dos outros produtores agrícolas e dos outros segmentos da população, que correm o risco de ver agravar-se a inflação dos preços alimentares.

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31. A conclusão que se deduz das informações e dos dados recolhidos é que esta via, actualmente seguida no que diz respeito ao desenvolvimento dos agrocarburantes para o sector dos transportes, não é viável e que, se não forem colocados obstáculos à expansão destes produtos, haverá novas infracções ao direito à alimentação. Esperando a emergência de um consenso internacional sobre esta questão, as autoridades públicas não deveriam autorizar novos investimentos em grande escala na produção de agrocarburantes para os transportes, a não ser que haja uma avaliação detalhada múltipla e que esta tenha conduzido a conclusões positivas relativamente às suas incidências, tanto a nível nacional como internacional, no direito à alimentação, nas condições sociais e nas questões de ocupação das terras, incluindo a deslocação de agricultores e o impacto ecológico indirecto que o projecto encarado poderia ter no plano da utilização terras. Conviria reexaminar todas as medidas destinadas a favorecer o desenvolvimento de um mercado para os agrocarburantes (prescrições relativas à mistura com combustíveis fósseis, subvenções e reduções fiscais) porque incitam os investidores não comerciais a especular sobre a manutenção dos preços das matérias-primas agrícolas a níveis elevados e ao seu aumento ulterior sob o efeito do crescimento da procura nos mercados internacionais, ligadas à criação deste mercado artificial.

32. Tratar-se-ia de acelerar os trabalhos que visam definir um consenso internacional sobre os agrocarburantes. Do parecer do Relator especial, este consenso deveria incidir sobre dois pontos. Primeiramente, seria necessário encontrar um acordo sobre directivas internacionais relativas à produção de agrocarburantes. Estas directivas deveriam ter em conta não somente as normas ambientais, mas, também, as prescrições dos instrumentos relativos aos direitos do homem, nomeadamente as que se referem ao direito à uma alimentação suficiente (como expostos em detalhe nas Directivas da FAO sobre o direito à alimentação), o direito a um alojamento suficiente (incluída a protecção contra as expulsões e as deslocações), os direitos dos trabalhadores (nomeadamente o direito a uma justa remuneração e o direito a condições de trabalho salubres), os direitos dos povos autóctones e os direitos das mulheres. Conviria convidar os países a não autorizar novos investimentos em agrocarburantes, a não ser sob a reserva da aplicação destas directivas.

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No mesmo espírito, o acesso aos mercados internacionais poderia ser subordinado ao respeito das referidas directivas36. Do mesmo modo, os Estados deveriam ser autorizados a dar preferência, no âmbito da sua política de importação, aos países que se conformem às directivas relativas à produção de agrocarburantes e excluir as importações provenientes de Estados que não as respeitam. Numa preocupação de certeza jurídica, seria possível pedir uma derrogação ao Conselho geral da Organização Mundial do Comércio a fim de garantir a compatibilidade de tal sistema com os princípios de não discriminação enunciados nos artigos I, XI e XIII do Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio.

33. Em segundo lugar, o novo consenso internacional sobre os agrocarburantes deveria prever a criação a nível internacional de uma instância permanente que asseguraria uma vigilância imparcial e objectiva do respeito pelas directivas e constituiria, ao mesmo tempo, uma plataforma de trocas sobre as melhores práticas na matéria. Tal instância deveria dispor de competências suficientes a respeito dos problemas de direitos do homem que a produção de agrocarburantes levanta, bem como dos recursos necessários para avaliar a incidência potencial de certas decisões de investimento sobre os preços dos produtos alimentares básicos, tanto à escala internacional como ao nível dos países, e por conseguinte para fornecer apreciações destinadas a guiar os Estados na aplicação das directivas.

34. Conviria igualmente estudar a possibilidade de atribuir quotas aos países para a produção de agrocarburantes. Ter-se-ia em conta, para o efeito, o balanço energético de cada modo de produção e a incidência deste tipo de produção nas cotações internacionais das matérias-primas agrícolas, da mesma maneira que o risco de distorção do desenvolvimento nos países produtores, que actuaria em prol dos agricultores que produzem matérias-primas para o fabrico de combustíveis, mas que, ao mesmo tempo, representaria uma ameaça para o acesso à terra e a água dos outros produtores, nomeadamente dos pequenos camponeses cuja produção se destina ao consumo interno e faria subir os preços dos géneros alimentícios nos mercados locais.

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B. A obrigação de proteger o direito a uma alimentação suficiente pelo controlo dos actores privados

35. Todos os Estados devem proteger de maneira efectiva o direito à alimentação regulamentando as actividades das sociedades a todos os níveis da cadeia de produção e de distribuição alimentar, em conformidade com o artigo 11 do Pacto internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais37 e as Directivas da FAO sobre o direito à alimentação38. O Conselho dos direitos do homem pretende que os actores privados “tenham em conta plenamente a necessidade de promover a realização efectiva do direito à alimentação para todos”39. No entanto, como assinalou o Representante especial do Secretário-geral encarregado da questão dos direitos do homem e as sociedades transnacionais e outras empresas no mais recente relatório ao Conselho, o papel que incumbe aos Estados é de se assegurem de que estas entidades respeitam as suas obrigações em matéria de direitos do homem que continua a ser primordial40.

36. No âmbito das discussões efectuadas a nível intergovernamental, não tem sido feita menção, até agora, ao papel da indústria agroalimentar e dos distribuidores mundiais na procura de soluções para o problema criado pelo aumento dos preços nos mercados internacionais. No entanto, estes actores intervêm nas soluções. A diferença entre os preços na exploração agrícola (recebidos pelo agricultor) e os preços pagos pelo consumidor alarga-se e, então, mesmo que os aumentos de preços recentes atinjam duramente os consumidores de numerosos países, daqui não resultam, no essencial, ganhos para os pequenos empresários. Este fenómeno pode explicar-se por duas particularidades da organização da cadeia de produção e de distribuição alimentar.

Primeiramente, a nível horizontal, o sector da agricultura “dualiza-se” cada vez mais: por um lado, a grande maioria das explorações (85%) está nas mãos de pequenos camponeses, enquanto, por outro lado, 0,5% das explorações mundiais de superfície superior a 100 hectares monopolizam uma percentagem desproporcionada do rendimento agrícola global e das subvenções públicas, nos países desenvolvidos41.

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Em segundo lugar, a nível vertical, os produtores agrícolas defrontam-se com uma concentração crescente, ao mesmo tempo na fase da aquisição de factores de produção e na fase da venda dos seus produtos. A agricultura é um dos raros sectores onde os factores de produção são comprados a preços de retalho e os produtos vendidos a preços de atacado, ou por grosso42. Nas duas extremidades da cadeia (produtores e retalhistas), assim como a nível intermédio (transformação dos produtos), o grau de concentração é particularmente elevado. Assim, as 10 principais sociedades de distribuição alimentar repartem 24% de um mercado mundial que representa 3,5 mil milhões de dólares, e as suas actividades nos países em desenvolvimento conheceram um desenvolvimento espectacular ao longo dos últimos anos.

37. O investimento privado na agricultura é igualmente vital, feito tanto pelas empresas agro-industriais como pelos distribuidores mundiais, que têm um papel crucial a desempenhar pois são estes que fazem a ligação entre os agricultores e os mercados de valor elevado. No entanto, o desequilíbrio das forças em presença constitui um grande obstáculo ao bom funcionamento da cadeia alimentar. A maior parte das grandes empresas agro-industriais têm a sua sede em países industrializados e os desequilíbrios constatados no sistema comercial mundial encontram-se agravados. O Banco Mundial por exemplo sublinhou que, devido à forte concentração dos torrefactores e dos retalhistas de café, a proporção do preço de venda ao público retida nos países produtores de café – o Brasil, a Colômbia, a Indonésia e o Vietname que compartilham 64% da produção mundial – passou de um terço no início dos anos 90 a 10% em 2002, enquanto o valor das vendas a retalho duplicou. O Banco Mundial também calculou que a parte do valor acrescentado das matérias-primas agrícolas que cabe aos países em desenvolvimento terá caído de cerca de 60%, em 1970-72, para cerca de 28%, em 1998-200043. Estes números fazem apenas sublinhar o quanto é importante, por um lado, apoiar os pequenos agricultores e as organizações que os representam, em especial nas zonas mais pobres e remotas, para lhes permitir desempenhar um papel efectivo na satisfação da procura crescente de géneros alimentares e atingir assim um nível de vida suficiente, e, por outro lado, reflectir com o sector agro-industrial a forma como este poderia contribuir para a realização deste objectivo.

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38. No exercício do seu mandato, o Relator especial, agindo em estreita cooperação com o Relator especial do Secretário-Geral responsável pela questão dos direitos do homem e das sociedades transnacionais e outras empresas, estudará este problema de acordo com dois eixos. Primeiramente, esforçar-se-á em estabelecer um diálogo com a indústria agro-alimentar a fim de determinar como esta última poderia tomar parte na realização do direito a uma alimentação suficiente, tendo em conta não somente as obrigações que lhe incumbem para com os trabalhadores da cadeia alimentar, mas também os meios pelos quais as suas práticas em matéria de compras poderiam conduzir a formas de comércio mais equitativas. Em segundo lugar, reflectirá sobre a maneira como os Estados se poderiam conformar na obrigação que lhes incumbe de proteger os direitos do homem no âmbito da cadeia de produção e de distribuição alimentar, nomeadamente, fazendo um melhor uso dos regulamentos antitrust.

C. A obrigação de cooperar à escala internacional a fim de contribuir para a realização do direito à alimentação

39. A obrigação feita aos Estados, em virtude do Artigo 56 da Carta das Nações Unidas, de agir, tanto conjunta como separadamente, para assegurar a plena realização dos direitos do homem e das liberdades fundamentais não se limita ao abster-se de adoptar medidas susceptíveis de infringir à fruição destes direitos. Como ressalta claramente da minuta do artigo 23 do Pacto internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais, a acção dos Estados pode compreender a adopção de medidas, entre as quais a negociação de acordos internacionais.

40. Nesta óptica, trata-se primeiro de determinar qual a resposta concertada da comunidade internacional para se impor perante a situação criada pelo aumento dos preços dos géneros alimentícios nos mercados internacionais, tendo em conta a obrigação feita pelo direito internacional a todos os Estados de respeitar o direito a uma alimentação suficiente. O objectivo desta acção concertada deveria ser a de atacar não somente os efeitos a curto prazo da crise actual, mas também as causas estruturais que levaram à subida vertiginosa dos preços dos bens alimentares.

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A presente crise sublinhou a necessidade de agir segundo três planos. O objectivo N.º 1 da nova parceria para a agricultura e a alimentação deveria ser a de se empenhar nesta dimensão.

1. A necessidade de uma cooperação internacional

a) Lutar contra os efeitos negativos da especulação

41. Numerosos observadores da crise actual evocaram o papel desempenhado pela especulação nos mercados de produtos primários, e em especial, nos mercados de géneros alimentares, na explosão dos preços registada em 2006 e 200744. Alguns preocuparam-se em saber se os contributos maciços de fundos dos investidores financeiros nos mercados a prazo e mercados de opções sobre produtos agrícolas não teriam provocado um aumento dos preços e não teriam contribuído para a instabilidade das cotações, a qual não é nem no interesse dos consumidores (para quem corre o risco de impor aumentos de preços), nem no interesse dos produtores (para quem corre o risco de tornar crédito inacessível), nem dos governos (que podem ser chamados a socorrer a falta de rendimento dos mais necessitados através dos seus programas sociais). Os que especulam sobre os índices desempenham um papel não negligenciável e potencialmente desestabilizador, porque as suas decisões de investimento nos produtos básicos são da competência estrita da gestão de carteira de títulos e não têm, portanto, nenhuma relação com os factores fundamentais da oferta e da procura. O novo interesse manifestado por estes investidores em relação aos produtos primários45 devido aos fracos rendimentos bolsistas e à crise dos empréstimos hipotecários de risco contribuiu para fazer subir os preços internacionais destes produtos nos lugares especializados, como Chicago Board for Trade (Bolsa de Comércio de Chicago).

42. O recurso a mecanismos como a constituição de reservas estratégicas de cereais a nível nacional ou, se possível, a nível local, poderia revelar-se muito útil para combater os efeitos da instabilidade dos preços e tornar assim a especulação não comercial menos atractiva. Conviria, por conseguinte, apoiar os bancos locais

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de apoio aos agricultores de cereais que estão instalados nas comunidades rurais das regiões mais vulneráveis do mundo. Seria oportuno confiar às comunidades locais a gestão do acesso a estes estabelecimentos e a sua supervisão e, quando tal é possível, constituir existências de alimentos básicos produzidos e consumidos localmente. Será necessário, além disso, que a comunidade internacional esteja mais atenta ao fenómeno da especulação porque os Estados ao agirem unilateralmente podem ter dificuldades em atacar verdadeiramente os seus efeitos sobre as cotações dos mercados internacionais, nomeadamente por uma melhoria na regulação dos fundos de investimento ou pela tributação de tais movimentos de fundos.

43. Entre as propostas que foram feitas figura a de se colocar em comum uma parte das reservas cerealíferas estratégicas detidas pelos Estados, a fim de se constituir o que os líderes do G-8 chamaram “um sistema “virtual” de reservas para fins humanitários que seria objecto de uma coordenação internacional”46. O principal objectivo de uma reserva estratégica virtual seria permitir aos Estados em dificuldades com uma situação de emergência, devido a um conflito ou a condições meteorológicas adversas, por exemplo, adquirirem alimentos a um preço que seja razoável e sobretudo previsível, sendo que os Estados participantes na constituição da reserva mundial teriam, com efeito, tomado o compromisso de vender a preço previamente estabelecidos. Assim, a ocorrência brutal de choques não incentivaria a especulação, visto que, os países devidos que necessitassem de importar, com urgência, quantidades importantes de alimentos não passariam pelos mecanismos habituais do mercado47.

Uma versão mais ambiciosa desta proposta consistiria em estabelecer reservas de cereais de regulação internacional para estabilizar os preços dos produtos alimentares, como o que foi feito, nos anos 60 e 70, através do Acordo internacional sobre o cacau ou o Acordo internacional sobre o café. Com a condição de ser apoiado por um número suficiente de países-membros importadores e exportadores, de se fixarem preços indicativos realistas e de beneficiaram de financiamentos suficientes de modo a que seja possível suportar períodos prolongados de preços baixos, tais acordos poderiam desempenhar um papel estabilizador importante, em proveito

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tanto dos países exportadores como dos países importadores. Ainda aqui, a especulação que nasce da antecipação da evolução futura dos preços, as medidas que tendem a estabilizar os preços, assim como o restabelecimento de existências reguladores internacionais, permitiria prevenir o fenómeno e evitar, assim, o seu impacto negativo nos preços do mercado a montante, no interesse tanto dos negociantes como dos consumidores.

b) Incentivar a criação de redes de protecção social pela criação de um fundo mundial de confiança

44. Agir sobre os preços é, certamente, necessário, mas não é suficiente. É necessário também, para estimular a oferta, que os produtores agrícolas obtenham apoios através de programas públicos destinados a melhorar a sua capacidade de produção e é necessário, além disso, que os países estejam em condições de defender a sua população dos efeitos da variabilidade acrescida dos preços alimentares.

De facto, de acordo com as Directivas da FAO sobre o direito à alimentação, conviria que os Estados criem e preservem as redes de segurança, a fim de proteger os que não podem assegurar a sua própria subsistência. No entanto, a incerteza quanto aos choques futuros que a sua economia poderia sofrer não incita apenas os países pobres a dotarem-se de redes de protecção social sólidas, porque sabem que tais choques, que viriam aumentar brutalmente as necessidades da população, poderiam pesar fortemente sobre os seus recursos financeiros. Perante este problema, foi sugerido estabelecer um fundo mundial de confiança que ofereceria aos países pobres um seguro contra os choques brutais, de origem interna ou externa, tendo por efeito aumentar a procura de apoio social em proporções financeiramente insustentáveis para os países atingidos48.

c) O papel do comércio internacional

45. Entre os elementos de resposta à crise, alguns apelos foram lançados em prol de uma liberalização mais acentuada das trocas comerciais, e mais precisamente

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a realização rápida do ciclo de negociações de Doha, realizado sob a égide da Organização Mundial do Comércio.

Não nos poderíamos satisfazer, contudo, com um qualquer acordo. Como está indicado no Âmbito global de acção, só um sistema comercial internacional equitativo pode contribuir para a realização da segurança alimentar. Existem todas as razões para pensar que a liberalização precipitada e não equitativa das trocas ocorrida no sector agrícola, em conformidade com as prescrições formuladas pelas instituições financeiras internacionais nos anos 80, é uma das razões da estagnação deste sector em certos países em desenvolvimento, nomeadamente na África subsariana. Além de serem postos perante uma dura prova pelo Estado, através da manipulação das taxas de câmbio, da criação de monopólios para públicos para a transformação e o comércio dos produtos e da fixação estatal dos preços, os agricultores locais foram enfraquecidos por uma concorrência estrangeira consideravelmente falseada. As negociações comerciais do Ciclo do Uruguai, que conduziram à criação da Organização Mundial do Comércio e à conclusão do acordo sobre a agricultura, não obviaram em nada esta situação e nada permite ainda afirmar que o ciclo de negociações lançadas em Doha, em Novembro de 2001, dará as respostas satisfatórias pedidas pela Conferência das Nações Unidas sobre o comércio e o desenvolvimento no Consenso de São Paulo49. Com efeito, estando os grandes produtores agrícolas geralmente melhor colocados para tirar partido das possibilidades oferecidas pela liberalização das trocas comerciais pelo facto de se poderem adaptar mais facilmente às exigências dos compradores e dos retalhistas mundiais de géneros alimentícios em matéria de volumes e normas, o desenvolvimento agrícola centrado na exportação corre o risco extremamente forte de marginalizar ainda mais os pequenos camponeses e de agravar a sua insegurança alimentar, em vez de melhorar o seu destino.

46. A oportunidade de fazer figurar a liberalização das trocas comerciais entre as soluções possíveis para assegurar a segurança alimentar do planeta dependerá de diversos de factores, em especial da questão de se saber: a) se é possível proteger eficazmente aos produtores agrícolas mais vulneráveis dos países em desenvolvimento

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dos efeitos negativos das importações de produtos agrícolas vendidos a muito menor preço nos mercados internacionais e, especialmente, de produtos escoados a um preço inferior ao seu custo de produção; b) se o desenvolvimento das culturas de exportação induzido pela liberalização das trocas comerciais se pode fazer sem que os pequenos camponeses sejam prejudicados, devido, nomeadamente, a uma intensificação da concorrência pelos recursos produtivos como a terra, a água, os dispositivos de irrigação e as infra-estruturas, na medida em que as grandes explorações tendem a monopolizar as infra-estruturas e os serviços rurais; c) se se atacam verdadeiramente os problemas criados por uma concentração excessiva no sector agro-industrial; e d) que medidas serão tomadas para facilitar o acesso, aos mercados dos países industrializados, por parte dos pequenos produtores dos países em desenvolvimento50.

d) Os direitos de propriedade intelectual

47. Convém, por último, sublinhar que não foi dito em parte nenhuma que a protecção dos direitos de propriedade intelectual sobre as variedades de plantas ou de sementes poderia constituir um assunto de preocupação. No entanto, como o Relator especial explicou detalhadamente no seu primeiro relatório à Assembleia Geral, os regimes que impedem os agricultores de reutilizar e trocar sementes são susceptíveis de ter graves consequências, por um lado, para os interessados, que podem ter dificuldades para continuar as suas culturas, e, por outro, do ponto de vista da biodiversidade agrícola e, por conseguinte, da capacidade do planeta em alimentar duravelmente a sua população.

2. Para uma nova parceria mundial para a agricultura e a alimentação

48. A ideia de uma parceria mundial para a agricultura e a alimentação apareceu como uma resposta institucional possível à crise alimentar mundial51. Se tal parceria devesse ver a luz do dia, seria necessário que trouxesse, ao mesmo tempo, um verdadeiro valor acrescentado e que desse a garantia que a criação de uma nova estrutura de coordenação é preferível ao reforço dos organismos existentes.

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Qualquer reflexão deveria começar por um reexame das razões da supressão do Conselho mundial da alimentação em 1996. Além disso, o interesse de uma nova iniciativa institucional para a realização do direito à alimentação depende da aptidão da estrutura, que será criada na sequência das discussões actuais, em explorar as estratégias definidas à escala nacional, com a participação activa daqueles que são atingidos directamente pelos problemas da fome e da desnutrição. O Relator especial desejaria formular a seguir algumas observações suplementares sobre a questão.

49. Qualquer parceria mundial para a alimentação e a agricultura deveria ter por objectivo assegurar a segurança alimentar e nutritiva à escala mundial, a fim de contribuir para a realização do direito à alimentação, sendo dada uma atenção particular às categorias da população mais vulneráveis. Tratar-se-ia não somente de aumentar a oferta de géneros alimentícios, mas também contribuir para o respeito do direito a uma alimentação suficiente, nomeadamente sob os seus aspectos nutritivos. Qualquer iniciativa que vise reforçar a coordenação internacional para atingir este objectivo deveria, por conseguinte, ter em conta, para além da situação específica da agricultura, as questões de saúde, de educação, de comércio e de ambiente. O objectivo deveria ser assegurar a segurança alimentar e nutritiva das famílias, a qual implica mais que um contributo calórico suficiente; exige também que se dê a atenção necessária ao serviço de saúde e à oferta de prestações adequadas às pessoas vulneráveis. A crise alimentar actual vai provavelmente aumentar o número de famílias com rendimentos modestos compradores líquidos de alimentos que, para poder manter o seu consumo básico de alimentos, sacrificarão a diversidade do seu regime alimentar. O estado nutritivo da população não deixará de se ressentir e corre o risco de, nomeadamente, se observarem carências em micronutrientes, sobretudo nas mulheres e nas crianças. Impõem-se, por conseguinte, esforços especiais para tratar ao mesmo tempo a questão da segurança alimentar e a da segurança nutritiva em geral, sem o que as possibilidades dos grupos mais vulneráveis beneficiarem da realização do direito a uma alimentação satisfatória do ponto de vista nutritivo estarão comprometidas. Conviria recorrer às vastas competências do Comité permanente da nutrição para fazer com que este aspecto do problema seja devidamente tido em conta.

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50. Uma parceria mundial para a alimentação e a agricultura pode permitir que se atinja maior transparência tratando-se, por um lado, do acompanhamento da realização dos compromissos tomados pelos países, especialmente no que diz respeito às contribuições para a ajuda pública ao desenvolvimento e ao uso que é feito (níveis e previsibilidade da ajuda e afectação de certa proporção desta, assim como dos orçamentos nacionais à satisfação das necessidades do sector agrícola, em função das condições e das necessidades locais, nomeadamente), e, por outro, do impacto das políticas levadas a efeito, aos níveis nacionais, regionais e internacionais, sobre o direito a uma alimentação suficiente. Se se quiser confiar nos indicadores e valores de referência para medir os progressos realizados no sentido da segurança alimentar e nutritiva mundial, é necessário que estes instrumentos sejam fundados nas diferentes componentes do direito a uma alimentação suficiente e ventilados de tal forma que permitam apreciar os efeitos das políticas efectuadas sobre todos os grupos vulneráveis, em especial as mulheres, as crianças, as populações autóctones, as pessoas deslocadas e os refugiados, bem como os pequenos empresários e os camponeses sem terra.

51. Se um órgão científico devesse ser criado no âmbito de uma nova parceria mundial para a alimentação e a agricultura, conviria seleccionar com cuidado os peritos que dele fariam parte, para se assegurar a sua total independência e imparcialidade. É do mesmo modo primordial recorrer à enorme gama de competências reunidas nas instituições das Nações Unidas que têm a sua sede em Roma (FAO, Fundo internacional de desenvolvimento agrícola e Programa alimentar mundial) e tomar como ponto de partida, em qualquer domínio, o que foi já tratado pela Avaliação internacional dos conhecimentos, ciências e tecnologias agrícolas para o desenvolvimento, as investigações efectuadas neste quadro. Para além de que seria bastante vão repetir um trabalho já realizado e o facto de formular uma sugestão neste sentido poderia levar a pensar que as conclusões da Avaliação foram deixadas de lado porque impróprias.

52. Se um novo fundo mundial devesse ser criado no âmbito de uma nova parceria para a alimentação e a agricultura, seria necessário que fosse acessível aos

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organismos que operam já nestes domínios. Toda e qualquer concorrência aos recursos deve ser evitada. Um novo fundo poderia contudo apresentar vantagem, em relação aos dispositivos existentes, de compreender no número dos seus mecanismos o fundo mundial de confiança (ver parágrafo 44 acima); poderia também servir para gerir a reserva internacional virtual de alimentos que seria eventualmente criada para responder às necessidades urgentes dos países sem estar a perturbar os mercados, bem como para financiar existências de reguladores internacionais no âmbito de acordos internacionais sobre os produtos básicos.

V. Conclusões

53. A subida das cotações dos produtos alimentares nos mercados internacionais tem um efeito muito negativo sobre o direito à alimentação das famílias mais pobres, que são compradores líquidos de alimentos, e as suas consequências são particularmente desastrosas nos países onde as redes de protecção social são inexistentes ou insuficientes para suportar o choque. Assim, serão pouco numerosos os pequenos empresários a aproveitar deste aumento, porque devem fazer face a um forte aumento dos custos e não dispõem das infra-estruturas e dos apoios necessários para poder aumentar a oferta alimentar. Por conseguinte, embora seja indubitavelmente necessário que se ataque o problema da tensão entre a oferta e a procura, a fim de reconstituir as reservas alimentares, subindo o nível da produção agrícola, limitando ao mesmo tempo os desperdícios e o consumo excessivo, o importante, do ponto de vista dos direitos do homem, é saber quem produzirá os produtos alimentares e em proveito de quem.

A situação actual cria oportunidades, mas trata-se de não confundir oportunidades e soluções. É certamente necessário investir mais na agricultura e nas infra-estruturas rurais para recuperar o atraso acumulado após tantos anos de negligência, mas convém acompanhar de perto a forma como os investimentos são orientados, as formas que tomam, bem como os seus efeitos. Se uma nova parceria para a agricultura e a alimentação deve ver o dia na sequência da crise actual, é crucial fazer de modo a que não se tenha por simples objectivo estimular a oferta, inspirando-

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se graças a receitas à base de tecnologia, mas que se dê também a possibilidade de agir àqueles que sofrem da fome e da desnutrição e cujos meios de subsistência correm o risco precisamente de ser ameaçados pela renovação de interesse pelo desenvolvimento da produção agrícola. Um quadro fundado sobre os direitos do homem ajudaria a manter a procura de soluções nesta direcção, porque garantiria que a prioridade é atribuída aos grupos mais vulneráveis e asseguraria uma melhor responsabilização e uma participação acrescida na tomada de decisões. É portanto deplorável que tal quadro de trabalho nunca tenha sido posto em análise nas discussões actuais.

54. O Relator especial pede ao Conselho dos Direitos do Homem que:

a) se continue a seguir as iniciativas tomadas pelos governos, pelo sector privado e pelos organismos internacionais para obviar à crise alimentar mundial e participar no debate sobre a necessidade de uma parceria mundial futura para a agricultura e a alimentação, velando para que tal iniciativa tenha em conta as considerações ligadas aos direitos do homem e seja fundada numa participação efectiva dos titulares de direitos;

b) se incentivem os Estados a elaborar estratégias nacionais para a realização do direito a uma alimentação suficiente, prevendo, nomeadamente, o estabelecimento de uma cartografia da insegurança alimentar, a adopção de uma legislação e políticas relevantes que se inscrevam no respeito do direito à alimentação, na criação de mecanismos capazes de assegurar a responsabilização pretendida, de modo que os titulares de direitos possam alegar o seu direito à alimentação, bem como de mecanismos e processos que permitam aos interessados, em especial aos mais vulneráveis entre eles, participar verdadeiramente na elaboração desta legislação e destas políticas e cuidar da vigilância da sua aplicação. Estas estratégias deveriam ter especialmente em conta a necessidade de reforçar a protecção dos direitos do homem dos grupos mais vulneráveis, nomeadamente os utilizadores de terras privadas de segurança fundiária, os camponeses sem terra, as mulheres, as pessoas deslocadas, as populações autóctones, as minorias, as pessoas deficientes bem como os pobres das zonas rurais e urbanas;

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c) se incentive a emergência de um consenso internacional sobre os agrocarburantes, fundado na dupla necessidade de evitar que o desenvolvimento destes produtos tenha um efeito negativo para as cotações internacionais dos produtos alimentares básicos e velar para que a produção de agrocarburantes seja respeitadora da totalidade dos direitos do homem e não falseie o processo de desenvolvimento nos países produtores;

d) se insista de maneira que todos os Estados façam de modo a que terceiros, incluindo actores privados, não travem o exercício do direito a uma alimentação suficiente e que precise como é que o sector privado pode contribuir para instaurar um sistema de produção e de distribuição alimentar mais equitativa;

e) se peça a realização de estudos complementares sobre o papel da cooperação internacional na luta contra os efeitos negativos da especulação não comercial nas cotações dos produtos agrícolas primários e, em especial, nas respectivas funções que poderia desempenhar uma reserva mundial virtual e os acordos internacionais sobre os produtos básicos;

f ) se examine a contribuição que a criação de um fundo mundial de confiança poderia trazer à realização do direito a uma alimentação suficiente.

Anexo: Crise alimentar global e as respostas da comunidade internacional: uma síntese

1. Este anexo recorda de forma sucinta momentaneamente as origens da crise alimentar global actual (1.), o contexto histórico mais vasto em que pode ser compreendida (2.), os impactos principais (3.), e as respostas da comunidade internacional (4.). Deve ser lido como um complemento à análise inicial fornecida pelo relator especial sobre a crise alimentar global, com os dados agora aqui incluídos52.

1. As origens da crise alimentar global

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2. Uma vez que já estão publicados um certo número de estudos quanto às origens da subida nos preços dos produtos alimentares nos mercados internacionais em 2007-0853. Basta-nos então aqui uma breve síntese do consenso emergente sobre o tema. Enquanto observadores independentes diferem na importância relativa dos diferentes factores que desempenharam um papel – que certamente, devido às suas inter-relações são difíceis de separar uns dos outros – há um amplo acordo pelo menos na identidade destes factores. O aumento no preço do petróleo conduziu a uma subida correspondente no custo de produção dos alimentos, por causa dos custos dos fertilizantes e dos insecticidas e por causa do transporte, empacotamento e das despesas de fabricação, alargando a clivagem entre preços de produção à saída do agricultor e preços de mercado54. Conduziu igualmente a uma procura mais elevada de agrofuel, particularmente, de milho, soja e óleo de palma, criando mais concorrência sobre as terras de cultivo entre alimentação, alimentação para gado e agrocarburantes e um impulso na procura de cereais. A tensão resultante entre a oferta e a procura foi acentuada, do lado da oferta, por outros factores, alguns puramente conjunturais, outros de natureza mais estrutural. Os acontecimentos climáticos de 2005-06 conduziram a colheitas piores do que as já esperadas nalguns dos maiores países exportadores, embora o nível total de produção permanecesse estável. Mas mais importante ainda, a produção agrícola precisa de tempo para se adaptar aos sinais dos preços, porque exige investimentos novos, a absorção de tecnologias novas ou ainda exige mudar para colheitas de maior valor acrescentado. No contexto actual, o custo de energia, para a produção de alimentos e para os transportes, retardou ainda mais a capacidade dos produtores em responder à variação da procura. E em muitas regiões, os produtores agrícolas foram incapazes de continuar a melhorar a sua produtividade por hectare como o têm vindo a fazer desde os anos 60 – ou porque a produtividade é já de tal forma alta que as margens de melhoria são quase inexistentes (como na União Europeia, nos Estados Unidos, Canadá ou Austrália), ou por causa do insuficiente acesso ao crédito e das infra-estruturas, dos solos esgotados e de um sistema de comércio internacional nos produtos agrícolas, que, depois dos anos 80, reduziu a produção agrícola naqueles países que tinham níveis abaixo do rendimento de subsistência (como na África subsariana onde subsistem as margens importantes para melhorias de produtividade).

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3. Pelo lado da procura, a continuação dos níveis de consumo nos países industrializados, em particular dos alimentos ricos em proteína animal, tais como os produtos lácteos e a carne, seriam insustentáveis se tivessem sido replicados à escala universal, e melhorando consideravelmente as dietas, as economias em crescimento rápido – embora ainda estejam bastante longe dos níveis de consumo conseguidos nos países do OCDE – contribuiriam ainda mais para aplicar uma certa pressão sobre os mercados. Estas mudanças nos regimes alimentares multiplicam o impacto do crescimento demográfico natural, que aumenta aproximadamente 75 milhões de pessoas todos os anos. Finalmente, o aumento resultante dos preços de produtos básicos da agricultura nos mercados internacionais foi agravado severamente (embora não causado por) pela chegada àqueles mercados dos investidores não-comerciais, os especuladores, que se deslocaram maciçamente para os produtos agrícolas básicos em 2006 e, especialmente, em 2007. Embora haja desacordo sobre se isto, em si mesmo, contribuiu ou não para a subida dos preços, é certo, porém, que conduziu a uma maior volatilidade nos mercados envolvidos.

2. A crise em perspectiva histórica

4. Há alguma analogia entre a crise actual e as situações de crise anteriores. Depois dos choques do preço do petróleo de 1973 e de 1979, os choques repentinos, pelo lado oferta, tinham gerado preços das matérias-primas significativamente mais altos. Especialmente em 1972-73, devido à redução na colheita de trigo na URSS, os preços dos cereais subiram e ficaram em proporções comparáveis àquelas que estamos hoje a testemunhar. Depois que a União Soviética decidiu comprar quantidades significativas de cereais nos mercados mundiais, os preços triplicaram entre meados de 1972 e meados de 1973. Em consequência deste pico nos preços, o sector privado investiu mais na agricultura e foram implantadas políticas nacionais para incentivar a produção. Em consequência dos ganhos resultantes da eficiência, os preços desceram para os seus níveis anteriores55. A tendência para preços constantemente mais baixos continuou ao longo dos anos 80 e dos anos 90, com excepção de um pequeno aumento em 1979-80 e durante meados dos anos 90. Estas evoluções são reflectidas no valor real do índice alargado do preço dos

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alimentos da FAO. O índice alcançou o seu pico em 1974 (250) e, a partir daí, tem vindo a declinar até ao final dos anos 80 (100), seguindo-se um pequeno aumento, em meados dos anos 90, seguido depois por um baixo valor histórico, em 1999. Entre 2000-05 tem aumentado a uma taxa de 1,3% por ano e aumentou de 15% ao ano desde 2006, alcançando um nível de 160, em 2008.

Preços mundiais dos bens alimentares, dólares/tonelada

Nota: Todos os preços estão ajustados pela inflação.

Fonte: FAO/OCDE.

5. O declínio estrutural nos preços de produtos agrícolas básicos ao longo dos últimos 30 anos impediu claramente o desenvolvimento do sector agrícola nalguns países em vias de desenvolvimento. Os preços dos mercados internacionais eram baixos devido a dois factores:

– aumentos notáveis na produtividade por hectare, devido à mecanização e ao uso de sementes melhoradas e de outros inputs em determinados países em vias de desenvolvimento quando os salários médios permaneceram baixos;

– apoio público alto aos agricultores, incluindo mesmo a forma de subsídios à exportação, nos países industrializados com salários elevados.

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O resultado foi, para muitos agricultores do sul, que passou a haver poucos incentivos para produzir muito para além dos níveis de subsistência, mesmo quando poderiam conseguir tais níveis - embora frequentemente não o pudessem. Isto foi ainda mais agravado pela redução do sector público na agricultura, em parte, porque as instituições, como as encarregadas de estabilizar os preços, “marketing boards”, foram consideradas ineficientes e, às vezes, mal geridas e foram desactivadas depois das prescrições das instituições financeiras internacionais, e, em parte, porque muito pouco do orçamento público foi investido na agricultura, nos serviços rurais e no desenvolvimento das infra-estruturas para as áreas rurais. Seguiram-se então o empobrecimento maciço das áreas rurais e o êxodo rural. Um número de países que eram antes auto-suficientes em alimentos tornaram-se em importadores líquidos nos anos 8056.

A situação resultante não era sustentável. Mesmo nos casos em estes países importadores poderiam alimentar a sua população, em particular dado o forte crescimento dos pobres nas zonas urbanos, que saíram do campo devido à existência de alimentos relativamente baratos de que os mercados internacionais se desembaraçaram, o declínio do sector agrícola fez com que estes países ficassem extremamente vulneráveis aos choques externos e particularmente vulneráveis face às subidas repentinas nos preços dos produtos negociados nos mercados internacionais. Esta é a crise que enfrentam agora.

3. As consequências57

6. O aumento em 2006-08 dos preços de produtos alimentares nos mercados internacionais foi praticamente sem precedentes na sua dimensão e na sua brutalidade. O impacto foi severo na capacidade das agências internacionais em fornecerem alimentos, especialmente onde os níveis de ajuda alimentar fornecidos pelos governos são calculados mais em preços do que em volume. A forte subida nos preços aumentou igualmente as contas de importação dos países pobres que são importadores líquidos. A conta de importação esperada em produtos alimentares dos países de baixo rendimento

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e deficitários em produtos alimentares deve alcançar 169 milhares de milhões de dólares em 2008, ou seja mais 40% do que em 2007. Os países em vias de desenvolvimento no seu conjunto podiam enfrentar um aumento de 33% na sua procura agregada de bens alimentares importados, resultantes de um aumento de 13% no ano anterior. Os efeitos de aumentos dos preços dos alimentos na balança comercial são assim significativos, especialmente quando combinados com os impactos dos aumentos de preços de combustível, que frequentemente são ainda mais importantes.

De acordo com dados do Banco Mundial, África e Ásia são os principais vencidos com o aumento do preço dos bens alimentares uma vez que a maioria destes países são importadores líquidos de produtos alimentares. A maioria dos países do mundo desenvolvido, da Rússia, da América Latina e do Sudeste Asiático melhoraram a sua balança comercial em consequência do aumento do preço dos alimentos. Entretanto, uma vez que nem todos os preços das mercadorias alimentares aumentaram à mesma taxa, as estruturas de consumo variaram diferentemente de país para país e, como os países tendem a importar alguns produtos e exportar outros, seria necessário uma análise cuidadosa para determinar que países ganham e perdem devido aos aumentos actuais dos preços dos alimentares. Adicionalmente, as mudanças da taxa de câmbio podem reduzir ou agravar o impacto da mudança dos preços internacionais dos alimentos.

Mesmo os países exportadores líquidos em bens alimentares poderiam agravar a sua balança comercial se as mercadorias que importam crescerem mais em preços, quando comparados com os preços e as quantidades dos bens que exportam. Assim, caso a caso, é necessária uma análise detalhada para determinar o impacto ao nível de cada país.

7. O mapa seguinte descreve o impacte nos contrapesos de comércio dos países.

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Impacte dos aumentos esperados dos preços dos bens alimentares nas balanças comerciais, 2007-08

8. O impacte do aumento dos preços dos alimentos nos mercados internacionais foi severo para os compradores líquidos de bens alimentares nos países em que os consumidores não estão suficientemente imunes de tais impactos. Particularmente estão em risco os trabalhadores sem-terra e os pobres das zonas urbanas. Mas entre os vencidos está, igualmente, um grande número de pequenos agricultores, eles mesmos, compradores líquidos de bens alimentares e que são incapazes de tirar proveito do aumento nos preços dos mercados internacionais, porque o aumento ocorre numa altura em que o preço dos seus materiais de produção atinge níveis recordes e porque não estão conectados à cadeia global da oferta58. Ao mesmo tempo, outros beneficiaram: as empresas globais do negócio em produtos da agricultura e os retalhistas dos produtos alimentares, comerciantes e especuladores, um pequeno número de países exportadores e grandes produtores agrícolas bem ligados aos mercados internacionais.

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4. As respostas

9. A crise alimentar global conduziu a reacções que se desencadearam em três tipos de fases, parcialmente sobrepostas. Durante a primeira fase da crise, um certo número de governos adoptaram medidas numa base unilateral, sem coordenação. Alguns países procuraram descer os preços nacionais reduzindo as tarifas de importação ou impondo limitações à exportação, sob a forma dos impostos de exportação ou mesmo de proibições das exportações em determinadas categorias de colheitas de produtos alimentares. A redução das tarifas nas importações forneceu a ajuda temporária aos consumidores, embora a um custo fiscal elevado nos países cujo orçamento público é em grande parte dependente de tais tarifas. Embora em determinados casos necessárias como resposta às necessidades imediatas da população, as limitações à exportação forneceram igualmente ajuda, mas com o risco não somente de penalizar os produtores agrícolas locais e de lhes criar incentivos inadequados mas igualmente de agravar a situação nos mercados internacionais. Alguns países procuraram reconstruir reservas estratégicas de cereais na maior parte esgotadas, mesmo que este facto pudesse ter contribuído ainda mais para a subida dos preços. Alguns países procuraram reforçar programas de apoio aos pobres, sob a forma de subsídios em dinheiro, de cupões, com programas de trabalho contra dinheiro ou alimentos, com programas de saúde e de nutrição ou, ainda, com programas de alimentação nas escolas.

10. Estas reacções foram examinadas em detalhe noutros trabalhos e não voltamos aqui a repeti-las. Deve, entretanto, sublinhar-se que algumas destas medidas (particular mente as medidas da política comercial) procuraram, primeiramente, manter os preços baixos nos mercados internos (ou procuraram limitar o seu aumento) a favor de todos os consumidores, estando nestes incluídos, também, aqueles que poderiam suportar preços mais elevados, embora as medidas, em particular, os programas sociais, pretendessem visar os pobres, e que poderiam mesmo ser mais eficientes. É igualmente de sublinhar que estas medidas foram adoptadas sem consideração de seu impacto na capacidade de outros países em alimentar as suas populações. Isto negligencia a obrigação de cada Estado em

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defender e garantir o direito à alimentação, não somente de sua própria população, mas igualmente a de outros países.

Igualmente, isto também mostra uma falta de consistência, desde a imposição de limitações de exportação ou à reconstituição de reservas estratégicas as quais foram constituídas precisamente quando os preços dos mercados internacionais estavam elevados, o que veio a agravar ainda mais as tensões nos mercados e perpetuou, de forma mais intensa, os desenvolvimentos contra os quais estas mesmas medidas procuravam reagir.

Disponível em

http://www2.ohchr.org/english/issues/food/docs/A.HRC.9.23.pdf.

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© We Feed the World, 2007.

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PARTE II

ECONOMIA GLOBAL, OMC E CRISE ALIMENTAR

1. ECONOMIA GLOBAL, OMC E AGRICULTURA

A globalização tornou-se uma palavra-chave ao longo da última década. Mas, o que é a globalização, como é que esta acontece, como é que afecta as nossas vidas? Enquanto os seus defensores afirmam que a actual globalização económica é “inevitável”, ela é, de facto, o resultado de um processo político fabricado e moldado pelas decisões dos nossos governantes. Pode ser alterada ou mesmo invertida, se as populações assim o exigirem.

O problema é que as decisões que dão forma à globalização são decididas, na sua maior parte, fora do olhar público, nas instituições como a Organização Mundial do Comércio (OMC). A maioria das suas decisões é feita atrás de portas fechadas por governos burocratas e influenciados, pressionados, indevidamente pelos interesses das grandes multinacionais. A maioria dos parlamentares não sabe sequer os detalhes da maioria de qualquer uma destas decisões.

Esta é a razão do presente texto: ajudar a compreender o que está a acontecer às nossas vidas, à nossa economia e à maioria da dos outros países em todo o mundo. Esperamos assim ajudar a perceber o que está a acontecer no mundo, sendo certo que só na base do conhecimento é que as pessoas podem fazer escolhas conscientes sobre o tipo de mundo que querem ver e ter, e nós queremos ajudar a criar esse outro mundo.

Durante as últimas três décadas, o mundo esteve sujeito a uma experiência económica global. Está agora a tornar-se óbvio que esta experiência não apenas falhou,

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mas sim que falhou catastroficamente, provocando uma enorme pobreza e estragos ambientais igualmente enormes em todo o mundo. Esta experiência tem um nome, é frequentemente chamada a “globalização” – ou mais especificamente, globalização económica. É um processo através do qual os governos nacionais removeram as protecções locais às indústrias nacionais e aos agricultores, e transferiram parte do seu poder de política económica para as organizações internacionais e para as empresas multinacionais. A globalização económica é baseada numa ideologia – frequentemente chamada “racionalismo económico ” ou ainda “neoliberalismo” – em que se defende que o lucro individual é o valor supremo, e que a eficiência económica e o crescimento devem reinar de modo absoluto, supremo. Os países devem esforçar-se sobretudo em termos de crescimento económico e devem fazê-lo exportando o que podem produzir mais barato, e importando tudo o mais.

A opinião quase-religiosa dos economistas é que a liberalização do comércio conduzirá ao crescimento e que o crescimento “se difundirá gota a gota” e conduzirá à redução da pobreza, ao emprego e à felicidade em geral. Para gerar este sistema, os países foram incentivados, e forçados, às vezes, a “liberalizar” as suas economias, removendo todas as “barreiras comerciais”. Durante muito tempo, as “barreiras comerciais” foram consideradas como sendo os impostos (tarifas) às importações e os subsídios às exportações. Agora as “barreiras comerciais” incluem também os serviços públicos, os padrões ou normas de salvaguarda e as normas governamentais que protegem o trabalho e o meio ambiente. A globalização económica é uma ideologia promovida pelos países ricos – e as grandes empresas que dominam as suas economias – que são genericamente os seus grandes beneficiários. Como tentaremos mostrar, tudo isto foi feito em detrimento da larga maioria da população mundial.

“A globalização… tem a ver com o poder e o controle. É a transformação do mundo actual num outro sem fronteiras, governado por uma ditadura de bancos centrais, os mais poderosos do mundo, de bancos comerciais e de empresas multinacionais. É uma tentativa de apagar um século do progresso social e de alterar a distribuição do rendimento, do não equitativo para o desumano”.

Paul Hellyer, outrora Primeiro-Ministro do Canadá.

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Desde 1950, o comércio mundial aumentou perto de vinte vezes e a produção mundial aumentou cerca de seis vezes – um enorme aumento no nível de “bem-estar económico”. Contudo, em 2005, mais de 800 milhões de pessoas não têm o suficiente para comer, mais de 11 milhões de crianças morrem antes de fazerem cinco anos e mil milhões de pessoas são forçadas então a sobreviver com menos de um dólar por dia. Ao mesmo tempo, os oceanos estão vazios de peixe, as florestas estão a ser destruídas à maior taxa de sempre desde a época dos dinossauros e o ar é poluído a tal grau que o clima da terra está de facto a mudar. Porque é que a enorme riqueza “da economia global” teve estes impactos?

Mito 1: “A globalização transformou o mundo num mundo melhor”

Falso! Ao contrário do que afirmam muitos economistas, enquanto os últimos 25 anos de globalização e da liberalização de comércio aumentaram a riqueza dos países ricos, para a grande maioria dos países – particularmente os países mais pobres e os de rendimento médio – este período foi considerado um período de declínio no progresso social quando comparado com períodos mais recuados. Um estudo de 2004 das Nações Unidas sobre os países mais pobres do mundo, mostra que à liberalização e ao crescimento do comércio internacional correspondeu uma pobreza crescente na maioria dos países em estudo. Um outro trabalho feito pelo U.S. Centre for Economic and Policy Research comparou as taxas de crescimento de 175 países entre 1960 e 1980, e entre 1980 e 2005. Este estudo mostrou que o último período de liberalização económica, de privatização e de desregulação reduziu fortemente as taxas de crescimento económico e de progresso social para a maioria dos países. Dividindo os países em cinco grupos de acordo com o seu rendimento per capita, neste estudo encontraram-se os seguintes resultados entre 1960-1980 e 1980-2005:

– O crescimento do PIB per capita declinou em quatro dos cinco grupos, com o quinto grupo a ter somente um crescimento de 0.1% anualmente.

– A taxa de crescimento da esperança de vida declinou em quase todos os países de baixo e médio rendimento per capita.

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– A taxa de melhoria da mortalidade infantil tem estado a declinar em todos os cinco grupos.

– A taxa de aumento de matrículas na escola secundária também declinou em todos os cinco grupos.

Na Austrália, durante o período de 1960 a 1980, a parte dos salários como percentagem do PIB passou de aproximadamente 52% para um valor acima de 60%, enquanto a parte dos lucros das grandes empresas em percentagem do PIB permaneceu na maior parte do período em cerca de 20%. Nos vinte e cinco anos seguintes, até 2005, (o período da liberalização económica) os salários caíram para acerca de 53% do PIB, enquanto os lucros das grandes empresas subiram rapidamente para valores acima de 27% do PIB.

Mito 2: “A liberalização de comércio gera aumentos na taxa de crescimento económico”

Falso! O gráfico abaixo utiliza os dados do Banco Mundial em que se estuda os efeitos da globalização económica. Mostra que, quando a maioria dos países do mundo são comparados, longe de aumentar o crescimento económico, em termos de PIB, as baixas taxas tarifárias aparecem ligeiramente correlacionadas com baixas taxas de crescimento económico [Neste gráfico, se alguma relação existe, o que os dados da década de 90 indicam é uma evolução positiva (mas, estatisticamente insignificante) entre as tarifas e o crescimento económico. A única relação sistemática verificada é que os países que desmantelaram as barreiras comerciais estão ricos. Isto significa apenas que hoje, com raras excepções, os países ricos embarcados na senda do crescimento económico fizeram-no protegidos com barreiras protectoras, mas que agora já as têm baixas].

Na Austrália, entre 1980 e 2000 (quando a economia foi liberalizada) a economia também cresceu de forma muito lenta quando comparada ao período 1960-80. O PIB cresceu 123% entre 1960 e 1980, ou seja, mais de 30% mais

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rápido do que nestas duas últimas décadas da liberalização económica, em que o PIB cresceu somente 93%.

Baixas taxas de tarifas às importações são boas para o crescimento? Pense-se um pouco mais

Nota: Taxa média de crescimento anual do PIB per capita durante os anos 90 no eixo vertical,

e taxa média de tarifas às importações em abcissa (percentagem, média nos anos 90)

Fonte: United Nations Development Program, “Making Global Trade Work for People”,

Nova Iorque, 2003, p. 61.

Os ganhadores com a economia global são os países ricos, as grandes empresas multinacionais – na maior parte situadas nos países ricos – e estas agora controlam quase completamente o comércio mundial, quer no interior dos países quer entre eles. As 500 maiores empresas multinacionais a nível mundial controlam cerca de 70% do comércio mundial. Por exemplo, nos anos 90, cerca de 80% da produção mundial de cereais foi distribuída apenas por duas companhias: Cargill e Archer Daniel Midland. A liberalização de comércio global permite que as multinacionais deslocalizem as suas produções para os países com salários baixos e padrões de condições de trabalho e ambientais muito fracos. Permite-lhes a deslocalização de produtos manufacturados e a extracção a baixo custo dos recursos naturais dos países

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pobres sem ter que pagar os salários condignamente nem estarem sujeitos a respeitar as normas ambientais internacionalmente reconhecidas. O custo económico dos danos sociais e ambientais de que são responsáveis as multinacionais nos Estados Unidos atinge os 2,6 milhões de milhões de dólares, de acordo com o estudo feito por Ralph Estes.

Há indivíduos que estão a tirar demasiado proveito da economia global. Entre 1994 e 1998, as 200 pessoas mais ricas do mundo mais do que duplicaram a sua riqueza em mais de um milhão de milhões de dólares. Entretanto, as disparidades de rendimento continuam a crescer: em 1960, a diferença de rendimentos entre o quintil mais rico da população do mundo e o quintil mais pobre era de 30 para 1; em 1997 era já de 74 para 1.

Os trabalhadores nos países ricos e pobres foram também prejudicados quando as barreiras comerciais “foram liberalizadas” e as grandes empresas começaram a actuar numa corrida e numa escala descendente para encontrar os mercados laborais de salários mais baixos e com as legislações de trabalho mais permissivas. A liberalização de comércio conduziu aos colapsos na indústria transformadora em muitos países em vias de desenvolvimento. Na Zâmbia, o governo foi forçado a remover todas as protecções da sua indústria transformadora como contrapartida do cancelamento da dívida. Isto conduziu a grandes aumentos das importações, em especial da roupa barata, de segunda mão, dos países industrializados. A indústria têxtil zambiana não poderia assim competir com o exterior e o sector, todo ele, desapareceu, com as suas 140 fábricas de indústria têxtil em 1991, restando apenas oito em 2002. Onde tinha havido 34 000 trabalhadores zambianos na indústria têxtil no começo dos anos 90, em 2001, havia apenas 4 000. Na Costa do Marfim, Quénia, Senegal, Gana, Equador e Peru são apenas alguns dos outros países em vias de desenvolvimento que viram os postos de trabalho na indústria transformadora reduzidos pela remoção das tarifas e das outras barreiras comerciais.

A história é similar na Austrália. Enquanto as tarifas foram reduzidas, as indústrias australianas através de todos os sectores encontraram-se incapazes de

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competir com as importações baratas. Segundo um relatório feito pelo National Institute of Economic and Industry Research, a redução das tarifas, começada em 1987, terá, só por si mesma, resultado na perda de aproximadamente 100 000 postos de trabalho na indústria transformadora. Em 2005, é provável que o emprego total na economia australiana tenha já sofrido uma redução de 200 000 postos de trabalho, em consequência das reduções tarifárias. Nesta economia global cada vez mais competitiva, a concorrência mortífera entre os países por um alargar da sua quota de mercado de exportação conduz frequentemente a uma corrida para baixo, para a situação dos países de níveis mais baixos rendimentos. Estes países encontram-se eles próprios a baixar os seus salários e as suas condições de trabalho numa tentativa desesperada de atrair e manter o investimento estrangeiro. As reformas das novas Industrial Relations da Austrália fazem parte deste quadro, com o Primeiro-Ministro John Howard a argumentar que “nós vivemos numa economia mundial globalizada, nós não podemos recuar neste processo…o que nós temos e devemos fazer é competir no mundo. Isto significa que temos que continuar com o processo de reforma económica.”

Em todo o mundo, os agricultores têm estado entre as pessoas mais duramente atingidas pela globalização económica. Um relatório de 2005 da ONU mostra que os principais ganhadores com a liberalização de comércio agrícola foram os importadores, os intermediários, e os grandes produtores, enquanto os vencidos tenderam a ser os produtores locais, em particular os pequenos agricultores que são geralmente a maioria da população dos países em desenvolvimento. Em todo do mundo, a liberalização do comércio está a forçar os pequenos agricultores a abandonarem as suas terras e a pequena agricultura tradicional está a ser destruída a favor do “negócio agrário da grande empresa multinacional”. A redução das tarifas força os pequenos agricultores a concorrerem contra as importações de bens alimentares subvencionadas, e destrói frequentemente os seus meios de subsistência. Os agricultores arruinados deslocam-se para as cidades abarrotadas e aceitam qualquer emprego que encontrem, muitos deles, em zonas de processamento dos bens alimentares, a produzirem para exportação e a ganharem apenas alguns cêntimos por hora. Partindo de uma perspectiva económica, isto aparece

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frequentemente como sendo um progresso, uma vez que os agricultores ganham pouco dinheiro a cultivarem os seus próprios alimentos, mesmo que possuam frequentemente casa própria e terra. Mas, ao saírem da sua terra para ganhar um salário de trabalho escravo, numa fabriqueta de miséria, nas sweatshops, isto faz subir o PIB – um sucesso quando expresso em unidades de medida convencionais. O governo australiano descreveu de modo entusiasmado “a transformação rápida da Ásia… de uma agricultura predominantemente de subsistência para um sistema de agricultura industrializada, a “agro-business”.

Tomemos o México, por exemplo, onde desde a assinatura do Acordo de Comércio Livre da América do Norte (North American Free Trade Agreemen - NAFTA) muitas multinacionais dos Estados Unidos se deslocaram para aquele país. A riqueza aumentou fortemente e com uma economia de 600 mil milhões de dólares o México é agora a nona economia do mundo. Contudo, esta riqueza fluiu somente para os mexicanos mais ricos e destruiu milhões de postos de trabalho rurais neste processo de integração. Há agora mais dezanove milhões de pessoas a viver na pobreza de que há vinte anos atrás e um em quatro mexicanos é classificado agora como “extremamente pobre” – isto é, incapaz de ter recursos para se alimentar de forma adequada. O economista mexicano Alejandro Villamar diz que “quase dois milhões de postos de trabalho, dos 8,5 milhões, foram destruídos desde 1994 [quando o acordo NAFTA foi assinado], e 10 milhões de pessoas fugiram para os Estados Unidos à procura do trabalho”. Esta realidade é literalmente similar à de milhares de milhões de pessoas na Ásia, África e América Latina. Na Austrália, os pequenos agricultores foram igualmente dizimados com as reduções de tarifas e com os subsídios, a desregulação, a orientação para a exportação e o aparecimento das grandes multinacionais na agricultura. Entre 1970 e 2000, o número de explorações agrícolas na Austrália desceu de 190 000 para aproximadamente 120 000, quando para o mesmo período, a contribuição da agricultura no emprego global da Austrália desceu de 7,3% para 4,2%. O National Land and Water Ressources sublinha que somente entre 1986 e 1996 o número de explorações agrícolas na Austrália desceu de 20%, na sua quase totalidade explorações com menos de 500 hectares.

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Os impactes no meio ambiente, um dos perdedores, da liberalização do comércio global são enormes, mas raramente reconhecidos e assumidos. A movimentação para economias orientadas para a exportação aumentou a extracção de todos os tipos de recursos naturais e os efeitos ambientais são devastadores. A Amazónia está a ser devastada mais rapidamente do que nunca para aí fazerem crescer a soja e a pecuária, quase que exclusivamente para exportação. A água dos subsolos em muitos dos países em vias de desenvolvimento está a ficar irreversivelmente esgotada e os terrenos agrícolas estão a ser sobreutilizados e transformados em salinas ou em deserto para que aí crescerem colheitas rentáveis para o Ocidente. As pescas estão em colapso tanto quanto as exportações estão a subir – cerca de 75% da pesca mundial está exaurida ou pescada até ao seu nível biológico limite. Os rios estão poluídos com produtos químicos e os manganais estão a ser destruídos nos países em vias de desenvolvimento para cultivar camarão grande destinado a exportação. As espécies estão a ser extintas à maior taxa de sempre desde a época dos dinossauros, há 65 milhões de anos atrás.

Impactes da Agricultura orientada para a exportação na Austrália

O Programa Ambiental das Nações Unidas relatava recentemente que “os impactes ambientais do crescimento do comércio internacional em produtos agrícolas são potencialmente devastadores”. Cerca de 75% da produção agrícola da Austrália é destinada a exportação. Esta orientação para as exportações é a principal causa de muitos dos problemas ambientais com que a Austrália se debate hoje, incluindo:

1. Desflorestação dos terrenos destinados à agricultura e a perda da biodiversidade – A desflorestação dos terrenos para a agricultura, a maior parte dela para exportação, foi identificada pelo Australian State of Environment Report, 2001, como a mais imediata e significativa ameaça para a biodiversidade na Austrália.

2. Sobreconsumo de água. Mesmo em tempos de seca, cerca de 80% da água potável gasta na Austrália, é gasta na agricultura, principalmente, na produção para exportação.

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3. Poluição da água. Os fertilizantes e os pesticidas utilizados na produção de bens agrícolas para exportação vão parar aos nossos ribeiros, aos nossos rios. E desta forma se ajuda a destruir a Grande Barreira de corais.

4. A cultura de sequeiro e a salinidade. A agricultura de exportação tem sido a principal causa de 2,5 milhões de hectares e potencialmente atingirem 12 milhões de terrenos agrícolas estarem agora a ser afectados pela salinidade. A manter-se o actual nível de utilização, calcula-se, segundo o National Land and Water Audit, que a área atingida pela salinidade e devido às culturas de sequeiro atinja, em 2050, 17 milhões de hectares.

5. Mudanças Climáticas. Cerca de 40% das emissões de gás de estufa na Austrália são a consequência da produção para exportações.

6. O abate de florestas autóctones. Cerca de 80% das árvores abatidas acaba por ser destinada à produção de energia e desta 90% é para exportação.

História

Em 1944, as maiores potências mundiais reuniram-se na cidade de Bretton-Woods, nos Estados Unidos, para criarem uma arquitectura para a governança económica global. Nesta conferência, concordaram em criar as três instituições seguintes: O Banco Mundial, O Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Internacional de Comércio (OIC). Enquanto a OIC nunca foi criada, em 1948, foi criado um dos elementos pensados para fazer parte da OIC – o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), que em 1995 se veio a transformar na OMC. No seu início, o GATT era razoavelmente pacífico, consensual, tendo-se limitado a reduzir as tarifas e os subsídios para os bens industriais transaccionados entre os membros mais ricos do GATT. As negociações eram conduzidas em rondas e onde todos os países concordaram em reduzir quer as tarifas quer os subsídios para níveis específicos.

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Mas, em 1984, o GATT foi fortemente transformado com o lançamento das negociações da “ronda do Uruguai”. A ronda do Uruguai alargou enormemente o mandato do GATT para incluir as áreas como a agricultura, os serviços e a propriedade intelectual.

A ronda do Uruguai culminou em 1995 com a criação da OMC que basicamente actuou no sentido de “liberalizar” a economia mundial, reduzindo as “barreiras ao comércio” e encorajando os países a adoptarem políticas viradas para a exportação, com a dinâmica do sistema económico baseada nas actividades das grandes empresas multinacionais.

O resultado final de toda esta “liberalização” foi a comercialização, a privatização e a desregulação das economias à escala mundial. Foi um processo através do qual os governos começaram a perder a sua autoridade reguladora, deixando o poder bem longe dos cidadãos e reforçando o das empresas multinacionais. A OMC, que tem agora 148 países membros signatários, é ela que dirige a liberalização do comércio estabelecendo as regras para a economia global e policiando os países que não as cumprem. As regras são estabelecidas através de acordos entre todos os países membros. A OMC tem o status internacional equivalente ao das Nações Unidas, mas, ao contrário da ONU tem realmente o poder de fazer aplicar as suas regras.

Durante grande parte do século passado, as “barreiras ao comércio” significaram impostos à importação e subsídios para a agricultura e para a indústria transformadora, e os acordos comerciais continuaram a realizar-se lenta e calmamente. Porém, nos anos 70 e 80, com a ascensão da ideologia neoliberal, tudo isto mudou. As noções “do comércio livre” e das “barreiras ao comércio” alargaram-se fortemente. Já não eram somente as tarifas e os subsídios que eram as “barreiras ao comércio”, mas assim eram entendidos também os próprios mecanismos de regulação governamentais. As normas do trabalho, as leis da quarentena, as normas ambientais, e mesmo as regras de aplicações mais locais, tudo isto se transformou em alvos a abater, como sendo “barreiras ao comércio.” É certo, a OMC diz agora já ter conseguido os acordos que cobrem todas as leis internas que condicionam o comércio. Estes acordos podem

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revogar leis internas e regulamentos, limitando as políticas que os países podem executar ou manter. Se os países produzem legislação que a OMC julga poder limitar o comércio qualquer que seja a via, esta pode então revogar as leis do país e forçá-lo a cumprir as suas decisões usando as sanções comercias.

A OMC reivindica que trabalha na base no consenso, onde cada país concorda com todas as decisões. A realidade é muito diferente. A maioria das decisões da OMC são feitas por um grupo pequeno de países poderosos usando processos como a “Green Room”, a “sala verde”, e mini-reuniões ministeriais, e impor estas decisões aos restantes membros. A OMC reúne-se em Genebra – uma das cidades mais caras no mundo. As negociações ocorrem todo o ano, mas muitos países em vias de desenvolvimento não têm recursos para delegações permanentes e estão assim privados de oportunidades de representação e da participação, quando os países mais ricos podem negociar na sua ausência. Até porque as decisões da OMC afectam milhares de milhões de pessoas em todo o mundo, isto é completamente inexplicável. As pessoas não têm nenhuma grande via para contestar as decisões da OMC. Os burocratas não eleitos e os ministros de comércio tomam as decisões que afectarão milhares de milhões de pessoas sem que os parlamentos nacionais sejam consultados ou sem que hajam referendos. As questões que envolvem os efeitos dos acordos sob a égide da OMC raramente são debatidas nos parlamentos nacionais. Nunca houve até agora qualquer referendo popular relativamente aos acordos da OMC em nenhum país. Na Austrália, o Governo ratificou a OMC e outros acordos comerciais sem que para qualquer um deles tenha sido preciso ser sujeito a debate parlamentar ou que seja sequer votado.

Há um número de medidas antidemocráticas usadas na OMC que fazem com que a pretensão da OMC funcionar nas suas decisões em consenso seja uma impostura.

A sala verde

As reuniões da sala verde são assim chamadas porque é assim que se chama a sala onde as reuniões têm lugar. Para estas reuniões à porta fechada só são convidados, principalmente pelos Estados Unidos e pela União Europeia, um pequeno grupo de

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países para assim se alcançar um consenso entre eles quanto à agenda que pretendem por em prática na OMC. Esta, é depois apresentada aos restantes membros signatários como sendo um conjunto de objectivos em que é pegar ou largar, tornando quase impossível aos mais pequenos países em vias de desenvolvimento ver as suas necessidades ou objecções contempladas nos acordos finais.

As reuniões Mini-Ministeriais

As reuniões mini-ministeriais são um outro processo em que os países ricos impõem a sua agenda na prática da OMC. Tal como as reuniões da sala verde, só participam nestas reuniões convidados dos Estados Unidos e da União Europeia, incluindo um pequeno grupo de outros “países estratégicos”, com exclusão dos restantes. As reuniões mini-ministeriais ocorreram antes das reuniões Ministeriais da OMC de Singapura (1996), Seattle (1999), Doha (2001) e Cancun (2003), para promover os objectivos dos principais países desenvolvidos e levar a que um grupo de mais pequenos e poderosos países estejam também alinhados com a agenda de objectivos.

Cerca de 70% da população mundial mais pobre vive em árias rurais e estão dependentes da agricultura para a obtenção do seu rendimento, alimentação, alimentação e condições de existência. A melhoria do sistema agrícola global melhoraria as suas vidas assim como melhoraria, por exemplo, a vida dos agricultores da Austrália. Infelizmente o Acordo sobre a Agricultora da OMC tem feito o oposto, ajudando a promover os interesses das grandes empresas multinacionais que controlam a vasta maioria da agricultura mundial, enquanto vão destruindo as pequenas explorações agrícolas familiares nos países quer desenvolvidos quer em vias de desenvolvimento. O Acordo sobre a Agricultura introduzido na OMC com a ronda do Uruguai tornou-se efectivo a partir de 1995. Com a sua aplicação reduziram-se as tarifas proteccionistas para os pequenos agricultores – a principal fonte de rendimento nos países em vias de desenvolvimento – enquanto se permitia aos países ricos pagar grandes subsídios aos seus agricultores, o que os países em vias de desenvolvimento nunca poderiam assumir, nunca poderiam fazer.

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O Acordo sobre a Agricultora permite à Europa e aos Estados Unidos gastarem 380 mil milhões de dólares anualmente somente em subsídios para a agricultura. Estes subsídios não vão para os pequenos agricultores, mas quase que exclusivamente para os grandes do “agro-business” – mais de 70% dos subsídios para a agricultura nos Estados Unidos vão para 10% dos produtores enquanto na Europa metade de todo o apoio dado vai para apenas 1% dos produtores agrícolas. O efeito destes subsídios é alimentar o mercado global com bens a mais baixo custo, deprimindo os preços e eliminando os produtores dos países em vias de desenvolvimento – prática comercial a que se chama dumping. Forçando os países estrangeiros a baixar as tarifas e a adoptarem estratégias assentes na exportação, a lógica do comércio livre na agricultura tem forçado os pequenos agricultores a produzirem para exportação em vez de produzirem bens alimentares e outros para satisfazerem as necessidades locais. A maioria das comunidades rurais dos países em vias de desenvolvimento ficou assim exposta à volatilidade global dos preços dos bens alimentares e colocou as populações em período de insegurança alimentar. As colheitas são exportadas enquanto as populações têm fome.

Global Trade Watch, “The World Trade Organisation: An Australian Guide”, Victoria, 2006,

disponível em http://www.tradewatch.org.au/guide/wto.html.

2. A OMC E A INSEGURANÇA ALIMENTAR

Esta é uma versão longa do Relatório apresentado na sessão do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, a apresentar em Março de 2009, pelo Prof. Olivier De Schutter, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, da sua missão à Organização Mundial de Comércio (A/HRC/10/005/Add.2). Esta versão longa incluiu um conjunto mais longo de referências, assim como certos desenvolvimentos, que não puderam ser incluídos na versão oficial do relatório devido a restrições de dimensão.

Esta versão foi disponibilizada por Olivier De Schutter especificamente para esta brochura.

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Resumo

O presente relatório procura analisar as possíveis relações entre os acordos concluídos sobre as regras e sobre a égide da Organização Mundial de Comércio (OMC), em particular o Acordo sobre a Agricultura, e sobre a obrigação dos membros da OMC respeitarem o direito do homem a uma alimentação adequada. Está baseado na missão à OMC do relator especial da ONU sobre o direito à alimentação.

O relatório defende que, se o comércio está ao serviço do desenvolvimento e contribui para a realização do direito a uma alimentação adequada, é então preciso reconhecer a especificidade dos produtos agrícolas, em vez de os tratar como quaisquer outros produtos; e garantir uma maior flexibilidade aos países em vias de desenvolvimento, a fim de proteger, em especial, os seus produtores agrícolas, da concorrência dos agricultores dos países industrializados. O principal impacte do actual regime de comércio multilateral sobre o direito à alimentação inclui: (1) uma dependência crescente do comércio internacional, que pode conduzir à perda de rendimentos de exportações quando os preços dos produtos exportáveis descem, ameaçando assim os produtores locais quando os bens importados a baixos preços chegam aos mercados internos, contra os quais estes produtores locais são incapazes de competir, e levantando problemas na balança de pagamentos para os países importadores líquidos quando os preços dos produtos dos bens alimentares sobem; (2) abusos potenciais do poder do mercado nos fluxos globais cada vez mais concentrados das cadeias da oferta de bens alimentares e da consequente dualização cada vez maior do sector agrícola interno; (3) impactos potenciais no ambiente, na saúde humana e na nutrição, impactes estes ignorados geralmente nas negociações sobre o comércio internacional, apesar da sua relação estreita com o direito a uma alimentação adequada.

O relatório propõe formas de reconciliar o comércio com o direito à alimentação, mostrando a incapacidade dos mecanismos globais de governação em resolverem a falta de coordenação entre os direitos humanos e as regras comerciais – uma incapacidade que os mecanismos que asseguram uma melhor

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coordenação a nível doméstico podem não conseguir compensar. O relatório convida os Estados a avaliarem os impactes dos acordos comerciais sobre o direito à alimentação e a assegurarem que não aceitam acordos sobre a égide da OMC que sejam incompatíveis com os seus direitos a cumprirem as suas obrigações face ao direito à alimentação.

1. Introdução

O presente relatório procura analisar a relação entre os acordos concluídos sob a égide da Organização Mundial de Comércio (OMC) e a obrigação dos países membros da OMC de respeitarem o direito do homem à alimentação adequada, como é reconhecido pela lei internacional. A realização mais importante do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e, desde 1994, da OMC, foi a de fornecer aos Estados um sistema de regras de comércio internacional, predizíveis, sustentadas por sanções. Este relatório questiona o impacte da criação do sistema multilateral de comércio assim como a capacidade dos membros da OMC em cumprirem com as suas obrigações para o direito à alimentação adequada. O objectivo deste relatório é ajudar os Estados na negociação e na execução dos seus compromissos na base do comércio multilateral, a fim de se assegurarem de que os seus compromissos feitos na base dos acordos de comércio apoiem, em vez de minarem, os seus esforços para realizar o direito à alimentação a nível interno.

Este relatório é baseado na missão do Relator Especial à Organização Mundial de Comércio. As reuniões foram realizadas com o secretariado da OMC e com o seu director-geral, Pascal Lamy, em 25 de Junho de 2008. No reconhecimento do facto de que a OMC é conduzida principalmente pelos Estados Membros, o Relator teve igualmente reuniões com Embaixadores na OMC e com outros membros de representações permanentes, entre Junho e Outubro de 2008. Estas consultas foram preparadas por uma reunião de especialistas, tida em Paris 1-Panthéon-Sorbonne a 16-17 de Junho de 2008, e complementadas por várias consultas com várias partes interessadas, incluindo organizações não governamentais e organizações de agricultores. O Relator Especial gostaria de registar o seu profundo reconhecimento

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a todos aqueles que tornaram generosamente disponível o seu tempo, conhecimento e elevada competência, e gostaria igualmente de mencionar, em particular, o espírito cooperativo com que o secretariado da OMC e o seu director-geral acompanharam e apoiaram a missão.

O relatório está dividido em cinco capítulos. Recorda a estrutura normativa sob a qual a relação entre a obrigação de respeitar o direito do homem à alimentação adequada e as acções feitas sob a égide dos acordos da OMC deve ser analisada (II.). Descreve então os desafios que a realização plena do direito à alimentação adequada enfrenta no mundo de hoje (III.). Somente se nós compreendermos correctamente estes desafios podemos então avaliar os impactes potenciais dos acordos da OMC na fruição do direito à alimentação adequada e na capacidade dos membros da OMC realizarem este direito (IV.). O relatório conclui com a sugestão de que podem ser encontradas soluções para reconciliar o direito à alimentação com um sistema de comércio praticável (V.).

II. O índice normativo do direito à alimentação adequada

O direito à alimentação adequada é reconhecido com o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e com o artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Na base destes instrumentos, os Estados devem respeitar o acesso existente à alimentação adequada, abstendo-se de adoptarem as medidas que podem impedir tal acesso; devem proteger o direito à alimentação adoptando medidas que assegurem que as empresas ou os indivíduos não privem os indivíduos do seu acesso à alimentação adequada; finalmente, devem cumprir (facilitar) o direito à alimentação, em que reforcem activamente o acesso da pessoa aos recursos e à sua utilização e aos meios de modo a assegurar as suas condições de subsistência. Além disso, sempre que um indivíduo ou um grupo sejam incapazes, por razões que estão para além do seu controle, de usufruir do direito à alimentação adequada pelos meios à sua disposição, os Estados tem a obrigação de cumprir (de satisfazer) directamente esse direito1.

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A realização do direito à alimentação adequada deve funcionar como a linha de orientação geral para a qual todos os esforços sejam feitos quando se desenvolve um sistema de comércio multilateral. O artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que “Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração”. Esta proposição reconhece a co-dependência de medidas nacionais e internacionais na realização dos direitos humanos. O direito à alimentação adequada só pode ser inteiramente realizado pelo Estado dentro de um sistema de comércio multilateral que lhes permita levar a cabo as políticas que conduzam ao direito à alimentação. Tal sistema não deve somente abster-se em impor obrigações que transgridam directamente o direito à alimentação. Deve igualmente assegurar que todos os Estados tenham o espaço político que é exigido para se tomarem as medidas que contribuem para a realização progressiva do direito à alimentação sob a sua jurisdição. Como foi estabelecido pelo Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais exige que se “movam tão rapidamente quanto possível para esse objectivo, fazendo uso total dos máximos recursos disponíveis”2. Esta obrigação deve ser facilitada, não impedida, pela organização do regime de comércio multilateral. Sem dúvida, o artigo 11, n.º 2, do Pacto reconhece a necessidade de se assegurar que o comércio contribua para a fruição do direito à alimentação: “Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adoptarão individualmente e por meio da cooperação internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos para assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentares mundiais em relação às necessidades, tendo em conta os problemas que se põem tanto aos países importadores como aos países exportadores de produtos alimentares”.

Uma abordagem do comércio internacional baseada no direito à alimentação desloca a perspectiva dos valores agregados – das vantagens do comércio para o país no seu conjunto – para os impactos do comércio sobre os mais vulneráveis e sobre a incerteza da alimentação. Isto leva a sublinhar as dimensões da participação

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e da responsabilidade na negociação e na execução dos acordos comerciais. E tem-se em conta, não somente a necessidade de assegurar uma suficiente absorção de calorias para cada indivíduo, mas também a disponibilidade e a acessibilidade a uma alimentação adequada, isto é, que contém os micronutrientes exigidos para o desenvolvimento físico e mental do indivíduo, e culturalmente aceitável. Todas estas dimensões estão geralmente ausentes nas discussões sobre os impactes do comércio na segurança alimentar dos povos. Este relatório procurará trazer estas questões para a discussão.

III. Os desafios actuais em face da realização do direito à alimentação adequada

De modo a identificar que regulação do comércio internacional é a mais propícia para a realização do direito do homem a uma alimentação adequada, precisamos de compreender claramente qual a natureza das ameaças que se estão actualmente a enfrentar. Estas ameaças situam-se em duas categorias. Primeiramente, levanta-se a questão se, no futuro, a agricultura poderá alimentar o planeta e se cada país poderá alimentar a sua população, com uma combinação de produção local e de importações de bens alimentares. O crescimento demográfico, combinado com a mudança para dietas alimentares mais ricas em proteínas que se está a passar numa grande parcela de países em vias de desenvolvimento na sua luta contra a pobreza, aumenta a pressão no lado da oferta desta equação global. As mudanças climáticas, adicionalmente, estão a ameaçar a capacidade de regiões inteiras, particularmente as regiões que vivem da agricultura assente na água das chuvas, para manterem os actuais níveis de produção agrícola. Na África subsariana, assim como na Ásia Oriental e do Sul, as mudanças climáticas afectarão as chuvas, aumentará a frequência de temperaturas altas e da temperatura média e ameaçará a disponibilidade da água doce para a produção agrícola. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) apresenta uma estimativa de acordo com a qual em 2080, o número de pessoas adicionais em risco de fome poderá alcançar 600 milhões, como um resultado directo das mudanças climáticas3. Na África subsariana, calcula-se que as regiões áridas e semi-áridas aumentem 60-90 milhões de hectares, e o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas estima que

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os rendimentos da África meridional na agricultura pluvial poderão ser reduzidos até 50% entre 2000 e 20204. Um outro estudo estima que, enquanto as perdas na produção agrícola num elevado número de países em vias de desenvolvimento, particularmente na África subsariana, seriam compensadas parcialmente por ganhos noutras regiões, o resultado total seria uma diminuição pelo menos de 3% na capacidade produtiva, por volta de 2080. Mas, as perdas poderão ser de 16% se os efeitos antecipados da utilização de fertilizantes a partir do carbono não se materializarem, de modo que “uma escala prudente para o impacte na capacidade agrícola global por volta de 2080 pode situar-se [poderia] em reduções entre 10 a 25%, com grande parte de perdas severas na produtividade agrícola a darem-se na zona que fica situada nos países em desenvolvimento, particularmente em África e América Latina”5. Estes resultados são também confirmados por um artigo recente publicado na revista Science6.

Não haveria aqui nenhuma surpresa se, neste contexto, a segurança alimentar fosse realizável pelo aumento das trocas comerciais, a fim de satisfazer particularmente as necessidades dos países importadores líquidos de bens alimentares. As importações de produtos alimentares estão previstas crescerem para mais do dobro entre 2000 e 2030, na base de um cenário de actividade normal, isto é, se não investimos maciçamente na melhoria da agricultura em África e se não melhoramos a capacidade dos países interessados em lidarem com as mudanças climáticas7. E, sem dúvida, o artigo 11 (2) do Pacto alude para o facto de que, quando, em determinadas regiões, se produzir muitíssimo menos do que o necessário em bens para alimentar a sua população, noutras regiões poder-se-á produzir em excesso: o fluxo livre de produtos alimentares seria consequentemente desejável, de modo a permitir que a oferta dos excedentes destas regiões vá para as regiões deficitárias.

Contudo, a presunção que o comércio permite a transferência eficiente da oferta de bens alimentares das regiões com excesso para as regiões com défices não tem em consideração as enormes diferenças no poder de compra destas diferentes regiões, e o facto de que a fome e a má nutrição não são geralmente o resultado da falta da disponibilidade de bens alimentares mas são, sobretudo, o resultado

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da incapacidade dos segmentos mais pobres da população em terem acesso aos bens alimentares a preços acessíveis. Na hipótese de um regime de comércio completamente liberalizado, na ausência de custos da transacção, os produtos alimentares fluiriam não das zonas de excedente para as regiões deficitárias, mas das regiões onde os bens alimentares são produzidos a mais baixo preço para as regiões onde há uma procura solvável, isto é, onde o poder de compra das populações é suficiente, em comparação com outros mercados, incluindo o mercado interno do país de origem. Determinados países são exportadores líquidos de alimentos, quando ao mesmo tempo têm largos segmentos da sua população com fome.

Sem dúvida, a disponibilidade em bens alimentares, apesar de ser uma condição necessária para a fruição do direito a uma alimentação adequada, não é, porém, uma condição suficiente. A insegurança alimentar existe mesmo nos países onde há produção alimentar em abundância, devido à falta do poder de compra necessária para os comprar, no interior de alguns dos segmentos da população. A aproximadamente 11% dos agregados familiares nos Estados Unidos (e 18% das crianças) – ou seja, a 12,6 milhões de pessoas – falta o acesso a uma alimentação adequada nalguns períodos do ano. Contudo, mesmo depois de deduzidas as exportações, a oferta doméstica de bens alimentares nos Estados Unidos é o dobro da quantidade que seria necessária para assim alimentar toda a população8. Então, o outro lado do mesmo desafio que estamos a enfrentar – certamente, o mais urgente desafio de hoje – é o da acessibilidade aos bens alimentares pela parte dos pobres e marginalizados. Aumentar as trocas de bens alimentares não os ajudará se são excluídos da produção e se não têm nenhum meio para comprar os bens alimentares que chegam aos mercados; e produzir mais produtos alimentares não os ajudará a comprar os bens que necessitam e que estão presentes nos mercados, se os seus rendimentos permanecerem demasiado baixos. A maioria das pessoas com fome no mundo está situada nos países em vias de desenvolvimento, vivem em áreas rurais, e dependem da agricultura directamente ou indirectamente para conseguirem os seus meios de subsistência. Estão com fome porque são pobres: são na sua maior parte os compradores líquidos de bens alimentares9, e os seus rendimentos, que são, em média, significativamente mais baixos do que os das populações não rurais10,

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são insuficientes para comprarem os alimentos que não produzem elas próprias. Cerca de 50% das pessoas com fome são pequenos agricultores que exploram terras agrícolas com 2 hectares ou menos, cerca de 20% são trabalhadores sem-terra e cerca de 10% vivem basicamente de pastorícia, pesca e floresta. Os restantes 20% são pobres das zonas urbanas11. Qualquer regime comercial que não beneficie estas categorias, longe de resolver o problema da alimentação adequada, é provável que o degrade ainda mais.

O nosso grande desafio de hoje não é o de simplesmente produzir mais bens alimentares. É o de os produzir, sim, mas de uma maneira que preserve o ambiente, particularmente reduzindo a quantidade de emissões de gases com efeito de estufa e que contribuem para o aquecimento global; é organizar a produção de modo a que se aumentem os rendimentos daqueles que são, hoje, a maioria dos que estão na situação de insegurança alimentar – os pequenos agricultores e os trabalhadores agrícolas dos países em vias de desenvolvimento – e de modo a permitir que os Estados protejam adequadamente os pobres das zonas urbanas. A questão é se o programa da reforma levado a cabo nas estruturas da OMC contribui para estes objectivos ou se os pode tornar mais difíceis de conseguir – e se a medida destes objectivos, pode ser dada pelo comércio internacional no sentido em que seja propício à realização do direito à alimentação adequada.

IV. O programa da reforma na agricultura

Enquanto outros acordos concluídos sob a égide da OMC, em particular o Acordo Geral sobre Comércio e Serviços no âmbito da OMC (AGCS) e o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (TRIPS), podem ter um impacte sobre o direito a uma alimentação adequada – desde que afectem o acesso aos recursos produtivos pelos produtores de bens alimentares – o Acordo sobre a Agricultura constitui o mais importante dos acordos da OMC no contexto do presente relatório e é sobre este acordo que o relatório está centrado (veja igualmente E/CN.4/2002/54)12.

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1. O Acordo sobre a Agricultura e a Ronda de Doha

Embora a agricultura nunca fosse isenta formalmente das regras da OMC, ocupou porém uma posição altamente específica até à bem sucedida conclusão da Ronda do Uruguai nas negociações comerciais, que colocou um fim no processo da liberalização do comércio. O Acordo sobre a Agricultura impõe essencialmente aos Estados membros três conjuntos de obrigações.

(1) Primeiro, deve aumentar a possibilidade de acesso ao mercado dos produtos agrícolas. Sob o Acordo sobre a Agricultura, todas as limitações quantitativas ou outras medidas não-tarifárias, excepto as que são justificadas por razões ligadas à saúde e à segurança, devem ser substituídas por tarifas (art. 4.2), e os Estados membros devem subsequentemente comprometer-se de modo a reduzir imperativamente estas tarifas (art. 4.113). Os produtos que são a base predominante na dieta tradicional de um país em vias de desenvolvimento podem, contudo, ser isentos da obrigação de tarifação (art. 5).

O processo de tarifação e a redução subsequente das tarifas não beneficiou os países em vias de desenvolvimento. Os países em vias de desenvolvimento dependem mais dos produtos agrícolas do que dos bens manufacturados no que se refere aos rendimentos resultantes dos bens exportáveis. Contudo, as tarifas médias sobre os bens agrícolas permanecem muito mais elevadas do que as tarifas para produtos não-agrícolas. Além disso, foram mantidas as tarifas elevadas em produtos exportáveis dos países em vias de desenvolvimento tais como o algodão, o açúcar, os cereais e a horticultura. Os picos tarifários14 foram mantidas e as tarifas em produtos tropicais permanecem como tarifas mais elevadas e mais complexas do que as que se aplicam a produtos da zona temperada. Adicionalmente, a progressividade tarifária15, que protege as indústrias transformadoras dos países importadores, cria um obstáculo à diversificação das exportações e da exportação pela parte dos países em vias de desenvolvimento de produtos de valor acrescentado mais elevado.

(2) Segundo, os Estados membros devem reduzir o nível de apoio interno (calculado com o conceito de Medida Global de Apoio (MGA)), embora tais subsídios

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sejam tratados diferentemente, dependendo de quanto é que são considerados como sendo distorções de comércio. Todos os membros podem dar um apoio específico a um produto até um limite das ajudas de minimis (5% do valor de produção total do bem referido por ano para os países desenvolvidos; 10% para os países em vias de desenvolvimento) e apoio não específico na mesma percentagem, por exemplo, para fornecerem sementes ou fertilizantes aos produtores. Poucos países em vias de desenvolvimento têm, de facto, os meios financeiros exigidos para alcançar aqueles níveis de apoio. Para além do limite das ajudas de minimis de referência, os membros devem abster-se da introdução de novas fórmulas de apoio e devem reduzir o apoio interno que concedem aos seus produtores de 20% dos níveis de 1986-88 para os países desenvolvidos, e de 13,3% para os países em vias de desenvolvimento (os países menos desenvolvidos não têm nenhuma obrigação de reduzir a ajuda interna, embora estejam obrigados a níveis de apoio). Desde que estas percentagens sejam calculadas na Medida Global de Apoio Total de Base16, o acordo é mais benéfico para os países que já tiveram altos níveis de apoio durante o período de base, desde que esta sua vantagem possa ser mantida durante um certo tempo.

Estes acordos da redução referem-se às medidas estabelecidas na “Caixa Âmbar”17. Algumas medidas não caem no quadro destes acordos. As medidas “Caixa Azul”18 são pagamentos directos feitos contra os acordos de redução da produção e são então considerados, correctamente, de efeitos comerciais de menor desvio do comércio, desde que não incentivem a sobre-produção nem o dumping nos mercados internacionais. Estas medidas estão isentas dos acordos de redução feitos no âmbito do Acordo sobre a Agricultura. Finalmente, considera-se que as medidas “Caixa Verde”19 não distorcem o comércio ou que o distorcem apenas de uma forma mínima; elas estão também isentas. As medidas de protecção internas podem ser colocadas nesta categoria (a) se são “fornecidas no quadro de um programa estatal financiado por fundos públicos (incluindo as receitas públicas não recebidas) que não implique transferências da parte dos consumidores; e (b) se elas não têm não tem por efeito prestar um apoio aos preços no produtor (anexo 2 do Acordo sobre a Agricultura, n.º 1). Tais medidas são, para citar como exemplo, os investimentos na investigação, na publicidade e na promoção, ou na criação de infra-estruturas rurais

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(embora o “fornecimento subsidiado de instalações às explorações, com excepção das destinadas à ampliação de redes de serviços públicos geralmente disponíveis” e “subsídios relativos a factores de produção ou despesas de exploração” sejam excluídos explicitamente), mas também a detenção de reservas públicas para fins de segurança alimentar ou de ajuda alimentar interna, desde que seja distribuída em função de critérios claramente definidos ligados a objectivos nutricionais.

(3) Em terceiro lugar, os Estados membros devem reduzir os subsídios à exportação existentes e não podem introduzir novos subsídios à exportação que não tenham existido no período base 1986-90. Os países desenvolvidos devem reduzir os seus subsídios à exportação em 36% em termos do valor e de 21% em termos dos volumes beneficiando de subsídios durante seis anos, quando comparado com o período de base. Os países em vias de desenvolvimento têm poucas obrigações nesta questão e períodos mais longos para a sua implementação. Os países menos desenvolvidos não têm nenhuma obrigação de reduzir qualquer subsídio à exportação que possam ter. Contudo, uma vez que a introdução de novos subsídios à exportação é proibida, o sistema de facto foi vantajoso para os países desenvolvidos, pois estes são os únicos Estados a terem subsídios à exportação significativos em aplicação antes da entrada em vigor do Acordo sobre a Agricultura. Os subsídios à exportação são a forma mais prejudicial de subsídios para os países em vias de desenvolvimento. Conduzem à existência de produtos subvencionados que chegam aos seus mercados internos e destroem a produção local que, claramente, não pôde beneficiar dos níveis de apoio que lhes permitiria permanecerem competitivos. O sector agrícola doméstico é consequentemente incapaz de atrair investimento, conduzindo ao ciclo que conduz este sector, porque deste modo enfrenta a concorrência desleal dos parceiros, com perdas adicionais de competitividade.

Um certo número de disposições procuram adaptar o que o preâmbulo de Acordo sobre a Agricultura refere como “razões que não de ordem comercial” entre os quais a “incluindo a segurança alimentar e a necessidade de proteger o ambiente” estão explicitamente mencionadas. Em particular, as medidas adoptadas pelos países em vias de desenvolvimento que procuram incentivar o desenvolvimento

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agrícola e rural, os subsídios ao investimento na agricultura, subsídios para a aquisição de factores de produção para este sector, subsídios geralmente disponíveis para os produtores com rendimentos baixos ou que são dotados de recursos limitados naqueles países, estão isentos dos compromissos de redução do apoio interno que de outra maneira lhes seriam aplicáveis (art. 6.2). Um certo número de disposições visam assegurar o tratamento especial e diferenciado para os países em vias de desenvolvimento, sob a forma de períodos mais longos de execução e de redução dos seus compromissos (art. 15). Contudo, globalmente, as obrigações estabelecidas sob o Acordo sobre a Agricultura estão claramente ajustadas na base de um programa de liberalização do comércio nos produtos agrícolas. A expectativa, quando se concluiu a Ronda do Uruguai, era que este programa conduziria ao aumento dos preços dos bens alimentares20. O artigo 16 do Acordo sobre a Agricultura possibilita, consequentemente, que, a fim de neutralizar o negativo impacte que esta subida pode produzir nos países importadores líquidos de bens alimentares, os países desenvolvidos membros tomarão as medidas necessárias na base da “Decisão Relativa às Medidas Respeitantes aos Possíveis Efeitos Negativos do Programa de Reforma nos Países Menos Desenvolvidos e nos Países em Desenvolvimento Importadores Líquidos De Produtos Alimentares” (Decisão de Marraquexe). Em suma, enquanto a segurança alimentar é reconhecida como um objectivo legítimo, deve ser alcançada, em princípio, não pelo recuo no programa de liberalização comercial na agricultura, mas através de apoio aos países pela via dos programas de reforma.

Na Declaração Ministerial de Doha de 14 Novembro de 2001, os membros da OMC comprometeram-se a negociações detalhadas e a visarem: melhorias substanciais no acesso aos mercados; reduções, com o objectivo da sua eliminação, de todas as formas de subsídios à exportação; e reduções substanciais nos apoios internos dados às medidas que conduzem à distorção do comércio. E concordaram em aplicar um tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento como parte integrante de todos os elementos das negociações21. Na Reunião Ministerial da OMC de Hong Kong, em 2005, concordou-se que os subsídios à exportação terminarão em 2013; que os países em vias de desenvolvimento podem ele próprios designar alguns

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produtos como “produtos especiais” para que as tarifas aplicadas não sejam muito restritivas; os países em vias de desenvolvimento podem manter o seu nível de minimis permissível de subsídios internos. No momento de redacção do presente texto a ronda de Doha quanto às negociações comerciais ainda não tinha sido concluída. Esta ronda está a encalhar particularmente nas discussões que envolvem os impactes das distorções de comércio resultantes das várias formas em que o apoio interno pelos países desenvolvidos é dado aos seus agricultores, e na medida de salvaguarda especial que um número de países em vias de desenvolvimento insiste em incluir no acordo. A finalidade deste relatório, entretanto, não é a de oferecer nenhum comentário detalhado a estas negociações. Em vez disso, pretende identificar se este programa de reforma, assim sumariado, é compatível com as obrigações dos países membros relativamente ao direito à alimentação.

Há um sentimento geral que o regime actual do comércio internacional não é satisfatório. Em particular, não funcionou a favor dos pequenos agricultores nos países em vias de desenvolvimento, que formam a maioria daqueles que estão com fome no mundo de hoje. Por um lado, nos seus próprios mercados internos, os produtores agrícolas dos países em vias de desenvolvimento têm frequentemente enfrentado a concorrência desleal de produtos altamente subvencionados que são exportados pelos agricultores dos países da OCDE. Os apoios governamentais aos agricultores na OCDE totalizaram 258 biliões de dólares em 2007, representando cerca de 23% das receitas totais da exploração agrícola nestes mesmos países22. Isto é o mais baixo nível de apoio desde 1986 (quando as estimativas começaram a estar disponíveis) relativamente ao valor da produção, mas representa ainda um muito elevado nível de apoio, contra os quais os países em vias de desenvolvimento são incapazes de competir. Por outro lado, os produtores destes últimos países têm enfrentado obstáculos importantes ao procurarem conseguir o acesso aos importantes mercados dos países industrializados. Eles falharam mesmo em conseguir tirar proveito dos esquemas preferenciais tais como a Lei de Crescimento e Oportunidade para África (African Growth and Opportunity Act) ou o Iniciativa da Bacia do Caribe (Caribean Basin Initiative), dos Estados Unidos, o Tudo Menos Armas, iniciativa adoptada pela União Europeia a favor dos países menos desenvolvidos,

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ou o Acordo de Cotonou entre a União Europeia e os países ACP23. Esta falha pode ser atribuída, em parte, à complexidade das regras envolvidas – em particular as exigências resultantes das regras de origem – e às barreiras não-tarifárias que os exportadores potenciais enfrentam, ligadas em particular às exigências das normas nacionais, incluindo não somente as normas adoptados na base do Acordo Relativo à Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias assim como o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio, mas igualmente ligadas aos padrões estabelecidos pelos compradores privados24. Finalmente, como já foi mencionado, muitos produtos agrícolas estão a enfrentar actualmente picos tarifários e a progressividade tarifária (tarifas mais elevadas em produtos processados) que desencorajam a diversificação para produtos de valor acrescentado mais elevado, conduzindo os países em vias de desenvolvimento a uma dependência excessiva relativamente a um muito pequeno número de produtos primários, as commodities, segundo a expressão anglo-americana25.

2. A ilusória noção de um “terreno de jogo justo”

Os impactes negativos das distorções actuais são reais. Não se tira daí, contudo, que a solução consiste simplesmente em remover as distorções existentes. Em vez disso, se o comércio significa trabalhar para o desenvolvimento e contribuir para a realização do direito a uma alimentação adequada, precisa então de se garantir uma maior flexibilidades aos países em vias de desenvolvimento, a fim protegerem, em especial, os seus produtores agrícolas da concorrência dos agricultores dos países industrializados; e para reconhecer a especificidade dos produtos agrícolas, em vez de os tratar como iguais a muitos outros produtos. A razão para esta posição é óbvia, e está no centro do que justifica o tratamento especial e diferenciado para os países em vias de desenvolvimento: mesmo depois da remoção das medidas de distorção do comércio existentes, que actualmente estão a beneficiar desproporcionalmente os países desenvolvidos, a produtividade por trabalhador activo na agricultura permanecerá, em média, muito mais baixa nos países em vias de desenvolvimento do que nos países desenvolvidos. Em 2006, a produtividade do trabalho na agricultura nos países menos desenvolvidos apenas 46% do nível

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de outros países em vias de desenvolvimento e abaixo de 1% do nível alcançado pelos países desenvolvidos. Adicionalmente, estas enormíssimas diferenças na produtividade estão a aumentar: a produtividade do trabalho cresceu somente de 18% nos países menos desenvolvidos entre 1983 e 2003, de 41% noutros países em vias de desenvolvimento e de 62% nos países desenvolvidos26. Dependendo do tipo de equipamento disponível nos agricultores dos países menos desenvolvidos ou em países em vias de desenvolvimento, algumas estimativas sugerem que as diferenças na produtividade por trabalhador agrícola activo entre produtores mais eficientes e os menos eficientes atinjam 1/1000 ou mais27.

Neste contexto, a ideia de estabelecer um “terreno de negociação entre iguais” não tem qualquer sentido. O aprofundamento do programa de reformas sob o Acordo sobre a Agricultura (acesso melhorado aos mercados, limites ao apoios internos e a eliminação faseada da redução dos subsídios à exportação) não permitirá aos produtores agrícolas dos países em vias de desenvolvimento a possibilidade de concorrerem em termos iguais com os produtores dos países industrializados, a menos que os salários dos países em vias de desenvolvimento sejam reprimidos para níveis muito baixos para compensar uma produtividade muito mais baixa por trabalhador activo. Alguns países em vias de desenvolvimento têm um sector agrícola altamente mecanizado e, particularmente desde que os salários no sector agrícola permanecem comparativamente baixos em comparação com os dos países da OCDE, têm uma vantagem comparativa forte na agricultura e tirariam claramente proveito da eliminação, ou pelo menos, da redução dos subsídios que geram desvios de comércio nos países desenvolvidos28. Mas, noutros países em vias de desenvolvimento, particularmente nos países menos desenvolvidos, a agricultura permanece um sector frágil, em consequência da falta de investimento na agricultura por um longo período de anos. Incentivar estes países a abrirem o seu sector agrícola à concorrência comprometendo-se a baixas taxas tarifárias sobre os bens importados pode consequentemente não ser adequado, sobretudo, se tomamos em consideração que a insegurança alimentar está concentrada na sua maior parte nas áreas rurais e que uma grande parte da população nos países que são os mais vulneráveis depende da agricultura para os seus meios de subsistência: em 2000-03, 70% da população

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economicamente activa estava ligada à agricultura nos países menos desenvolvidos, em contraste com 52% em outros países em vias de desenvolvimento, e com os 3% nos países desenvolvidos29.

Nem o facto de muitos países em vias de desenvolvimento não terem suficientemente investido na agricultura, nem o dano causado ao seu sector agrícola pela redução de tarifas de importação de produtos agrícolas, são atribuíveis às regras da OMC. A responsabilidade principal para esta situação encontra-se do lado das instituições financeiras internacionais, em particular com os programas de ajustamento estrutural impostos aos Estados, nos anos 80, como uma condição imposta para poderem ter acesso aos empréstimos – a condicionalidade do FMI. As políticas internas podem, também, e mesmo muito frequentemente, ser criticadas por darem pouca atenção à agricultura e por terem sacrificado os interesses do país de longo prazo, no que se refere ao desenvolvimento do seu sector agrícola, aos interesses de curto prazo do governo, com a chegada de bens alimentares a baixos preço aos mercados locais. Inversamente, as políticas internas adequadas podem ser uma condição para que toda e qualquer oportunidade criada com a melhoria das condições de acesso aos mercados se possa materializar, por exemplo, eliminando os constrangimentos existentes pelo lado da oferta com que os produtores se debatem ou ajudando-os a reduzirem os custos do ajustamento.

Mas atribuir as culpas é de fraca utilidade. O que importa é avaliar o impacto da liberalização do comércio tomando em consideração a realidade destes constrangimentos que enfrentam os governos, o que em muitos casos torna difícil ou mesmo impossível para eles que executem políticas a nível interno que permitam maximizar os ganhos obtidos com o comércio, enquanto minimizam o impacte negativo, em particular, com a utilização ao máximo das flexibilidades que lhes são permitidas. Seria irresponsável presumir simplesmente que tais políticas internas complementares podem ser executadas adequadamente nos países referidos, a uma velocidade proporcional ao impacto da própria liberalização do comércio. Certamente, em grande parte, em consequência das grandes diferenças entre as taxas tarifárias aplicadas e as taxas máximas que poderiam ser aplicadas, as Taxas Tarifárias Limite,

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na agricultura, o actual regime aplicado ao comércio agrícola não está longe do que poderia resultar de todos os acordos adicionais que poderiam eles também resultar da conclusão bem sucedida da ronda de negociações de Doha. Contudo, com poucas excepções, os governos dos países em vias de desenvolvimento, têm sido incapazes de tomarem as medidas que os aliviariam dos problemas referidos acima – insuficiente acesso aos mercados para os produtores dos países em vias de desenvolvimento e uma vulnerabilidade destes produtores aos aumentos súbitos das importações nos seus próprios mercados internos. A lição a reter é que nós não devemos presumir de ânimo demasiado leve que estes países têm a capacidade de se adaptarem ao contexto desenhado pelo comércio internacional: enquanto os governos não puderem ser capazes de tomar todas as medidas apropriadas para assim fazer – por exemplo, na África subsariana em particular, em consequência da remoção das instituições estatais (tais como mecanismos de estabilização dos preços no produtor) que apoiavam os produtores agrícolas até aos anos de 8030 –, não pode haver nenhum sector privado suficientemente robusto para se adaptar e apropriar do que alguns descrevem como sendo as oportunidades da liberalização do comércio internacional.

V. Os impactes do programa da reforma na agricultura sobre o direito à alimentação

Os impactes da remoção das barreiras ao comércio no sector agrícola sobre o direito à alimentação são examinados a três níveis. Ao nível macroeconómico, a liberalização do comércio pode aumentar a vulnerabilidade dos países em consequência da sua dependência do comércio internacional e pode fragilizar ainda mais a situação dos produtores agrícolas de determinados países em vias de desenvolvimento (1.). A nível microeconómico, contribui para reformular e adaptar a corrente global da cadeia alimentar de uma maneira que favorece as empresas transnacionais, cuja liberdade de actuar é alargada na mesma altura em que as ferramentas da regulação a que os Estados podem recorrer estão a ser limitadas (2.). Mas, não são apenas os impactes económicos que interessam. O comércio internacional em produtos agrícolas tem igualmente impactes profundos no ambiente, na nutrição e na saúde, que os Estados não podem ignorar (3.).

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Estes impactes não podem ser atribuídos à execução dos acordos da OMC só por si mesmos, independentemente do resto e, sem dúvida, este relatório discute muitos destes impactos que podem ser reduzidos mesmo dentro da actuação no âmbito da reforma lançada pelo Acordo sobre a Agricultura. Nem pode ser ignorado que os acordos da OMC estão a ser executados em dado contexto bem específico, e este é tal que os países em vias de desenvolvimento, todos eles, muitíssimas vezes têm sido incapazes de agarrar as oportunidades que estes Acordos criaram, enquanto têm que sofrer as consequências da liberalização do comércio nas suas respectivas economias. E os pilares do Acordo sobre a Agricultura – acesso melhorado aos mercados e redução de subsídios de apoio interno e de subsídios à exportação – não são combinados com as obrigações correspondentes impostas aos Estados para actuar cooperativamente de modo a limitar a volatilidade dos preços dos produtos nos mercados internacionais, a regular as práticas comerciais das empresas transnacionais ao longo da corrente global da cadeia alimentar, ou para ter em consideração as dimensões ambientais e de saúde nas suas políticas comerciais. É esta má combinação, este desajustamento, que está na origem das questões levantadas pela liberalização do comércio: os governos devem dar tanta atenção à necessidade de desenvolver de modo sustentável o comércio, como a que devem dar à eliminação das distorções existentes no comércio.

Uma dupla estratégia pode ser, consequentemente, recomendada. Primeiramente, os Estados devem reforçar o seu próprio sector agrícola e, desse modo, permitir que o segmento mais pobre da população tire proveito de um acréscimo de rendimento e de uma fonte adicional de criação de emprego. A longo prazo, devido à ascensão inevitável dos custos dos transportes, não há nenhuma outra maneira de apoiar e de forma sustentada a capacidade de obtenção de alimentos. Isto não quer dizer que o comércio internacional não desempenhe nenhum papel. Mas, este deve funcionar a favor daqueles que, hoje, são a maioria da população com insegurança alimentar, e deve ser conseguida de forma ecologicamente sustentada. Isto não vai acontecer por mero acaso; somente poderá acontecer através de um projecto. Isto deve ser a segunda parte da estratégia.

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1. Os impactes macroeconómicos da liberalização do comércio: acréscimo da dependência em termos de comércio internacional

A liberalização do comércio incentiva cada país a especializar-se nas produções em que tem vantagem comparativa. Contudo, mesmo se um país tem vantagem comparativa na produção de um dado produto em particular, esta depende, não somente das suas dotações naturais, tais como o solo ou o clima, mas também, e cada vez mais, das políticas de interesse público específicas ou da ordem em que os parceiros comerciais respectivos conseguiram alcançar as economias de escala, em dadas linhas de produção. A vantagem comparativa é sobretudo construída, mais do que revelada. Embora os países estejam constrangidos por factores naturais sobre o que podem produzir, mesmo se são ou não competitivos na produção de produtos agrícolas depende fundamentalmente das escolhas que são de natureza política – de quanto se investe nas infra-estruturas rurais, na irrigação, ou no desenvolvimento do acesso a linhas de microcrédito, ou de quanto deve ser o apoio dada aos agricultores para os compensar do facto de os preços serem insuficientemente remuneradores. A questão fundamental é aqui, então, saber quais os incentivos que resultam para os Estados, isto é, na construção da sua vantagem comparativa, a partir da abertura ao comércio internacional. De um lado, os Estados podem procurar melhorar a capacidade dos seus produtores para tirarem proveito das oportunidades do comércio internacional, e em particular, para os países em vias de desenvolvimento, tirarem proveito do melhor acesso aos mercados de alto valor acrescentado dos países industrializados. De um lado, os Estados podem considerar que importar determinados bens, tais como alimentos já processados, pode ser mais barato do que os produzir localmente, e podem consequentemente aumentar a sua dependência em importações para alimentar a sua população. A especialização feita de acordo com a vantagem comparativa conduz assim a duas vias de dependência: primeiramente, para a aquisição de divisas estrangeiras, dependência do valor das exportações; em segundo, para a capacidade dos países em alimentar a sua população, dependência do preço das importações.

O exemplo de países africanos subsarianos é bem ilustrativo. Devido em parte à estrutura altamente penalizante das tarifas dos países da OCDE através

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picos tarifários e de progressividade tarifária, e em parte, também, à presença nos mercados internacionais de alimentos altamente subvencionados produzidos nos países industriais, a África subsariana permaneceu dependente das exportações, que não o petróleo, exportações tradicionais de produtos primários tais como o café, o algodão, o cacau, o tabaco, o chá e o açúcar, e foi essencialmente incapaz de se tornar uma zona exportadora de alimento processados: a África do Sul, o maior exportador africano de alimentos processados, tinha apenas 1% de quota do mercado global, no período de 2000-0531. Nesta mesma altura, enquanto muitos países africanos eram países exportadores líquidos de bens alimentares até aos anos 70, estes transformaram-se depois, na sua maior parte, países importadores líquidos de bens alimentares desde os anos 80, devido, em parte, à falta de investimentos na agricultura, e em parte devido aos subsídios agrícolas nas economias de mercado desenvolvidas, o que, por seu lado, também desincentivou, por sua vez, o investimento na agricultura32. O resultado é bem conhecido: conduziu ao aumento na vulnerabilidade destes países e agravou os termos de troca e as flutuações nos preços das matérias-primas – flutuações que são particularmente importantes no sector agrícola devido à sensibilidade deste sector aos acontecimentos relacionados com o tempo e com a baixa elasticidade da oferta e da procura. Mais precisamente, a dependência do comércio internacional pode conduzir a três consequências: à perda de rendimentos de exportação quando os preços de produtos exportáveis descem; às ameaças aos produtores locais quando os bens importados, mais baratos, chegam aos mercados internos, contra os quais estes produtores são incapazes de competir; e aos problemas da balança de pagamentos para os países importadores líquidos de bens alimentares quando os preços dos produtos dos bens alimentares sobem. Os acordos da OMC procuram abordar estes dois últimos problemas; desde o faseamento da eliminação dos acordos de estabilização de preços dos anos 60 e 70, o primeiro problema não foi de forma alguma abordado.

No futuro, deve ser dada mais atenção à necessidade de desenvolver ferramentas para limitar a volatilidade dos preços dos mercados internacionais dos produtos básicos. Tal volatilidade faz com que os Estados mais dependentes do comércio internacional fiquem mais vulneráveis aos choques, tais como aos

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problemas derivados da sobre-produção ou ainda vulneráveis também às colheitas de outros Estados, conduzindo a brutais aumentos ou descidas dos preços. Contudo, é a dependência dos países em importações de bens alimentares para a segurança alimentar de sua população que produz os impactes mais imediatos ao direito a uma alimentação adequada. Estes impactes são de dois tipos.

Primeiramente, a afluência de bens importados pode ameaçar a capacidade dos produtores locais dos países importadores líquidos de bens alimentares de viverem das suas próprias colheitas, quando esta afluência de importações conduz a preços tão baixos nos mercados internos que acabam por eliminar estes mesmos produtores locais. Tais situações têm sido de uma grande frequência, quer antes quer depois da entrada em vigor do Acordo sobre a Agricultura. Foram documentadas 12 000 casos deste tipo, de invasão de produtos alimentares importados, numa análise que cobre 102 países em vias de desenvolvimento ao longo do período que vai de 1980 a 2003. A Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) concluiu que, usando as definições expressas no artigo 5 do Acordo sobre a Agricultura, o número de aumentos súbitos das importações excedeu 20% (isto é, uma em cada cinco anos) para todos os produtos básicos alimentares, e em particular, com uma frequência elevada para o caso do arroz (40,1%), do açúcar (40,4%), do óleo de palma (36,6%), do queijo (36,4%) e do trigo (35,9%). Todas estas frequências aumentaram geralmente no período após 1994, com a excepção do óleo, do trigo, do arroz, do milho e do óleo de palma. Os países mais afectados foram a Índia e o Bangladesh na Ásia, Zimbabwe, Quénia, Nigéria, Ghana e Malawi na África, e Equador e Honduras na América Latina33.

Tais invasões de produtos importados ameaçam os meios de subsistência dos agricultores e dos trabalhadores agrícolas, e todos estes não têm nada a ver com este tipo de colheitas34. Por exemplo, no Ghana, as importações do arroz cresceram de 250 000 toneladas em 1998 para 415 150 toneladas em 2003. O arroz de produção interna, que tinha abastecido 43% do mercado interno em 2000, representou apenas 29% do mercado interno em 2003. Em consequência, 66% dos produtores do arroz registaram prejuízos35. Neste mesmo país, as importações

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de pasta de tomate aumentaram 650%, de 3 300 toneladas em 1998 para 24 740 toneladas em 2003, com uma proporção significativa (36%) vinda de Itália. Os produtores locais – que são na sua maior parte pequenos agricultores, vítimas da falta de competitividade e de investimento – perderam 35% da sua quota do mercado interno. Na República dos Camarões, as importações de aves domésticas aumentaram quase 300% entre 1999 e 2004. Cerca de 92% dos criadores de aves domésticas abandonaram o sector, e neste país 110 000 postos de trabalho rurais foram perdidos anualmente de 1994 a 2003. Na Costa do Marfim, as importações de aves domésticas aumentaram 650% entre 2001 e 2003, fazendo com que a produção doméstica tenha caído em 23%. A descida dos preços forçou 1 500 produtores a abandonarem a produção e conduziram à perda de 15 000 postos de trabalho. Em Moçambique, as importações de óleos vegetais (palma, soja e girassol) quintuplicaram entre 2000 e 2004, tanto quanto a produção local era incapaz de satisfazer a procura local, a crescer rapidamente.

Num contexto de queda dos preços, com o preço interno dos óleos refinados a acompanhar o preço internacional dos óleos refinados importados, as margens de produtores locais reduziram-se drasticamente, conduzindo ao abandono de refinarias e a uma redução total dos volumes de óleo localmente produzido.

Estes aumentos súbitos das importações de que sofreram os países em vias de desenvolvimento são o resultado da redução de barreiras aduaneiras das importações para níveis significativamente abaixo dos limites de tarifas estabelecidas pelo Acordo sobre a Agricultura, que estes países consentiram como parte dos programas de ajustamento estrutural que lhes foram impostos como uma condicionalidade para poderem obter os empréstimos. Combinado com a diminuição dos preços dos mercados internacionais, em parte atribuível aos subsídios fornecidos pelos países da OCDE aos seus produtores agrícolas e à consequente sobre-produção, tudo isto conduziu à chegada de produtos baratos aos mercados internos contra os quais os produtores locais dos países em vias de desenvolvimento eram incapazes de concorrer. Os constrangimentos pelo lado da oferta que enfrentam estes produtores variam de um país para outro, mas em todos eles se inclui a baixa produtividade devido à utilização

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de baixa tecnologia agrícola, à falta de acesso ao crédito e aos inputs agrícolas, à falta de formação e de assistência técnica, assim como à falta de serviços de infra-estruturas rurais. Enquanto estes constrangimentos poderiam, pelo menos em parte, ser removidos através do crescimento do investimento na agricultura e através de políticas de interesse público que apoiem os agricultores, isto representa uma perspectiva de médio e longo prazo que não constitui uma resposta, a curto prazo, nem quanto à incapacidade dos agricultores afectados em aumentar a oferta em resposta à procura, nem quanto a melhorar a sua competitividade face à concorrência das importações.

As disposições contidas na versão actual do Acordo sobre a Agricultura são insuficientes para permitir que os países reajam às rupturas causadas por vagas de importações. Sob o Acordo sobre a Agricultura, os membros que não tenham recorrido à tarifação dos bens isentos de tarifas, podem impor medidas de protecção especiais, as “medidas de salvaguarda especiais” sob a forma das tarifas adicionais quando se está confrontado com aumentos súbitos das importações de determinados produtos – isto é, com importações que excedem um determinado nível específico de referência, ou em que o preço desça abaixo de um preço de referência específico (art. 5). Entretanto, a maioria dos países em vias de desenvolvimento não usaram a tarifação. Trinta e nove Estados-membros da OMC, incluindo vinte e dois países em vias de desenvolvimento, reservaram o direito a recorrer à opção de salvaguarda especial em centenas de produtos. O mecanismo das medidas de salvaguarda especiais foi desencadeado apenas por 10 membros, incluindo 6 países em vias de desenvolvimento, entre 1995 e 2001; e entre 1995 e 2004, os países em vias de desenvolvimento desencadearam o mecanismo medidas de salvaguarda especiais em somente 1% dos casos em que o poderiam ter aplicado36. Estes números podem ser comparados com o número de casos em que houve aumentos súbitos das importações nos países em vias de desenvolvimento. Como protecção contra tais aumentos súbitos, o actual mecanismo de medidas de salvaguarda especiais é ineficaz.

Contudo, é a dependência dos países em importações de bens alimentares para a segurança alimentar de sua população que produz os impactes mais imediatos ao direito a uma alimentação adequada.

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Um segundo impacte da dependência dos países em vais de desenvolvimento nas importações de bens alimentares sobre o direito a uma alimentação adequada ocorre quando os preços estão sujeitos a aumentos nos mercados internacionais. Em tais circunstâncias, os países importadores líquidos de bens alimentares podem ficar sujeitos a problemas da balança de pagamentos: as dificuldades que estes países encontraram durante o período de 2007-08, quando os preços dos bens alimentares subiram significativamente, são uma ilustração viva deste mesmo risco.

Com a Decisão Relativa às Medidas Respeitantes aos Possíveis Efeitos Negativos do Programa de Reforma nos Países Menos Desenvolvidos e nos Países em Desenvolvimento Importadores Líquidos de Produtos Alimentares (Decisão de Marraquexe), que é parte dos acordos da OMC, pretendeu-se dar uma resposta a esta situação. Nessa Decisão, sublinharam os membros que, em consequência do programa da reforma, os países menos desenvolvidos e em vias de desenvolvimento importadores líquidos de bens alimentares podem ter efeitos negativos em termos da disponibilidade de oferta adequada de produtos alimentares básicos a partir de fontes externas em termos e em condições razoáveis, incluindo dificuldades a curto prazo no financiamento de níveis normais de importações comerciais de bens alimentares básicos. Quatro mecanismos de resposta são considerados. Estes são: (1) fornecimento de ajuda alimentar a nível que seja suficiente para continuar a fornecer o auxílio para se conseguir satisfazer as necessidades alimentares de países em vias de desenvolvimento; (2) fornecimento de técnicos e da ajuda económica aos países em vias de desenvolvimento e aos países menos desenvolvidos importadores líquidos para melhorarem a sua produtividade agrícola assim como as suas infra-estruturas; (3) concessão de créditos para a exportação de bens agrícolas em termos favoráveis (4) facilidades de financiamento a curto prazo que beneficie os países em vias de desenvolvimento a fim de lhes permitir que mantenham níveis normais de importações comerciais.

A Decisão de Marraquexe não foi adequadamente posta em prática. De facto, é espantoso que não haja na OMC nenhum mecanismo que monitorize sistematicamente o impacte do processo da reforma do Acordo sobre a Agricultura

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nos países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares37. Além disso, a noção de “oferta adequada” de produtos alimentares básicos – que os países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares devem poder obter a partir de fontes externas “em termos e em condições razoáveis” durante todo o processo da reforma – permanece indeterminada, embora seja esta mesma noção que deve desencadear os mecanismos possibilitados por esta decisão. Finalmente, encontram-se dificuldades com cada um dos quatro mecanismos que a decisão de Marraquexe estabelece:

(1) A Decisão de Marraquexe refere-se à necessidade de rever o nível da ajuda alimentar estabelecido periodicamente pelo Comité da Ajuda Alimentar da Convenção Relativa à Ajuda Alimentar de 1986 e iniciar negociações, em fórum apropriado, para estabelecer um nível de obrigação de ajuda alimentar suficiente para satisfazer as necessidades dos países em vias de desenvolvimento durante o programa da reforma. As Convenções Relativas à Ajuda Alimentar de 1995 e 1999 são um resultado deste proclamado objectivo. A Decisão de Marraquexe incluiu também um compromisso ao “adoptar orientações destinadas a assegurar que uma crescente proporção de produtos alimentares de base seja fornecida aos países menos desenvolvidos e aos países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares a título de subvenções e/ou com um elemento de concessão adequado, em conformidade com o artigo IV da Convenção da Ajuda Alimentar de 1986”.

Contudo, o artigo VII (a) da Convenção Relativa à Ajuda Alimentar estabelece que a ajuda alimentar na base da Convenção pode ser fornecida aos países menos desenvolvido e aos países de mais baixo rendimento, assim como aos países de rendimento médio e a outros países incluídos na lista da OMC dos países em vias de desenvolvimento na altura da negociação destas convenção, “que conheçam situações de emergência em termos alimentares ou crises financeiras internacionalmente reconhecidas conducentes a emergências em termos de carência alimentar, ou desde que as operações de ajuda alimentar se destinem a grupos vulneráveis”. Assim, com respeito aos países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares que nem são nem países menos desenvolvidos

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nem países de salários baixos, são estipuladas circunstâncias mais restritivas sob a Convenção Relativa à Ajuda Alimentar do que seria exigido a fim se assegurar de que está ser feita uma execução adequada da Decisão de Marraquexe38. A Convenção Relativa à Ajuda Alimentar poderia ser corrigida a fim de eliminar esta discrepância. Adicionalmente, as directrizes referidas na Decisão de Marraquexe poderiam ser adoptadas, a fim impor uma obrigação aos Estados, de acordo com a Convenção Relativa à Ajuda Alimentar, de fornecerem ajuda alimentar a níveis que asseguram de facto que os países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares sejam sempre capazes de assegurar uma protecção adequada ao direito à alimentação das pessoas sob a sua jurisdição.

(2) A concessão de auxílios aos países menos desenvolvidos e aos países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares a fim permitir que melhorem a sua produtividade agrícola e as suas infra-estruturas foram insuficientes durante as últimas duas décadas. A proporção da ajuda oficial ao desenvolvimento dedicada à agricultura e a proporção do orçamento do Estado que vai para a agricultura declinaram significativamente desde 198039. Apesar de terem sido assumidas linhas de envolvimento ou compromisso de várias formas para tentar inverter esta tendência, temos de esperar para ver se haverá uma vontade política suficiente para se por em prática estas resoluções.

(3) A Decisão de Marraquexe estabelece que o apoio apropriado deve ser feito em todos os acordos quanto a créditos de exportação de produtos agrícolas para o tratamento diferenciado dos países menos desenvolvidos e países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares. Actualmente, as partes destes países no total das exportações de bens agrícolas permanece pequena. Também, sobre este ponto, muito pouco progresso tem havido.

(4) O parágrafo 5 da Decisão de Marraquexe permite a possibilidade, para os países em desenvolvimento importadores líquidos de alimentos, que tenham dificuldades na sua balança de pagamento de poderem utilizar recursos de instituições financeiras internacionais tanto com base em “instrumentos já existentes como em

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instrumentos a criar”, de modo a permitir-lhes ultrapassar as suas dificuldades de financiamento. A facilidade principal que foi considerada satisfazer esta exigência é a Facilidade de Financiamento Compensatório do FMI, estabelecida inicialmente em 1963. A Facilidade de Financiamento Compensatório foi alargada em 1981 para cobrir os custos adicionais da importação de cereais, na sequência de pedidos do Conselho Mundial da Alimentação40 e da FAO, tendo em consideração a volatilidade elevada dos preços dos bens alimentares nos anos 70. De facto, esta facilidade foi de pouca utilidade para os países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares41. O acesso à Facilidade de Financiamento Compensatório é restringido aos países que estejam perante dificuldades provisórias da balança de pagamento ligadas aos factores que estão para além do controle das autoridades, tais como uma subida dos custos da importação de cereais, uma circunstância em que se considera a que poucos países estiveram sujeitos. Acrescente-se ainda que o acesso aos empréstimos é sujeito à condicionalidade, que a Decisão de Marraquexe reconhece explicitamente ao referir-se à extensão das facilidades no “contexto de programas de ajustamento”. Finalmente, também aqui, há uma discrepância entre a Facilidade de Financiamento Compensatório e a Decisão de Marraquexe: a Facilidade de Financiamento Compensatório é limitada somente aos cereais, enquanto a Decisão cobre todos os alimentos básicos.

Em 25 de Abril de 2001, um grupo de 16 membros de países em vias de desenvolvimento da OMC submeteu uma proposta na qual se propunha, entre outras coisas, o estabelecimento de um Inter-Agency Revolving Fund (RF)42 sob o qual, para além da assistência técnica e da ajuda económica aos países menos desenvolvidos e países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares para projectos específicos ligados a melhorar a produtividade na agricultura e às infra-estruturas que lhe estão relacionadas, o financiamento seria fornecidos em termos de concessão sem exigir nenhuma justificação com a excepção da evidência que as contas em importações eram excessivas. Este sistema foi concebido como sendo de autofinanciamento: os países que solicitavam empréstimos deveriam assumir a obrigação de reembolso nos dois anos seguintes. A UNCTAD elaborou mais tarde uma proposta, que foi incluída na Conferência de Ministros da OMC em Doha entre

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as medidas de implementação43 e conduziu ao painel Inter-Agency que foi criado para analisar o problema44. Não foi dada nenhuma continuação, como de resto, também à proposta para o Revolving Fund. É então bem-vindo que a Programa de Contenção de Choques Externos (Exogenous Shocks Facility) tenha sido revista em Setembro de 2008 a fim de permitir que o FMI ajude os seus membros a lidar com acontecimentos tais como as mudanças de preços das matérias-primas, ao incluir a possibilidade de acesso rápido ao Programa e a estipular termos de concessão do financiamento centrado sobre o ajustamento ao choque subjacente mas com menos ênfase do que anteriormente sobre os ajustamentos estruturais de sentido mais lato.

2. Os impactes microeconómicos da liberalização do comércio: o impacto nas formas da cadeia global da oferta de bens alimentares e na dualização do sector agrícola

O crescimento do comércio transfronteiriço nos produtos agrícolas implica necessariamente que o papel das grandes empresas multinacionais – comerciantes dos produtos, processadores de bens alimentares, e retalhistas a nível global – cresça, uma vez que a produção de bens alimentares está reorientada mais para servir os mercados estrangeiros do que para servir os mercados internos.

Estas grandes empresas servem uma função indispensável na ligação entre os produtores, particularmente dos países em vias de desenvolvimento, aos mercados, particularmente aos mercados de grande valor acrescentado dos países industrializados. Mas, uma vez que estas empresas têm actividades em países diferentes e podem escolher o país que assumem como fonte, pode ser difícil a instalação de mecanismos efectivos de regulação, sobretudo no que diz respeito às suas políticas de compra. Isto constitui uma fonte de dependência para os agricultores que os fornecem. E isto incentiva a segmentação do sector agrícola, dividido cada vez mais entre um segmento que tem o acesso aos mercados de alto valor acrescentado e, como seu resultado, às melhores tecnologias, aos inputs (que incluem a terra, a água, e o apoio estatal), ao crédito e à influência política, e um outro segmento que está a ser levado a servir somente os mercados internos de baixo valor acrescentado e que está comparativamente a ser negligenciado e marginalizado.

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A concentração no sistema alimentar é significativa. Isto conduz a alargar as diferenças entre os preços mundiais e os preços nacionais das matérias-primas, como o trigo, o arroz e o açúcar, que, por exemplo, mais do que dobraram entre 1974 e 1994; e, uma vez que a maioria dos grandes compradores dos produtos está sediada nos países da OCDE, isto limita a parcela do valor capturado pelos países em vias de desenvolvimento. No seu Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2008, o Banco Mundial destaca as taxas da concentração elevada no café, no chá, e no cacau: O café é produzido aproximadamente por 25 milhões de agricultores e de trabalhadores agrícolas, contudo os comerciantes internacionais têm um CR445 de 40%, e os torrefactores de café têm um CR4 de 45%. Estima-se em 500 milhões o número de consumidores. A percentagem do preço de venda ao público que fica retido nos países produtores, Brasil, Colômbia, Indonésia, e Vietname que valem aproximadamente 64% do valor global de produção escoado nos mercados mundiais – tem estado a descer, de um terço no começo dos anos 90 a 10% em 2002, quando o valor de vendas a retalho dobrou. Concentrações similares são observadas na cadeia de valor do chá, onde três companhias controlam mais de 80% do mercado mundial. O cacau tem um CR4 de 40% para os negociantes internacionais, de 51% para a moagem do cacau, e de 50% para os fabricantes de pastelaria. A reivindicação dos países em vias de desenvolvimento é de protesto contra a evolução do valor acrescentado que tem estado a declinar, passando de cerca de 60% em 1970-72 para cerca de 28% em 1998-200046. Os agricultores nos países industrializados enfrentam os mesmos constrangimentos, resultantes do facto de terem que passar pelos comerciantes dos respectivos produtos que detêm uma posição dominante: duas empresas controlam 40% das exportações de cereais a partir dos Estados Unidos47. Tendências similares de uma concentração crescente tem-se estado a verificar no sector de retalho48, embora a velocidade da concentração aqui pareça ter diminuído nestes últimos anos49.

Os resultados da expansão das cadeias de oferta globais são ambíguos. Por um lado, criam oportunidades, permitindo aos agricultores dos países em vias de desenvolvimento o acesso aos mercados de alto valor acrescentado, em particular onde estes agricultores têm certas vantagens comparativas, tais como terrenos e

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trabalho a mais baixos custos e com épocas de crescimento mais longas e em que estão relativamente perto daqueles mesmos mercados – como é o caso dos produtores subsaarianos relativamente aos mercados europeus. Por outro lado, contudo, a oferta global aumenta o número de fornecedores e, assim, aumenta a concorrência entre eles, conduzindo às políticas de fixação do preço pelos compradores o que reduz a parte do valor final do produto que vai para os produtores – o preço à saída da plantação, o oposto ao preço final, ao público. Dado a crescente concentração de poder nos mercados dos produtos agrícolas, nas mãos dos compradores e de grandes retalhistas, estes actores impõem os seus preços aos produtores; impõem os padrões que muitos pequenos agricultores não conseguem satisfazer; em particular nas colheitas do trigo ou da soja, em que as economias de escala representam ganhos importantes de produtividade, e em que os pequenos agricultores são incapazes de, a esse nível, serem concorrentes sendo pois relegados para os mercados de baixo valor acrescentado, os mercados locais, que os coloca numa forte desvantagem na concorrência pela utilização de terras, água, ou de outros recursos produtivos, a menos que acabem por se reduzir à situação de trabalhadores agrícolas mal pagos.

Certas estratégias podiam ser desenvolvidas para evitar que os pequenos agricultores sejam expulsos pelo desenvolvimento da cadeia global da oferta de bens alimentares: elas incluem cooperativas, esquemas de outgrower, iniciativas de associação ou de parceria público-privados e iniciativas regionais50. Contudo, estas estratégias estão ainda muito pouco desenvolvidas e claramente não são suficientes, presentemente, para neutralizar a tendência crescente para ainda maior concentração e uma maior dualização no sector agrícola. Este é particularmente o caso uma vez que os grandes compradores procuram minimizar os custos de transacção, que são elevados, quando procuram como fornecedores os pequenos agricultores que estão dispersos geograficamente e estão longe de usufruírem das diversas facilidades mais disponíveis a nível central. Além disso, os grandes produtores agrícolas estão melhor equipados para se adaptarem às variações da procura e para cumprirem com as exigências dos volumes negociados e da rastreabilidade, assim como com os padrões ambientais e da segurança alimentar que os retalhistas globais procuram cada vez mais monitorar em conformidade com os seus interesses51.

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3. Os impactes não-económicos da liberalização do comércio: ambiente e saúde

A confiança no comércio internacional de modo a conseguir-se a segurança alimentar não pode ignorar o seu impacte no ambiente e na nutrição. Estes elementos são ignorados na maior parte das discussões sobre o comércio internacional. Estes são, porém, cruciais. Como se falou acima, as mudanças climáticas constituem uma verdadeira ameaça e a mais importante para a capacidade futura do planeta em alimentar a sua população: qualquer medida que contribuía para um maior aquecimento global deve, consequentemente, ser evitada. E o direito à alimentação adequada não pode ser equacionado com um consumo diário de calorias suficiente: é um direito o direito a uma alimentação adequada que exige que a dieta contenha, no seu conjunto, uma mistura de nutrientes para assegurar o crescimento mental e físico, para o desenvolvimento e manutenção assim como para a actividade física, exigindo dos Estados que mantenham, adaptem ou reforcem a diversidade dietética assim como a sua estrutura apropriada de consumo e de alimentação52.

a) As dimensões ambientais

A redução das barreiras ao comércio internacional conduz a um aumento da concorrência entre os produtores situados em países diferentes, cada um com as suas próprias políticas ambientais a visarem o controlo das emissões de gases de efeito de estufa e a exaustão dos solos, particularmente devido ao uso de fertilizantes químicos. Isto conduz ao medo de que os accionistas e os compradores se possam virar para as jurisdições nacionais que imponham menos constrangimentos, e cujos produtores tenham consequentemente vantagens competitivas. Esta questão tem sido basicamente levantada devido principalmente às deslocalizações industriais, mas pode igualmente ser relevante para a produção agrícola, uma vez que a agricultura gera efeitos significativos sobre as mudanças climáticas, não somente através da produção e da libertação de gases com efeito de estufa, tais como o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso, e altera igualmente a superfície do planeta: as alterações provocadas pelo uso da terra, tal como a desflorestação e a desertificação são fontes antropogénicas principais de dióxido de carbono. Actualmente entretanto,

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não parece haver nenhuma prova cabal de que os países estão a desistir de colocarem restrições quanto às práticas agrícolas, com o propósito de limitar a emissão de gases de efeito de estufa, ou sobre o seu impacto nos solos, por causa do impacte potencial de tais limitações na produtividade dos seus produtores.

Mas, ainda há mais quanto à relação entre a liberalização do comércio e o meio ambiente. As correntes distantes da produção implicam distâncias longas no transporte. Calculou-se que três quartos do consumo de energia no sistema alimentar ocorre para além da porta da exploração agrícola, e que a energia usada para transportar os alimentos para os mercados dos países ricos em torno do globo, 365 dias por ano, quaisquer que sejam as estações do ano, conta como uma parte significativa de consumo de energia total no sistema alimentar53. Torna-se difícil extrair conclusões gerais, a partir do impacte do transporte dos bens alimentares sobre longas distâncias, como é encorajado pela globalização das cadeias de abastecimento, uma vez que depende da modalidade do transporte usada, e pode ser compensada, em certa medida, se os alimentos importados por uma dada área foram produzidos de uma maneira ambientalmente mais sustentável do que se os alimentos disponíveis fossem produzidos localmente. Por exemplo, um estudo empírico mostrou que pode ser mais sustentável (pelo menos em termos do uso eficaz da energia) importar tomates da Espanha do que os produzir em estufas aquecidas no Reino Unido, fora dos meses de Verão54. O que é claro é que, entretanto, o transporte de estrada e o transporte aéreo (que representam respectivamente 74% e 12% das emissões de gases de efeito de estufa produzidas pelos transportes que é, ele próprio, responsável por 23% das emissões do mundo de gases de efeito de estufa)55, são tipicamente usados para o transporte dos bens alimentares frescos, tem assim um impacto sério nas mudanças climáticas. Este impacto é crescente tanto quanto os consumidores são incentivados a esperar que todos os alimentos estejam sempre disponíveis, em todas as épocas do ano, em todas as estações do ano. Um estudo feito sobre “a distância dos alimentos” nos alimentos consumidos na Inglaterra, por exemplo, destacou que o transporte aéreo é a modalidade em mais rápido crescimento do transporte dos alimentos, referenciando que 11% das emissões são resultantes do transporte da indústria alimentar apesar de transportar

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somente 1% dos alimentos e representar apenas 0,1% das distâncias no transporte alimentar56. Estas modalidades de consumo de alimentos não são sustentáveis a longo prazo.

Mais importantes ainda, as várias modalidades da produção agrícola podem ter impactos muito diferentes no aquecimento global. Se a destruição de florestas para aumentar a terra a utilizar na agricultura for incluída, estima-se que a agricultura seja responsável por aproximadamente 30% de emissões antropogénicas globais totais de gases de efeito de estufa57 A conversão de florestas tropicais em terras agrícolas, a expansão da produção de arroz e da produção animal (31%) e o uso crescente de fertilizantes de nitrogénio (38%) tudo isto tem contribuído significativamente para as emissões de gases de efeito de estufa, sob a forma do metano e de óxido nitroso. Enquanto ambos os gases são libertados em quantidades muito menores do que as de dióxido de carbono, eles têm, porém, um potencial muito maior no aquecimento global: uma tonelada de óxido nitroso ou de metano tem um impacto de longe muito maior nas mudanças climáticas do que uma tonelada de dióxido de carbono58. Enquanto a progressiva mudança para formas mais intensivas da produção agrícola, com os consequentes impactes ambientais e as consequências negativas para o aquecimento global, não pode ser atribuída directamente ao aumento do comércio global em produtos agrícolas, esta é, não obstante, uma tendência que está a ser incentivada pela especialização dos países para aumentarem as suas receitas de exportações. Mais importante, a regulação futura do comércio internacional em produtos agrícolas deve ter em consideração o impacte de várias modalidades da produção agrícola nas mudanças climáticas, a fim permitir que os países ofereçam incentivos a favor de fórmulas de produção que melhor respeitem o ambiente. As fórmulas agro-industriais da produção agrícola são igualmente insustentáveis por causa de suas ameaças à agrobiodiversidade, e também por causa da sua dependência em petróleo barato. Inverter a tendência para uma generalização destas formas da produção é importante se nós visamos a segurança alimentar, considerando a ameaça das mudanças climáticas na nossa capacidade de manter os níveis actuais da produtividade agrícola em muitas regiões.

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b) As dimensões da nutrição e da saúde

Em parte, como consequência da progressividade tarifária nos países desenvolvidos e em parte como consequência da vantagem comparativa, os produtos exportáveis dos países em vias de desenvolvimento são, na maior parte, incluindo a fruta e as verduras frescas, o que se chama commodities, isto é, produtos primários ou básicos não processados, e importam alimentos processados dos países desenvolvidos. Isto conduz às mudanças nos hábitos dietéticos nos países em vias de desenvolvimento, cujas populações consomem cada vez mais de acordo com as dietas ocidentais ricas em sal, açúcar e gordura. Daí resultaram taxas mais elevadas de obesidade, assim como o aumento da incidência de doenças cardíacas e diabetes tipo 2. A obesidade está agora “entre os factores de risco. O excesso de peso está agora entre os cinco factores de risco mais importantes quanto à soma de anos de vida perdidos devido a mortalidade prematura e o número de anos vividos com a deficiência, ajustados à gravidade da incapacidade, DALYs-disability-adjusted life-years, na literatura da especialidade, quer nos países desenvolvidos quer nos países em vias de desenvolvimento com baixa mortalidade”59. A urbanização e o aumento das taxas de emprego das mulheres, que conduz a um maior suporte em alimentação mais pesada e preparada fora de casa, incluindo os alimentos disponíveis nos supermercados, tiveram um papel significativo nesta evolução; mas a maior utilização de alimentos importados foi igualmente um factor, que os governos devem tomar em consideração nas suas decisões de política comercial.

VI. Reconciliando o comércio com o direito à alimentação

1. O desafio da fragmentação

O capítulo precedente identificou um número de impactos potenciais da liberalização do comércio sobre a capacidade dos Estados em cumprirem a sua obrigação relativamente ao direito do homem a uma alimentação adequada, como é exigido, em particular, pelo artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e pelo artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

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Contudo, as suas obrigações sobre os direitos humanos e os compromissos feitos com a conclusão dos acordos sob a égide da OMC permanecem não coordenados. A nível internacional, esta falta da coordenação é um exemplo, entre outros, do problema da fragmentação da lei internacional num número de regimes independentes, cada um com suas próprias normas e mecanismos específicos, e relativamente autónomos face a cada um dos restantes e face à lei internacional, em geral60. Tudo isto é demasiado frequente, esta ausência de mecanismos globais da administração em assegurar uma coordenação adequada entre as obrigações imposta aos Estados na base destes regimes diferentes é, pelo seu lado, replicada ao nível interno: os negociadores sobre o comércio ou não estão conscientes das obrigações dos direitos humanos dos governos que representam, ou não identificam então as implicações resultantes das suas posições nas negociações comerciais61; mesmo quando estão bem informados sobre as intersecções potenciais, expressam rotineiramente o ponto de vista de que toda a incompatibilidade potencial deve ser estabelecida através das políticas apropriadas a nível interno, onde os dois grupos de compromissos devem ser reconciliados.

Este tipo de abordagem leva a que cada Estado procure assegurar, com as suas políticas internas, uma consistência que, em seguida, não é procurada no processo legal internacional. Isto não é satisfatório. Isto significa tratar as obrigações decorridas sob os acordos comerciais como equivalentes na força normativa às obrigações dos direitos humanos. Isto não somente falha em reconhecer que, como consequência do artigo 103 da Carta das Nações Unidas62 e porque as normas dos Direitos do Homem têm o status de normas peremptórias da lei internacional – nenhum tribunal poderia reconhecer como válido e aplicar um tratado adoptado em violação do reconhecimento internacional dos Direitos do Homem – os Direitos do Homem devam prevalecer sobre todos os outros compromissos internacionais. Igualmente cria o risco que, face a situações de conflito, os Estados optem em conformidade com as suas obrigações resultantes dos acordos comerciais: desde que estes acordos são apoiados geralmente pela ameaça de sanções económicas – como é o caso na OMC, sob o Memorando de Entendimento sobre as Regras e Processos que Regem a Resolução de Litígios

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da OMC (Dispute Settlement Understanding) –, colocando de lado as suas obrigações quanto aos direitos humanos parecerá aos governos economicamente menos caro e até mesmo politicamente, o que é frequente.

A crença que a compatibilidade entre as leis comerciais e os direitos humanos é melhor assegurada a nível de execução das políticas nacionais igualmente sobrestima a capacidade dos processos políticos internos compensarem a fragmentação da lei internacional, ao mesmo tempo que subestima a possibilidade da contribuição de um ambiente internacional em poder levar à completa realização dos direitos humanos ao nível nacional. O desequilíbrio criado a nível internacional entre os compromissos assumidos com os acordos comerciais apoiado pela ameaça das sanções económicas, por um lado, e os tratados dos direitos humanos que não são apoiados com meios equivalentes, por outro, não pode facilmente ser salvo em processos políticos nacionais: a autodeterminação é ilusória quando é exercida nesta estrutura de incentivos. Isto é assim, em particular, até ao ponto em que os direitos humanos exigem uma implementação progressiva: para além das suas obrigações imediatas que é fazer respeitar e proteger os direitos humanos, os Estados devem fazer cumprir os direitos humanos através de medidas que podem exigir tempo para poderem ser totalmente aplicadas. Para a adopção de tais medidas, os Estados devem ter algum espaço político disponível e podem precisar de recursos: certas políticas comerciais adoptadas na aplicação dos acordos comerciais; podem, entretanto, limitar ambos sem que isto possa ser antecipadamente previsto.

Uma salvaguarda existe: os compromissos sob a estrutura da OMC devem ser interpretados, tanto quanto possível, como sendo compatíveis com a lei internacional geral, assim como com as regras de todo e qualquer tratado aplicável às relações entre os países signatários em disputa num qualquer diferendo, fazendo aparecer a questão da sua interpretação, tendo em conta no que é que as regras se podem tornar, em particular, através da adjudicação63. No sistema da OMC, a exigência que os acordos sejam interpretados de acordo com as outras obrigações internacionais dos Estados membros é reforçada mais pelo fato de que a interpretação competente dos acordos se encontra nas mãos dos próprios

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membros, na Conferência de Ministros e no Conselho Geral64, e os seus membros não podem ignorar as suas obrigações quanto aos direitos humanos ao fornecerem tais interpretações. Contudo, isto não dá uma resposta satisfatória às situações do conflito real em que nenhuma interpretação não conforme pode ser evitada. E este princípio de extremo rigor na interpretação de acordos da OMC não estipula o efeito paralisante que as normas estabelecidas nestes acordos podem causar, quando os Estados membros não sabem mesmo se uma qualquer medida particular a tomar, a fim de cumprirem com as suas obrigações dos direitos humanos, poderá ser considerada aceitável pelos outros membros ou, em vez disso, os expõe então à retaliação, particularmente quando procuram adoptar as medidas que, embora não exigidas estritamente pelos tratados dos direitos humanos, contribuiriam porém para a realização progressiva dos direitos humanos.

Nós devemos, consequentemente, assegurar que as obrigações dos direitos humanos nos países signatários sejam tomadas em consideração nas fases de negociação dos acordos de comércio: mais tarde pode ser demasiado tarde. A menos que regulada adequadamente, o aumento da liberalização pode conduzir a mais aumentos súbitos das importações que ameaçam os meios de subsistência dos produtores locais no país importador ou, alternativamente, provocam aumentos repentinos nos preços dos produtos dos bens alimentares e contra os quais os compradores mais pobres de bens alimentares não estão protegidos adequadamente. Pode levar à expansão das cadeias globais de oferta beneficiárias destas variações, mas podem marginalizar muitos outros que são já os mais vulneráveis. Aumentará a concorrência entre, por um lado, os agricultores dos países da OCDE e os agricultores bem equipados, altamente mecanizados de determinados países em vias de desenvolvimento e, por outro lado, os agricultores de muitos outros países em vias de desenvolvimento, cuja produtividade por trabalhador activo é cem vezes mais baixa. Pode incentivar formas de produção agrícola, e de extensão das cadeias de oferta, com o risco de danos adicionais ao ambiente e com mais emissões de gases de efeito de estufa. Num mundo em que aqueles que estão com fome são pequenos agricultores e outros produtores de bens alimentares, incluindo trabalhadores agrícolas, assim como pobres das zonas urbanas, e para os quais as mudanças climáticas constitui a ameaça mais importante à

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segurança alimentar no futuro, continuar a querer levar a cabo a rota da liberalização do comércio enquanto se ignoram estas consequências potenciais é inaceitável. Na base dos resultados expressos anteriormente, com as propostas seguintes procura-se ajudar a que os Estados tomem em melhor consideração as suas obrigações relativamente aos direitos humanos aquando das negociações e na execução dos seus compromissos sob a égide da OMC. O primeiro conjunto de propostas é processual na sua natureza: estas procuram assegurar-se de que as negociações comerciais sejam conduzidas em circunstâncias que facilitem ter em conta o direito a uma alimentação adequada. Um segundo conjunto de propostas é substantivo: exploram soluções para os impactes identificados no capítulo V. Em conjunto, com estas propostas pretende-se promover os direitos dos povos e dos Estados soberanos em determinar democraticamente as suas próprias políticas agrícolas e alimentares, sem que estas escolhas sejam ditadas pelo regime de comércio internacional; e devem canalizar este regime para um outro que contribua não somente para o aumento da produção e da eficiência determinante, mas também para a realização do direito à alimentação.

2. As dimensões processuais: para um guia das negociações comerciais para uma completa realização do direito à alimentação

2.1. Avaliando o impacte dos acordos comerciais sobre o direito à alimentação

Os Estados não devem aceitar compromissos a égide da OMC sem se assegurarem de que estes compromissos sejam inteiramente compatíveis com a sua obrigação de respeitar o direito à alimentação adequada. Isto exige que avaliam o impacte desses mesmos compromissos sobre o direito a uma alimentação adequada65. Isto requer igualmente que todos os compromissos feitos devem ser limitados no tempo, e reavaliados subsequentemente, desde que os impactes da liberalização do comércio na capacidade dos Estados em respeitar o direito à alimentação possam ser de difícil previsão, e podem eventualmente só se tornarem visíveis depois de um certo número de anos de execução. Por exemplo, quaisquer que sejam os resultados da ronda actual de negociações de Doha lançada em Novembro de 2001, estes resultados só podem explicitamente

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ser tratados como provisionais, e uma cláusula de revogação (sunset clause) deve estar anexa aos resultados a fim de permitir uma nova negociação, depois de um período de alguns anos de execução, com base numa revisão independente sobre o impacte na fruição do direito à alimentação adequada66.

As avaliações dos impactes são uma ferramenta útil a fim de ajudar um Estado a compreender as implicações dos acordos em que se integra67. Estas têm um efeito de democratização poderoso, desde que forneçam uma oportunidade para que a sociedade civil participe na avaliação das políticas comerciais68 e desde que permitam que os Parlamentos Nacionais e as organizações da sociedade civil confiem nos seus resultados, nos diálogos com os governos69. À medida que as avaliações de impacto são baseadas nas exigências normativas do direito do homem a uma alimentação adequada e nos indicadores correspondentes70, elas podem reforçar a posição negocial dos governos nas negociações comerciais, particularmente desde que a referência ao direito a uma alimentação adequada seja uma obrigação imposta a todos os Estados sob a lei internacional e que não podem ignorar no contexto das negociações comerciais.

Contudo, embora importantes como de facto são, as avaliações de impacte permanecem reactivas – ou defensivas – por natureza: são ferramentas para medir as consequências das decisões que são tomadas, mas não indicam, em si e por si mesmas, que políticas comerciais devem ser executadas a fim de promover a realização do direito à alimentação. Os mecanismos devem ser criados para permitir a adopção de tais políticas, em conjunto com – e não como um substituto para – uma monitorização regular do impacte dos acordos comerciais e da sua execução sobre o direito à alimentação.

2.2. Comércio internacional como um componente das estratégias nacionais para a realização do direito à alimentação

Os Estados devem assegurar-se de que as posições que assumem nas negociações comerciais – por exemplo, a respeito de que produtos especiais devem

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proteger, a respeito de que programação dos compromissos deve aceitar, ou a respeito de que serviços devem ser abertos à concorrência – não resultem em obstáculos na realização do direito à alimentação.

Os Estados devem definir as suas posições nas negociações comerciais de acordo com estratégias nacionais para a realização do direito à alimentação. A adopção de tais estratégias é recomendada pelo Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (General Comment n.º 12, par. 21), e o seu conteúdo é esclarecido pelas Directrizes Voluntárias com o fim de Apoiar a Realização Progressiva do Direito a uma Alimentação Adequada no Contexto da Segurança Alimentar Nacional adoptada pelos Estados membros do Conselho Geral da FAO em 23 Novembro de 2004. Tais estratégias devem igualmente ser consideradas como as ferramentas guias para as negociações comerciais: somente traçando a insegurança alimentar e identificando que acções devem ser tomadas no combate contra a fome, será possível fazer que aqueles acordos comerciais assegurem que os compromissos assumidos nas negociações comerciais facilitem, em vez de impedir, os esforços para a realização do direito á alimentação da sua população. Sem dúvida, a utilidade em adoptar tais estratégias nacionais, baseada num mapa fiável sobre a situação de insegurança e da vulnerabilidade alimentar, vai para além do auxílio que forneça aos negociadores no contexto da OMC. Estas estratégias igualmente devem servir de apoio à posição dos governos nas suas discussões com as instituições financeiras internacionais, com os doadores, ou nas negociações comerciais bilaterais. É uma fonte particular de preocupação que, num grande número de casos, os Estados tenham sido incapazes de usar as flexibilidades permitidas nos acordos feitos sob a égide da OMC – ou de aplicar determinadas tarifas que permanecem no interior dos seus limites aplicáveis – por causa das prescrições de tais instituições ou por causa dos acordos de comércio livres bilaterais. Adoptando uma estratégia nacional para a realização do direito a uma alimentação adequada reforçaria a posição dos Estados nas suas discussões com estes parceiros, ao mesmo tempo que melhoraria a responsabilidade dos governos na defesa dos direitos dos seus cidadãos.

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2.3. Transparência e participação nas negociações comerciais

O direito às avaliações de impacto da alimentação e a adopção de estratégias nacionais para a realização do direito à alimentação são as ferramentas que devem apoiar os negociadores para se assegurarem de que não adoptam posições a nível internacional que, no nível nacional, impediriam completamente a realização do direito a uma alimentação adequada. Além disso, contudo, é essencial que aos Parlamentos Nacionais e à sociedade civil sejam dadas oportunidades de monitorizar as posições adoptadas pelos governos nas negociações comerciais. Não devem ser apresentados no verdadeiro estado final do processo das negociações – uma vez que o acordo foi alcançado – com um conjunto de compromissos feitos pelo executivo a partir dos quais, nessa fase, será politicamente muito difícil ou impossível recuar. Os parlamentos nacionais devem regularmente organizar audições sobre as posições adoptadas pelos governos nas negociações comerciais, e todos os grupos afectados, incluindo em particular as organizações de agricultores, devem ter uma oportunidade de nelas participar. O potencial de democratização do direito às avaliações de impacto da alimentação somente se materializará por inteiro se tais procedimentos forem postos em prática a nível interno, a fim evitar uma desconexão entre os compromissos feitos a nível internacional e os esforços desenvolvidos ao nível nacional na realização do direito à alimentação. Isto é particular importante no contexto dos acordos comerciais em relação à agricultura, dados os riscos de uma dualização crescente do sistema de cultivo em consequência das políticas que favorecem o sector exportador, o que é, em parte, o resultado da influência política desproporcional que está a ser exercida nalguns países por um número relativamente pequeno de produtores agrícolas muito grandes – enquanto os pequenos agricultores, estão, ao contrário, pobremente organizados politicamente, e frequentemente incapazes de se mobilizarem devido à sua dispersão geográfica71.

3. As dimensões substantivas: tomando em conta o direito à alimentação no regime de comércio multilateral

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3.1. Limitando a dependência no comércio internacional

Os Estados devem evitar a dependência excessiva no comércio internacional na prossecução da segurança alimentar. O seu interesse a curto prazo em procurar nos mercados internacionais os alimentos que não podem produzir localmente a mais baixos preços não deve conduzi-los a sacrificar os seus interesses de longo prazo de construir ou reconstruir a sua capacidade de produzir os alimentos que precisam de ter para satisfazer as suas necessidades do consumo. Há duas razões para isto. Primeiramente, quando a análise que promove a afectação eficiente com base na especialização e de acordo com a vantagem comparativa sublinha os benefícios globais, a nível do país, da liberalização do comércio, uma perspectiva baseada no direito à alimentação exige que examinemos os impactos sobre os mais vulneráveis. Através do conjunto dos países em desenvolvimento a agricultura passou a representar cerca de 9% do PIB e cerca de 50% do emprego total. Nos países onde mais de 34% da população está subalimentada, a agricultura representa 30% do PIB e 70% do emprego72. Ao longo de todos os países, os rendimentos dos trabalhadores agrícolas são significativamente mais baixos do que nas áreas não rurais73. Então, consequentemente, para a realização do direito à alimentação, não há nenhuma outra alternativa que não seja a de reforçar o sector agrícola, com uma grande ênfase nos pequenos agricultores.

Em segundo, ao desenvolverem a sua capacidade alimentar as populações, os Estados limitam a vulnerabilidade que resulta da volatilidade dos preços dos mercados internacionais. Como foi sublinhado pelo Banco Mundial, “o risco de controlo dos preços dos cereais em grão é uma exigência fundamental num mundo caracterizado por preços internacionais mais voláteis dos cereais e por recorrentes choques da oferta que resultarão provavelmente do aquecimento global”74. As consultas devem ser conduzidas na base das necessidades em restabelecer acordos de estabilização dos preços para os produtos tropicais, os cereais e produtos oleaginosos, o açúcar e o algodão tropicais, que são de particular importância para os países em vias de desenvolvimento, e na medida em que podem evitar os impactos negativos da especulação não comercial nos mercados a prazo daqueles mesmos produtos.

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A criação de uma reserva global virtual de produtos alimentares constituiria uma primeira etapa importante neste sentido. A curto prazo, temos que tratar das consequências da volatilidade dos preços dos mercados internacionais.

3.2. Mantendo a Flexibilidade

Presentemente, uma proporção relativamente pequena dos bens alimentares produzidos, estimada em 15%, é negociada internacionalmente75. Mais, ainda assim, os preços fixados nos mercados internacionais têm um impacte importante na capacidade dos produtores no mundo inteiro terem uma vida aceitável, uma vez que, em consequência da liberalização do comércio, há uma tendência para que os preços domésticos e os preços mundiais convirjam, tanto quanto os bens importados concorrem com os bens produzidos internamente nos mercados locais. Os Estados, em particular os Estados dos países em desenvolvimento, de acordo com o princípio de tratamento especial e diferenciado, devem consequentemente manter a liberdade para tomar as medidas que isolem os mercados internos da volatilidade dos preços dos mercados internacionais. A menos que os acordos comerciais concluam prever a flexibilidade necessária, os Estados podem encontrar-se limitados por determinadas disciplinas que os tornarão vulneráveis às variações dos preços nos mercados internacionais.

Há um risco, o risco de que os produtores locais sejam eliminados pelos aumentos súbitos das importações. É isto que o estabelecimento de uma medida de protecção especial procura evitar. Certamente, as medidas que os Estados podem tomar para reforçar o seu sector agrícola, incluindo as medidas que estão na alçada da Caixa Verde para permitir algumas formas de apoio interno à agricultura, permanecerão ineficazes na ausência de tal flexibilidade. As medidas tais como os esquemas de controlo da oferta que garantem um determinado preço aos produtores, devem igualmente ser possíveis, embora tudo isto exija que os Estados permaneçam livres de manter tarifas de importação a níveis tais que permitam proteger o seu sector agrícola do impacto da chegada aos mercados internos de produtos importados de baixo preço. É particularmente

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espantoso que determinados esquemas de controlo da oferta, que procuram adaptar a produção à procura e proteger os produtores e os consumidores das variações repentinas dos preços, quando ao mesmo tempo procuram assegurar aos processadores uma margem de lucro razoável, sejam ameaçados por propostas de redução de Tarifas “Extra-Quota”76, mesmo para os produtos designados como produtos sensíveis porque estão colocados sob tais esquemas de gestão. Tais esquemas protegem quer os produtores quer os consumidores contra as flutuações dos preços dos mercados internacionais. A sua remoção seria uma etapa regressiva na realização do direito à alimentação.

Um outro risco é que os compradores líquidos de bens alimentares se tornem vulneráveis aos aumentos dos preços, em particular desde que muitos Estados dos países em desenvolvimento tenham poucos ou mesmo nenhuns mecanismos de protecção que protejam os segmentos mais pobres da população de tais impactos. A Decisão de Marraquexe deve segurar que os países em vias de desenvolvimento importadores líquidos de bens alimentares estejam protegidos contra este risco, mas a resposta que fornece continua a ser apenas parcial. Para que esta decisão seja inteiramente eficaz, precisaria de incluir um mecanismo de monitorização sistemática do impacte da reforma do Acordo sobre a Agricultura nos países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares; seria também necessário definir a noção de “oferta adequada” dos produtos alimentares básicos (que, sob a Decisão de Marraquexe, os países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares deveriam poder obter a partir de fontes externas em termos e condições razoáveis durante todo o processo da reforma) pela referência à necessidade de se assegurar que cada indivíduo possa ter sempre acesso a uma alimentação adequada ou aos meios para a sua obtenção – isto é, que a subida dos preços que podem resultar do processo da reforma não conduzirá à violação do direito à alimentação; e precisaria de estar a ser totalmente satisfeita, o que não acontece actualmente.

Executar de modo adequado a Decisão de Marraquexe seria consistente com a obrigação dos membros da OMC em respeitar o direito à alimentação, não somente

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para as suas próprias populações, mas igualmente para as populações de outros Estados, incluindo os seus parceiros comerciais que terão sido sujeitos a efeitos negativos pelo programa de reformas resultantes dos compromissos assumidos sob a égide do Acordo sobre a Agricultura. Contudo, mesmo com uma utilização operacional melhorada da Decisão de Marraquexe, os problemas da vulnerabilidade dos países em consequência de sua dependência no comércio internacional e dos custos escondidos do comércio como uma solução para se conseguir a segurança alimentar, continuam a ser reais. Mais ajuda alimentar, mais facilidades de acesso e menos condicionalidades para a obtenção de meios financeiros para resolver os problemas de financiamento de balança de pagamento, não são nenhum substituto para se reforçar o sector agrícola, dentro de todos os países, quer para realçar a sua segurança alimentar quer como meio para reduzir a pobreza e, assim, também a fome.

As medidas acima sugeridas procuram assegurar que a confiança no comércio internacional não tenha consequências adversas na realização do direito à alimentação, a nível interno. A adopção de tais medidas exige formas de cooperação internacional: que todos os estados trabalhem para o estabelecimento de um sistema de comércio internacional que facilite os esforços feitos a nível nacional para se conseguir a segurança alimentar. Isto é consistente com a sua obrigação em cumprir com o direito à alimentação. O Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais identificou o facto de um Estado não tomar em consideração as suas obrigações legais internacionais relativamente ao direito à alimentação quando entra em acordos com outros Estados ou com organizações internacionais’, como um exemplo específico da violação do direito à alimentação77. Sem dúvida, as suas obrigações relativamente ao direito à alimentação são impostas aos Estados não somente para as pessoas que estão no seu território nacional, mas igualmente para as pessoas situadas fora das fronteiras nacionais, tomando em consideração os direitos soberanos do Estado territorial. Por exemplo, onde um Estado subsidia fortemente os produtos agrícolas exportados por actores económicos situados sob a sua jurisdição, então eliminando assim os produtores locais nos mercados de destino, isto deve então ser tratado como uma violação do direito à alimentação pelo Estado que exporta, uma vez que constitui uma ameaça à segurança alimentar no outro

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país, o país importador78. Isto é, igualmente, o espírito do General Comment em que o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais adoptou quanto ao relacionamento entre sanções económicas e respeito pelos direitos económicos, sociais e culturais, em que o Comité sublinhou que os Estados que impõem sanções não devem, ao actuar assim, comprometer os direitos económicos, sociais e culturais da população do respectivo Estado visado79. Como membros das Nações Unidas, todos os Estados se comprometeram a cooperar internacionalmente para a completa realização dos direitos humanos (artigo 56 da Carta das Nações Unidas). A Declaração Universal dos Direitos do Homem refere-se ao direito de cada um a ter uma ordem social internacional conducente com a plena realização dos direitos humanos. Os Estados estão consequentemente em face de um dever de cooperar no estabelecimento de um regime multilateral do comércio internacional que apoie o direito à alimentação.

3.3. Controlar o poder de mercado nas cadeias globais de fornecimento de produtos alimentares e neutralizar o risco de dualização crescente do sistema de cultivo

Um dos maiores desequilíbrios no regime de comércio multilateral actual é que, enquanto a disciplina é imposta aos Estados, as grandes empresas transnacionais, como resultado da imposição desta disciplina aos Estados, vêem a sua liberdade de actuação significativamente aumentada em consequência de não estarem sujeitas a nenhuma obrigação relativamente ao exercício de seu poder dominante no mercado. Esta é uma importante diferença na administração global. A médio e a longo prazo, pode ter que ser estabelecida uma estrutura multilateral de modo a assegurar um controle mais adequado sobre estes actores. A curto prazo, os Estados devem actuar de acordo com as suas responsabilidades de protecção dos direitos humanos, regulando de modo adequado os actores sobre quem devem exercer a sua influência, incluindo as situações onde estes actores operam fora do território nacional dos referidos Estados80. Enquanto o exercício da jurisdição extra-territorial constituir uma opção nesta consideração, outras iniciativas poderiam ser tomadas pelo Estado, tal como a imposição de exigência de transparência ou de satisfação de dadas outras exigências, ou ainda pela imposição de condições para o acesso ao crédito à exportação, de modo a

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assegurar-se de que os compradores dos produtos, processadores dos bens alimentares, e os retalhistas globais, contribuam para a realização do direito à alimentação e se abstenham das práticas que possam ameaçar sua fruição. Em colaboração com o Representante Especial do Secretário-geral sobre os direitos humanos e de empresas transnacionais e de outras empresas do sector, o Relator Especial organizará consultas transparentes e inclusivas sobre estas matérias a fim de identificar que medidas concretas poderiam ser recomendadas para este efeito. Tais medidas podiam incluir recompensas ou incentivos para as melhores práticas identificadas na cadeia global da oferta de bens alimentares. Uma atenção particular deve ser dada à possibilidade de usar a lei da concorrência para proteger não somente os consumidores finais, mas igualmente os produtores que vendem as suas colheitas, da concentração ou do abuso excessivo de posições dominantes sobre o mercado.

Um outro risco que a liberalização do comércio na agricultura acarreta é que os maiores produtores agrícolas que mais facilmente tirarão proveito das oportunidades resultantes de melhores acessos ao mercado, possam vir a destruir os pequenos e mesmo médios agricultores pelas razões acima indicadas. Em muitos países, os pequenos agricultores estão situados nos segmentos mais vulneráveis da população. Os Estados têm o dever, consequentemente, têm uma responsabilidade especial de neutralizar esta tendência apoiando a pequena agricultura, em particular com respeito ao acesso à terra, à água, aos recursos genéticos e ao crédito; e apoiando-a também com investimentos, apoiando-a também com a melhoria e o acesso das infra-estruturas rurais.

4. Para um comércio social e ambientalmente sustentado

A expansão do comércio internacional nos produtos agrícolas pode ter escondido custos ambientais, para a saúde humana e para a nutrição; pode levar a que aos produtores mais pequenos coloquem os seus produtos a preços tão baixos que os seus rendimentos sejam insuficientes para se alimentarem a si e às suas famílias; e pode comprimir os salários dos trabalhadores agrícolas, em consequência da concorrência internacional crescente. A futura regulação do comércio

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internacional sobre os produtos agrícolas deve ter em consideração o impacte de várias modalidades da produção agrícola nas mudanças climáticas, a fim de permitir que os países dêem incentivos a favor de dadas formas de produção, tais como a cultura orgânica ou as práticas agro-ecológicas, que respeitam melhor o ambiente e contribuem ao mesmo tempo para a segurança alimentar81.

No futuro, deve-se estudar, quer a experiência de mecanismos de comércio justo, quer ainda de outros incentivos baseados em iniciativas, a fim de examinar se devem continuar a serem desenvolvidos e, sendo assim, como continuar, a fim de incentivar social e ambientalmente que haja mais comércio sustentável. Pode-se questionar, por exemplo, se a inspiração poderia ser conseguida em linhas directrizes tais como a Ethical Trading Initiative sobre os pequenos agricultores, a fim promover na origem práticas que sejam mais sustentáveis e que, em vez da contribuírem para a dualização do sistema de cultivo, reforcem as capacidades e aumentem os rendimentos dos pequenos agricultores. O Relator Especial propõe-se para aprofundar no futuro as suas consultas sobre estas matérias.

VII. Conclusões e recomendações

O relator especial conclui com as seguintes recomendações:

Os Estados-membros da OMC devem:

– Assegurar, principalmente através de avaliações transparentes de impacte, independentes e participativas sobre os Direitos Humanos, que as suas acções feitas sob a égide da OMC sejam inteiramente compatíveis com a sua obrigação de respeitar, proteger e cumprir o direito à alimentação;

– Definir as suas posições nas negociações comerciais de acordo com estratégias nacionais para a execução do direito à alimentação;

– Encorajar os parlamentos nacionais a fazer audições regulares sobre as

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posições adoptadas pelo governo nas negociações comerciais, com a inclusão de todos os grupos afectados, incluindo, em especial, as organizações de agricultores;

– Evitar a confiança excessiva no comércio internacional para a prossecução da segurança alimentar e para a capacidade de produzir os bens alimentares necessários para satisfazer as necessidades do consumo, com uma ênfase particular nos pequenos produtores agrícolas;

– Manter as flexibilidades e os instrumentos necessários, como esquemas de gestão da oferta, proteger os mercados internos da volatilidade dos preços dos mercados internacionais;

– Executar inteiramente a Decisão de Marraquexe e, para que seja inteiramente eficaz, assegurar a inclusão de um mecanismo de monitorização sistemática do impacte do processo da reforma do Acordo sobre a Agricultura nos países em desenvolvimento importadores líquidos de produtos alimentares e fornecer uma definição clara da”oferta adequada” de bens alimentares básicos que refira a necessidade de se assegurar que cada indivíduo tenha sempre acesso a uma alimentação adequada ou aos meios para a sua obtenção – isto é, que o aumento dos preços que podem resultar do processo da reforma não conduzirá à violação do direito à alimentação;

– Regular adequadamente os actores privados sobre os quais o Estado pode exercer influência no sentido da realização do seu dever de proteger o direito à alimentação;

– Explorar formas de reorientar o comércio para produtos e modalidades de produção com melhor respeito pelo ambiente e que não conduzam às violações sobre o direito à alimentação.

O Secretariado da OMC deve:

– Manter o diálogo construtivo existente com o Alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos;

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– Incentivar os países membros da OMC a realizar Avaliações de Impacte sobre os Direitos Humanos antes da conclusão dos acordos comerciais ou a aceitar novos projectos de acordos, com o auxílio do Alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos.

A comunidade internacional deve:

– Explorar os meios de limitar a volatilidade dos preços nos mercados internacionais dos produtos, em particular para os produtos tropicais, sementes oleaginosas, açúcar e algodão, por exemplo, através de acordos da estabilização dos preços dos produtos;

– Assumir etapas para o estabelecimento de uma estrutura multilateral que regule as actividades de compradores dos produtos agrícolas, processadores e retalhistas, na cadeia global da oferta alimentar, incluindo a determinação de padrões de comportamentos para estes mesmos actores e para as suas políticas de compra.

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PARTE III

ESPECULAÇÃO FINANCEIRA E CRISE ALIMENTAR

1. TERMINAR COM A ESPECULAÇÃO FINANCEIRA EXCESSIVA

NOS MERCADOS DE MATÉRIAS-PRIMAS

Bom dia e bem-vindos à terceira sessão da nossa Comissão sobre o agravamento dos preços dos bens alimentares e energia. Nas duas últimas sessões analisámos o papel dos especuladores financeiros com o objectivo de compreender se a sua crescente participação nos mercados de matérias-primas contribui para o aumento dos preços dos combustíveis e energia.

Os factos expostos a esta Comissão persuadiram-me que os especuladores são, de facto, um factor que contribui significativamente para as dificuldades económicas que os consumidores americanos estão agora a sentir de cada vez que vão às compras de produtos alimentares ou quando enchem os depósitos dos seus carros. Estes constrangimentos também se estão a fazer sentir nas empresas americanas, grandes e pequenas.

Por esta razão, eu próprio e o Senador Collins solicitámos à nossa equipa a preparação de nova legislação específica para este problema. Na semana passada tornámos estes projectos legislativos públicos, colocámo-los no site e pedimos a opinião do público à Comissão. Hoje continuamos a nossa audição na base destes projectos e com eles esperamos aliviar os orçamentos familiares das famílias americanas.

Desde que iniciamos este inquérito há já quase dois meses, muita coisa aconteceu sobre este tema. A CFTC (Commodity Futures Trading Commission)

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anunciou pelo menos quatro novas iniciativas para regular a actividade especulativa e na semana passada o Presidente da Bolsa de Valores de Nova Iorque indicou que os investimentos feitos pelos grandes investidores institucionais, em particular pelos fundos de pensões, modificavam completamente as condições de oferta e procura para as matérias-primas negociadas em bolsa. Os nossos colegas congressistas estão a discutir oito projectos de lei sobre este tema – muitos deles focando-se na questão da transparência de mercados. Mas alguns vão ainda mais longe, procurando colocar os mercados exteriores ou as transacções de títulos no mercado fora de Bolsa (OTC) sob regulação federal.

A preocupação com a especulação nos mercados de matérias-primas e o seu impacto sobre os preços não se confina aos Estados Unidos. Na última reunião do G-8, alguns dos nossos aliados e parceiros comerciais mais próximos – em particular a França, a Itália, e o Japão – levantaram esta questão e o comunicado final dessa reunião do G-8 pedia aos governos nacionais – passo a citar – “para examinarem o funcionamento dos mercados de futuros de matérias-primas e para tomarem as necessárias medidas apropriadas.” Fim de citação. A Áustria propôs um imposto à escala europeia sobre a especulação em matérias-primas. E um relatório publicado recentemente pelo Fundo Monetário Internacional concluiu que – cito de novo – a “especulação desempenhou um papel significativo na subida do preço do petróleo à medida que o dólar enfraquecia e os investidores procuraram contrabalançar a sua exposição investindo em futuros de petróleo (e ouro).” Fim de citação. Assim, o que estamos a fazer aqui hoje não é isolado ou desprovido de sustentação muito credível.

Os três documentos que o Senador Collins e eu tornámos públicos na semana teriam como resultado 1) alargar a transparência aos mercados de matérias-primas não regulados terminando com a lacuna regulamentar relativamente aos swaps. 2) criar um sistema coeso de limites para as posições especulativas que se aplicariam a todas as transacções nos mercados de matérias primas – nas bolsas, fora de bolsa e em bolsas no exterior 3) restringir os investimentos nos mercados de matérias-primas de grandes investidores institucionais que investem através de fundos de índices.

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Quero tornar claro que quando falo sobre especuladores financeiros, estamos a falar de todos aqueles que olham para a subida ou descida do preço das matérias-primas como meio de gerarem lucros. Cada vez mais são deixados de lado os hedgers genuínos os agricultores, os negociantes de combustíveis e outros para quem os mercados de matérias-primas foram originalmente criados como uma maneira de reduzir os seus riscos estabelecendo a priori os preços das colheitas ou da produção de petróleo do ano seguinte.

Deixem-me fazer igualmente claro que compreendo que alguma especulação nos mercados de matérias-primas os ajuda a funcionar melhor. Mas a especulação que agora existe vai muito para além disso.

Um dos comentários públicos que recebemos através do site de Internet da Comissão é particularmente esclarecedor e instrutivo. Vem de um corretor da bolsa de matérias-primas de Iowa e descreve o seguinte: “Eu vi em primeira mão os efeitos que estes fundos de índices tiveram nos mercados agrícolas. Os meus clientes são agricultores e estão a começar a ficar cansados de não conseguirem perceber o sentido dos mercados. Embora estejam felizes com o preço dos cereais, quase todos concordam que os preços estão demasiado elevados. Com estes preços elevados o preço dos seus factores de produção também sobem (i.e. terra, rendas, fertilizantes, sementes, etc.). Os fundamentos da oferta e da procura já nada dizem aos meus clientes. Estes fundos de índices e fundos transaccionados em bolsa não se pautam pelas mesmas regras que a CFTC estabeleceu para os especuladores. Estes últimos precisam de ser regulados em conformidade com os limites especulativos que os restantes participantes do mercado têm que seguir.” Fim de citação. Isto é o senso comum do interior da América e uma ideia que devemos manter presente quando consideramos esta questão.

A especulação não é ilegal. Mas isso não significa que não cause danos. Parafraseando uma personagem de um romance político do princípio do século XX, os especuladores apenas estão a ver as suas oportunidades e a agarrá-las. Motivados pela fraqueza do dólar e pela crescente procura de petróleo, os especuladores estão a deslocar

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grandes quantidades de dinheiro para as bolsas de matérias-primas com a finalidade óbvia de fazerem mais dinheiro. Mas ao actuarem desta forma estão a inflacionar artificialmente os preços dos futuros de produtos alimentares e combustíveis e estão a causar um verdadeiro sofrimento financeiro a milhões de pessoas e às empresas.

A constante subida dos preços dos bens alimentares e energia nos meses mais recentes não é simplesmente o resultado das forças naturais do mercado em funcionamento. A especulação passou para além do ponto até ao qual fornecia uma certa estabilidade aos mercados de matérias-primas. É agora excessiva e tem consequências que são altamente prejudiciais. E é por isso que o nosso governo deve interferir tão rápido quanto possível no sentido de proteger os nossos consumidores e a nossa economia, porque contra as forças dos mercados especulativos, o indivíduo comum simplesmente não se consegue proteger. Senador Collins?

Senador Joe Lieberman, Comissão de Segurança Interna e Assuntos Governamentais,

24 de Junho de 2008, disponível em http://hsgac.senate.gov/public/_files/062408JILOpen.pdf.

2. A DESREGULAÇÃO DOS MERCADOS GLOBAIS E A FOME NO MUNDO

Bom dia e obrigado Sr. Secretário e Membros da Comissão pelo convite para aqui participar hoje. Este é um tema no qual estou profundamente interessado e agradeço a possibilidade de partilhar o que sei sobre este problema.

Há mais de 12 anos que tenho vindo a gerir com sucesso, um fundo de cobertura de risco (hedge fund) de participações a longo/curto prazo e tenho imensos contactos em Wall Street e na comunidade de fundos de cobertura de risco. É importante que saibam que não estou envolvido actualmente em mercados futuros de matérias-primas. Não represento nenhuma empresa, entidade financeira ou grupo de pressão. Dirijo-me a vós hoje enquanto cidadão interessado cuja experiência profissional me leva a crer que estamos numa situação na qual a economia dos Estados Unidos está a ser negativamente afectada.

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Embora alguns dos meus colegas de profissão possam ficar desapontados pelo facto de eu dar este testemunho ao Congresso, eu sinto que é a atitude correcta a tomar.

Puseram-me a questão: “Estão os investidores institucionais a contribuir para a inflação dos preços dos bens alimentares e da energia?” E a minha resposta inequívoca é “SIM.” Neste testemunho eu explicarei que os investidores institucionais são um dos factores principais, se não mesmo o factor principal, que hoje afectam os preços dos bens alimentares e das matérias-primas. Claramente, há muitos factores que contribuem para a determinação de preço nas bolsas de matérias-primas; eu estou aqui para expor um factor em crescimento rápido mas que passa virtualmente despercebido, e que representa um problema que pode ser corrigido de forma expedita por acções de política legislativa.

Os preços das matérias-primas aumentaram mais em termos agregados durante os últimos cinco anos do que em qualquer outro período da história dos Estados Unidos1. Já antes vimos os preços das matérias-primas subirem vertiginosamente no passado, em consequência de crises da oferta, como aconteceu durante o embargo árabe ao petróleo em 1973. Mas hoje, contrariamente ao que sucedeu no passado, a oferta é ampla: não há nenhuma fila de espera na bomba de gasolina e há abundância de produtos alimentares nas prateleiras.

Se a oferta é adequada – como é demonstrado por outros que testemunharam perante esta Comissão2 – e os preços ainda estão a subir, conclui-se que a procura deve estar a aumentar. Mas como se explica então um aumento continuado da procura quando os preços das matérias-primas duplicaram ou triplicaram nos últimos 5 anos?

O que nós estamos a sentir é um choque da procura que emerge de uma categoria nova de participantes nos mercados futuros de matérias-primas: os investidores institucionais. Especificamente, estes são fundos de pensões de empresas ou Estados, fundos soberanos, fundações universitárias e outros investidores

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institucionais. Colectivamente, estes investidores detêm em média uma quota de contratos de futuros em aberto do mercado de matérias-primas maior do que qualquer outro participante no mercado3.

Estes intervenientes, a quem chamo de “especuladores de fundos de índices”, afectam uma parcela das suas carteiras a “investimentos” no mercado de futuros de matérias-primas, e comportam-se de forma muito diferente dos especuladores tradicionais que sempre existiram neste mercado. Eu refiro-me a eles como especuladores de “fundos de índices” por causa da sua estratégia de investimento: distribuem a sua disponibilidade em dólares através de futuros sobre as 25 principais matérias-primas de acordo com os índices mais conhecidos – o Standard & Poors-Goldman Sachs Commodity Índex e o Dow Jones-AIG Commodity Index4.

Eu gostaria de fornecer alguns dados sobre como é que esta nova categoria de “investidores” apareceu.

No início desta década, alguns investidores institucionais, que sofreram com o resultado da grave queda de preços no mercado de acções em 2000-02, começaram a olhar para o mercado de futuros de matérias-primas como uma potencial nova classe de activos, adequada para o investimento institucional. Embora o mercado de matérias-primas tenha sempre tido alguns especuladores, nunca até esta altura as maiores instituições de investimentos o haviam considerado seriamente como viável para programas de investimentos em maior escala. Os mercados futuros sobre mercadorias pareceram atraentes porque historicamente se têm comportado de forma inversamente proporcional comercializando-se no sentido inverso relativamente às carteiras de acções e títulos de rendimento fixo.

Os principais consultores financeiros neste sector, que orientavam as grandes instituições nas suas afectações de carteiras de títulos, sugeriram pela primeira vez que os investidores poderiam “comprar e guardar” contratos de futuros sobre matérias-primas, assim como o faziam antes com as acções e obrigações.

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A procura dos especuladores de fundos de índices leva à subida dos preços

Hoje, os especuladores de fundos de índices estão a canalizar milhares de milhões de dólares para mercado de futuros de matérias-primas, especulando que os preços das matérias-primas irão subir. O gráfico mostra que os recursos afectos às estratégias especulativas sobre índices de matérias-primas passaram de 13 mil milhões de dólares no final de 2003 para 260 mil milhões de dólares em Março de 20085, e os preços das 25 matérias-primas que compõem estes índices subiram em média 183% nesses cinco anos!6

Índice de investimento sobre mercadorias quando comparado ao índice S&P GSCI

dos preços no mercado à vista (spot)

Nota: Os dados de 2008 correspondem ao mês de Março.Fonte: Goldman Sachs, Bloomberg, CFTC Commitments of Traders CIT Supplement.

De acordo com a CFTC e com os participantes no mercado à vista (spot), os preços dos mercados de futuros de matérias-primas são a referência para os preços

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dos actuais produtos físicos, e deste modo quando os especuladores de fundos de índices conduzem os preços dos futuros para valores mais altos, os efeitos são sentidos imediatamente nos mercados à vista e na economia real7. Assim, há uma ligação directa entre os preços dos futuros de matérias-primas e os preços que os vossos cidadãos estão a pagar por bens.

O quadro seguinte analisa as compras de matérias-primas que os especuladores de fundos de índices fizeram através dos mercados de futuros. Estes são números imensos e precisam de ser postos em perspectiva para que deles se tenha real compreensão.

Na imprensa diária não especializada a explicação mais frequente para a evolução do preço do petróleo é o aumento da sua procura por parte da China. De acordo com o Departamento de Energia (DOE), a procura chinesa anual de petróleo aumentou durante os últimos cinco anos de 1,88 mil milhões de barris para 2,8 mil milhões de barris, um aumento de 920 milhões de barris8. Durante o mesmo período de cinco anos, a procura de futuros de petróleo por parte dos especuladores de fundos de índices aumentou em 848 milhões de barris9. O aumento da procura dos especuladores de fundos de índices é quase igual ao aumento da procura da China!

De facto, os especuladores de fundos de índices acumulam agora, através do mercado de futuros, o equivalente a 1,1 mil milhões de barris de petróleo, adicionando de facto às suas reservas oito vezes mais petróleo do que os Estados Unidos adicionaram à sua reserva estratégica de petróleo nos últimos cinco anos10.Deixem-nos centrar a nossa atenção nos preços dos bens alimentares, que subiram acentuadamente nos últimos seis meses.

A resposta dos economistas para esta subida dramática tende a centrar-se na deslocação de uma parte significativa da colheita de milho dos Estados Unidos para a produção de etanol11. O que estes economistas negligenciam é o facto de que os investidores institucionais compraram mais de 2 mil milhões de bushel de futuros de milho (equivalentes a cerca de 56 milhões de toneladas) nos últimos cinco anos.

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Agora, os especuladores de fundos de índices acumulam futuros de milho suficientes para potencialmente abastecer toda a indústria de etanol dos Estados Unidos à sua capacidade máxima, durante um ano12. Isto é o equivalente a produzir 5,3 mil milhões de galões de etanol (equivalentes a cerca de 20 mil milhões de litros), o que faria da América o maior produtor mundial de etanol13.

Compra de Mercadorias pelos Especuladores de fundos de Índices nos últimos 5 anos

Sector Commodity Unidades

Valor anterior acumulado,

mercados de futuros

1 de Janeiro, 2003

Compras

líquidas

Últimos 5 1/4

anos

Valor actual

acumulado,

mercados de

futuros

12 de Março,

2008Agricultura

Cacau

Café

Milho

Algodão

Óleo de Soja

Soja em grão

Açúcar

Trigo

Trigo KC

Toneladas

Libras

Bushels

Libras

Libras

Bushels

Libras

Bushels

Bushels

18,828

195,716,944

242,561,708

544,934,999

163,135,678

81,028,272

2,291,358,746

166,738,225

54,746,014

303,352

2,238,858,056

2,138,383,292

5,548,915,001

4,312,624,322

890,616,728

46,094,097,254

967,351,775

102,618,986

322,180

2,434,575,000

2,380,945,000

6,093,850,000

4,475,760,000

971,645,000

48,385,456,000

1,134,090,000

157,365,000Pecuária

Gado Bovino

Gado Suíno

Gado Vivo

Libras

Libras

Libras

104,446,612

517,414,747

669,766,732

365,453,388

3,827,425,253

5,099,033,268

469,900,000

4,344,840,000

5,768,800,000Energia

Petróleo Brent

WTI Crude

Gasóleo

Nafta

Gasolina

Gás Natural

Barris

Barris

Toneladas

Galões

Galões

Milhões BTUs

47,075,357

99,880,741

1,682,662

1,067,859,608

1,102,184,401

330,652,415

144,524,265

538,499,579

6,027,680

2,568,925,661

2,488,458,616

1,932,356,225

191,599,621

638,380,320

7,710,342

3,636,785,269

3,590,643,018

2,263,008,640Metais de base

Alumínio

Chumbo

Níquel

Zinco

Cobre

Toneladas

Toneladas

Toneladas

Toneladas

Toneladas

344,246

82,019

20,147

133,381

220,096

3,232,406

158,726

101,988

1,182,091

1,144,538

3,576,652

240,745

122,135

1,315,472

1,364,634Metais preciosos

Ouro

Prata

Onças

Onças

979,863

11,126,862

8,742,401

152,866,187

9,722,264

163,993,049

Fonte: Goldman Sachs, Standard & Poors, Dow Jones, CFTC Commitments of Traders CIT Supplement, cálculos.

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Olhando agora para o trigo, em 2007, os americanos consumiram 2,22 bushel de trigo per capita (equivalentes a cerca 54 quilogramas per capita)14. Ora, com 1,3 milhar de milhões de bushel (cerca de 36 toneladas), a actual reserva de futuros de trigo dos especuladores de fundos de índices é suficiente para abastecer cada cidadão americano com todo o pão, massa e produtos de padaria e pastelaria que este consiga comer nos próximos dois anos!

Características da procura dos especuladores de fundos de índices

A procura de contratos de futuros pode vir unicamente de duas origens: consumidores e das matérias-primas físicas e especuladores. Os especuladores incluem os especuladores tradicionais que sempre existiram no mercado, assim como especuladores de fundos de índices. Há cinco anos porém, os especuladores de fundos de índices eram uma fracção minúscula dos mercados de futuros de matérias-primas. Hoje, em muitos mercados de futuros de matérias-primas, estes são simplesmente a maior força15. O enorme crescimento da sua procura passou virtualmente não detectado pelos economistas de formação tradicional, que quase nunca analisam a procura nos mercados de futuros.

A procura dos especuladores de fundos de índices é profundamente diferente da procura do especulador tradicional; nasce pura e simplesmente uma decisão de afectação da carteira. Quando um investidor institucional decide afectar 2% em futuros de matérias-primas, por exemplo, chega ao mercado com uma dada quantidade de dinheiro. Não estão interessados com o preço por unidade; comprarão tantos contratos de futuros quantos necessitarem, ao preço que for necessário, até que todo o seu dinheiro “tenha sido posto a render.” A sua insensibilidade ao preço multiplica o seu impacto nos mercados de futuros de matérias-primas.

Além disso, os mercados de futuros de matérias-primas são de dimensão muito menor do que os mercados de capitais, pelo que as afectações de vários mil milhões de dólares aos mercados de futuros terão um impacto de longe muito maior sobre os preços. Em 2004, o valor total dos contratos de futuros em circulação

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para todas as 25 matérias-primas do índice atingiu apenas cerca de 180 milhares de milhões16. Compare-se isso com os mercados de capitais do mundo inteiro, que totalizaram 44 milhões de milhões17, ou seja, 240 vezes mais. Este ano, os especuladores de fundos de índices afectaram 25 mil milhões nestes mercados, um montante equivalente a 14% da totalidade do mercado18.

Dimensão dos Mercados de Futuros de Matérias-Primas

Nota: Os dados de 2008 correspondem ao mês de Março.Fonte: Goldman Sachs, Bloomberg, CFTC Commitments of Traders CIT Supplement.

O gráfico anterior mostra a dinâmica desta evolução. Enquanto o dinheiro flui para mercados, duas coisas acontecem em simultâneo: os mercados expandem e os preços sobem.

Um aspecto particular e bastante preocupante da procura dos especuladores de fundos de índices é que esta aumenta quanto mais os preços aumentam. Isto explica a velocidade crescente a que os preços de futuros de matérias-primas (e os preços das matérias-primas reais) estão a aumentar. A subida dos preços atrai mais especuladores de fundos de índices, cuja tendência é aumentar a sua afectação de capital com a subida dos preços. Assim a sua procura motivada pelo lucro nos mercados de futuros é o inverso do que se poderia esperar do comportamento de um consumidor sensível aos preços.

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Pode ver-se no gráfico anterior que os preços aumentaram mais dramaticamente no primeiro trimestre de 2008. Calculamos que os especuladores de fundos de índices inundaram os mercados com 55 mil milhões de dólares apenas nos primeiros 52 dias de mercado deste ano19. Isto representa um aumento no valor em dólares dos contratos de futuros em circulação de mais de mil milhões de dólares por dia de mercado. Não parecerá provável que um aumento da procura desta magnitude nos mercados de futuros possa fornecer uma explicação para os aumentos extraordinários de preços nos mercados de matérias-primas no começo de 2008?

Há uma distinção crucial entre especuladores tradicionais e especuladores de fundos de índices: os especuladores tradicionais geram liquidez ao comprarem e venderem futuros. Os especuladores de fundos de índices compram futuros e renovam então suas posições comprando spreads horizontais. Nunca vendem. Consequentemente, consomem liquidez e não trazem nenhum benefício aos mercados de futuros20.

É fácil ver agora que as políticas tradicionais não serão de qualquer eficácia para corrigir o problema criado pelos especuladores de fundos de índice, cujas decisões de afectação são feitas com muito pouca consideração pelos fundamentos da oferta e da procura nos mercados físicos de matérias-primas físicas. Se a OPEC abastece os mercados com mais petróleo, isto pouco afectará a procura do especulador de fundos de índices no mercado de futuros de petróleo. Se os americanos reduzem a sua procura através de medidas de conservação como a partilha de viagens de automóvel (carpooling) e uma maior utilização dos transportes públicos, isto pouco afectará a procura de futuros de matérias-primas por investidores institucionais.

As estratégias de aplicação dos especuladores de fundos de índices significam o açambarcamento virtual de produtos através do mercado de futuros de matérias-primas. Os investidores institucionais estão a comprar produtos essenciais que existem em quantidades limitadas com a única finalidade de obterem lucros especulativos.

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Coloquemos esta questão da forma seguinte: se Wall Street inventasse um esquema através do qual os investidores comprassem grandes quantidades de medicamentos e de instrumentos para uso clínico a fim de lucrarem com o aumento dos preços que daí resultaria, tornando estes artigos essenciais caros para os doentes a sociedade em geral reagiria contra esta afronta.

Por que não é então uma afronta o facto de os americanos terem que pagar drasticamente mais para alimentarem as suas famílias, para abastecer os seus carros e para aquecer os seus lares?

Os especuladores de fundos de índices não trazem nenhum benefício para os mercados de futuros e impõem um custo tremendo à sociedade. Individualmente, estes participantes não estão a actuar com intenção maléfica; colectivamente, porém, o seu impacto atinge a carteira de cada consumidor americano.

Será necessário a economia dos Estados Unidos sofrer mais uma crise financeira criada por novas técnicas de investimento, cujas consequências não foram, uma vez mais, previstas pelos homens de Wall Street que as criaram?

A CFTC convidou ao aumento da especulação

Quando o congresso aprovou a Commodity Exchange Act em 1936, fizeram-no com a ideia de que aos especuladores não deveria ser permitido dominar os mercados de futuros de matérias-primas. Infelizmente, a CFTC (Commodity Futures Trading Commission) tomou deliberadamente medidas para permitir a determinados especuladores o acesso virtualmente ilimitado aos mercados de futuros de matérias-primas.

A CFTC concedeu a bancos de Wall Street uma isenção dos limites de posição especulativa quando estes bancos fazem coberturas de transacções swap no mercado fora de Bolsa (OTC)21. Isto efectivamente abriu a via para a especulação ilimitada. Quando os especuladores de fundos de índices entram em swaps de

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índices de mercadorias, o que 85% a 90% deles fazem, não estão sujeitos a nenhum limite de posição especulativa22.

O que é realmente chocante no vazio regulamentar dos swaps é que toda a espécie de especuladores de todos pode usar esta via para aceder aos mercados de futuros. Assim, se um fundo de cobertura de risco (hedge fund) quer uma posição de 500 milhões de dólares em trigo, o que é muito além dos limites da posição, pode entrar numa operação de swap com um banco de Wall Street, que fará então a compra de 500 milhões de dólares de futuros de trigo23.

No esquema de classificação da CFTC todos os especuladores que acedem aos mercados de futuros de matérias-primas através do vazio regulamentar das operações swap são classificados como sendo “comerciais” em vez de “não comerciais”. O resultado é uma distorção brutal nos dados que efectivamente esconde o impacto global da especulação de fundos de índices.

Adicionalmente, a CFTC veio propor recentemente que os especuladores de fundos de índices ficassem isentos de todos os limites de posição, abrindo completamente a porta a investimento ilimitados dos especuladores de fundos de índices24. A CFTC chegou mesmo ao ponto de fazer comunicados à imprensa através da sua página de internet vangloriando-se de estudos por si encomendados e que demonstram que os futuros de matérias-primas fazem boas adições às carteiras de títulos dos investidores institucionais25.

Era isto que o Congresso esperava quando criou a CFTC?

O Congresso deve eliminar a prática da especulação através de fundos de índices

Gostaria de concluir hoje o meu testemunho esboçando três passos que podem ser tomados para reduzir imediatamente a especulação de fundos de índices.

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Número Um:

O Congresso regulou firmemente os fundos de pensão, reconhecendo que são de utilidade pública. O congresso deve modificar os regulamentos ERISA (Employee Retirement Income Security Act) a fim de proibir estratégias de réplica de índices de matérias-primas como investimentos inadequados de fundos de pensão por causa dos danos que provocam aos mercados de futuros de matérias-primas e aos americanos no seu conjunto.

Número Dois:

O Congresso deve actuar imediatamente para fechar por completo o vazio regulamentar dos swaps. Os limites de posição especulativos devem “ver através” da transacção de swaps até à contraparte final e manter essa contraparte dentro dos limites de posição especulativa. Isto reduziria a especulação de fundos de índices e sujeitaria TODOS os especuladores a limites de posição.

Número Três:

O Congresso deve forçar ainda mais a CFTC a reclassificar todas as posições na categoria “Comercial” dos seus relatórios semanais (Commitments of Traders Reports) para distinguir as posições que são controladas por hedgers “Bona Fide”com existência física das posições controladas pelos bancos de Wall Street. As posições dos bancos de Wall Street deveriam ser decompostas segundo as contrapartes das transacções fora de Bolsa (OTC) de swaps: em hedgers “Bona Fide” com existência física e especuladores comerciais.

Há neste momento largas centenas de biliões de dólares de investimento prestes a entrar nos mercados de futuros de matérias-primas26. Se uma acção imediata não é tomada, os preços dos bens alimentares e da energia continuarão a subir. Isto pode vir a ter efeitos económicos catastróficos para milhões de consumidores americanos que já estão em situação difícil. Poderá literalmente significar situações de fome para milhões de pessoas no mundo27.

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Se o Congresso tomar estes passos, a integridade estrutural dos mercados de futuros será restaurada. A procura dos especuladores de fundos de índices será virtualmente eliminada e é provável que os preços dos bens alimentares e da energia sofram uma quebra acentuada.

Intervenção de Michael W. Masters,

Membro da Comissão Executiva / Gestor de Portfolio, Masters Capital Management, LLC

perante a Comissão de Segurança Interna e Assuntos Governamentais,

Senado dos Estados Unidos, 20 de Maio de 2008,

disponível em http://hsgac.senate.gov/public/_files/052008Masters.pdf.

3. A ESPECULAÇÃO FINANCEIRA E A INSEGURANÇA ALIMENTAR

Introdução

Os analistas continuam a investigar porque é que os preços das matérias-primas aumentaram tão consideravelmente no período entre 2006 e Julho de 2008.

Devido à subida dos preços, as despesas totais de importação em bens alimentares nos países em vias de desenvolvimento subiram de aproximadamente de 191 mil de dólares em 2006 para 254 mil milhões em 20071. Hoje, os países em vias de desenvolvimento consomem menos alimentos. Num inquérito recente a mais de 27 000 pessoas de 26 nações, aproximadamente 43% dos inquiridos responderam que tinham cortado no consumo de bens alimentares devido à subida dos preços2. O número de pessoas subalimentadas e a insegurança alimentar no mundo aumentou em conjunto com a subida dos preços. No ano passado, deram-se graves perturbações sociais por causa da subida dos preços dos alimentos, pela indisponibilidade e carestia dos bens alimentares e pela insuficiente ajuda alimentar3. A FAO estima que em 2007, mais 75 milhões de pessoas vieram-se juntar-se aos 850 milhões de subalimentados e com insegurança alimentar4.

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No cerne da crise alimentar está a especulação, o principal contribuinte para a volatilidade extrema dos preços, que está a enviesar os mercados de produtos agrícolas de tal modo que quer os agricultores quer os consumidores são ambos perdedores com esta crise. O presente trabalho analisa o papel da especulação na crise alimentar global. Explica o papel particular da regulação dos mercados de matérias-primas pelos Estados Unidos no quadro da regulamentação global. Finalmente, oferece algumas recomendações de políticas para que os governos possam regular melhor os mercados de modo a garantir a segurança alimentar e os objectivos para o emprego.

O ajustamento nos preços

Críticas à especulação sobre produtos alimentares vieram de quase todos os quadrantes. Um comprador do cacau afirmou que os especuladores tinham “roubado” o mercado do cacau conduzindo os preços do cacau a uma subida de 44% em 20085. Um consultor de mercado sugeriu em Agosto que preços acima de 5,5 dólares por um bushel de milho (cerca de 25kg) (que em 2008 chegaram a atingir os 8 dólares por bushel no mercado de Chicago) são em grande parte devidos à especulação6.

A Agrobusiness Accountability Initiative (AAI) afirmou que “especulação maciça nos mercados de matérias-primas fez subir os preços do trigo, do milho, do arroz e de outros alimentos básicos para além do alcance de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.” A AAI apelou aos governos membros da ONU para estabilizarem os preços das matérias-primas e controlarem a oferta7. (Embora os efeitos da gestão da oferta nos preços não seja aqui analisada, quando a oferta é escassa relativamente à procura os mercados estão susceptíveis a picos de preços motivados pela especulação.) A Oxfam Internacional aconselhou os governos, o Banco Mundial e a FAO a estudarem a especulação como um factor determinante na crise dos preços dos bens alimentares8. A Conferência da ONU sobre o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) sublinha que dada a oposição de alguns Estados-membros da UNCTAD em estabelecer acordos para o controle da instabilidade dos

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preços, “medidas reguladoras mais rigorosas que ajudem a conter a especulação nos mercados de matérias-primas poderiam ser um passo importante” para moderar a instabilidade dos preços que impede o crescimento económico e o planeamento na maioria dos países em vias de desenvolvimento9.

Índice de Preços dos Cereais FAO, 1998-2000=100

Fonte: FAO10.

O que é a especulação nos mercados de matérias-primas?

A especulação comercial, isto é especulação feita por compradores e por vendedores de matérias-primas, existe desde o século XIX para permitir aos comerciantes e à indústria transformadora protegerem-se contra à volatilidade dos preços a curto prazo. Os compradores protegem-se contra os aumentos de preços repentinos, inesperados e os vendedores contra as descidas repentinas dos preços. Para compradores e vendedores de matérias-primas, a especulação comercial é uma forma de “seguro” contra as variações inesperadas dos preços. A especulação não comercial, em contrapartida ocorre, não como protecção ou como cobertura contra riscos de variação de preços mas com o objectivo de colher benefícios com

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a antecipação dessa variação (apostando “longo” para os preços subirem ou “curto” para os preços caírem. Os especuladores não comerciais fornecem o capital para permitir o funcionamento dos mercados à medida que os especuladores comerciais liquidam as suas posições pagando pela matéria-prima contratada ou vendendo o contrato para contrabalançar o risco proveniente de outras posições que detêm no mercado. A especulação não comercial é um investimento, mas cujos interesses podem coincidir com os interesses da agricultura quando os mercados são regulados de forma apropriada.

Glossário dos Futuros de Matérias-Primas

Termos tirados do glossário da Commodity Futures Trading Commission (Estados Unidos, 2006)13

Contrato de futuros: é um acordo para comprar ou vender uma matéria-prima com a entrega em data futura: (1) a um preço que é determinado quando se estipula o contrato; (2) que obriga cada uma das partes a cumprir o contrato na data específica acordada; (3) que é usado como protecção do risco de variação dos preços; e (4) que podem ser satisfeitos quer pela entrega física ou por compensação da variação dos preços.

Cobertura: é assumir uma posição num mercado de futuros oposta a uma posição realizada no mercado “físico” para minimizar o risco de perda financeira pela variação adversa do preço; ou assumir uma compra ou uma venda de futuros como um substituto provisório de uma transacção no mercado físico que ocorrerá mais tarde...

Isenção de Cobertura: Uma isenção dos limites de posição especulativos para hedgers bona fide, e determinadas outras pessoas que cumpram os requisitos para a transacção e as regras da CTFC (Comissão de Comércio de Mercado de Futuros de Matérias-Primas dos Estados Unidos).

Fora de Bolsa (Over-the-counter - OTC): a transacção de matérias-primas, contratos ou de outros instrumentos não registados em Bolsa As transacções OTC podem ser feitas quer electronicamente quer pelo telefone.

Limite de posição especulativa: A posição máxima… que pode ser detida ou controlada por um só interveniente (com excepção da pessoa elegível para a isenção de cobertura) que é determinada pela Bolsa ou pela CFTC.

Porém, a especulação actual tornou-se excessiva relativamente ao que seria o valor das matérias-primas se determinado pela oferta e procura e outros factores fundamentais. Por exemplo, de acordo com a FAO, em Abril de 2008 a volatilidade

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do preço do milho ultrapassou em 30% e a da soja em 40% os valores que poderiam ser esperados em resultado dos princípios básicos que regem o mercado11. A volatilidade dos preços tornou-se tão extrema que, em Julho, alguns especuladores comerciais ou “tradicionais” deixaram de ter recursos financeiros para utilizarem o mercado para se protegerem eficazmente contra o risco da variação dos preços12. Os preços são particularmente vulneráveis a movimentos quando ocorrem grandes “apostas” especulativas sobre uma matéria-prima em que a oferta e procura estão muito próximas devido a falhas na produção, à elevada procura e/ou à falta de mecanismos de regulação da oferta.

Princípios Básicos da Especulação

O contrato de futuros é o instrumento fundamental a partir do qual outros instrumentos especulativos são construídos. O contrato obriga as partes a comprar ou vender uma quantidade especifica de um matéria-prima ao preço especificado e em data futura previamente estabelecida, geralmente um a três meses da data de contrato, no que se refere a produtos agrícolas. Um contrato de opções não obriga as partes e os custos da sua execução são mais baixos, embora forneçam menos protecção quanto à variação dos preços. Os futuros e os contratos de opções permitem aqueles que compram e vendem matérias-primas gerir os seus riscos de preços a curto prazo e “descobrir” o preço a que aqueles contratos se vencerão à medida que a data estabelecida para o seu cumprimento se avizinha.

De acordo com a UNCTAD, os contratos de futuros e outros “derivados de matérias-primas não são capazes de mitigar as causas da volatilidade dos preços das matérias-primas”, como é por exemplo a incapacidade em gerir a produção excedentária estrutural de matérias-primas. A incapacidade em regular adequadamente os derivados de matérias-primas contribuiu não só para os enormes aumentos dos valores nas importações de produtos alimentares e para o agravamento da insegurança alimentar, mas também fez com que os contratos em futuros e opções não estivessem disponíveis ou fossem demasiado caros para que muitos agricultores e agro-empresas os pudessem usar como instrumentos para controlar o risco de variação dos preços14.

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Nos Estados Unidos, os contratos de futuros eram úteis e estavam ao alcance enquanto os preços dos mercados de futuros e os preços do mercado à vista convergiam à medida que a data de execução dos contratos se aproximava. Os preços nos mercados de futuros ajudavam os negociantes de matérias-primas a estabelecerem um preço de referência no mercado à vista. Com a convergência gerava-se algum grau de previsibilidade dos contratos, previsibilidade esta necessária para calcular quando se deve comprar ou vender. Similarmente, os contratos de opções, em que os “compradores têm o direito mas não a obrigação”15 de comprar ou vender um produto ao preço específico e numa data específica, assentavam nesta mesma convergência de preços para assim conseguirem alguma previsibilidade quanto aos respectivos contratos.

Como os preços se tornaram muito mais voláteis e a convergência menos predizível desde 2006, o mercado a prazo perdeu a sua função de “revelação” ou de “descoberta” dos preços e de meio para a gestão de riscos para muitos participantes nestes mercados16. Segundo a FAO, em de Março 2008, a volatilidade nos preços do trigo alcançou 60% para além do que poderia ser explicado pela oferta e procura17. A especulação “não comercial” sobre os preços das matérias-primas foi um factor, embora não o único, que impediu a convergência dos preços e induziu a volatilidade extrema a que se assistiu no mercado, segundo testemunho da National Grain Association (NGFA) no Congresso dos Estados Unidos. Contudo, a NGFA e outro os grupos avisaram que se opunham a forte regulação dos mercados de matérias-primas para que não venha a haver insuficiência de capitais no mercado para assim se continuar a permitir aos especuladores comerciais que se protejam dos riscos de preços com contractos sobre futuros18.

Especulação e regulação nos Estados Unidos

Os preços afectados pela especulação para grande parte do comércio global de produtos agrícolas são determinados no Chicago Board of Trade, no New York Board of Trade e no London International Financial Futures Exchange19. A Commodity Futures Trading Commission (CFTC) regula as transacções de

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matérias-primas nas bolsas dos Estados Unidos, baseada na autoridade legislativa conferida pelo Commodities Exchange Act. A CFTC negocia memorandos de acordos bilaterais com o objectivo de influenciar a regulação das principais bolsas de matérias-primas de outros países. Dadas as consequências globais do quadro normativo americano e a influência bolsas de matérias-primas americanas sobre os preços dos bens agrícolas à escala global, é importante utilizar algum tempo a analisar o sistema regulador e debater acerca das regras que governam as suas bolsas de matérias-primas. Nos Estados Unidos os objectivos principais da reforma do sistema regulador são os fundos de índices de matérias-primas que apostam geralmente apostam no aumento do preço da mesma.

Em Julho de 2008, 317 mil milhões de dólares foram investidos nos fundos de índices de matérias-primas20. Os maiores especuladores destes fundos, em especial a Goldman Sachs e o grupo segurador americano AIG, estão sediados nos Estados Unidos mas os seus produtos de investimento são negociados a nível global. Consequentemente, qualquer reforma no sistema de regulação que afecte aqueles fundos também afectará os mercados de matérias-primas fora dos Estados Unidos, exactamente como a desregulação dos mercados dos Estados Unidos contribuiu para a especulação excessiva no mundo inteiro. Por exemplo, em 2004, Hank Paulson, actual Secretário do Tesouro e então director geral de Goldman Sachs, fez com sucesso pressão para uma isenção da regra em que os bancos de investimento, como os bancos comerciais, eram obrigados a manter reservas de moeda suficientemente grandes para cobrir os seus negócios mal sucedidos. A isenção da regra libertou biliões de dólares que a Goldman Sachs e outros quatro bancos usaram para investimentos de alto risco, incluindo apostas em fundos sobre índices de matérias-primas. Quando estes investimentos não tiveram sucesso, os potenciais beneficiários da desregulação foram ilibados pelo governo dos Estados Unidos ou, como no caso da Lehman Brothers, pura e simplesmente declararam falência, com repercussões à escala mundial21.

Com a ascensão dos instrumentos de futuros financeiros e opções, tais como os derivados de crédito que o famoso investidor Warren Buffet descreveu em 2003

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como “os instrumentos financeiros de destruição maciça”22, os futuros e opções sobre produtos agrícolas e não agrícolas representam agora “somente cerca de 8% dos volumes totais de futuros e de opções”23. Os grupos de pressão dos interessados no sector financeiro dos futuros e opções resistem a que se tenham os mercados a prazo regulados firmemente mesmo para aqueles 8%, mesmo que seja em nome da segurança alimentar. Têm aparecido e em força na CFTC e nas audições do Congresso dos Estados Unidos para fazer pressão contra a “sobre-regulação”.

Em 18 de Setembro, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou a lei para a transparência dos mercados de matérias-primas (“Commodity Markets Transparency and Accountability Act of 2008”) por um voto não completamente livre do veto presidencial com 283 a favor e 133 contra (seriam necessários 288 votos a favor para inviabilizar a hipótese de veto pela Casa Branca)24. A lei incorpora disposições propostas por alguns dos testemunhos que durante quatro meses passaram pelas sessões do Congresso. O Senado dos Estados Unidos tem ainda que votar o projecto de lei. Dado o debate no Congresso sobre a ajuda a Wall Street, não é muito provável que os representantes do Senado e do Congresso estão muito pouco concordem com uma lei de compromisso antes de 2009. Uma vez que os Estados Unidos provavelmente não irão aprovar, e muito menos implementar, legislação para limitar a especulação nos mercados de matérias-primas até 2009, é útil rever algumas das características principais do debate sobre a regulação. Uma questão chave para o Congresso e para a CFTC, de acordo com um analista do mercado dos cereais, é saber o que é que pode ser definido como “excessivo” “na especulação excessiva”25.

De facto, os reguladores americanos tomam como sua a argumentação dos defensores do sector financeiro dos futuros de que “são as forças do mercado, da oferta e procura, e não os derivados [financeiros], que são a causa do aumento dos preços das matérias-primas”26. Uma vez que das matérias-primas caíram 40% relativamente aos seus valores mais elevados de Julho27, isto poderia levar a concluir que os mercados se “auto-corrigiram” e portanto daqui se vê que nenhuma regulação é necessária. Em vez disso, os proponentes da desregulação defendem

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que os reguladores devem continuar a centrar a sua actuação somente nos casos isolados de “manipulação”, como, por exemplo, a duplicação num dia do preço do algodão. Os defensores da desregulação afirmam que nenhuma actuação do regulador é necessário nas operações (OTC) de comércio em produtos derivados, contratos negociados em privado para a gestão de riscos sobre a variação do preço, cujos preços, contudo, são indicadores para os mercados de produtos regulados. Estima-se em perto de 85 a 90% do investimento não comercial nos mercados sobre produtos ocorrem fora da bolsa (são investimentos feitos em regime OTC) e sobre quais o CFTC tem poucos dados e não tem nenhuma autoridade28. Mas para que a CFTC regule o mercado adequadamente, deve ter pelo menos ter os dados para compreender a quantidade de contratos de OTC e a capacidade de empréstimo das partes que operam com aqueles contratos. Se não for assim, as partes insolventes continuarão a depender do governo para financeiramente os salvar dos resultados dos seus comércios imprudentes.

Principais mercados americanos de futuros de cereais e soja, preços médios de fecho de 7/02/07 a 5/12/08

Fonte: Commodities Futures Trading Comission, Testemony to U.S. Senate, Maio de 200829.

O elefante no quarto: fundos de índices sobre produtos

“Quando os especuladores sobre índices investem grandes quantidades de dinheiro nos mercados de mercadorias e compram grandes quantidades de contratos de futuros,

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os preços sobem. Quando retiram grandes quantidades de dinheiro e vendem grandes quantidades de contratos de futuros, os preços descem.” (Michael Masters e Adam White30)

Os fundos de índices de produtos somam contratos de futuros de acordo com uma fórmula que pondera e regista a evolução dos preços de até 24 produtos agrícolas e não – agrícolas como um único instrumento financeiro. Transformaram-no no instrumento especulativo mais notório, em parte por causa da enorme quantidade de dinheiro investida neles e da volatilidade dos preços que resulta das “apostas” dos fundos de índices. O representante dos Estados Unidos Bart Stupak, baseado na investigação de Lehman Brothers, indica que “desde 2003 a especulação sobre o índice de mercadorias aumentou 1 900%, de 13 biliões para um valor estimado em 260 biliões” em Março, tendo por resultado um aumento de preços do petróleo cru em pelo menos 37 dólares por barril largamente multiplicado pelas condições de oferta e da procura31. Stupak notou que foram criadas desde 1991 várias vias de saída para permitir “a especulação excessiva” proibida pelo Commities Exchange Act e está a propor a legislação – Prevent Unfair Manuipulation of Prices Act (Pump ou H.R. 6330) – para acabar com estas vias de ultrapassar a lei.

Talvez a via mais importante para escapar ou contornar a lei é a que isenta os especuladores financeiros dos limites de posição da especulação dos hedgers comerciais, contanto que o especulador swap, isto é troque, o contrato de futuros através de um intermediário, como Lehman Brothers, e este próprio procura então a quem vender o contrato que tinha comprado apenas para difundir o seu risco. A legislação do Congresso afectaria a componente agrícola dos fundos de índice, a compra e a venda do que é largamente determinado pelo comércio ponderado do petróleo e de outros componentes não-agrícolas nos fundos. A partir do mês de Julho, o Standard and Poors-Goldman Sachs Índice de Mercadorias (S&P-GSCI) detinha cerca de 63% da parte de mercado dos fundos de índices e o índice Dow Jones-AIG [grupo americano do seguro] tinha aproximadamente 32%. Os produtos agrícolas participam, em média, em cerca de 29,6% destes índices, conjuntamente com energia, metais de base e os metais preciosos que compõem o resto32.

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O S&P GSCI, que subiu 238% de 2003 até ao final de 200733 tem um componente da energia de aproximadamente 75% e um componente de grãos de aproximadamente 10%. Os fundos são legalmente obrigados a respeitar os seus prospectos por seu prospecto a negociar para manter a composição anunciada do fundo, quaisquer que sejam as condições da oferta e da procura nos mercados agrícolas. Os gestores de fundos de investimento podem mudar a composição, depois de terem notificado os investidores, mas com risco de perderem as contribuições dos investidores. O que fundamentalmente está subjacente a estes fundos não é a oferta e procura dos produtos físicos de que o fundo “é derivado ostensivamente”, mas a fórmula do prospecto e o objectivo do lucro34.

Designados para diversificar o risco do investidor entre diversos produtos e para servir como um amortecedor de instrumentos especulativos mais arriscados dos produtos financeiros sobre imobiliários, os fundos de índices estão pouco imunes à perda. Um índice sobre o preço de mercadorias desceu aproximadamente 19% de 30 de Junho a 1 de Setembro, no momento em que os accionistas tomaram conhecimento dos lucros excepcionais ou que se aproximam do recorde dos preços36. Mas o potencial para um regresso às situações especulativas alimentadas pelas variações bruscas dos preços, devastando a segurança alimentar, continua bem forte. A especulação financeira nos mercados de mercadorias é esperada continuar a atrair mais legislação e regulação de maior rigor37.

Há diferenças de opinião acerca de quanto é que a especulação nos produtos agrícolas terá feito aumentar os preços dos alimentos para além do que pode ser esperado pela variação dos fundamentais tradicionais do mercado e pelos factores relacionados com a energia. Um estudo universitário americano passando em revista duas dúzias de artigos sobre as causas dos aumentos de preços afirmava em Julho, “baseados na pesquisa existente, é impossível dizer se os níveis dos preços estiveram influenciados pela actividade especulativa”38. Um outro estudo da Universidade de Illinois conclui, “não há nenhuma evidência patente de que os níveis especulativos actuais, mesmo depois de se ter em conta as posições especulativas sobre índices são superiores aos historicamente registados

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nos mercados a prazo dos produtos agrícolas”39. Contudo, estas conclusões não têm em conta as operações OTC sobre a gestão privada de riscos que domina a especulação sobre mercadorias.

Aumento dos preços futuros das mercadorias, Março de 2003-Março de 2008

Agricultura

CacauCaféMilhoAlgodãoÓleo de SojaSoja em grãoAçúcarTrigoTrigo KC

34 %167 %134 %40 %199 %143 %69 %314 %276 %

Pecuária

Gado BovinoGado SuínoGado Vivo

34 %10 %23 %

Energia

Petróleo BrentWTI CrudeGasóleoNaftaGasolinaGás Natural

213 %191 %192 %192 %145 %71 %

Metais de base

AlumínioChumboNíquelZincoCobre

120 %564 %282 %225 %413 %

Metais Preciosos

OuroPrata

183 %331 %

Fonte: U.S. Senate Testimony, Maio de 2008.

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Estas análises estão limitadas pela quantidade e pela qualidade dos dados registados pela CFTC em que se apoiam. Os dados preliminares sugerem uma correlação entre o volume de actividade do fundo de índice sobre mercadorias e os preços. Por exemplo, a 31 de Dezembro de 2007, o “instantâneo” mostra 8 biliões investidos em contratos no índice do Chicago Board of Trade (CBOT) sobre o milho ao preço médio de 4,56 dólares por alqueire. A 30 de Junho de 2008 a quantidade investida no índice CBOT no milho é 13 biliões a 7,25 dólares o alqueire. A 30 de Junho, os contratos do fundo de índice sobre o milho era de 18% do valor de todos os futuros de CBOT e de todos os contratos do milho em opções. Embora 18% do valor dos títulos negociados possam não parecer dominar o mercado a prazo do milho, se a CFTC pudesse mandar fazer um relatório sobre os valores negociados fora da bolsa, os contratos OTC, que incluem fundos de índices, este seria muito surpreendentemente se os contratos OTC fossem mostrados a não afectar os contratos futuros e os preços das opções sobre produtos agrícolas. Mais ainda, se os economistas, que historicamente ignoraram o poder de especuladores dominantes sobre o mercado de mercadorias40, estão a querer aplicar agora uma análise do poder do mercado ao negócio de futuros e de opções, a situação económica para justificar a regulação deve então ter sido criada.

Enquanto geralmente se aceita que é necessário que haja algum capital especulativo para que as operações efectivas nos mercados de contratos em futuros e em opções sobre mercadorias se realizem, não se infere a partir deste dado que a quantidade de capital deva ser ilimitada nas transacções de futuros e opções para que se explicite, se descubram, os seus preços e para que funcione a gestão de riscos. Nem são estes que apelam para que se limite quer a quantidade de transacções de contratos de fundos sobre índices de preços de mercadorias que caracterizam toda a especulação, quer a manipulação dos preços. A manipulação é uma intenção e consequentemente é muito difícil provar a prática empresarial anticoncorrencial que muito raramente é corrigida pela CFTC.

A questão de maior interesse reside no efeito sistémico dos fundos de índice sobre mercadorias, uma vez que investem quase sempre “em posições longas,

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long” isto é, compram na expectativa de que os preços aumentem. Os hedgers tradicionais, tais como os comerciantes de cereais, controlam o risco em produtos diferentes investindo em posições “curtas, short” receando a descida dos preços das suas próprias matérias-primas. Entretanto, os investidores do fundo de índice de mercadorias criam uma pressão ascendente constante nos preços das matérias-primas, interrompidos somente quando arrecadam os lucros nos futuros e nos contratos de opções “renovam as suas posições” de acordo com um programa de trading. O juntar produtos agrícolas com os metais preciosos e metais básicos significa que os movimentos dos preços e o maior peso no trading dos metais no fundo podem provocar a venda de contratos de índice independentemente das condições de oferta e procura de dado produto agrícola. Porque os fundos investem frequentemente com o horizonte de longo prazo dos fundos de pensão, as “apostas” do fundo de índice ilimitado e não regulado poderão confundir os mercados de produtos agrícolas por um prazo de, pelo menos, 20 anos41. O perigo de fundos de índice não regulados e a negociação de contratos fora da bolsa, OTC, quer para a segurança alimentar quer para a situação financeira da produção agrícola devem ser evidentes para quem queira olhar para além das grandes limitações da CFTC: limitação de dados e limitação de regras.

Regular ou não: há globalmente meios para o fazer?

Num documento recente da UNCTAD esta instituição sublinha a disjunção entre preços dos alimentos baseados na oferta e procura de factores e o aumento de 85% no índice de preços dos bens alimentares da UNCTAD, de Abril de 2007 a Abril de 2008.

Neste documento da UNCTAD admite-se que este forte aumento não pode somente resultar dos fundamentais do mercado e que alguma parcela desta subida dos preços é explicada pela deslocação importante de capitais do sector dos bens imobiliários e dos títulos da bolsa para a especulação nos mercados de mercadorias. E o texto continua, “preparando uma resposta global coordenada contra a especulação global nos preços dos alimentos é uma outra tarefa urgente”42.

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Mas qual é a instituição multilateral que deve coordenar a resposta? Os membros das International Organizations of Securities Comissions trocam informações mas não têm nenhuma função normativa. Não há nenhum acordo multilateral para regular as bolsas de mercadorias que agora compram e vendem de longe muito mais contratos especulativos do que contratos para controlar o risco do preço em produtos físicos. Por exemplo, de acordo com testemunho no Congresso dos Estados Unidos, menos de 30% de contratos sobre petróleo têm a ver com a cobertura física; o resto é pura especulação feita por traders sem qualquer interesse comercial em usar ou em negociar o produto físico, o petróleo43.

Não há actualmente nenhuma estrutura multilateral a responder à especulação global sobre os preços dos bens alimentares. Certamente, os grupos de pressão da indústria financeira estão a pressionar a Organização Mundial do Comércio para reduzir ainda mais a capacidade dos governos em regular os mercados financeiros que incluem bolsas sobre mercadorias. Os reguladores dos países em desenvolvimento, lembrando-se ainda e demasiado bem da falta da reforma da instituição financeira internacional que se seguiu ao massacre económico do Sueste asiático em 1997, como resultado da especulação sobre os bens imobiliários, têm assim resistido a esta pressão44. Para além das consequências globais do fiasco dos serviços financeiros americanos, o anterior representante americano para o comércio externo, anterior executivo de Goldman Sachs e actual presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, indicou a sua oposição a todo o papel normativo dos organismos e instituições da ONU para controlar a crise financeira actual45, de que a especulação sobre as mercadorias é uma parte.

Nós vivemos num novo e bravo mundo onde se negoceia nas bolsas, via electrónica, 24 horas por dia, incitado por algoritmos de índices compostos de preços, adequados à “falta da confiança”, do investidor e de “associações escuras” não reguladas de valores acima de 7 milhões de milhões de dólares de transacções em produtos derivados46. Neste novo e bravo mundo, o que é que poderiam ser os elementos daquilo a que a UNCTAD chama “da resposta global coordenada” e como é que poderiam eles ser executados e reforçados?

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Para responder à questão precisamos de compreender melhor o que são os instrumentos especulativos e quais são os seus efeitos nos mercados globais de produtos alimentares relativamente menos capitalizados.

Os investigadores sobre comércio livre são relutantes em regular os mercados, a fim de que não se tornem “sobre-regulados” e ineficientes relativo a um mercado utópico ou perfeito sem custos de transacção ou custos de regulação. Por exemplo, num texto recente de International Food Policy Research Institute (IFPRI)47, diz-se que a “especulação é principalmente uma consequência, não uma causa, da crise dos preços dos bens alimentares, e assim a sobre-regulação e a inspecção dos mercados seriam respostas impróprias”. Contudo, esta organização, IFPRI, protege-se nesta análise, e recomendam entretanto, com precaução, algumas medidas reguladoras não especificas para “limitar a especulação excessiva.” Esta cautela, entretanto, pressupõe a resposta à questão do que é que se entende por “excessiva” e de como é que podem as práticas de trading na bolsa que exigem “medidas de acalmia” sobre os preços que aconselha IFPRI não envolvem factores especulativos?

Como se quisesse ilustrar a volatilidade do que se pensa sobre a especulação, um mês mais tarde, IFPRI postulou que “é necessária mais investigação científica para identificar claramente as ligações causais entre a especulação e os preços nos mercados à vista”48.

Conclusão

A ajuda dos contribuintes americanos às empresas de Wall Street proposta pela administração Bush centrou a atenção mundial49 e momentaneamente eclipsou a questão da crise dos preços dos bens alimentares nos media globais. Com o colapso, a fusão ou com a ajuda financeira aos principais fundos de índice e traders OTC, incluindo Goldman Sachs, Bear Stearns, American Insurance Group e Lehman Brothers, uma parte do mercado total de OTC, estimada em 9 milhões de milhões pelo Banco Internacional de Pagamentos, estão a deslocar-se para as bolsas50. Para os produtos de pequeno peso nestes mercados a deslocação da gestão privada de riscos

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para a protecção dos mercados bolsistas publicamente regulados e a insolvência de alguns dos seus principais participantes significou uma queda brusca nos preços das matérias-primas. A queda dos preços é menos uma correcção do mercado, é sobretudo um colapso incitado pelas consequências da desregulação dos mercados.

Há muitos elementos da crise alimentar para além da especulação sobre os bens alimentares que exigem uma atenção urgente. Mas se a especulação desregularizada continua a induzir a volatilidade artificial nos mercados agrícolas, será muito difícil financiar investimentos inovadores na reconstrução da capacidade da produção agrícola doméstica e da distribuição em países dependentes das importações líquidas em produtos alimentares. A causa artificial da volatilidade dos preços das matérias-primas gerada pela especulação desregularizada tornará mais difícil interiorizar os custos dos efeitos da alteração da utilização de recursos naturais e dos efeitos das variações climáticas nos preços das matérias-primas. Por esta e outras razões, os governos e os reguladores devem garantir o controlo sobre os mercados de futuros para impedir os efeitos desestabilizadores da “especulação excessiva” nos preços das mercadorias.

Propostas para a regulação da especulação sobre as mercadorias

Multilateral

1. Criar uma instituição global e independente reguladora das bolsas de futuros e opções sobre mercadorias. Este organismo teria a seu cargo dar consistência e apoiar a aplicação de regras sobre as bolsas nacionais dos futuros sobre mercadorias e de dissuasão de irregularidades em regimes reguladores mais fracos. Poder-se-ia igualmente conceber esta autoridade a coligir e analisar dados das transacções comunicados pelas autoridades nacionais reguladoras das bolsas. Com base nessa análise, esta organização podia propor mudanças das regras e códigos de conduta quer a nível nacional quer regional.

2. Incitar os Estados membros da UNCTAD a autorizarem a equipa de

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funcionários e de consultantes da UNCTAD a estudar os efeitos da transmissão sobre os preços da especulação sobre produtos agrícolas quer a nível nacional quer ao nível do produtor. Um outro estudo poderia avaliar os efeitos da especulação sobre os preços de referência internacionais das mercadorias que os países em vias de desenvolvimento usam nos seus estudos económicos e que os ajudam a determinar a política agrícola e a afectar recursos nacionais para a agricultura. Tais estudos podiam ainda ajudar a fornecer a base para que as negociações entre os Estados instituam a entidade reguladora acima mencionada.

Estados Unidos (embora talvez replicável em outras jurisdições nacionais)

1. Exigir que a Commission Futures Trading Commission proíba o acesso de bolsas estrangeiras e dos seus participantes a menos que aquelas bolsas adoptem e reforcem limites (isto é) para a especulação não comercial, isto é puramente financeira, relativa à dimensão do mercado para cada produto específico. Estabelecer limites de posição em futuros e em contratos de opções comprados e vendidos em bolsas de mercadorias nos Estados Unidos Criar grupos consultivos sobre futuros da agricultura e da energia a partir dos participantes nestes mercados para ajudar a estabelecer, monitorar e modificar os limites de posição e para impedir a especulação excessiva. Se estabelecidas de forma adequada, estas propostas poderiam moderar a volatilidade dos preços e remover a pressão à subida dos preços das matérias-primas que não são devidas aos factores fundamentais da economia.

2. A desagregação dos dados sobre os produtos agrícolas e não-agrícolas dos futuros e de contratos de opções para permitir que os mercados sejam mais transparentes e mais justos, e para estudar os efeitos da especulação sobre os preços agrícolas e sobre energia. Estas regras permitiriam aos reguladores determinarem melhor as causas da especulação excessiva e ajudar a estabelecer os limites de posição especulativa relativamente ao tamanho do mercado de cada produto.

3. Exigir que todas as transacções realizadas fora da bolsa (transacções OTC) seja registadas na CFTC e nas outras autoridades nacionais das bolsas de mercadorias

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de modo que os reguladores tenham um melhor conhecimento das dimensões e das mudanças nos mercados que estão a regular. Sem tais dados, sem tais informações, será excessivamente difícil saber o que e quando regular.

Instituto para a Agricultura e Política Comercial

(Institute for Agriculture and Trade Policy), A Especulação no Mercado de Matérias-Primas:

O Risco para a Segurança Alimentar e Agricultura,

disponível em http://www.iatp.org/iatp/publications.cfm?refid=104414.

4. DUAS CARTAS E DOIS PRESIDENTES

4.1. CARTA A BUSH

Suprimam a Excessiva Especulação com os Alimentos e os Bens Energéticos.

23 de Setembro de 2008

Caro Presidente Bush e Membros do Congresso:

Estamos hoje a escrever-lhe para chamar a sua atenção para um fenómeno profundamente perturbador nos mercados a prazo de matérias-primas e para pedir a sua ajuda na resolução desta grave crise.

Muitos peritos nas recentes sessões de audição no Congresso, demonstraram que os investidores institucionais aplicaram centenas de milhares de milhões de dólares nos mercados a prazo das matérias-primas, levando assim à subida dos preços dos bens alimentares e dos preços da energia até níveis históricos.

Metade da população mundial (mais de três mil milhões de pessoas) subsiste com menos de 2 dólares por dia. Em tempos normais, são forçados a gastar metade deste valor para se alimentarem, assim como aos seus filhos. Hoje, as acções dos

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investidores institucionais contribuíram para duplicar ou triplicar os preços dos alimentos. Como consequência, muitas das pessoas pobres, e à escala mundial, podem já não ter sequer dinheiro para comprar os alimentos de que precisam para sobreviver. As vidas de milhões de pessoas foram postas em perigo e Wall Street é parcialmente responsável por esta realidade.

Os preços dos futuros de matérias-primas desceram nas últimas semanas. Não obstante, as lacunas da regulação que minam as intenções da Lei de Troca de Bens de Consumo (Commodity Exchange Act) permanecem em aberto e prontas para reintroduzir uma extrema volatilidade nos mercados, a instabilidade política e ainda muito mais sofrimento humano, enquanto beneficia fundamentalmente algumas dúzias de grandes empresas multinacionais e bancos de investimento que “ganham” sempre, quer os preços subam quer desçam.

O Programa Alimentar Mundial estima que 100 milhões de pessoas ficarão sujeitas à situação de carência alimentar profunda, em consequência da subida recente nos preços dos bens alimentares. Esta é uma crise global de proporções de uma gravidade sem precedentes.

Muitas das nossas organizações estão a trabalhar duramente – aqui, nos Estados Unidos, e em todo o mundo – para ajudar aqueles e aquelas que são pobres e subnutridos. O número de pessoas que estão a sofrer os impactos desta crise está a crescer de forma exponencial. Nós temos estado a trabalhar com estas pessoas, durante anos, para se encontrar maneiras de melhorarem as suas vidas e as suas condições de subsistência. É triste mas, por causa da subida rápida dos preços dos bens alimentares, o progresso regular e sustentado que se tinha alcançado está a ser reduzido a nada. É muito triste para as nossas organizações testemunharem esta situação extrema em que as necessidades excedem cada vez mais a nossa capacidade de ajudar. Os nossos doadores estão também a ser financeiramente lesados em consequência dos fortes aumentos dos preços dos bens alimentares e dos preços da energia. Os nossos recursos financeiros simplesmente não podem aguentar a situação, dadas as críticas carências que se manifestam na cadeia alimentar, num elevado número permanentemente crescente de comunidades, à escala mundial.

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Nós não estamos a pedir apoio financeiro. Estamos a pedir justiça.

Os bens alimentares não são um investimento especulativo. A procura artificial que foi criada pela especulação desenfreada dos “investidores” em futuros de produtos alimentares colocou una enorme pressão sobre a subida vertiginosa dos preços dos bens alimentares e da energia. Nunca, como agora, os investidores institucionais fizeram aplicações desta grandeza de valores monetários em índices de produtos. Como foi isto possível? A Comissão do Comércio de Futuros de Mercadorias (CFTC), a entidade responsável para regulação dos mercados de contratos sobre produtos agrícolas e pela aplicação de limites de posição especulativa, abriu a porta aos bancos de Wall Street para especularem em contratos de futuros agrícolas e sobre quantidades que podem ser ilimitadas.

Diariamente, nos Estados Unidos e em todo o mundo, deparamos com milhões de pessoas que estão a sofrer, mesmo a morrer de fome, em consequência das acções destes investidores, destes especuladores. Como Presidente, importa-se de ajudar estas pessoas, por favor, obrigando a CFTC a fechar as portas às excepções nestes mercados e a aplicar os limites de posição especulativa nos mercados de produtos alimentares e da energia?

Não deve ser permitido que as acções da Wall Street espezinhem os direitos humanos e a dignidade.

Assinam dezenas de organizações humanitárias ActionAid USA

Africa‐Europe Faith & Justice Network (AEFJN)

Afrika‐Europa Netwerk, Netherlands

Agribusiness Accountability Initiative

Agricultural Missions, Inc.

Bay Area Community Services

Biblical Formation by the Missionaries of Africa in Jerusalem

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Caney Fork Headwaters Association

Center of Concern

Claretian Missionaries

Columban Central JPIC coordinator

Columban Justice, Peace, and Integrity of Creation Office

Cumberland Countians for Peace & Justice

Daughters of the Sacred Heart

Farmworker Association of Florida

Fellowship of Reconciliation‐USA

Food First/Institute for Food and Development

Policy

Food & Water Watch

Foreign Policy in Focus

Global Exchange

Greater Grand Rapids Food Systems Council

Heifer International

Institute of the Blessed Virgin Mary

Justice, Peace and Integrity of Creation

Commission of the Union of Superiors General of men and women religious congregations

(USG/UISG)

Justice, Peace and the Integrity of Creation Committee, Eastern Province USA of the Claretian

Missionaries

Labor Council for Latin American Advancement (LCLAA)

Maryknoll Office for Global Concerns

National Catholic Rural Life Conference

Network for Environmental & Economic

Responsibility, United Church of Christ

Nicaragua Network

Oklahoma Black Historical Research Project

Office of Peace and Justice, Sisters of Charity of

New York

Organic Consumers Association

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Partners In Health

Pax Christi International

Pax Christi USA

PaxWorks

Quixote Center

Red África Europa Fe – Justicia (Africa Europe

Faith and Justice Network)

Red Ambiental Loretana ‐ Peruvian Amazon

Religious of the Sacred Heart of Mary

Rural Advancement Fund

Rural Coalition

Federation of Southern Cooperatives/Land

Assistance Fund

SHARE Foundation: Building a New El Salvador

Today

Sisters of Charity Federation

Sisters of Notre Dame de Namur Justice and

Peace Network

Small Planet Institute

Society of Missionaries of Africa

Southeastern North Carolina Food Systems Program

Staff 8th Day Center for Justice

Sustainable Agriculture of Louisville

The Congregation of Holy Cross

The International Presentation Association of the Sisters of the Presentation

The Oakland Institute

The Order of the Servants of the Sick (Camillians)

UNANIMA International

United Methodist Church, General Board of

Church and Society

Washington Fair Trade Coalition

World Hunger Year

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219

4.2. CARTA A OBAMA

Caro Presidente-eleito Obama,

Felicitações pela sua vitória em Novembro. Entre muitos desafios que se encontram à sua frente, gostaríamos de chamar a sua atenção para a oportunidade que tem de responder à crise alimentar mundial, através de soluções imediatas e de longo prazo. A crise alimentar terá sido ultrapassada nos media pela crise financeira, mas a redução da actividade económica agravou ainda mais a insegurança alimentar extrema em muitos agregados familiares nos Estados Unidos e no resto do mundo.

De acordo com os dados sobre 2007 recentemente publicados pela USDA, 36,2 milhões de americanos estão na situação de insegurança alimentar, incluindo 12,4 milhões de crianças. Aproximadamente um quarto destas pessoas sofrem “de profunda insegurança alimentar” – o que USDA anteriormente chama de situação de fome. Neste valor há mais 700.000 pessoas que no ano de 2006, e mesmo não tomando em consideração a crise económica e alimentar do ano passado. Um estudo preliminar feito por investigadores da Universidade de Boston calculou que a insegurança alimentar aumentou 30% nos primeiros seis meses de 2008, comparado com o mesmo período em 2007. Globalmente, um mil milhões de pessoas enfrentam a situação crónica de fome -o que é não somente moral repreensível, mas pode igualmente conduzir à agitação social e à instabilidade política. Durante a sua campanha, Obama prometeu acabar com a fome nas crianças dos Estados Unidos até 2015. Numa entrevista com Joe Klein da revista Time, reconheceu igualmente as falhas profundas do nosso sistema alimentar global que tornou a situação vulnerável a variações bruscas dos preços e aos colapsos que continuamos a enfrentar.

Em 16 de Outubro aquando da celebração do dia alimentar no mundo, um grupo de organizações lançou uma “Apelo para a Acção” pedindo soluções reais a diversos níveis de exigência para resolver a crise alimentar do mundo. As organizações que representam centenas de milhares de pessoas assinaram esta

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chamada para a acção. Nós incitamos a sua administração a rever e a considerar as propostas nela contidas em que se procura identificar as causas da origem da crise alimentar e desenvolver soluções políticas duráveis, incluindo aqueles que podem:

– estabilizar e garantir globalmente preços justos para agricultores e consumidores assim como a regulação dos mercados futuros de mercadorias e a criação de reservas publica de alimentos;

– reequilibrar o poder do Estado no sistema alimentar com a aplicação de leis antitrust e de outras medidas para reduzir a influência de empresas do trading, empresas da agro-indústria, sobre produtos agrícolas na política de interesse público;

– fazer a com que a agricultura seja sustentável do ponto de vista ambiental através da política agrícola e da reforma sobre os investimentos, incluindo incentivos para a sua aquisição;

– respeitar, proteger e cumprir direitas dos trabalhadores para os trabalhadores rurais e outros trabalhadores no sistema alimentar;

– garantir o direito às alimentação e organizar bons sistemas alimentares locais e regionais que promovam a justiça social, o respeito pelas condições ecológicas e económicas quer no país quer no exterior.

A estes princípios básicos foram dado recentemente relevo pela International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development (IAASTD). O IAASTD fornece uma análise completa dos sucessos e das lacunas alimentares e dos sistemas agrícolas no mundo, e um conjunto detalhado de opções de política, institucionais e de investimento para a criação de sistemas equitativos e sustentáveis alimentares. O relatório apresenta a melhor avaliação de peritos intergovernamentais e de investidores de como enfrentar a questão da fome e da volatilidade global dos preços. Porém, os Estados Unidos são apenas um dos três países participantes que formalmente não aprovaram o relatório na sessão plenária

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intergovernamental final em Abril de 2008. Nós encorajamos a sua administração a estudar o relatório da IAASTD e pedimos-lhe que se junte à comunidade internacional para fazer acções concretos para levar a cabo as suas opções de modo a conseguir atingir o desenvolvimento equitativo e sustentável.

Nós incitamo-lo a empenhar-se publicamente nos seus primeiros cem dias após a tomada de posse a trabalhar para as soluções reais da crise alimentar apresentada na Chamada para a Acção e na IAASTD.

Nós igualmente incitamo-lo a seleccionar as pessoas que compartilham de tal empenho para fazerem parte da sua equipa ligadas à questão alimentar, agricultura, energia, comércio e a relacionada com a política estrangeira. Nós gostaríamos de lhe pedir uma reunião consigo e/ou com os seus apropriados conselheiros para discutir a forma como poderíamos trabalhar em conjunto de modo a poder trazer a verdadeira esperança para a mudança no nosso país e no mundo inteiro.

Durante a campanha, Obama disse, “somos um só povo, uma só nação, e isto deve ser considerado preliminar em toda a política governamental.” Uma política alimentar, democrática e justa, podem ser a forma mais importante para tal abordagem da administração.

Assinada por, Steering Committee, US Working Group on the Food Crisis

Agricultural Missions

Community Food Security Coalition

Food First/Institute for Food and Development Policy

Food & Water Watch

Grassroots International

Institute for Agriculture and Trade Policy

International Partners for Sustainable Agriculture

Maryknoll Office for Global Concerns

National Family Farm Coalition

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Pesticide Action Network North America

Presbyterian Church (U.S.A.)

Rainforest Action Network

World Hunger Year (WHY)

Carta ao Presidente-eleito Obama, disponível em

www.foodfirst.org/files/pdf/Open%20Letter%20to%20President-elect%2012-15-08%20.pdf

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NOTAS

PARTE I

PONTO 4

1 http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/specialsession/7/index.htm.2 Ver em especial Committee on Economic, Social and Cultural Rights, general comment N.º 12: The

right to adequate food (1999), E/C.12/1999/5. Ver também CRC, art. 24 (2) (c), e CEDAW, art. 12 (2).3 General comment N.º 12, par. 6.4 Ivanic Maros e Martin Will, “Implications of Higher Global Food Prices for Poverty in Low-Income

Countries”, World Bank Policy research Working paper, Abril 2008.5 B. Senauer e M. Sur, “Ending global hunger in the 21st century: projections of the number of food

insecure people”, Rev. Agr. Econ., vol. 23(1), 2001, pp. 68-81.6 Por exemplo, um estudo de 2004, feito na Universidade do Arizona (UA), em Tucson, indica

que 40 a 50% de todo o alimento pronto para ser colhido nunca chega a ser comido: http://www.

foodnavigatorusa.com/news/ng.asp?id=56376-us-wastes-half.7 http://www.fao-ilo.org/fao_ilo_rural/en/.8 Mais precisamente, tem sido estimado que cerca de metade daqueles que estão na situação de

insegurança alimentar no mundo são famílias de pequenos agricultores; dois décimos não têm terra;

um décimo vive da pastorícia, pesca e floresta; e os restantes dois décimos são citadinos pobres. (U.N.

Millennium Project, Halving Hunger: It Can be Done, Summary Version of the Report of the Task Force

on Hunger (The Earth Institute, Columbia University, 2005), p. 6.9 A dificuldade em identificar as melhores opções é, deste ponto de vista, melhor ilustrada pela actual

discussão acerca dos impactos que podem ser esperados a partir do trabalho de Alliance for a Green

Revolution in Africa (AGRA). De modo a facilitar o diálogo sobre as propostas levantadas pela ideia de

levar a cabo uma segunda “green revolution” no contexto africano, o Relator especial pretende convocar

uma reunião em Dezembro de 2008.

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10 O relatório considera que as inovações tecnológicas na agricultura têm geralmente favorecido

os grandes produtores e os seus custos têm sido reduzidos pelos pequenos agricultores, pelas suas

comunidades e pelo ambiente. O relatório do IAASTD, fortemente apoiado pelo potencial dos

pequenos agricultores no desenvolvimento da agricultura, sublinha a necessidade de garantir

apoio aos pequenos agricultores para este potencial vir a ser realizado e para a necessidade de

evitar a dependência em inputs caros, tais como os fertilizantes inorgânicos, cujos preços estão

estreitamente alinhados com os do petróleo ou com as sementes patenteadas. De modo a reduzir

a vulnerabilidade do sistema alimentar, é recomendado articular o conhecimento de base local, as

inovações, as políticas e os investimentos. Os Participatory Plant Breeding e os Farmer-Researcher

groups - não as tecnologias exógenas - são especificamente postos em relevo como modelos para um

desenvolvimento tecnologicamente bem sucedido. O IAASTD identificou várias áreas consideradas

em condições para a investigação e o investimento público, entre eles, sistemas orgânicos de

baixo consumo, substitutos biológicos para os químicos agrícolas, locais específicos para cultivos

facilmente adaptáveis, sistemas de sementes locais e redução da dependência da agricultura em

termos dos carburantes fósseis.11 OECD-FAO Agricultural Outlook 2008-2017, 29 de Maio de 2008, pp.14 e 28.12 Sobre a volatilidade nas mercadorias agrícolas veja-se, FAO Food Outlook, Junho, 2008, pp. 55-7.13 Framework Document para a proposta de créditos, empréstimos, donativos no valor de 1,2 milhar

de milhões de dólares equivalente para a Global Food Crisis Response Program (GFRP), 29 de Maio

de 2008, p. 6.14 General comment N.º 2, par. 14.15 General comment N.º 12, par. 21.16 Para maior detalhe, ver UNICEF, Food Prices Increases/Nutrition Security: Action for Children, 4

de Julho de 2008.17 http://www.fao-ilo.org/fao_ilo_rural/en/.18 Ver The World Bank, World Development Report 2008 - Agriculture for Development, Novembro

de 2007, p. 43.19 Ver texto original, p. 39.20 Ver anexo.21 A Cimeira Ibero Americana em que 15 delegações estiveram presentes, em 7 de Maio de 2008

em Manágua, expressou o seu apoio a “um processo de reforma agrária que possibilite terras aos

agricultores que neste momento não têm este recurso para produzirem alimentos”.

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22 Ver International Land Coalition, Access to land and the food crisis: Feedback and reflections by the

ILC Secretariat on the FAO High Level Conference on World Food Security, Junho de 2008, www.

landcoalition.org.23 Fuelling Exclusion? The Biofuel Boom and Poor People’s Access to Land, de Lorenzo Cotula, Nat Dyer

and Sonja Vermeulen, www.iied.org/pubs/pdfs/12551IIED.pdf.24 International Land Coalition, Access to land and the food crisis, citado acima.25 Implementing the internationally agreed goals and commitments in regard to sustainable

development, doc. E/2008/L.10, par. 28.26 E/CN.4/2002/200 (23 de Abril de 2002).27 Ver Report of the Special Rapporteur on the Right to Food to the General Assembly, A/58/330 (2003).28 GFRP, p. ii.29 Ver p. 19. O CFA também encoraja a canalização da assistência alimentar via mulheres e com metas

a atingir relativamente as mulheres agricultoras (pp. 13 e 16).30 Ver também United Nations Conference on Trade and Development, São Paulo Consensus

(TD/410, 25 de Junho de 2004), par. 5.31 Este artigo estabelece que “as medidas de ordem internacional destinadas a assegurar a realização dos

direitos reconhecidos no dito Pacto incluem métodos, tais como a conclusão de convenções, a adopção

de recomendações, a prestação de assistência técnica e a organização, em ligação com os governos

interessados, de reuniões regionais e de reuniões técnicas para fins de consulta e de estudos”.32 O relatório preliminar do Relator especial à Assembleia Geral das Nações Unidas contém mais

detalhadas referências normativas sobre estas questões.33 Ver Asbjorn Eide, The right to food and the impact of liquid biofuels (agrofuels), estudo submetido a

Right to Food Unit of the FAO, 27 de Maio de 2008.34 Mark Rosegrant e outros, “Biofuels and the global food balance”, citado acima.35 R. Naylor, A. Liska, M. Burke, W. Falcon, J. Gaskell, S. Rozelle, and K. Cassman, ’The Ripple Effect

-Biofuels, Food Security, and the Environment’, Environment, vol. 49, N.º 9, Novembro de 2007, p.

41, citado a partir de FAOs Faostat, disponível em http://faostat/fao.org.36 Definindo a relação entre as linhas de orientação desenvolvidas através de um consenso internacional

e o regime de comércio internacional, podem ser aprendidas algumas lições com o processo de

certificação dos diamantes, processo Kimberley, que restringe o comércio entre os participantes do

processo somente a diamantes certificados e aos de zonas de não conflito e proíbe o comércio entre

participantes e não participantes.

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37 General comment N.º 12, par. 19 (referindo-se ao falhanço dos Estados em regularem as actividades

dos indivíduos ou grupos, assim como, em evitarem que violem o direito a uma alimentação correcta

dos outros como sendo violação do direito à alimentação).38 Ver par. 4.3 das Linhas de Orientação.39 Ver Human Rights Council Resolution 7/1, 27 Março de 2008, par. 13.40 Ver A/HRC/8/5 (7 de Abril de 2008), pp. 27-50.41 Marc Cohen e outros, Impact of climate change and bioenergy on nutrition, IPFRI, 2008, p. 26.42 Para mais detalhes, ver Concentrated Market Power and Agricultural Trade, by Sophia Murphy,

Ecofairtrade dialogue discussion papers N.º 1, Agosto de 2006, disponível em www.tradeobservatory.

org/index.cfm?refid=89014.43 Ver World Bank, World Development Report 2008, p. 136.44 OECD-FAO Agricultural Outlook 2008-2017, 29 de Maio de 2008, p. 36.45 Foi citado que os investimentos dos fundos especulativos sobre índice em milho, soja, trigo, gado

bovino e porcos cresceram em 2007 mais de 47 milhares de milhões de dólares, quando eram de 10

milhares de milhões de dólares em 2006. Ver David Kesmodel, Laurent Etter e Aaron O. Patrick,

“Grain Companies’ Profits Soar As Global, Food Crisis Mounts”, The Wall Street Journal, 30 de Abril

de 2008. Este texto é reproduzido na totalidade nesta brochura.46 Ver também Comprehensive Framework for Action, pp. 27-28.47 Ver também, defendendo igualmente esta solução, IFPRI, High Food Prices: The What, Who, and

How of Proposed Policy Actions, 16 de Maio de 2008, pp. 9-10.48 Sanjay G. Reddy, “Safety Nets for the Poor: A Missing International Dimension?”, in Giovanni

Andrea Cornia (ed.), Pro-Poor Macroeconomics, Palgrave Macmillan, 2006, pp. 144-165, p. 160.49 TD/410, 25 de Junho de 2004, par. 75.50 O Relator especial examina as inter-acções entre o comércio internacional em produtos agrícolas e o

direito à alimentação num relatório separado, para o Conselho dos Direitos do Homem numa missão

sobre a OMC. Este relatório está na íntegra reproduzido nesta brochura.51 Veja-se também as propostas que emanaram de International Food Policy Research Institute: J. von

Braun and N. Islam, “Toward a New Global Governance System for Agriculture, Food and Nutrition:

What Are the Options?”, IFPRI Forum, Março de 2008.52 Para a base desta nota sobre a crise alimentar global veja-se www2.ohchr.org/english/issues/food/

docs/SRRTFnotefoodcrisis.pdf (2 de Maio de 2008).53 Veja-se, inter alia, J. von Braun, The World Food Situation. New Driving Forces and Required Actions,

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Dezembro de 2007; Office for the Coordination of Humanitarian Affairs (OCHA), e a nota Global

Food Challenges, 23 Abril,2008; Joachim von Braun, Rising Food Prices. What Should be Done?, IFPRI

Policy Brief, Abril de 2008; World Bank, Rising food prices: Policy options and World Bank response,

April 2008; International Food Policy Research Institute, High Food Prices: The What, Who, and

How of Proposed Policy Actions, 16 de Maio de 2008; Organisation for Economic Co-Operation and

Development (OECD), Rising Food Prices. Causes and Consequences, Abril de 2008; Donald Mitchell,

A Note on Rising Food Prices, The World Bank, Policy Research Working Paper N.º 4682, Julho de

2008; e as fontes citadas na referência da nota anterior.54 Uma investigação conduzida pelo Banco Mundial indica que 10% na subida do crude traduz-se em

1,6% de acréscimo nos preços dos bens alimentares.55 Global commodities: a long term vision for stable, secure and sustainable global markets, HM

Treasury, United Kingdom, Junho de 2008, disponível em www.hm-treasury.gov.uk.56 Os países em desenvolvimento tinham globalmente um excedente comercial em bens agrícolas de

quase 7 milhares de milhões de dólares por ano, nos anos 60. Segundo a FAO, as importações brutas

dos países em desenvolvimento cresceram com a liberalização do comércio e transformaram-se agora

num défice comercial de mais de 11 milhares de milhões, em 2001, com a regulamentação sobre

importação de cereais para os Low Income Food Deficit Countries, atingindo cerca de 38 milhares de

milhões de dólares em 2007-08.57 O Relator especial agradece a contribuição de Rahul Lahoti para esta parte da análise, da qual o

Relator especial assume a inteira responsabilidade.58 Tem sido argumentado por alguns analistas que, uma vez que 1.º a pobreza está concentrada nas

zonas rurais, 2.° que esta é produzida pelos baixos preços decrescentes dos bens agrícolas e 3.° que os

vendedores líquidos são os verdadeiros pobres, então um acréscimo nos preços dos bens alimentares

pode ter um impacto positivo sobre a pobreza. Ataman Aksoy e Aylin Isik-Dikmelik (“Are Low

Food Prices Pro-Poor? Net Food Buyers and Sellers in Low-Income Countries”, The World Bank:

Washington, D.C., 2008) argumentam que, embora haja mais pobres como compradores líquidos do

que como vendedores, cerca de metade das famílias que são compradoras líquidas são-no em termos

marginais e então o crescimento dos preços terá um pequeno efeito sobre o seu bem-estar. Nesta

análise, feita para nove países, o rendimento médio dos compradores líquidos de bens alimentares são

mais altos do que a média dos rendimentos dos vendedores líquidos em oito desses nove. Então, preços

dos bens alimentares mais altos, em média, darão azo a transferências de rendimento das famílias

mais ricas para as mais pobres. Também argumentam que os rendimentos das famílias compradoras

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líquidas de bens alimentares nas áreas rurais depende da despesa das famílias vendedoras líquidas e um

acréscimo nesta pode ter efeitos positivos nas famílias compradoras. Contudo, esta análise pressupõe

que os preços mais altos dos bens alimentares nos mercados internacionais se traduzirão em preços

internos mais altos, à saída do produtor - uma hipótese que, devido à actual organização da produção

alimentar e da sua cadeia de distribuição, só poderá ser válida em contextos limitados, particularmente

em países tais como o Vietname com elevado igualitarismo distributivo dos recursos da terra.

PARTE II

PONTO 2

1 U.N. Committee on Economic, Social and Cultural Rights, General Comment N.º 12 (1999), The

right to adequate food (art. 11), U.N. doc. E/C.12/1999/5, par. 15, disponível em http://www.unhchr.

ch/tbs/doc.nsf/0/3d02758c707031d58025677f003b73b9?Opendocument.2 E/C.12/1999/5, par. 9.3 UNDP, Human Development Report 2007/2008. Fighting Climate Change: Human solidarity in a

divided world, 2007, p. 90 (citando Rachel Warren, Nigel Arnell, Robert Nicholls, Peter Levy e Jeff

Price, “Understanding the Regional Impacts of Climate Change”, Research Report prepared for the

Stern Review on the Economic of Climate Change, Research Working Paper N.º 90, Tyndall Centre

for Climate Change, Norwich).4 IPCC, Climate Change 2007: Climate Change Impacts, Adaptation and Vulnerability. Working Group

II Contribution to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panle on Climate Change (S.

Solomon, D. Qin, M. Manning, Z. Chen, M. Marquis, K.B. Averyt, M. Tignor and H.L. Miller, eds),

Cambridge Univ. Press, Cambridge and New York, cap. 9.5 William R. Cline, Global Warming and Agriculture. Impact Estimates by Country, Center for Global

Development and the Peterson Institute for International Economics, 2007, p. 96.6 David B. Lobell, Marshall B. Burke, Claudia Tebaldi, Michael D. Mastrandrea, Walter P. Falcon, e

Rosamond L. Naylor, “Prioritizing Climate Change Adaptation Needs for Food Security in 2030”,

Science, 1 de Fevereiro de 2008, vol. 319, pp. 607-10 (mostra, com base numa análise dos riscos do

clima para as colheitas em 12 regiões que têm insegurança alimentar, que a Ásia Meridional e África

meridional são duas regiões que, sem medidas de adaptação suficientes, sofrerão provavelmente

impactos negativos em diversas colheitas que são importantes para populações ameaçadas pela

insegurança alimentar).

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7 Mark W. Rosegrant, Siwa Msangui, Timothy Sulser, e Claudia Ringler, “Future Scenarios for

Agriculture: Plausible Futures to 2030 and Key Trends in Agricultural Growth”, relatório preparado

para o World Development Report 2008.8 Sophia Murphy, Securing Enough to Eat, International Institute for Sustainable Development

(IISD), Janeiro de 2005.9 Banco Mundial, World Development Report 2008 - Agriculture for Development, Novembro de 2007,

caixa 4.7., p. 109 (comparando a representação entre os pequenos agricultores pobres compradores

líquidos de alimentos, auto-suficientes ou vendedores líquidos: em cada um dos sete países examinados

(Bolívia, Etiópia, Bangladesh, Zâmbia, Camboja, Madagáscar e Vietname), as duas primeiras categorias

constituem uma maioria forte entre os pequenos agricultores pobres).10 M. Ataman Aksoy, “The Evolution of Agricultural Trade Flows”, in M. Ataman Aksoy and John

C. Beghin (eds.), Global Agricultural Trade and Developing Countries, The World Bank, Washington,

D.C., 2005, 17, 19 (notando que “em média, agricultores são mais pobres que os não agricultores

nos países em vias de desenvolvimento… Em todos os países em vias de desenvolvimento, as famílias

rurais têm rendimentos inferiores aos das famílias não rurais. A relação entre os rendimentos rurais e os

rendimentos não rurais varia entre 40 e 75%, uma relação que se mantém consistente entre os grupos

de países em vias de desenvolvimento”).11 U.N. Millennium Project, Halving Hunger: It Can be Done, Summary Version of the Report of the Task

Force on Hunger (Nova Iorque: The Earth Institute at Columbia University, 2005), p. 6.12 Ver também Melaku G. Desta, “Food Security and International Trade Law: An Appraisal of the World

Trade Organization Approach”, 35 J. of World Trade 449 (2001); Chris Downes, “Must the Losers of Free

Trade Go Hungry? Reconciling WTO Obligations and the Right to Food”, 47 Virginia J. of Int. L. 619

(2007); Carmen G. Gonzales, “Institutionalizing Inequality: The WTO Agreement on Agriculture, Food

Security, and Developing Countries”, 27 Colum. J. Environmental L. 433 (2002); Kerstin Mechlem,

“Harmonizing Trade in Agriculture and Human Rights: Options for the Integration of the Right to Food

into the Agreement on Agriculture”, Max Planck Yearbook of United Nations law, vol. 10, 2006, pp.

127-190; Mark Ritchie & Kristin Dawkins, “WTO Food and Agricultural Rules: Sustainable Agriculture

and the Human Right to Food”, 9 Minnesota J. of Global Trade 9 (2000).13 Os países desenvolvidos deviam reduzir as suas tarifas em média 36%, em 6 anos; os países

em vias de desenvolvimento deviam reduzir as suas tarifas em média 24%, em 10 anos; aos

países menos desenvolvido não se impôs nenhum compromisso de redução (ver Acordo sobre a

Agricultura, art. 15.2).

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14 De acordo com o glossário da OMC, os picos tarifários podem ser definidos como tarifas

relativamente elevadas, normalmente em produtos “sensíveis”, entre normalmente tarifas relativamente

reduzidas. Para os países industrializados, tarifas de 15% e acima são geralmente reconhecidas como

“picos tarifários” [N. T.].15 De acordo com o glossário da OMC, escalada tarifária, ou progressividade tarifária, significa direitos mais

elevados em produtos semi-processados do que em matérias-primas e mais elevados ainda em produtos

finais. Esta prática protege as indústrias de transformação nacionais e desencoraja o desenvolvimento das

indústrias transformadoras nos países de onde as matérias-primas são originárias [N. T.].16 A Medida Global de Apoio Total de Base refere-se ao apoio concedido durante o período de base [N. T.].17 De acordo com a terminologia da OMC as subvenções internas são classificadas e agrupadas em

«Caixas»: subvenções ou ajudas da “Caixa Amarela ou Âmbar”; subvenções classificadas na “Caixa

Verde”; e subvenções integradas na “Caixa Azul”. As ajudas da caixa âmbar constituem medidas de

suporte aos preços que têm efeitos de distorção sobre a produção e sobre as trocas; são admitidas de

acordo com a “cláusula do minimis” [N. T.].18 As ajudas incluídas na “Caixa Azul”, constituem excepção à regra geral que pretende que todas

as subvenções ligadas à produção, sejam reduzidas ou mantidas em níveis mínimos. Compreendem

os pagamentos directos ligados à área ou, por exemplo, ao número de cabeças animais, mas que são

atribuídas no âmbito de programas que têm como objectivos limitar a produção, impondo quotas

(áreas e efectivos de referência) e restrições ao uso da terra (pousios obrigatórios) [N. T.].19 As ajudas da “Caixa Verde”, são aquelas que em princípio não têm efeitos sobre as trocas ou apenas

têm um efeito reduzido, podendo ser adoptadas com uma certa liberdade [N. T.].20 Análises mais recentes procuraram estimar os aumentos dos preços das matérias-primas

internacionais depois da completa liberalização do comércio: por exemplo, os aumentos são estimados

em 20,8% para o algodão, 15,1% para as sementes oleaginosas, 11,9% para produtos lácteos, 7% para

cereais secundários ou 5% para o trigo (The World Bank, World Development Report 2008, op. cit., p.

107 (fig. 4.6)).21 WT/MIN(01)/DEC/1, par. 13.22 Agricultural Policies in OECD Countries: At a Glance, OECD, Paris, Junho de 2008.23 Para África, ver UNCTAD, Economic Development in Africa 2008 – Export Performance Following

Trade Liberalization: Some Patterns and Policy Perspectives, 2008, cap. 2.24 M. Garcia Martinez & P. Poole, “The Development of Private Fresh Produce Safety Standards:

Implications for Developing and Mediterranean Exporting Countries”, Food Policy, 29(3),

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pp. 229-55; L. J. Unnevehr, “Food Safety Issues and Fresh Food product Export from LDCs”,

Agricultural Economics, 23(3), pp. 231-40. Ver, contudo, para uma visão menos pessimista, Steven

M. Jaffee and Spencer Henson, “Agro-Food Exports from Developing Countries: The Challenges

of Standards”, in M. Ataman Aksoy and John C. Beghin (eds.), Global Agricultural Trade and

Developing Countries, op. cit., cap. 6 (a mostrar que nos países em que o sector privado está

bem organizado e no qual o sector público financia os esforços dos exportadores, os produtores

poderiam entrar nos mercados tais como o do marisco, fruta fresca e vegetais). No seu estudo das

cadeias de exportação dos vegetais no Senegal, Johan F.M. Swinnen e Miet Maertens concluem

que as exportações cresceram apesar da existência de padrões mais exigentes: tais exigências,

concluem, conduziram a uma modificação do tipo de contractos agrícolas que os pequenos

agricultores tinham para com a produção integrada em grandes propriedades estatais, fazendo

com que os agregados familiares mais pobres pudessem beneficiar do facto de estarem empregados

em tais propriedades e não de estarem a produzir eles próprios para os mercados globais (M.

Maertens & J. F. M. Swinnen, “Trade, Standards e Poverty: Evidence from Senegal”, LICOS

Centre for Institutions and Economic Performance & Department of Economics, KUL, 2008).25 A. F. McCalla & J. Nash, Reforming Agricultural Trade for Developing Countries. Key Issues for a Pro-

Development Outcome of the Doha Round, vol. I, Banco Mundial, Washington D.C., 2007.26 UNCTAD, The Least Developed Countries Report, 2006 - Developing Productive Capacities

(UNCTAD/LDC/2006), p. 137.27 Marcel Mazoyer, “Pauvreté paysanne, sous-alimentation et avenir de l’humanité”, in St. Desgain &

O. Zé (dir.), Nourrir la planète, ed. Luc Pire, pp. 10-29, p. 20.28 Este é o caso, em particular, para os países do Grupo de Cairns (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia,

Costa Rica, Indonésia, Malásia, Filipinas, África do Sul, Tailândia e Uruguai).29 UNCTAD/LDC/2006, p. 137.30 UNCTAD, Economic Development in Africa 2008 - Export Performance Following Trade Liberalization

: Some Patterns and Policy Perspectives, 15 de Setembro de 2008, cap. 2, pp. 37-47.31 OECD, Business for Development 2008, Promoting Commercial Agriculture in Africa. A

Development Centre Perspective, Paris, 2008.32 UNCTAD, The Changing face of commodities in the twenty-first century. TD/428. Nota preparada

pelo Secretariado da UNCTAD, UNCTAD XII, Accra, Ghana, 20-25 de Abril de 2008.33 FAO Brief on Import Surges - Issues, disponível em ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/009/j8675e/

j8675e00.pdf (consultado em 15 de Novembro de 2008).

Page 234: A INSEGURANÇA ALIMENTAR DA ECONOMIA GLOBAL: … · o ciclo da pobreza e da fome no mundo a inseguranÇa alimentar da economia global: ... economia global, omc e agricultura 2. a

232

34 Ver, para vários estudos de caso, FAO Briefs on Import Surges, disponível em http://www.fao.org/es/

esc/en/378/406/index.html (consultado em 15 de Novembro de 2008).35 Ver também A. Paasch et. al. (ed.), Trade Policies & Hunger. The impact of trade liberalisation on the

Right to Food of rice farming communities in Ghana, Honduras and Indonesia, FIAN e Ecumenical

Advocacy Alliance, Outubro de 2007.36 Ver FAO, “Trade Policy Briefs on Issues Related to the WTO Negotiations on Agriculture”, N.º 9, A

Special Safeguard Mechanism for Developing Countries, disponível em ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/008/

j5425e/j5425e01.pdf.37 UNCTAD, Impact of the Reform Process in Agriculture on LDCs and Net Food-Importing

Developing Countries and Ways to Address Their Concerns in Multilateral Trade Negotiations, UN

Doc. TD/B/COM.1/EM.11/2 e Corr.1 de 23 de Junho de 2000, par. 25 e ss.38 Os países em causa são Barbados, Maurícia, Santa Lúcia, Trinidad e Tobago.39 Banco Mundial, World Development Report 2008 – Agriculture for Development, 19 de Outubro de

2007, p. 7.40 O Conselho Mundial da Alimentação foi extinto e substituído pela Organização para a Alimentação

e a Agricultura (FAO) pelo Programa Mundial da Alimentação (PMA) [N. T.]41 É significativo que, com o objectivo de ajudar os países para fazer face às dificuldades de balança de

pagamentos em 2008 devido aos aumentos brutais dos preços dos produtos alimentares nos mercados

internacionais, o Fundo Monetário Internacional forneceu apoio adicional para os problemas da

balança de pagamentos através do aumento na possibilidade de acesso para 12 países no âmbito do

programa da Facilidade de Crescimento e Redução de Pobreza.42 Proposal to Implement the Marrakesh Ministerial Decision in Favour of LDCs [países menos

desenvovidos] and NFIDCS [países importadores líquidos de bens alimentares], G/AG/W/49, 19 de

Março de 2001, e Add.1 (23 de Maio de 2001) e Add.1/Corr.1 (27 de Junho de 2001).43 Decisão Implementation-Related Issues and Concerns, WTO Doc. WT/MIN(01)/17, 2 de

Novembro de 2001, par. 2.2.44 Inter-Agency Panel on Short-Term Difficulties in Financing Normal Levels of Commercial Imports

of Basic Foodstuffs, Report of the Inter-Agency Panel, WTO Doc. WT/GC/62 G/AG/13, 28 de

Junho de 2002.45 CR4 significa a posição dos quatro principais actores relativamente à globalidade dos actores no

mercado [N. T.].46 Ver p. 136.

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233

47 Sophia Murphy, “Concentrated Market Power and Agricultural Trade”, EcoFair Trade Dialogue

Discussion Papers, 14 de Agosto de 2006.48 Ver Special Feature: Globalization, Urbanization and Changing Food Systems in Developing Countries,

FAO (2004) (que relata que o IDE nas indústrias alimentares aumentou de 743 milhões de dólares,

em 1988, para mais de 2,1 milhares de milhões em 1997, ultrapassando de longe os investimentos

agrícolas, referindo que as vendas das 30 maiores cadeias de supermercados correspondem a um

terço das vendas mundiais de bens alimentares); ou, por exemplo, “Horticultural Producers and

Supermarket Development in Indonesia”, World Bank Report N.º 38543-ID, vi e vii (2007) (que

relata que, na Indonésia, as vendas a retalho tradicionais perdem aproximadamente 2% de sua quota

todos os anos).49 Tim Reardon and Ashok Gulati, The Rise of Supermarkets and Their Development Implications:

International Experience Relevant for India IFPRI Discussion Paper 00752, 17 (2008).50 Ver, como exemplo, as medidas que poderiam facilitar a cooperação entre supermercados e pequenos

agricultores, Oli Brown & Christina Sander, ‘Supermarket Buying Power: Global Supply Chains and

Smallholder Farmers’, International Institute for Sustainable Development 11 (Março de 2007).51 C. Dolan & J. Humphrey, (2001) ‘Governance and Trade in Fresh Vegetables: The Impact of UK

Supermarkets on the African Horticultural Industry’, Journal of Development Studies 37(2) (2001), p.

175.52 E/C.12/1999/5, par. 9.53 W. Sachs and T. Santarius, Slow Trade - Sound Farming, p. 24.54 Id., p. v.55 Estes são números da Agência Internacional de Energia para 2004.56 The Validity of Food Miles as an Indicator of Sustainable Development: Final report, DEFRA, July

2005, p. ii.57 World Agriculture towards 2015, FAO, 2003, http://www.fao.org/docrep/005/Y4252E/y4252e00.

HTM.58 Friends of the Earth, Food and Climate Change - Briefing, Outubro de 2007, ver www.foe.co.uk/

resource/briefings/food_climate_change.pdf (última consulta em 15 de Novembro de 2008).59 Karen Rideout, “Food and Trade - An Ecological Public Health Perspective”, Oxfam Canada, 27 de

Fevereiro de 2005, p. 12 (referindo-se a Chopra M, Galbraith S, Darnton-Hill I. “A global response to

a global problem: the epidemic of overnutrition”, Bulletin of the World Health Organization 80 (2002),

pp. 952-58).

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234

60 Report of the Study Group of the International Law Commission, Fragmentation of international

law: difficulties arising from the diversification and expansion of international law, U.N. doc. A/

CN.4/L.702, 18 de Julho de 2006, par. 8; B. Simma, “Self-contained regimes”, Netherlands Yearbook of

International Law, vol. 16, 1985, pp. 111-136.61 Os membros da OMC só muito raramente se referiram ao direito a uma alimentação adequada

no contexto das negociações comerciais dentro da OMC: isto foi feito pelas Ilhas Maurícia e pela

Noruega (Committee on Agriculture, Special Session, Note on Non-Trade Concerns, WTO Doc. G/

AG/NG/W/36/Rev.1, 9 de Novembro de 2000, para. 44 e 57; WTO Doc. G/AG/NG/W/101, 16 de

Janeiro de 2001, par. 6 ff.); e pelo Burkina Faso (WTO Doc. TN/AG/R/10 de 9 de Setembro de 2003,

par. 35).62 Como membros das Nações Unidas, todos os Estados se comprometeram sob o artigo 56 da Carta

das Nações Unidas, “agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente” para a realização

dos objectivos enumerados no artigo 55 e que incluem “o respeito universal e efectivo dos direitos do

homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.”

Segue do artigo 103 da Carta que esta obrigação prevalece sobre qualquer outro acordo internacional.63 O Órgão de Apelação da OMC considera que os compromissos sob a estrutura da OMC não podem

ser “tratados em isolamento clínico” da lei internacional geral (Appellate Body Report de 20 de Maio de

1996, United States – Standards for Reformulated and Conventional Gasoline (United States v. Brazil and

Venezuela), WT/DS2/AB/R). O artigo 3.2. do Memorando de Entendimento sobre as Regras e Processos

que Regem a Resolução de Litígios da OMC reconhece que as normas da OMC podem “clarificar

as disposições desses acordos em conformidade com as normas de interpretação do direito público

internacional”, que a Convenção de Viena codifica. O artigo 31, par. 3 (c) da Convenção de Viena sobre

o Direito dos Tratados estipula que a interpretação dos tratados deve tomar em consideração “Toda a

norma pertinente de direito internacional aplicável às relações entre as Partes”. A “norma pertinente

de direito internacional”, referida no artigo 31 par. 3 (c), da Convenção de Viena sobre o Direito dos

Tratados não está condenada a ser estática, mas pode evoluir, particularmente, em consequência da

interpretação legal: ver Legal Consequences for States of the Continued Presence of South Africa in Namibia

(South-West Africa) notwithstanding Security Council Resolution 276 (1970), Advisory Opinion, I. C. J.

Reports 1971, pp. 16-31, par. 53; Case concerning the Gabčíkovo-Nagymaros Project (Hungary/Slovakia), I.

C. J. Reports 1997, pp. 76-80, pars. 132-47. Sobre a necessidade de uma interpretação evolucionária ver

Appellate Body Report, 12 de Outubro de 1998, United States – Import Prohibition of Certain Shrimp and

Shrimp Products (United States v. India, Malaysia, Pakistan, Thailand), WT/DS58/AB/R, par. 129.

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235

64 Ver artigo IX (2) do Acordo OMC, também referido no artigo 3.9. do Memorando de

Entendimento sobre as Regras e Processos que Regem a Resolução de Litígios da OMC. Ver também

C.-D. Ehlermann e L. Ehring, ‘The Authoritative Interpretation Under Article IX :2 of the Agreement

Establishing the World Trade Organization : Current Law, Practice and Possible Improvements’,

Journal of International Economic Law, vol. 8(4), 2005, pp. 814-15.65 Ver Committee on Economic, Social and Cultural Rights, Concluding Observations regarding

Ecuador, 7 de Julho de 2004, E/C.12/1/Add.100 no par. 56; Committee on the Rights of the Child,

Concluding Observations regarding El Salvador, 30 de Junho de 2004, CRC/C/15/Add.232 no par.

48/ ; Committee on the Elimination of Discrimination Against Women, Concluding Observations

regarding Colombia, 2 de Fevereiro de 2007, CEDAW/C/COL/CO/6, no par. 29; Committee on

the Elimination of Discrimination Against Women, Concluding Observations regarding Philipines,

25 de Outubro de 2006, CEDAW/C/PHI/CO/6 no par. 26; Committee on the Elimination of

Discrimination Against Women, Concluding Observations regarding Guatemala, 2 de Junho de 2006,

CEDAW/C/GUA/CO/6 no par. 32.66 Ver o art. 20 do Acordo Sobre a Agricultura, que atinge parcialmente este objectivo no acordo actual.67 Ver James Harrisson and Alessa Goller, “Trade and Human Rights: What Does ‘Impact Assessment’

Have to Offer?”, Human Rights Law Review 8 (2008), pp. 587-615.68 OHCHR, Analytical study of the High Commissioner for Human Rights on the fundamental

principle of participation and its application in the context of globalization, 23 de Dezembro de 2004,

E/CN.4/2005/41.69 Ver Office of the High Commissioner for Human Rights, Report on indicators for monitoring

compliance with international human rights instruments: a conceptual and methodological framework

(HRI/MC/2006/7, 11 de Maio de 2006), par. 3.70 Ver, para uma tabela de indicadores baseados no conteúdo normativo do direito à alimentação,

Office of the High Commissioner for Human Rights, Report on indicators for monitoring compliance

with international human rights instruments (HRI/MC/2008/3, 16 de Maio de 2008), p. 24.71 Ver Banco Mundial, World Development Report 2008 - Agriculture for Development, Novembro de

2007, p. 43.72 FAO, The State of the Food Insecurity in the World 2003, p. 16.73 Ver acima, n. 20.74 Framework Document for proposed loans, credits, and grants in the amount of US$ 1.2 billion equivalent

for a Global Food Crisis Response Program (GFRP), 29 de Maio de 2008, 6.

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236

75 As percentagens são 6.5 para o arroz, 12 para o milho, 18 para o trigo e 35 para a soja. M. Ataman

Aksoy and John C. Beghin (eds.), Global Agricultural Trade and Developing Countries (Washington,

D.C., The World Bank, 2005), pp. 177-79.76 Tarifa aplicada às importações que excedam o volume da quota [N. T.].77 U.N. Committee on Economic, Social and Cultural Rights, General Comment N.º 12 (1999), The

right to adequate food (art. 11), U.N. doc. E/C.12/1999/5, par. 19. Ver também par. 36: “Os Estados

devem, em acordos internacionais sempre que relevante, assegurar-se que o direito a uma alimentação

adequada tem a atenção devida e considerar o desenvolvimento dos necessários instrumentos jurídicos

internacionais para atingir aquele fim”.78 Ver, mutatis mutandis, no que respeita à provisão apropriada de ajuda alimentar, U.N. Committee

on Economic, Social and Cultural Rights, General Comment No. 12 (1999), The right to adequate food

(art. 11), U.N. doc. E/C.12/1999/5, par. 39 (“A ajuda alimentar deve, tanto quanto possível, ser dada

de forma a que não afecte adversamente os produtores locais e mercados locais, e deve ser organizada

de forma a que facilite a independência alimentar dos beneficiários”).79 U.N. Committee on Economic, Social and Cultural Rights, General Comment N.º 8 (1997): The

relationship between economic sanctions and respect for economic, social and cultural rights, U.N.

doc. E/1998/22.80 Ver, e.g., U.N. Committee on Economic, Social and Cultural Rights, General Comment N.º 14 (2000),

O direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir. (artigo

12 do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais), U.N. Doc. E/C.12/2000/4

(2000), par. 39; ou U.N. Committee on Economic, Social and Cultural Rights, General Comment N.º

15 (2002), O Direita à Água (arts. 11 e 12 do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e

Culturais), U.N. Doc. E/C.12/2002/11 (26 de Novembro de 2002), par. 31. Nestes comentários gerais, o

Comité afirma que os Estados devem “impedir que terceiros violem o direito [protegido pelo Pacto Internacional

sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais] em outros países, se podem influenciar estes terceiros partes por

meios legais ou políticos, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com a lei internacional aplicável”. Da

mesma forma, em 2007, o Comité para a Eliminação da Discriminação Racial convidou o Canadá a “…

tomar as medidas legislativas ou administrativas apropriadas para impedir actos das empresas transnacionais

registadas no Canadá que tenham um impacte negativo sobre os direitos dos povos indígenas nos territórios

fora de Canadá. Em particular, o Comité recomenda que o Estado desenvolva formas de responsabilizar

as empresas transnacionais registadas no Canadá” (CERD/C/CAN/CO/18, par. 17 (Concluding

Observations/Comments, 25 de Maio de 2007)).

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237

81 Ver UNCTAD/UNEP, Organic Agriculture and Food Security in Africa, http://www.unepunctad.

org/cbtf/publications/UNCTAD_DITC_TED_2007_15.pdf (que mostra o potencial da agricultura

orgânica no aumento da produtividade agrícola e no aumento dos rendimentos através do uso de

tecnologias disponíveis localmente e de baixo custo, sem causar danos no meio ambiente, mas que

destaca igualmente a necessidade de uma política e de uma sustentação institucional para melhorar a

escala da agricultura orgânica e dos efeitos positivos a ela associados). Este estudo é apenas o último

de uma série de estudos que convergem para este ponto. Ver, em particular, Jules Pretty et al. (2006),

“Resource Conserving Agriculture Increases Yields in Developing Countries”, Environmental Science & Technology,

vol. 40, N.º 4 (2006) (que analisa 286 projectos agrícolas em 57 países e que conclui que uma agricultura com

reduzidos factores de produção externos melhora a produtividade das colheitas agrícolas numa média de 79%).

PARTE III

PONTO 2

1 “Reserve Management, The Commodity Bubble, The Metals Manipulation, The Contagion Risk To

Gold And The Threat Of The Great Hedge Fund Unwind To Spread Product”, Frank Veneroso, 19 de

Julho de 2007, pp. 5-6. http://www.venerosoassociates.net/Reserve%20Management%20Parts%20

I%20and%20II%20WBP%20Public%2071907.pdf.2 http://hsgac.senate.gov/public/index.cfm?fuseaction=Hearings.Detail&HearingID=dc7368c2-0ea1-

4151-9fc5-06317a5bba79.3 A SITUAÇÃO LONGA/ O LADO DA PROCURAMercados Futuros de Mercadorias - Contratos em aberto2008 Hedger Físico Especulador Tradicional Especulador sobre ÍndicesCacau 33 % 45 % 19 %Café 26 % 35 % 39 %Milho 41 % 24 % 35 %Algodão 32 % 27 % 41%Oléo de soja 46 % 22 % 32 %Soja 30 % 28 % 42 %Açúcar 35 % 19 % 43 %Trigo 17% 20 % 64 %Trigo KC 37 % 32 % 31 %Gado Bovino 17% 53 % 30 %Gado Suíno 18 % 20 % 63 %Gado bovino vivo 13 % 24 % 63 %WTI CRUDE 59 % 10 % 31 %Nafta 37 % 16 % 47 %Gasolina 41 % 20 % 39 %Gás Natural 62 % 10 % 28 %Ouro 22 % 55 % 23 %Prata 27 % 46 % 28 %Média 33 % 27 % 39 %

Fonte: CFTC.

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238

4 Para mais informação visite:

http://www.djindexes.com/mdsidx/?event=showAigHome para o DJ-AIG ou para o S&P-GSCI http://

www2.standardandpoors.com/portal/site/sp/en/us/page.topic/indices_gsci/2,3,4,0,0,0,0,0,0,1,1,0,0,0

,0,0.html.

Os ponderadores de Índices, 12 de Março de 2008

S&P-GSCI DI-AIG Média ponderadaAgriculturaCacau

Café

Milho

Algodão

Óleo de Soja

Soja em grão

Açúcar

Trigo

Trigo KC

0,2 %

0,6 %

3,3 %

0,9 %

0,0 %

2,2 %

1,0 %

5,3 %

1,2 %

0,0 %

2,9 %

5,7 %

2,5 %

2,9 %

7,2 %

3,1 %

5,6 %

0,0 %

0,1 %

1,5 %

4,2 %

1,5 %

1,1 %

4,1 %

1,8 %

5,4 %

0,8 %PecuáriaGado Bovino

Gado Suíno

Gado Vivo

0,3 %

0,8 %

1,2 %

0,0 %

2,2 %

3,9 %

0,2 %

1,4 %

2,6 %EnergiaPetróleo Brent

WTI Crude

Gasóleo

Nafta

Gasolina

Gás Natural

13,4 %

38,3 %

5,0 %

4,9 %

4,2 %

6,8 %

0,0 %

12,9%

0,0 %

3,8 %

3,6 %

13,1 %

8,3 %

28,6 %

3,1 %

4,5 %

4,0 %

9,2 %Metais de baseAlumínio

Chumbo

Níquel

Zinco

Cobre

2,5 %

0,5 %

0,9 %

0,6 %

3,1 %

7,7 %

0,0 %

2,7 %

2,7 %

7,3 %

4,5 %

0,3 %

1,6 %

1,4 %

4,7 %Metais preciososOuro

Prata

1,9 %

0,3 %

7,1 %

3,0 %

3,9 %

1,3 %

Fonte: Standard & Poor’s, Dow Jones.

5 “Investing and Trading in the GSCI”, Goldman, Sachs & Co., 1 de Junho de 2005 e cálculos

baseados nos “Commitments of Traders Report”, CIT Supplement do CFTC; veja o Anexo para mais

informação sobre o cálculo do Índice.6 Ver nesta brochura PARTE III, Ponto 2, tabela “Aumento dos preços futuros das mercadorias, Março

de 2003- Março de 2008”.

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7 O CFTC declara na sua página de internet que “em muitas matérias-primas (especialmente matérias-

primas provenientes da agricultura) os participantes no mercado de bens físicos baseiam os seus preços

à vista (spot) e futuros (forward) nos preços de futuros que são ‘descobertos’ no mercado competitivo

e de licitação aberta de uma Bolsa de futuros”. “The Economic Purpose of Futures Markets and How

They Work,” U.S. Commodities Futures Trading Commission, http://www.cftc.gov/educationcenter/

economicpurpose.html.

Como um exemplo adicional, quando a Platts, um serviço de preços nos mercados de energia, faz uma

sondagem nos mercados de bens físicos a nível mundial, está na realidade a receber preços de compra

e venda dos intervenientes no Mercado, expressas em WTI Light Sweet Crude descontado de um

spread.” - “Platts Oil Pricing and Market-on-Close Methodology Explained,” Platts - a McGraw Hill

Company, July 2007. http://www.platts.com/Resources/whitepapers/moc.pdf?a=i De notar que se e

quando a Platts recebe cotações como o Crude de Brent ou o Crude do Dubai mais ou menos um

spread, continua a manter-se uma relação estável e directa entre o WTI, o Brent e o Dubai.8 De lembrar que se a procura por petróleo for estável, então os preços não sofrem alterações. Se a

oferta é constante, então a procura tem que aumentar. É por este facto que analisamos aumentos na

procura.

Variação na procura chinesa de Petróleo nos últimos 5 anos

Consumo em barris/ano Variação anual2002 1.883.660,7772003 2.036.010.338 152.349.5612004 2.349.681.577 313.671.2402005 2.452.800.000 103.118.4232006 2.654.750.989 201.950.9892007 2.803.010.200 148.259.211Variação total 919.349.423

Fonte: Energy Information Association, U.S. Department of Energy.

9 Os números desta tabela são os números da tabela principal convertidos nos seus equivalentes em

barris. Os números do consumo de petróleo que do Departamento de Energia fornece para o consumo

da China incluem todas as formas de petróleo, crude e refinado.

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Acréscimo da especulação sobre Índices-Procura pelo Petróleo nos últimos 5 anos

Petróleo BarrisWti crude 538.449.579Brent Crude 144.524.265Gasóleo 44.122.619Nafta 61.164.897Gasolina 59.249.015Total 847.560.374

10 Informação da Associação de Informação da Energia - Departamento de Energia dos Estados Unidos

(Energy Information Association - U.S. Department of Energy), disponível em http://tonto.eia.doe.

gov/dnav/pet/pet_stoc_wstk_dcu_nus_a.htm.11 “The End Of Cheap Food”, The Economist, 6 de Dezembro de 2007, disponível em http://www.

economist.com/research/articlesBySubject/displaystory.cfm?subjectid=7216688&story_id=10252015.12 “Ethanol Reshapes the Corn Market”, Economic Research Service - U.S. Department Of

Agriculture, Allen Baker and Steven Zahniser, Abril de 2006, disponível em http://www.ers.usda.gov/

AmberWaves/April06/Features/Ethanol.htm.13 “Ethanol Production Could Be Eco-Disaster, Brazil’s Critics Say,” Kelly Hearn, National

Geographic News, 8 de Fevereiro de 2007, disponível em http://news.nationalgeographic.com/

news/2007/02/070208-ethanol.html.14 Economic Research Service, U.S. Department of Agriculture, disponível em http://www.ers.usda.

gov/Briefing/Wheat/consumption.htm15 Ver nota 2.16 Uma vez que os metais primários são comercializados na Bolsa de Metais de Londres, a Bloomberg

não teve informação sobre os contratos em aberto anterior a 2005. Uma vez que os preços e os

contratos em aberto têm subido de forma estável nos últimos cinco anos, utilizámos 2005 e fizemos

uma estimativa conservadora para os contratos em aberto de 2005. Estes são números diários para os

quais se fez uma média ao longo de todo o ano.

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241

Valor médio diário dos contratos em aberto em milhões de dólares

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008Cacau 1815 1510 1569 1883 2040 2069 4062Café 1408 1693 2748 3769 4203 6308 9521Milho 5435 5118 8182 7657 15059 23763 37427Algodão 1646 2990 2645 2841 4259 6822 11689Óleo de soja 1441 1952 2456 1944 3186 5756 8868Soja em grão 4883 7306 9480 8846 10129 20882 37399Açúcar 1521 1712 2772 5120 8634 8174 15509Trigo 1836 1862 2647 3827 7414 11608 19742Trigo KC 1304 1081 1240 1525 3099 4094 6253Gabo bovino 540 757 804 1298 1518 1409 1818Gado suíno 602 858 1873 2309 3285 3875 4465Gado bovino vivo 2670 3595 3556 4859 6701 7909 8764Crude de brent 6556 8486 12620 19388 31094 45653 52832Wti crude 16052 20400 33620 55297 80996 130669 199970Gasóleo 3990 3695 5461 10196 14749 21006 22917Nafta 4412 5105 8242 11838 13575 17903 23854Gasolina 3714 3947 7304 10276 11366 16085 24213Gás natural 23551 27812 25897 42427 45067 54075 72834Alumínio 0 0 0 12286 23676 27589 32741Chumbo 0 0 0 677 981 2226 2134Níquel 0 0 0 1986 4415 6690 6608Zinco 0 0 0 2696 6759 6917 6428Cobre 0 0 0 11864 26516 28921 32717Ouro 5639 9851 13221 13860 18929 24891 43700Prata 1976 2438 3745 4286 6447 7437 12935Total 90981 112168 150082 242955 354097 493382 699400

Nota : Não há estatísticas para os metais de base entre 2002 e 2004.Fonte : CFTC.

17 CIA World Factbook, disponível em https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/

geos/xx.html#Econ.18 Não há informação disponível ao público acerca dos influxos oriundos de estratégias baseadas na

indexação de matérias-primas, mas podem fazer-se algumas aproximações. Os números relativos

ao ‘investimento’ no final do ano são publicados pelas respectivas empresas de índices (ou podem

ser calculados) e o desempenho anual é conhecido. Assim, pode calcular-se qual foi o aumento ou

decréscimo do investimento do ano anterior. Isto significa que a diferença na variação anual só pode

vir dos influxos líquidos. Quando os influxos ao longo do ano não são conhecidos, assumiu-se que

os influxos líquidos ocorreram da mesma forma ao longo do ano. Alterar os pressupostos quanto à

calendarização dos influxos líquidos apenas afecta a taxa de crescimento para os influxos desse ano, o

que nunca vai além de alguns biliões de dólares de diferença.

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242

Fluxos anuais de entrada estimados em dólares

S&P-GSCI DJ-AIG TOTAL

2004 16,2 8,9 25,12005 4,8 12,4 17,22006 28,3 11,3 39,62007 14,7 15,4 30,12008 35,1 20 55,1TOTAL 99,1 68 167,1

19 Ibidem.20 O quadro seguinte é uma boa referência na comparação de comportamentos e objectivos entre os

diferentes agentes no mercado:

Tipos de Participantes nos mercados de futuros

Hedger Especulador de fundos de Índices Especulador TradicionalProtecção contra o risco de preço Assume o risco de preço Assume o risco de preçoProtege posição subjacente Ganha com o movimento dos preços Ganha com o movimento dos preçosConsume liquidez Consome liquidez Fornece liquidezSensível ao preço Insensível ao preço Sensível ao preçoAssume posições longas ou curtas Somente posição longa Assume posições longas ou curtas

21 “E isso aconteceu de facto em 1991 com um certo dealer de swaps que estava a fazer a cobertura de

risco (hedging) de uma transacção fora de Bolsa (OTC) com um fundo de pensões, que veio até nós

e a quem dissemos que ‘sim, essa transacção pode beneficiar de uma isenção de cobertura de risco’,

pelo que a concedemos. Nestes anos desde essa ocasião temos feito o mesmo para outros dealers de

swaps”. (Comentários de Don Heitman, Division of Market Oversight, CFTC Agricultural Advisory

Committee Meeting, Washington, D.C., 6 de Dezembro de 2007, disponível em http://www.cftc.gov/

stellent/groups/public/@aboutcftc/documents/file/aac_12062007.pdf ).22 “Commodities: Who’s Behind the Boom?”, Gene Epstein, Barron’s, 31 de Março de 2008.23 Isenções de cobertura de risco semelhantes foram subsequentemente concedidas noutros casos nos

quais as posições dos futuros compensavam claramente os riscos relacionados com os swaps ou posições

OTC semelhantes envolvendo matérias-primas tomadas individualmente e índices de matérias-

primas. Estas coberturas de risco não tradicionais estavam todas sujeitas a limitações específicas com o

objectivo de proteger o mercado de potenciais efeitos nefastos. As limitações incluíam: (1) as posições

dos futuros têm que compensar o preço de risco específico; (2) o valor em dólares das posições de

futuros não seria maior que o valor do risco subjacente; e (3) as posições de futuros não seriam levadas

para o mês em que vencem.” (72 FR 66097, Notice of Proposed Rulemaking, Risk Management

Exemption From Federal Speculative Position Limits, 7 de Novembro de 2007, disponível em http://

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243

www.cftc.gov/stellent/groups/public/@lrfederalregister/documents/file/e7-22992a.pdf ) (A linguagem

do documento 72 FR 66097 acima também aparece em 71 FR 35627, CFTC Request for Comments,

Comprehensive Review of the Commitments of Traders Reporting Program, 21 de Junho de 2006,

disponível em http://www.cftc.gov/foia/fedreg06/foi060621a.htm).24 (72 FR 66097, Notice of Proposed Rulemaking, Risk Management Exemption From Federal

Speculative Position Limits, 7 de Novembro de 2007, disponível em http://www.cftc.gov/stellent/

groups/public/@lrfederalregister/documents/file/e7-22992a.pdf ).25 “CFTC Study Finds Independent-Moving Commodity and Equity Markets”, 19 de Dezembro

de 2007, disponível em http:// www.cftc.gov/newsroom/generalpressreleases/2007/pr5425-07.html

http://www.cftc.gov/stellent/groups/public/@aboutcftc/documents/file/amarketofone.pdf.26 Os consultores de fundos de pensões têm vindo a defender afectações de carteira entre 5 e 12% a índices de

matérias-primas. Considerando que os activos institucionais são cerca de 29 milhões de milhões de dólares, caso

os investidores institucionais sigam o conselho dos seus consultores a multiplicação do índice poderá facilmente

atingir 1 milhão de milhão de dólares americanos, o que sobre 29 milhões de milhões significaria uma afectação

média de apenas 3,5%. “Investing in Collateralised Commodities Futures”, Russell David Rae, 2005; “Strategic

Asset Allocation and Commodities”, Ibbotson Associates, Thomas M. Idzorek, 27 de Março de 2006; Pension

Funds $26 trillion: “UK pension fund returns at five-year low”, IFAonline, Jennifer Bollen, 28 de Janeiro de

2008, disponível em http://www.ifaonline.co.uk/public/showPage.html?page=698204; Sovereign Wealth

Funds $3 trillion: “Sovereign Wealth Funds”, Council On Foreign Relations, Lee Hudson Teslik, 18 de Janeiro

de 2008, disponível em http://www.cfr.org/publication/15251/.27 “WFP afirma que os preços em alta dos bens alimentares são um tsunami silencioso, afectando todos

os continentes.” World Food Program-United Nations, 22 de Abril de 2008, disponível em http://

www.wfp.org/english/?ModuleID=137&Key=2820.

PARTE III

PONTO 3

1 Developing Countries, North-South Dialogue on Food Security and Energy Security, 17 de Junho de

2008, http://www.southcentre.org (acedido em 15 de Outubro de 2008).2 BBC World Service Poll, “Higher Food and Energy Prices are a Burden, Says Global Poll”, World

Public Opinion.org, 15 de Outubro de 2008, http://www.worldpublicopinion.org/pipa/pdf/oct08/

BBCFood_Oct08_rpt.pdf (acedido em 15 de Outubro de 2008).

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3 E.g. Matt Stenson, et al., “Responding to the Global Food Price Crisis”, CHF Partners in Rural

Development, 25 de Agosto de 2008, http://www.chf-partners.ca (acedido em 15 de Outubro de

2008).4 FAO Newsroom, “Hunger on the rise: Soaring prices add 75 million people to global hunger rolls”,

2008, http://www.fao.org/newsroom/en/news/2008/1000923/ (acedido em 15 de Outubro de 2008).5 Claudia Carpenter, “Gordon Ramsay Chocolates Buyer Says Speculators ‘Stole’ Market”, Bloomberg,

11 de Setembro de 2008.6 The Brock Report, “The Money Game Continues”, 1 de Agosto de 2008.7 Agribusiness Accountability Initiative, “Time to act on food price speculation”, 21 de Abril de 2008,

http://www.agribusinessaccountability.org (acedido em 15 de Outubro de 2008).8 Arabella Fraser and Frederic Mousseau, “The Time is Now: how world leaders should respond to the

food price crisis”, Oxfam International, 2008, http://www.oxfam.org (acedido em 15 de Outubro de

2008).9 U.N. Conference on Trade and Development, Trade and Development Report, 2008, pp. iv-v, http://

www.unctad.org/en/docs/tdr2008fas_en.pdf (acedido em 15 de Outubro de 2008).10 FAO, “FAO Market Summaries,” Food Outlook, Junho de 2008, http://www.fao.org/docrep/010/

ai466e/ai466e13.htm (acedido em 15 de Outubro de 2008).11 FAO, “Volatility in Agricultural Commodities: An Update,” Food Outlook, Junho de 2008, http://

www.fao.org/docrep/010/ai466e/ai466e13.htm (acedido em 15 de Outubro de 2008).12 Jacqui Fatka, “Industry fights to prevent financial grain crisis” , Feedstuffs, 7 Abril de 2008.13 Commodities Futures Trading Commission, “The CTFC Glossary: A Guide to the Language of the

Futures Industry,” Julho de 2006, http://www.cftc.gov (acedido em 15 de Outubro de 2008).14 Sally Schuff, “Ag futures in spotlight”, Feedstuffs, 14 Julho de 2008.15 Commodities Futures Trading Commission, “The CTFC Glossary: A Guide to the Language of the

Futures Industry,” Julho de 2006, http://www.cftc.gov (acedido em 15 de Outubro de 2008).16 Diana Henriques, “Odd Crop Prices Defy Economics”, The New York Times, 28 de Março de 2008.17 FAO, “Volatility in Agricultural Commodities: An Update”, Food Outlook, Junho de 2008, http://

www.fao.org/docrep/010/ai466e/ai466e13.htm (acedido em 15 de Outubro de 2008).18 House Committee on Agriculture, National Grain and Feed Association Testimony, 11 de Julho de

2008, http://www.ngfa.org (acedido em 15 de Outubro de 2008).19 UN Conference on Trade and Development, “Overview of The World’s Commodity Exchanges”, 31

de Janeiro de 2006, 33.

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20 Michael W. Masters and Adam K. White, “How Institutional Investors Are Driving Up Food and

E nergy Prices”, 31 de Julho de 2008, 20, http://www.accidentalhuntbrothers.com (acedido em 15 de

Outubro de 2008).21 Stephen La Baton, “Agency’s ’04 Rule Let Banks Pile Up New Debt, and Risk”, The New York Times,

3 de Outubro de 2008.22 Richard Gibson, “Buffet Warns about Derivatives”, The Wall Street Journal, 4 de Março de 2003.23 UN Conference on Trade and Development, “Overview of The World’s Commodity Exchanges”, 31

de Janeiro de 2006, 7.24 House Committee on Agriculture, “Bipartisan Measure Increasing Market Transparency Passes 283-133”

press release, 18 de Setembro de 2008, http://agriculture.house.gov/list/press/agriculture_dem/pr_091808_

HR6604.html. Ver também http://agriculture.house.gov/inside/Legislation/110/CMTAA.pdf.25 Jacqui Fatka, “House approves bill to rein in speculative positions”, Feedstuffs, 22 de Setembro

de 2008.26 E.g. Gregory Zerzan, Testimony before the House Committee on Agriculture, International Swaps

and Derivatives Association, 10 de Julho de 2008, 4, http://agriculture.house.gov/testimony/110/

h80710/zerzan.pdf (acedido em 15 de Outubro de 2008).27 Javier Blas, “Oil falls below $75 a barrel on global concerns”, Financial Times, 15 de Outubro de 2008.28 Michael W. Masters and Adam K. White, “How Institutional Investors Are Driving Up Food and

Energy Prices”, 31 de Julho de 2008, 9, http://www.accidentalhuntbrothers.com (acedido em 15 de

Outubro de 2008).29 Senate Committee on Homeland Security and Governmental Affairs, Testimony of Jeffrey Harris,

20 de Maio de 2008, 2, http://hsgac.senate.gov/public/_files/052008Harris.pdf (acedido em 15 de

Outubro de 2008).30 Michael W. Masters and Adam K. White, “How Institutional Investors Are Driving Up Food and

Energy Prices”, 31 de Julho de 2008, 8, http://www.accidentalhuntbrothers.com (acedido em 15 de

Outubro de 2008).31 House Committee on Agriculture, Testimony of Congressman Bart Stupak, 9 de Julho de 2008, 4,

http://agriculture.house.gov/hearings/statements.html (acedido em 15 de Outubro de 2008).32 Michael W. Masters and Adam K. White, “How Institutional Investors Are Driving Up Food and

Energy Prices”, 31 de Julho de 2008, 9, http://www.accidentalhuntbrothers.com (acedido em 15 de

Outubro de 2008).33 Gillian Tett, “Commodity prices fall?: Surely not”, Financial Times, 24 de Abril de 2008.

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34 The Brock Report, “The Money Game Continues”, 1 de Agosto de 2008.35 Senate Committee on Homeland Security and Governmental Affairs, Testimony of Michael Masters,

20 de Maio de 2008, 14, http://hsgac.senate.gov/public/_files/052008Masters.pdf (acedido em 15 de

Outubro de 2008).36 Javier Blas, “Long term damage feared in commodities fall”, Financial Times, 3 de Setembro de

2008.37 Sam Zuckerman, “How investors inflate commodities’ bubbles”, San Francisco Chronicle, 18 de

Agosto de 2008; Ianthe Jeanne Dugan, “Report Faults Speculators For Volatility in Oil Prices”, The

Wall Street Journal, 10 de Setembro de 2008.38 Wallace Tyner, Philip Abbot and Christopher Hurt, “What’s Driving Food Prices?”, Farm

Foundation, 23 de Julho de 2008, p. 6 e pp. 26-27, http://www.farmfoundation.org/news/

articlefiles/404-FINAL%20WDFP%20REPORT%207-28-08.pdf (acedido em 15 de Outubro de

2008).39 Dwight R. Sanders, Scott H. Irwin and Robert P. Merrin, “The Adequacy of Speculation in

Agricultural Futures Markets: Too Much of a Good Thing?”, Market and Outlook Research Report

2008-02, University of Illinois at Urbana-Champaign, Junho de 2008, 13, http://www.farmdoc.uiuc.

edu/marketing/morr/morr_archive.html (acedido em 15 de Outubro de 2008).40 Thomas Lines, “Market Power, Price Formation and Primary Commodities”, South Centre,

Novembro de 2006.41 Michael W. Masters e Adam K. White, “How Institutional Investors Are Driving Up Food and

Energy Prices”, 31 de Julho de 2008, 9-11, http://www.accidentalhuntbrothers.com (acedido em 15 de

Outubro de 2008).42 U.N. Conference on Trade and Development, “Tackling the global food crisis”, UNCTAD Policy

Briefs, N.º 2, Junho de 2008.43 House Committee on Agriculture, Testimony of Congressman Bart Stupak, U.S. House of

Representativess to the House Agriculture Committee to review legislation amending the Commodity

Exchange Act, 9 de Julho de 2008, 4, http://agriculture.house.gov/hearings/statements.html (acedido

em 15 de Outubro de 2008).44 Ellen Gould, “Financial Instability and the GATS Negotiations”, Canadian Centre for Policy

Alternatives. Trade and Investment Series, vol. 9, N.º 4. Julho de 2008, http://www.policyalternatives.

ca/documents/National_Office_Pubs/2008/Financial_Instability_and_GATS.pdf (acedido em 15 de

Outubro de 2008).

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45 Kanaga Raja, “Role of UN in rebuilding financial multilateralism”, SUNS email edition, n.º 6577,

28 de Outubro de 2008.46Jeremy Grant, “LSE focuses on dark arts of trading”, Financial Times, 27 de Junho de 2008, and

oil analyst Mike Rothman citado num programa da rádio BBC em http://news.bbc.co.uk/1/hi/

programmes/file_on_4/74098659.stm.47 Joachim Braun et al., “The What, Who and How of Proposed Policy Actions”, International Food

Policy Research Institute, Maio de 2008, 9, http://www.ifpri.org (acedido em 15 de Outubro de

2008).48 Joachim von Braun and Maximo Torero, “Physical and Virtual Global Food Reserves to Protect the

Poor and Prevent Market Failure”, International Food Policy Research Institute, Junho de 2008, 1,

http://www.ifpri.org (acedido em 15 de Outubro de 2008).49 Neil MacFarquhar, “Upheaval on Wall St. Stirs Anger in the U.N.”, The New York Times, 24 de

Setembro de 2008.50 Javier Blas e Jeremy Grant, “Rush to put private commodities contracts on exchanges”, Financial

Times, 12 de Outubro de 2008.

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Ciclo organizado pelos docentes da disciplina de Economia Internacional

da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Colaboração do Núcleo de Estudantes de Economia da Associação Académica de Coimbra

Apoio da Coordenação do Núcleo de Economia da FEUC

Com o apoio das instituições:

Reitoria da Universidade de Coimbra

Teatro Académico de Gil Vicente

Caixa Geral de Depósitos

Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

2008 - 2009

Economia Global, Mercadorização e Interesses Colectivos

Textos seleccionados, traduzidos e organizados por:

Júlio Mota, Luís Peres Lopes e Margarida Antunes

A Comissão Organizadora agradece :

Teresa Santos ( TAGV)

António Gama (FLUC)

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"O MUNDO NÃO SERÁ DESTRUÍDO PELOS QUE LHE FAZEM MAL MAS,

SIM, POR AQUELES QUE OS OLHAM E SEM NADA FAZER"

ALBERT EINSTEIN

"NÃO HÁ DÚVIDA NENHUMA, O AUMENTO DO AFLUXO DE CAPITAL

[ESPECULATIVO] NOS PRODUTOS BÁSICOS FEZ SUBIR OS PREÇOS"

GOLDMAN SACHS - 5 DE MAIO DE 2008

"A ENTRADA DE NOVOS ESPECULADORES FINANCEIROS

NOS MERCADOS MUNDIAIS DE PRODUTOS BÁSICOS ESTÁ A ALIMENTAR

A SUBIDA DRAMÁTICA DOS PREÇOS"

GREENWICH ASSOCIATES - MAIO DE 2008

"A AGRICULTURA PODERIA ALIMENTAR O DOBRO DA HUMANIDADE"

JEAN ZIEGLER, EX-RELATOR ESPECIAL DA ONU

"CADA AUMENTO DE UM PONTO PERCENTUAL

DO PREÇO DOS ALIMENTOS BÁSICOS DESLOCA 16 MILHÕES DE

PESSOAS SUPLEMENTARES PARA A CATEGORIA DE SUBALIMENTADOS"

OLIVIER SCHUTTER, RELATOR ESPECIAL DA ONU