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A INTERCULTURALIDADE EM QUESTÃO: REFLEXÕES A PARTIR DO ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR SANTOS, Ana Paula da Silva Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC/RJ SILVA, Rita de Cassia de Oliveira e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC/RJ Resumo A Educação Física, enquanto prática pedagógica, vem assumindo os desafios impostos pela diferença no âmbito educacional. Propostas classificatórias e excludentes não mais atendem à demanda deste componente curricular frente a tais desafios. Neste contexto, apesar de possibilitar aos indivíduos interagir entre si, relacionando-se através da expressão do movimento, a Educação Física também pode ser responsável por reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados de corpos, atitudes e comportamentos. Neste sentido, este estudo teve como objetivo compreender como a diferença é tratada e questionada nas aulas de Educação Física em uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública e como a formação de professores/as está impregnada (ou não) pelas demandas advindas desta prática pedagógica. Como instrumentos metodológicos utilizamos entrevista coletiva com os/as alunos/as, entrevista semi-estruturada com o professor, observação destas aulas, as anotações das narrativas e comportamentos considerados significantes e a observação das aulas de um curso de formação de professores. Como descoberta relevante evidenciamos que a diferença, embora de forma tênue, já começa a adentrar os espaços da prática pedagógica da Educação Física, assim como os cursos de formação.Assim, acreditamos que relacionar a perspectiva intercultural ao ensino de Educação Física, seja na prática pedagógica ou nos cursos de formação inicial, possibilita refletir sobre as desigualdades presentes no espaço escolar e construir propostas de intervenção que viabilizem a superação de preconceitos e discriminações. Um ensino que considere o universo cultural dos estudantes, abrindo espaço para a diversidade de gênero, etnia, classe social e raça presentes na sociedade contemporânea. Palavras-chave: Educação Física, Diferença e Interculturalidade Introdução A questão da diferença vem apresentando na nossa sociedade cada vez mais visibilidade e se manifesta de diversas formas, desde as questões étnicas, de gênero, orientação sexual e classe social, até mesmo as questões religiosas, modos de expressão e saberes. As problemáticas são múltiplas, especialmente visibilizadas por grupos considerados desprestigiados culturalmente que buscam a sua legitimação através da Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 00552

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A INTERCULTURALIDADE EM QUESTÃO: REFLEXÕES A PARTIR DO

ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

SANTOS, Ana Paula da Silva

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ

SILVA, Rita de Cassia de Oliveira e

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ

Resumo

A Educação Física, enquanto prática pedagógica, vem assumindo os desafios

impostos pela diferença no âmbito educacional. Propostas classificatórias e excludentes

não mais atendem à demanda deste componente curricular frente a tais desafios. Neste

contexto, apesar de possibilitar aos indivíduos interagir entre si, relacionando-se através

da expressão do movimento, a Educação Física também pode ser responsável por

reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados

de corpos, atitudes e comportamentos. Neste sentido, este estudo teve como objetivo

compreender como a diferença é tratada e questionada nas aulas de Educação Física em

uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública e como a formação

de professores/as está impregnada (ou não) pelas demandas advindas desta prática

pedagógica. Como instrumentos metodológicos utilizamos entrevista coletiva com os/as

alunos/as, entrevista semi-estruturada com o professor, observação destas aulas, as

anotações das narrativas e comportamentos considerados significantes e a observação das

aulas de um curso de formação de professores. Como descoberta relevante evidenciamos

que a diferença, embora de forma tênue, já começa a adentrar os espaços da prática

pedagógica da Educação Física, assim como os cursos de formação.Assim, acreditamos

que relacionar a perspectiva intercultural ao ensino de Educação Física, seja na prática

pedagógica ou nos cursos de formação inicial, possibilita refletir sobre as desigualdades

presentes no espaço escolar e construir propostas de intervenção que viabilizem a

superação de preconceitos e discriminações. Um ensino que considere o universo cultural

dos estudantes, abrindo espaço para a diversidade de gênero, etnia, classe social e raça

presentes na sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Educação Física, Diferença e Interculturalidade

Introdução

A questão da diferença vem apresentando na nossa sociedade cada vez mais

visibilidade e se manifesta de diversas formas, desde as questões étnicas, de gênero,

orientação sexual e classe social, até mesmo as questões religiosas, modos de expressão

e saberes. As problemáticas são múltiplas, especialmente visibilizadas por grupos

considerados desprestigiados culturalmente que buscam a sua legitimação através da

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denúncia de injustiças, discriminações e desigualdades reivindicando igualdade e

reconhecimento político e cultural.

Neste universo, a educação estabelece uma relação profunda com a cultura, não

podendo ser analisada sem que haja uma profunda relação. Corroborando com tal

proposição, Candau (2008, p.13) afirma:

[...] não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto

que se situa. Neste sentido, não é possível conceber uma experiência

pedagógica ‘desculturizada’, isto é, desvinculada totalmente das questões

culturais da sociedade (CANDAU, 2008, p. 13).

A referida autora destaca também que, em tempos atuais, a consciência do caráter

homogeneizador e monocultural da escola é cada vez mais profundo, assim como, de uma

forma até contraditória, a consciência da necessidade de romper com esta e construir

práticas em que as questões relacionadas à diferença e ao multiculturalismo sejam

reconhecidas.

A Educação Física como campo de conhecimento, apesar de possibilitar aos

indivíduos interagir entre si, relacionando-se através da expressão do movimento,

também pode ser responsável por reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que

privilegiam modelos homogeneizados de corpos, atitudes e comportamentos que

colaboram para silenciar as vozes de grupos discriminados historicamente.

Deste modo, os indivíduos se apropriam de um repertório gestual que caracteriza

a cultura corporali na qual estão inseridos, onde a brincadeira, o jogo, o esporte, a dança,

a luta e a ginástica podem ser entendidos como elementos constitutivos da identidade

cultural de seus praticantes (NEIRA, 2011).

Reconhecendo a importância pedagógica e política do comprometimento em

formar identidades culturais abertas e sensíveis à diferença (CANEN, 2008), é

fundamental pensar na construção de currículos no campo da Educação Física que

rompam com princípios tradicionais da área caracterizados por serem elitistas,

excludentes, classificatórios e monoculturais.

Desta forma, como salienta Neira (2011), com aulas focadas nas habilidades

motoras, na aprendizagem do gesto esportivo ou nas visões monoculturais de saúde e

cuidados com o corpo, dificilmente o currículo possibilitará a construção de

subjetividades abertas à diversidade cultural.

Dentro deste contexto, algumas questões nos parecem urgentes para a prática

pedagógica da Educação Física: por que ainda nos deparamos com propostas

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competitivas e excludentes? Por que as questões relacionadas à diferença e diversidade

cultural ainda são tão incipientes no campo? De que forma os/as professores/as podem

promover em suas práticas, oportunidades inclusivas, transformadoras, valorizadoras da

diferença e que desnaturalizem e questionem preconceitos e discriminações? Como a

formação de professores/as pode contribuir para uma futura prática pedagógica sensível

para as questões culturais?

Para tanto, foram analisadas duas propostas: a prática pedagógica de um professor

de Educação Física atuante na Rede Pública de Ensino do Rio de Janeiro e um curso de

formação de professores/as de Educação Física, localizado na mesma cidade.

Procuramos a partir destes dados, compreender como a diferença é tratada e

questionada nas aulas da referida disciplina em turmas de 5º ano do Ensino Fundamental

e como a formação de professores/as é impregnada (ou não) pelas demandas advindas

desta prática pedagógica.

Educação Física e tendências pedagógicas: onde fica a “diferença”?

Entendendo a Educação Física como integrante da educação geral de todo/a

educando/a desde a Educação infantil até o Ensino médio, acredita-se que ela tenha

características diferenciadas dos outros campos do conhecimento, pois em suas aulas, os

indivíduos parecem estar mais livres das limitações impostas pelas carteiras, cadeiras,

mesas e salas escolares.

Entretanto, se, por um lado, a Educação Física representa este espaço

potencialmente transformador e diferenciado na educação escolar, por outro, tem sido

estruturada por uma visão competitiva, construída historicamente, deixando-se, não raro,

penetrar por perspectivas hegemônicas de uma sociedade que privilegia modelos

padronizados de corpo, êxito e individualismo.

No Brasil, a Educação Física apareceu associada aos ideais eugênicos de

regeneração e embranquecimento da raça. Tal concepção foi sendo difundida em

congressos médicos, propostas pedagógicas e em discursos políticos, tornando-se, assim,

um poderoso instrumento nas mãos da burguesia para justificar seu domínio de classe em

busca do progresso. A explicação biológica aprisionava o indivíduo em determinados

espaços de classe e papéis sociais, garantindo-se, deste modo, a ordem social vigente. Os

discursos presentes nestes currículos enfatizavam padrões de feminilidade,

masculinidade, classe social e etnia desprezando qualquer outra possibilidade (NEIRA,

2011, SOARES, 2012).

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De acordo com Ghiraldelli Jr (1992), o viés higienista da Educação Física é

fortemente evidenciado nos anos finais do Império até a primeira república. Esta

tendência defendia a ênfase na questão da saúde, ou seja, a ginástica, o jogo, os esportes

em geral, tinham o objetivo de disciplinar os hábitos das pessoas no sentido de levá-las a

se afastarem de práticas que pudessem deteriorar sua saúde e também os aspectos morais,

comprometendo assim a “vida coletiva”.

A Educação Física militarista (década de 1930 e meados da década de 40),

segundo Ghiraldelli Jr (1992), destacava o seu papel na formação do homem obediente e

adestrado. A ideia central de tal concepção era o “aperfeiçoamento da raça” seguindo as

determinações impostas pela “biologia nazifascista”, daí a Educação Física funcionar

como atividade aceleradora do processo de seleção natural. Até hoje vemos práticas que

nos remetem ao militarismo: a formação dos/as alunos/as em filas, o uso do apito, a defesa

da bandeira do país em jogos internacionais, são exemplos desta influência.

No período pós-guerra (1945 a 1964) surge a chamada Educação Física

Pedagogicista que inaugura formas de pensamentos que modificam a prática da Educação

Física: instauração da apologia da Educação Física enquanto “centro vivo” da escola

pública, ou seja, professores/as de Educação Física são, desde então, responsáveis pelas

particularidades educativas das quais as outras disciplinas, as chamadas “instrutivas” não

poderiam cuidar (GHIRALDELLI JR, 1992). Pode-se encontrar esta prática até hoje em

escolas públicas e privadas, causando um esvaziando e até menos a “menos valia” dos

conteúdos específicos da área de Educação Física.

A Educação Física nos anos 70 ganha um viés competitivista, vinculado ao grande

avanço científico nas áreas ligadas ao campo biomédico. Com isso, a Educação Física foi

utilizada para eliminar as críticas internas e para forjar o clima de prosperidade,

desenvolvimento e tranquilidade (GHIRALDELLI JR, 1992).

Romper com a lógica biológica e naturalizada se constitui como o grande desafio

da área a partir da década de 1980, época em que os primeiros sinais de resistências e

subversão a esse modelo hegemônico começam a surgir, impulsionados principalmente

pelos movimentos sociais e as teorias críticas. As chamadas abordagens de Educação

Física escolar surgiram com objetivo de combater o viés competitivista e excludente

presente até então.

Mas e a “diferença”, onde fica nesta história? Para Neira (2007), a prática

pedagógica do campo da Educação Física tem apresentado um grande vínculo com

interpretações instrumentais para o movimento humano o que caracterizaria seu ensino

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pela transmissão e reprodução de padrões preestabelecidos, retirados de elementos

culturais específicos (esportes), o que desencadeia a rejeição pelas diferenças técnicas

dos/as alunos/as ou ainda, o desenvolvimento de habilidades motoras (educação do

movimento) e perspectivas (educação pelo movimento), voltadas para o desempenho,

para o mérito e para o lazer funcional.

Concordamos com Daólio (2004) ao afirmar que a Educação Física pode e deve

ampliar seus horizontes, abandonando de vez a premissa de investigar o movimento

humano, o corpo físico ou o esporte na sua dimensão técnica, para tornar-se um campo

de atuação que considere o ser humano como ator cultural e social.

Neira (2007) adiciona que, como componente curricular, a Educação Física

precisa proporcionar aos/às alunos/as algo que lhes permita superar o saber construído e

vivido para além dos muros escolares. Ela tem de contribuir para a existência do

questionamento acerca dos saberes e a consolidação de um projeto de vida. O mesmo

autor vai além, sinaliza que a prática da Educação Física, em uma abordagem cultural,

visa proporcionar aos sujeitos da educação a oportunidade de conhecer mais

profundamente o seu repertório de cultural corporal ampliando-o e compreendendo-o.

além disso, visa também fornecer acesso a alguns códigos de comunicação de diversas

culturas, por meio da variedade de formas de manifestações corporais.

Em se tratando da formação dos/as professores/as de Educação Física em uma

perspectiva multicultural, estudos indicam (OLIVEIRA e SILVA, JANOÁRIO &

CANEN, 2007), a importância da formação inicial e continuada nas construções teóricas

e nas práticas pedagógicas dos/as professores/as que, segundo uma perspectiva

multicultural, podem implicar na sensibilização para a diversidade cultural de raça,

gênero, classe social e etnia.

Interculturalidade: uma luz no fim do túnel?

Segundo Candau e Russo (2011), a interculturalidade é concebida como uma

estratégia ética, política e epistêmica. Nesta perspectiva, através dos processos educativos

questiona-se a colonialidadeii presente na sociedade e na educação, desvela-se o racismo

e a racialização das relações, promove-se o reconhecimento de distintos saberes e

consolida-se o diálogo entre diferentes conhecimentos, combate-se as diferentes formas

de des-humanização, estimula-se a construção de identidades culturais e o

empoderamento de pessoas e grupos excluídos, favorecendo processos coletivos no que

diz respeito a projetos de vida pessoal e de sociedades “outras”.

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A educação intercultural é confrontada com as visões diferencialistas que visam

processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas. Procura superar a

versão essencialista das mesmas e parte da afirmação de que na nossa sociedade, os

processos de hibridização cultural são intensos e geradores da construção de identidades

móveis, abertas e em permanente construção. É ainda consciente dos mecanismos de

poder que permeiam as relações culturais e não desvincula as questões da diferença e da

desigualdade presentes na realidade contemporânea (CANDAU, 2010).

Para Oliveira &Daólio (2011), a educação intercultural trata-se de um movimento

em prol do aprender com o diferente e com ele produzir de forma coletiva. Não para

descartá-lo, nem para supervalorizar determinada cultura, inferiorizá-lo ou subjugá-lo,

mas para a efetivação de um diálogo igualitário, no qual diferentes vozes sejam ouvidas.

Adicionam que a possibilidade de enfrentamento das desigualdades de oportunidades,

estereótipos, preconceitos e sectarismos, ainda diluídos nos cotidianos escolares, dado

pela perspectiva intercultural de educação, aponta para outro tipo de relação social

escolar: o compartilhar democrático, pautado pelo diálogo mútuo entre diferentes

perspectivas.

Considerando a diversidade cultural como fator importante a ser pensado e

trabalhado para a concretização de uma educação de qualidadeiii, acreditamos que a

educação intercultural proposta com Candau (2010) nos possibilite enxergar o “outro”

em todas suas nuances e construções identitárias. Contudo, trata-se de uma perspectiva

que não pode ser vivenciada de forma estanque e apenas quando situações de preconceito

e discriminação ocorram. Necessita afetar todas as instâncias da educação, favorecendo

o constante diálogo entre os diferentes grupos, horizontalizando as relações.

Defendemos a educação intercultural como a perspectiva que pode nos oferecer

pistas e respostas para a realização de um processo educativo que contemple todos e todas

os/as discentes, respeitando suas identidades, dando possibilidades para um diálogo

verdadeiramente igualitário e inclusivo, permitindo assim que a escola possa ser

construída como um espaço de cruzamento de culturas e não como mantenedora de

desigualdades e silenciadora de identidades.

Pensando a diferença em “diferentes” contextos

Inspiradas na metodologia da pesquisa-ação, analisamos a prática pedagógica de

um professor de Educação Física e as aulas de uma turma de 5º ano em uma escola pública

do Rio de Janeiro. Os principais instrumentos metodológicos utilizados foram entrevista

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coletiva com os/as alunos/as, entrevista semi-estruturada com o professor, observação das

aulas e as anotações das narrativas e comportamentos nas aulas considerados

significantes.

Para Thiollent (2011) a pesquisa-ação é uma estratégia metodológica da pesquisa

social que além de ter uma ampla interação entre pesquisadores e pesquisados caminha

no sentido de promover ações concretas para solucionar os problemas detectados no

contexto em questão e aumentar o nível de consciência de todos os envolvidos.

Foi realizada também a técnica da observação, por um período de 2 semestres

letivos, das aulas de 5 disciplinas que compõem um curso de formação de professores/as

de Educação Física, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Procuramos refletir sobre

aspectos importantes do que Roberto Cardoso de Oliveira (2006) chama de “O Trabalho

do Antropólogo”: olhar, ouvir e escrever.

Oliveira (2006) argumenta que o olhar e o ouvir não podem ser tomados como

faculdades totalmente independentes no exercício da investigação. Ambas

complementam-se e auxiliam ao/à pesquisador/a a tomar conhecimento da realidade

estudada. Assim como o olhar, o ouvir deve estar preparado para eliminar todos os

“ruídos” que lhe pareçam insignificantes, isto é, que não façam sentido para os fins da

pesquisa, dentro do corpo teórico da disciplina formadora ou para o paradigma no interior

do qual o/a pesquisador/a foi treinado.

A prática pedagógica do professor de Educação Física

O professor de Educação Física pesquisado é recém-formado e com um ano de

experiência na educação básica, mostrou-se interessado e motivado em atuar como sujeito

participante do estudo. Através de uma conversa inicial percebemos em sua fala que as

relações entre os gêneros apareciam como mais marcantes no que se refere a questão da

diferença no espaço da aula e,a seu ver, a turma apresentava uma nítida separação entre

os gêneros: “No momento em que eles vem para aula você percebe nitidamente o grupo

das meninas e dos meninos...conversando...separadamente. E isso prossegue até o

momento que você intervém...se você deixar eles vão assim até o final da aula...poucos

são os meninos e as meninas que tentam interagir em outros grupos”.

Sobre este fato, Louro (2003) afirma que a separação de meninos e meninas é,

muitas vezes, estimulada pelas atividades escolares que dividem grupos de estudo ou

propõem competições.

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Ao ser perguntado sobre a importância de tratar de assuntos ligados as questões

de gênero na prática pedagógica, o referido professor percebe a escola como espaço de

formação de valores mais igualitários entre homens e mulheres: “A escola tem um papel

muito importante, pois pode possibilitar a participação de meninos e meninas em

atividades em conjunto...e o professor acaba tendo um papel crucial pois ele vai ser o

mediador desta situação”.

A escola é considerada umas das instituições reprodutoras de ideologias sexistas.

De acordo com Louro (2003, p.61): “gestos, movimentos, sentidos são produzidos no

espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se partes de seus corpos”.

Porém, esta mesma escola que reproduz, pode contribuir para a superação e

transformação de concepções preconceituosas e discriminatórias com relação às

diferenças de raça, etnia, classe social e gênero.

Em relação à prática pedagógica da Educação Física, a organização do presente

estudo englobou 10 aulas com 2 tempos de 50 minutos cada,totalizando 20 tempos de

aulas, que tiveram como participantes o professor de Educação Física, a turma de 5º ano

e, nós pesquisadoras.

Dentre estas aulas, destacamos as referentes à temática futebol como aquelas em

que a diferença a partir da categoria gênero, teve grande relevância. Nestas aulas, tivemos

como objetivo identificar e superar preconceitos relacionados ao gênero.

Dentre as palavras e expressões citadas pelos/as alunos/as, algumas nos

despertaram interesse por estarem vinculadas à questão de gênero como “futebol é coisa

de homeme as meninas não sabem jogar futebol porque elas são fracas”.

Argumentamos que tais afirmações eram pautadas em construções

preconceituosas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher na sociedade e que cabia

aos sujeitos escolherem suas práticas corporais sem que por esse motivo pudessem sofrer

algum tipo de preconceito ou discriminação.

Após sucessivas mediações, grande parte da turma aceitou participar em conjunto

na aula o que possibilitou discussão, reflexão e ressignificação de atitudes e

comportamentos nas relações entre os/as estudantes.

O relato do professor de Educação Física mostrou a importância atribuída a

intervenções pedagógicas sensíveis a questão da diferença: “É importante trabalhar as

questões de gênero nas aulas de Educação Física, pois mesmo havendo resistência por

parte dos alunos, eles apresentam a consciência sobre o respeito às diferenças e à

diversidade. A intervenção do professor é fundamental, pois se o professor não intervir

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nos momentos de conflito haverá a perpetuação do preconceito e da divisão por gênero,

pois estão coisas que já estão enraizadas na sociedade”.

A formação dos/as professores/as de Educação Física

A partir da observação realizada acerca de cinco disciplinas que compõem o curso

de formação em questão, podemos perceber alguns aspectos importantes para a reflexão

acerca da diversidade cultural.

Dentre as cinco disciplinas observadas, 2 são eminentemente teóricas e 3

apresentam aulas teóricas e práticas. As duas disciplinas teóricas são lecionadas pelo

mesmo professor. São atores deste momento da pesquisa: 3 mulheres e 1 homem. São 4

disciplinas obrigatórias e 1 eletiva para o curso de licenciatura em Educação Física. Cabe

salientar que a instituição também oferece o curso de graduação/bacharelado em

Educação Física e sendo assim, as disciplinas observadas também contam com a

participação de alunos/as deste curso, não tendo o professor ou professora qualquer

controle quanto à procedência acadêmica do curso. As disciplinas são em sua maioria,

oferecidas a alunos/as que estejam cursando a partir do 4º período e uma delas é oferecida

já no 1º, porém os/as alunos/as podem cursá-las a qualquer momento do curso uma vez

que as mesmas não apresentam pré-requisitos para sua participação.

Conteúdos ligados a diversidade cultural (diferença, pessoas com deficiência,

gênero e raça) são apresentados oficialmente em 2 disciplinas, a partir dos programas

oferecidos pelas professoras, aos/às educandos/as, embora as ementas das disciplinas,

presentes no site da instituição, não contemplem a temática.

Embora as disciplinas teóricas não contemplem oficialmente estas questões, elas

surgem cotidianamente nos debates acerca da formação destes/as futuros/as

professores/as e principalmente quando se discute a prática pedagógica dos/as

educadores/as físicos/as.

O professor que ministra duas disciplinas, entre as observadas, afirma que “o

professor de Educação Física não sabe e não está preparado para lidar com a diferença na

escola, ele às vezes até piora a situação”. Esta fala vai ao encontro do que Faria Júnior

(PIRES, 2006) salienta ao observar que o currículo de Educação Física teve sete anos de

atraso com relação à legislação e trinta anos às demais licenciaturas, no que diz respeito

à inserção das disciplinas pedagógicas efetivamente. Isso nos parece suficiente para

compreender uma possível dificuldade dos egressos dos cursos de Licenciatura em

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Educação Física, em lidar com as diferentes realidades encontradas nas escolas,

principalmente, nas instituições públicas de ensino.

Embora as questões ligadas à diferença e à diversidade não sejam contempladas

oficialmente em todas as disciplinas observadas, nas aulas práticas conflitos e discussões

surgem.

Em todas as disciplinas observadas, pelo menos em uma de suas aulas práticas

questões multiculturais surgem. São questões ligadas ao tema “gênero”,“Ah, mas as

meninas não tem habilidade pra isso”,“Os meninos têm mais força, então não vai valer”,

até discussões acerca do tema “raça”: “Não pega a bola preta não, senão na hora de dar o

nó você vai prender e nem vai ver mais seu próprio dedo”, “Marca o Neguebaiv”, “o

Negueba tá livre”.

Uma das disciplinas contempla de maneira ampla a preocupação com as pessoas

com deficiência, embora haja no curso uma disciplina que tem como objetivo discutir e

fornecer elementos para aulas direcionadas para este grupo.

Temas como “orientação sexual” são silenciados nas aulas, mas estão presentes

nos espaços informais da instituição, como corredores: “Não entendo bissexualidade, não

entendo isso, ou gosta de uma coisa, ou gosta de outra; “Enquanto elas faziam

escondidinho tava bom”.

Percebemos a partir das aulas observadas que as questões ligadas à diferença e à

diversidade cultural, embora de maneira tímida, estão presentes no curso de formação e

precisam ser mais amplamente explicitadas e discutidas, para que não sejamos

responsáveis pela manutenção do status quo. Muita ainda precisa ser feito, mas

percebemos que a preocupação com a diferença e a diversidade cultural já se encontra

presente na formação inicial de professores/as de Educação Física.

Algumas Considerações

Evidenciamos neste estudo que a diferença, embora de forma tênue, já começa a

adentrar os espaços da aula de Educação Física, seja como momento de questionamento

e reflexão, ou como momento de reafirmação de identidades. Em sua prática, o professor

de Educação Física mostrou preocupação em propor intervenções pedagógicas pautadas

na questão da diferença quando deparou-se com conflitos ocasionados pelas relações

entre os gêneros e as marcas da desigualdade que as imperam.

Em relação a análise das disciplinas do curso de formação em questão,

entendemos que a diferença também é abordada de forma incipiente, necessitando de

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maior discussão e reflexão contribuindo para formar futuros/as professores/as de

Educação Física com sensibilidade para as questões relacionadas à diversidade cultural.

Dentro do exposto, acreditamos que relacionar a perspectiva intercultural ao

ensino de Educação Física, seja na prática pedagógica ou nos cursos de formação inicial,

possibilita refletir sobre as desigualdades presentes no espaço escolar e construir

propostas de intervenção que viabilizem a superação de preconceitos e discriminações

através do reconhecimento, problematização e enfrentamento de desigualdades e

estereótipos presentes de forma naturalizada na escola e, especificadamente, nas aulas de

Educação Física.

Uma prática intercultural da Educação Física caminha em direção a um ensino

que considera o universo cultural dos estudantes, abrindo espaço para a diversidade de

gênero, etnia, classe social e raça presentes na sociedade contemporânea.

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iÀ cultura corporal são atribuídas as diferentes manifestações do esporte, do jogo, da ginástica, da dança e

da luta, cada uma dessas manifestações terá uma identidade cultural, sentido e significado diferentes na

cultura na qual ocorrem (NEIRA& NUNES, 2006). iiA colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno,

porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma

como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do

mercado capitalista mundial e a ideia de raça. Ainda que o colonialismo tenha precedido à colonialidade,

esta sobrevive após o fim do colonialismo. A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem,

nos critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas

aspirações dos sujeitos e em tantos outros aspectos da experiência moderna. Enfim, respira-se a

colonialidade na modernidade cotidianamente (MALDONADO-TORRES apud OLIVEIRA, 2010). iiiAqui entendemos educação de qualidade como aquela que apresenta como pano de fundo a diversidade

cultural (CANDAU, 2010). ivA palavra “Negueba” faz referência a um jogador de futebol negro e é utilizada como apelido dado a um

dos alunos da turma que tem a pele escura.

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