A Interpretação da Bíblia na Igreja_Completo

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  • 8/6/2019 A Interpretao da Bblia na Igreja_Completo

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    PONTIFCIA COMISSO BBLICA

    A INTERPRETAO DA BBLIA NA IGREJA

    NDICE

    INTRODUO

    I. MTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAO

    II. QUESTES DE HERMENUTICA

    III. DIMENSES CARACTERSTICAS DA INTERPRETAO CATLICA

    IV. INTERPRETAO DA BBLIA NA VIDA DA IGREJA

    CONCLUSO

    INTRODUO

    A interpretao dos textos bblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca importantesdiscusses. Elas adquiriram dimenses novas nestes ltimos anos. Dado importncia fundamental da Bblia

    para a f crist, para a vida da Igreja e para as relaes dos cristos com os fiis das outras religies, a PontifciaComisso Bblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito.

    A.Problemtica atual

    O problema da interpretao da Bblia no uma inveno moderna como algumas vezes se quer fazer crer. ABblia mesma atesta que sua interpretao apresenta dificuldades. Ao lado de textos lmpidos, ela comporta

    passagens obscuras. Lendo certos orculos de Jeremias, Daniel se interrogava longamente sobre o sentido deles(Dn 9,2). Segundo os Atos dos Apstolos, um etope do primeiro sculo encontrava-se na mesma situao a

    propsito de uma passagem do livro de Isaas (Is 53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intrprete (At8,30-35). A segunda carta de Pedro declara que nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretao

    particular (2Pd1,20) e ela observa, de outro lado, que as cartas do apstolo Paulo contm alguns pontosdifceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para sua

    prpria perdio (2Pd3,16).

    O problema , portanto, antigo mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo: doravante, para encontrar osfatos e palavras de que fala a Bblia, os leitores devem interpretao dificuldades acentuou atrs, o que no deixade levantar dificuldades. De outro lado, as questes de interpretao tornaram-se mais complexas nos temposmodernos devido aos progressos feitos pelas cincias humanas. Mtodos cientficos foram aperfeioados noestudo do textos da antiguidade. Em que proporo esses mtodos podem ser considerados apropriados interpretao da Sagrada Escritura? A esta questo a prudncia pastoral da Igreja durante muita tempo respondeu

    de maneira muito reticente, pois muitas vezes o mtodos, apesar de seus elementos positivos, encontravam-seligados a opes opostas f crist. Mas uma evoluo positiva se produziu, marcada por uma srie dedocumentos pontifcios, desde encclicaProvidentissimus Deus de Leo XIII (18 novembro 1893 at a encclicaDivino afflante Spiritude Pio XII (30 setembro 1943), e ela foi confirmada pela declarao Sancta Mater Ecclesie(21 abril 1964) da Pontifcia Comisso Bblica e sobretudo pele Constituio Dogmtica Dei Verbumdo ConcilioVaticano II (18 novembro 1965).

    http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#INTRODU%C3%87%C3%83Ohttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#I.%20M%C3%89TODOS%20E%20ABORDAGENS%20PARA%20A%20INTERPRETA%C3%87%C3%83Ohttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#II.%20QUEST%C3%95ES%20DE%20HERMEN%C3%8AUTICAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#III.%20DIMENS%C3%95ES%20CARACTER%C3%8DSTICAS%20DA%20INTERPRETA%C3%87%C3%83O%20CAT%C3%93LICAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#IV.%20INTERPRETA%C3%87%C3%83O%20DA%20B%C3%8DBLIA%20NA%20VIDA%20DA%20IGREJAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#CONCLUS%C3%83Ohttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_divino-afflante-spiritu_po.htmlhttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_divino-afflante-spiritu_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#INTRODU%C3%87%C3%83Ohttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#I.%20M%C3%89TODOS%20E%20ABORDAGENS%20PARA%20A%20INTERPRETA%C3%87%C3%83Ohttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#II.%20QUEST%C3%95ES%20DE%20HERMEN%C3%8AUTICAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#III.%20DIMENS%C3%95ES%20CARACTER%C3%8DSTICAS%20DA%20INTERPRETA%C3%87%C3%83O%20CAT%C3%93LICAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#IV.%20INTERPRETA%C3%87%C3%83O%20DA%20B%C3%8DBLIA%20NA%20VIDA%20DA%20IGREJAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#CONCLUS%C3%83Ohttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_divino-afflante-spiritu_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
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    Afecundidade desta atitude construtiva manifestou-se de uma maneira inegvel. Os estudos bblicos tiveram umprogresso notvel na Igreja catlica e o valor cientfico deles foi cada vez mais reconhecido no mundo dosestudiosos e entre os fiis. O dilogo ecumnico foi consideravelmente facilitado. A influncia da Bblia sobre ateologia se aprofundou e contribuiu renovao teolgica. O interesse pela Bblia aumentou entre os catlicos efavoreceu o progresso da vida crist. Todos aqueles que adquiriram uma formao sria nesse campo estimamdoravante impossvel retornar a um estado de interpretao pr-crtica, pois o julgam, com razo, claramenteinsuficiente.

    Mas, ao mesmo tempo em que o mtodo cientfico mais divulgado o mtodo histrico-crtico

    praticado correntemente em exegese, inclusive na exegese catlica, ele mesmo encontra-se em discusso: de umlado, no prprio mundo cientfico, pela apario de outros mtodos e abordagens, e, de outro lado, pelas crticasde numerosos cristos que o julgam deficiente do ponto de vista da f. Particularmente atento, como seu nome oindica, evoluo histrica dos textos ou das tradies atravs do tempo ou diacronia o mtodo histrico-crtico encontra-se atualmente em concorrncia, em alguns ambientes, com mtodos que insistem nacompreenso sincrnica dos textos, tratando-se da lngua, da composio, da trama narrativa ou do esforo de

    persuaso deles. Alm disso, o cuidado que os mtodos diacrnicos tm em reconstituir o passado, para muitos substitudo pela tendncia de interrogar os textos colocando-os em perspectivas do tempo presente, seja deordem filosfica, psicanaltica, sociolgica, poltica, etc. Essepluralismo de mtodos e abordagens apreciado

    por alguns como um indcio de riqueza, mas a outros ele d a impresso de uma grande confuso.

    Real ou aparente, essa confuso traz novos argumentos aos adversrios da exegese cientfica. O conflito dasinterpretaes manifesta, segundo eles, que no se ganha nada submetendo os textos bblicos s exigncias dosmtodos cientficos, mas, ao contrrio, perde-se bastante. Eles sublinham que a exegese cientfica obtm comoresultado o provocar perplexidade e dvida sobre inumerveis pontos que, at ento, eram admitidos

    pacificamente; que ele fora alguns exegetas a tomar posies contrrias f da Igreja sobre questes de grandeimportncia, como a concepo virginal de Jesus e seus milagres, e at mesmo sua ressurreio e sua divindade.

    Mesmo quando no finaliza em tais negaes, a exegese cientfica se caracteriza, segundo eles, pela suaesterilidade no que concerne o progresso da vida crist. Ao invs de permitir um acesso mais fcil e mais seguros fontes vivas da Palavra de Deus, ela faz da Bblia um livro fechado, cuja interpretao sempre problemticaexige tcnicas refinadas fazendo dela um domnio reservado a alguns especialistas. A estes, alguns aplicam afrase do Evangelho: Tomastes a chave da cincia! Vs mesmos no entrastes e impedistes os que queriamentrar! (Lc 11,52; cfMt23,13).

    Em conseqncia, ao paciente labor do exegeta cientfico estima-se necessrio substituir abordagens maissimples, como uma ou outra prtica de leitura sincrnica que se considera como suficiente, ou mesmo,renunciando a todo estudo, preconiza-se uma leitura da Bblia dita espiritual , entendendo-se pela expressouma leitura unicamente guiada pela inspirao pessoal subjetiva e destinada a alimentar esta inspirao. Alguns

    procuram na Bblia sobretudo o Cristo da viso pessoal deles e a satisfao da religiosidade espontnea que tm.Outros pretendem encontrar nela respostas diretas a toda sorte de questes, pessoais ou coletivas. Numerosas soas seitas que propem como nica verdadeira uma interpretao da qual elas afirmam terem tido a revelao.

    B. O objetivo deste documento

    H de se considerar seriamente, portanto, os diversos aspectos da situao atual em matria de interpretaobblica, de estar atento s crticas, s queixas e s aspiraes que se exprimem a esse respeito, de apreciar aspossibilidades abertas pelos novos mtodos e abordagens e de procurar, enfim, precisar a orientao que melhorcorresponde misso do exegeta na Igreja catlica.

    Esta a finalidade deste documento. A Pontifcia Comisso Bblica deseja indicar os caminhos que convmtomar para chegar a uma interpretao da Bblia que seja to fiel quanto possvel a seu carter ao mesmo tempohumano e divino. Ela no pretende tomar aqui posio sobre todas as questes que so feitas a respeito da Bblia,

    como por exemplo, a teologia da inspirao. O que ela quer examinar os mtodos suscetveis de contriburemcom eficcia a valorizar todas as riquezas contidas nos textos bblicos, a fim de que a Palavra de Deus possatornar-se sempre mais o alimento espiritual dos membros de seu povo, a fonte para eles de uma vida de f, deesperana e de amor, assim como uma luz para toda a humanidade (cfDei Verbum, 21).

    Para alcanar este fim, o presente documento:

    http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
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    1. far uma breve descrio dos diversos mtodos e abordagens, (1) indicando suas possibilidades e seus limites;

    2. examinar algumas questes de hermenutica;

    3. propor uma reflexo sobre as dimenses caractersticas da interpretao catlica da Bblia e sobre suasrelaes com as outras disciplinas teolgicas;

    4. considerar, enfim, o lugar que ocupa a interpretao da Bblia na vida da Igreja.

    I. MTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAO

    A.Mtodo histrico-crtico

    O mtodo histrico-crtico o mtodo indispensvel para o estudo cientfico do sentido dos textos antigos.Como a Santa Escritura, enquanto Palavra de Deus em linguagem humana , foi composta por autoreshumanos em todas as suas partes e todas as suas fontes, sua justa compreenso no s admite como legtimo,mas pede a utilizao deste mtodo.

    1.Histria do mtodo

    Para apreciar corretamente este mtodo em seu estado atual, convm dar uma olhada em sua histria. Certoselementos deste mtodo de interpretao so muito antigos. Eles foram utilizados na antiguidade porcomentadores gregos da literatura clssica e, mais tarde, durante o perodo patrstico, por autores como Orgenes,Jernimo e Agostinho. O mtodo era, ento, menos elaborado. Suas formas modernas so o resultado deaperfeioamentos, trazidos sobretudo desde os humanistas da Renascena e o recursus ad fontes deles. Enquantoque a crtica textual do Novo Testamento s pde se desenvolver como disciplina cientfica a partir de 1800,depois que se desligou do Textus receptus, os primrdios da crtica literria remontam ao sculo XVII, com aobra de Richard Simon, que chamou a ateno sobre as repeties, as divergncias no contedo e as diferenasde estilo observveis no Pentateuco, constataes dificilmente conciliveis com a atribuio de todo o texto a umautor nico, Moiss. No sculo XVIII, Jean Astruc contentou-se ainda em dar como explicao que Moiss tinhase servido de vrias fontes (sobretudo de duas fontes principais) para compor o Livro do Gnesis, mas, emseguida, a crtica contesta cada vez mais resolutamente a atribuio da composio do Pentateuco a Moiss. Acrtica literria identificou-se muito tempo com um esforo para discernir diversas fontes nos textos. assim quese desenvolveu, no sculo XIX, a hiptese dos documentos , que procura explicar a redao do Pentateuco.Quatro documentos, em parte paralelos entre si, mas provenientes de pocas diferentes, teriam sidoincorporados: o yahvista (J), o elohista (E), o deuteronomista (D) e o sacerdotal (P: do alemo Priester ); deste ltimo que o redator final teria se servido para estruturar o conjunto. De maneira anloga, para explicar aomesmo tempo as convergncias e as divergncias constatadas entre os trs Evangelhos sinticos, recorreram hiptese das duas fontes , segundo a qual os Evangelhos de Mateus e o de Lucas teriam sido compostos a

    partir de duas fontes principais: o Evangelho de Marcos de um lado e, de outro lado, uma compilao daspalavras de Jesus (chamada Q, do alemo Quelle , fonte ). Essencialmente estas duas hipteses so aindaaceitas atualmente na exegese cientfica, mas elas so objeto de contestaes.

    No desejo de estabelecer a cronologia dos textos bblicos, esse gnero de crtica literria se limitava a umtrabalho de cortes e de decomposio para distinguir as diversas fontes e no dava uma ateno suficiente estrutura final do texto bblico e mensagem que ele exprime em seu estado atual (mostrava-se pouca estima

    pela obra dos redatores). Dessa maneira a exegese histrico-crtica podia aparecer como fragmentria edestrutora, ainda mais que certos exegetas sob a influncia da histria comparada das religies, tal como ela se

    praticava ento, ou partindo de concepes filosficas, emitiam contra a Bblia julgamentos negativos.

    Hermann Gunkel fez o mtodo sair do gueto da crtica literria entendida desta maneira. Se bem tenhacontinuado a considerar os livros do Pentateuco como compilaes, ele aplicou sua ateno textura particulardas diferentes partes. Ele procurou definir o gnero de cada uma (por exemplo, legenda ou hino ) e seuambiente de origem ou Sitz im Lebem ( por exemplo, situao jurdica, liturgia, etc.). A esta pesquisa dosgneros literrios assemelha-se o estudo crtico das formas ( Formgeschichte ) inaugurada na exegese dossinticos porMartin Dibelius e Rudolf Bultmann. Este ltimo misturou aos estudos de Formgeschichte uma

    http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#fn1http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#fn1
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    hermenutica bblica inspirada na filosofia existencialista de Martin Heidegger. Em conseqncia, aFormgeschichte suscitou muitas vezes srias reservas. Mas este mtodo, em si mesmo, teve como resultado adeclarao de que a tradio neo-testamentria obteve sua origem e tomou sua forma na comunidade crist, ouIgreja primitiva, passando da pregao do prprio Jesus prodigao que proclama que Jesus o Cristo. Formgeschichte aliou-se a Redaktionsgeschichte , estudo crtico da redao . Esta ltima procura colocarem evidncia a contribuio pessoal de cada evangelista e as orientaes teolgicas que guiaram o trabalho deredao deles. Com a utilizao deste ltimo mtodo, a srie das diferentes etapas do mtodo histrico-crticotornou-se mais completa: da crtica textual passa-se a uma crtica literria que decompe (pesquisa das fontes),depois a um estudo crtico das formas, enfim a uma anlise da redao, que atenta ao texto em sua composio.

    Desta maneira tornou-se possvel uma compreenso mais clara da inteno dos autores e redatores da Bblia,assim como da mensagem que eles dirigiram aos primeiros destinatrios. O mtodo histrico-crtico adquiriuento uma importncia de primeiro plano.

    2.Princpios

    Os princpios fundamentais do mtodo histrico-crtico em sua forma clssica so os seguintes:

    E um mtodo histrico, no s porque ele se aplica a textos antigos no caso, aqueles da Bblia e estuda seualcance histrico, mas tambm e sobretudo porque ele procura elucidar os processos histricos de produo dostextos bblicos, processos diacrnicos algumas vezes complicados e de longa durao. Em suas diferentes etapas

    de produo, os textos da Bblia so dirigidos a diversas categorias de ouvintes ou de leitores, que seencontravam em situaes de tempo e de espao diferentes.

    um mtodo crtico, porque ele opera com a ajuda de critrios cientficos to objetivos quanto possveis emcada uma de suas etapas (da crtica textual ao estudo crtico da redao), de maneira a tornar acessvel ao leitormoderno o sentido dos textos bblicos, muitas vezes difcil de perceber.

    Mtodo analtico, ele estuda o texto bblico da mesma maneira que qualquer outro texto da antiguidade e ocomenta enquanto linguagem humana. Entretanto, ele permite ao exegeta, sobretudo no estudo crtico da redaodos textos, perceber melhor o contedo da revelao divina.

    3.Descrio

    No estgio atual de seu desenvolvimento, o mtodo histrico-crtico percorre as seguintes etapas:

    A crtica textual, praticada h muito mais tempo, abre a srie das operaes cientficas. Baseando-se notestemunho dos mais antigos e melhores manuscritos, assim como dos papiros, das tradues antigas e da

    patrstica, ela procura, segundo regras determinadas, estabelecer um texto bblico que seja to prximo quantopossvel ao texto original.

    O texto em seguida submetido a uma anlise lingstica (morfologia e sintaxe) e semntica, que utiliza os

    conhecimentos obtidos graas aos estudos de filologia histrica. A crtica literria esfora-se ento em discerniro incio e o fim das unidades textuais, grandes e pequenas, e em verificar a coerncia interna dos textos. Aexistncia de repeties, de divergncias inconciliveis e de outros indcios, manifesta o carter compsito decertos textos. Estes ento so divididos em pequenas unidades, das quais estuda-se a dependncia possvel adiversas fontes. A crtica dos gneros procura determinar os gneros literrios, ambiente de origem, traosespecficos e evoluo desses textos. A crtica das tradies situa os textos em correntes de tradio, das quaisela procura determinar a evoluo no decorrer da histria. Enfim, a crtica da redao estuda as modificaes queos textos sofreram antes de terem um estado final fixado, esforando-se em discernir as orientaes que lhes so

    prprias. Enquanto as etapas precedentes procuraram explicar o texto pela sua gnese, em uma perspectivadiacrnica, esta ltima etapa termina com um estudo sincrnico: explica-se aqui o texto em si, graas s relaesmtuas de seus diversos elementos e considerando-o sob seu aspecto de mensagem comunicada pelo autor a seus

    contemporneos. A funo pragmtica do texto pode ento ser levada em considerao.

    Quando os textos estudados pertencem a um gnero literrio histrico ou esto em relao com acontecimentosda histria, a crtica histrica completa a crtica literria para determinar seu alcance histrico, no sentidomoderno da expresso.

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    desta maneira que so colocadas em evidncia as diferentes etapas do desenrolar concreto da revelao bblica.

    4.Avaliao

    Que valor dar ao mtodo histrico-crtico, em particular no estgio atual de sua evoluo?

    um mtodo que, utilizado de maneira objetiva, no implica em si nenhum a priori: Se sua utilizao acompanhada de tais a priori, isto no devido ao mtodo em si mas a opinies hermenuticas que orientam ainterpretao e podem ser tendenciosas.

    Orientado, em seu incio, como crtica das fontes e da histria das religies, o mtodo obteve como resultado aabertura de um novo acesso Bblia, mostrando que ela uma coleo de escritos que, muitas vezes, sobretudo

    para o Antigo Testamento, no tm um autor nico, mas tiveram uma longa pr-histria inextricavelmente ligada histria de Israel ou quela da Igreja primitiva. Precedentemente, a interpretao judaica ou crist da Bblia notinha uma conscincia clara das condies histricas concretas e diversas nas quais a Palavra de Deus seenraizou. Ela tinha disto um conhecimento global e longnquo. O confronto da exegese tradicional com umaabordagem cientfica que em seu incio fazia conscientemente abstrao da f e algumas vezes mesmo se opunhaa ela, foi seguramente dolorosa; depois, no entanto, ela se revelou salutar: uma vez que o mtodo foi liberado dos

    preconceitos extrnsecos, ele conduziu a uma compreenso mais exata da verdade da Santa Escritura (cf DeiVerbum, 12). Segundo aDivino afflante Spiritu, a procura do sentido literal da Escritura uma tarefa essencial da

    exegese e, para cumprir esta tarefa, necessrio determinar o gnero literrio dos textos (cfE.B., 560), o que serealiza com a ajuda do mtodo histrico-crtico.

    Com certeza o uso clssico do mtodo histrico-crtico manifesta limites, pois ele se restringe procura dosentido do texto bblico nas circunstncias histricas de sua produo e no se interessa pelas outras

    potencialidades de sentido que se manifestaram no decorrer das pocas posteriores da revelao bblica e dahistria da Igreja. No entanto, esse mtodo contribuiu produo de obras de exegese e de teologia bblica degrande valor.

    Renunciou-se h muito tempo a um amlgama do mtodo com um sistema filosfico. Recentemente umatendncia exegtica orientou o mtodo insistindo predominantemente sobre a forma do texto, com menorateno ao seu contedo, mas esta tendncia foi corrigida graas contribuio de uma semntica diferenciada(semntica das palavras, das frases, do texto) e ao estudo do aspecto pragmtico dos textos.

    A respeito da incluso no mtodo, de uma anlise sincrnica dos textos, deve-se reconhecer que se trata de umaoperao legtima, pois o texto em seu estado final, e no uma redao anterior, que expresso da Palavra deDeus. Mas o estudo diacrnico continua indispensvel para o discernimento do dinamismo histrico que anima aSanta Escritura e para manifestar sua rica complexidade: por exemplo, o cdigo da Aliana (Ex 21,23) reflete umestado poltico, social e religioso da sociedade israelita diferente daquele que refletem as outras legislaesconservadas no Deuteronmio (Dt12,26) e no Levtico (cdigo de santidade, Lv 17-26). tendncia de reduzirtudo ao aspecto histrico, que se pde repreender na antiga exegese histrico-crtica, seria o caso que no

    sucedesse o excesso inverso: o de um esquecimento da histria, por parte de uma exegese exclusivamentesincrnica.

    Em definitivo, o objetivo do mtodo histrico-crtico de colocar em evidncia, de maneira sobretudodiacrnica, o sentido expresso pelos autores e redatores. Com a ajuda de outros mtodos e abordagens, ele abreao leitor moderno o acesso ao significado do texto da Bblia, tal como o temos.

    B.Novos mtodos de anlise literria

    Nenhum mtodo cientfico para o estudo da Bblia est altura de corresponder riqueza total dos textosbblicos. Qualquer que seja sua validade, o mtodo histrico-crtico no pode pretender ser suficiente a tudo. Ele

    deixa forosamente obscuros numerosos aspectos dos escritos que estuda. Que no seja surpresa a constatao deque atualmente outros mtodos e abordagens so propostos para aprofundar um ou outro aspecto digno deateno.

    Neste pargrafo B apresentaremos alguns mtodos de anlise literria que se desenvolveram recentemente. Nospargrafos seguintes (C, D, E) examinaremos brevemente diversas abordagens, das quais algumas esto em

    http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_divino-afflante-spiritu_po.htmlhttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_divino-afflante-spiritu_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_divino-afflante-spiritu_po.html
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    relao com o estudo da tradio, outras com as cincias humanas , outras ainda com situaes 'contemporneas particulares. Consideramos enfim (F) a leitura fundamentalista da Bblia, que recusa todoesforo metdico de interpretao.

    Aproveitando os progressos realizados em nossa poca pelos estudos lingsticos e literrios, a exegese bblicautiliza cada vez mais mtodos novos de anlise literria, em particular a anlise retrica, a anlise narrativa e aanlise semitica.

    1.Anlise retrica

    Na realidade, a anlise retrica no em si um mtodo novo. O que novo, de um lado, sua utilizaosistemtica para a interpretao da Bblia e, de outro lado, o nascimento e o desenvolvimento de uma novaretrica .

    A retrica a arte de compor discursos persuasivos. Pelo fato de que todos os textos bblicos so em algum grautextos persuasivos, um certo conhecimento da retrica faz parte do instrumental normal dos exegetas. A anliseretrica deve ser conduzida de maneira crtica, pois a exegese cientfica um trabalho que se submetenecessariamente s exigncias do esprito crtico.

    Muitos estudos bblicos recentes deram uma grande ateno presena da retrica na Escritura. Podemos

    distinguir trs abordagens diferentes. A primeira se baseia na retrica clssica greco-latina; a segunda atentaaos procedimentos semticos de composio; a terceira inspira-se nas pesquisas modernas que chamamos novaretrica .

    Toda situao de discurso comporta a presena de trs elementos: o orador (ou o autor), o discurso (ou o texto) eo auditrio (ou os destinatrios). A retrica clssica distingue, conseqentemente, trs fatores de persuaso quecontribuem qualidade de um discurso: a autoridade do orador, a argumentao do discurso e as emoes queele suscita no auditrio. A diversidade de situaes e de auditrios influencia imensamente a maneira de falar. Aretrica clssica, desde Aristteles, admite a distino de trs gneros de eloqncia: o gnero judicirio (diantedos tribunais), o deliberativo (nas assemblias polticas), o demonstrativo (nas celebraes).

    Constatando a enorme influncia da retrica na cultura helenstica, um nmero crescente de exegetas utilizatratados de retrica clssica para melhor analisar certos aspectos dos escritos bblicos, sobretudo daqueles do

    Novo Testamento.

    Outros exegetas concentram a ateno sobre os traos especficos da tradio literria bblica. Enraizada nacultura semtica, ela manifesta uma forte preferncia pelas composies simtricas, graas s quais as relaesso estabelecidas entre os diversos elementos do texto. O estudo das mltiplas formas de paralelismo e de outros

    procedimentos semticos de composio deve permitir um melhor discernimento da estrutura literria dos textose assim chegar a maior compreenso de sua mensagem.

    Tomando um ponto de vista mais geral, a nova retrica quer ser algo mais que um inventrio de figuras deestilo, de artifcios oratrios e de espcies de discurso. Ela busca o porqu tal uso especfico da linguagem eficaz e chega a comunicar uma convico. Ela se quer realista , recusando de se limitar simples anliseformal. Ela d situao de debate a ateno que lhe devida. Ela estuda o estilo e a composio enquantomeios de exercer uma ao sobre o auditrio. Com esta finalidade ela aproveita as contribuies recentes dedisciplinas como a lingstica, a semitica, a antropologia e a sociologia.

    Aplicada Bblia, a nova retrica quer penetrar no corao da linguagem da revelao enquanto linguagemreligiosa persuasiva e medir seu impacto no contexto social da comunicao. Porque elas trazem umenriquecimento ao estudo crtico dos textos, as anlises retricas merecem muita estima, sobretudo em suasrecentes pesquisas. Elas reparam uma negligncia que durou muito tempo e fazem descobrir ou colocam mais

    em evidncia perspectivas originais. A nova retrica tem razo de chamar a ateno para a capacidadepersuasiva e convincente da linguagem. A Bblia no simplesmente enunciao de verdades. E uma mensagemdotada de uma funo de comunicao em um certo contexto, uma mensagem que comporta um dinamismo deargumentao e uma estratgia retrica.

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    As anlises retricas tm, contudo, seus limites. Quando elas se contentam em ser descritivas, seus resultadostm muitas vezes um interesse unicamente estilstico. Fundamentalmente sincrnicas, elas no podem pretenderconstituir um mtodo independente que seja auto-suficiente. Sua aplicao aos textos bblicos levanta mais deuma questo: os autores destes textos pertenciam aos ambientes mais cultos? At que ponto eles seguiram asregras de retrica para compor seus escritos? Qual retrica mais pertinente para a anlise de tal escritodeterminado: a greco-latina ou a semtica? No se arrisca em atribuir a certos textos bblicos uma estruturaretrica elaborada demais? Estas questes e outras no devem dissuadir o emprego deste tipo de anlise;elas convidam a no recorrer a ele sem discernimento.

    2.Anlise narrativa

    A exegese narrativa prope um mtodo de compreenso e de comunicao da mensagem bblica quecorresponde forma de relato e de testemunho, modalidade fundamental da comunicao entre pessoashumanas, caracterstica tambm da Santa Escritura. O Antigo Testamento, efetivamente, apresenta uma histriada salvao cujo relato eficaz torna-se substncia da profisso de f, da liturgia e da catequese (cfSal78,3-4;Ex12,24-27; Dt 6,20-25; 26,5-11). De seu lado, a proclamao do querigma cristo compreende a seqncianarrativa da vida, da morte e da ressurreio de Jesus Cristo, acontecimentos dos quais os Evangelhos nosoferecem um relato detalhado. A catequese se apresenta, ela tambm, sob a forma narrativa (cf 1 Co 11,23-25).

    A respeito da abordagem narrativa, convm distinguir mtodos de anlise e reflexo teolgica.

    Numerosos mtodos de anlise so atualmente propostos. Alguns partem do estudo dos modelos narrativosantigos. Outros se baseiam sobre um ou outro estudo atual da narrativa, que pode ter pontos comuns com asemitica. Particularmente atenta aos elementos do texto que dizem respeito ao enredo, s caractersticas e ao

    ponto de vista tomado pelo narrador, a anlise narrativa estuda o jeito pelo qual a histria contada de maneira aenvolver o leitor no mundo do relato e seu sistema de valores.

    Vrios mtodos introduzem uma distino entre autor real e autor implcito , leitor real e leitorimplcito . O autor real a pessoa que comps o relato. Por autor implcito designada a imagem doautor que o texto produz progressivamente no decorrer da leitura (com sua cultura, seu temperamento, suastendncias, sua f, etc.). Chama-se leitor real toda pessoa que tem acesso ao texto, desde os primeirosdestinatrios que leram ou ouviram ler at os leitores ou ouvintes de hoje. Por leitor implcito entende-seaquele que o texto pressupe e produz, aquele que capaz de efetuar as operaes mentais e afetivas exigidas

    para entrar no mundo do relato e assim responder a ele da maneira visada pelo autor real atravs do autorimplcito.

    Um texto continua a exercer sua influncia na medida em que os leitores reais (por exemplo, ns mesmos no fimdo sculo XX) podem se identificar com o leitor implcito. Uma das maiores tarefas do exegeta facilitar estaidentificao. ?????

    anlise narrativa liga-se uma nova maneira de apreciar o alcance dos textos. Enquanto o mtodo histrico-

    crtico considera antes de tudo o texto como uma janela , que permite algumas observaes sobre uma ououtra poca (no apenas sobre os fatos narrados, mas tambm sobre a situao da comunidade para a qual elesforam contados), sublinha-se que o texto funciona igualmente como um espelho , no sentido de que eleestabelece uma certa imagem do mundo o mundo do relato que exerce sua influncia sobre a maneira dever do leitor e o leva a adotar certos valores invs que outros.

    A este gnero de estudo, tipicamente literrio, associou-se a reflexo teolgica, que levando em considerao asconseqncias que a natureza de relato e de testemunho da Santa Escritura representa para a adeso de f, deduzdisso uma hermenutica de tipo prtico e pastoral. Reage-se desta maneira contra a reduo do texto inspirado auma srie de teses teolgicas, formuladas muitas vezes segundo categorias e linguagem no escritursticas. Pede-se exegese narrativa de reabilitar, em contextos histricos novos, os modos de comunicao e de significado

    prprios ao relato bblico, afim de melhor abrir caminho sua eficcia para a salvao. Insiste-se na necessidadede contar a salvao (aspecto informativo do relato) e de contar em vista da salvao (aspecto de desempenho ). O relato bblico, efetivamente, contm explicitamente ou implicitamente, segundo o caso um apelo existencial dirigido ao leitor.

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    Para a exegese da Bblia, a anlise narrativa apresenta uma utilidade evidente, pois ela corresponde naturezanarrativa de um grande nmero de textos bblicos. Ela pode contribuir a tornar fcil a passagem, muitas vezessofrida, entre o sentido do texto em seu contexto histrico tal como o mtodo histrico-crtico procura defini-lo e o alcance do texto para o leitor de hoje. Em contraposio, a distino entre autor real e autorimplcito aumenta a complexidade dos problemas de interpretao.

    Aplicando-se aos textos da Bblia, a anlise narrativa no pode se contentar de colar sobre eles modelos pr-estabelecidos. Ela deve ao contrrio esforar-se em corresponder sua especificidade. Sua abordagem sincrnicados textos pede para ser completada por estudos diacrnicos. Ela deve, de outro lado, evitar uma possvel

    tendncia a excluir toda elaborao doutrinria dos dados que contm os relatos da Bblia. Ela se encontraria,ento, em desacordo com a prpria tradio bblica que pratica esse gnero de elaborao, e com a tradioeclesial que continuou nesta via. Convm, enfim, notar que no se pode considerar a eficcia existencialsubjetiva da Palavra de Deus transmitida narrativamente, como um critrio suficiente da verdade de suacompreenso.

    3.Anlise semitica

    Entre os mtodos chamados sincrnicos, isto , que se concentram sobre o estudo do texto bblico tal como elese apresenta ao leitor em seu estado final, coloca-se a anlise semitica que, h uns vinte anos, se desenvolveu

    bastante em certos meios. Primeiramente chamado pelo termo geral de estruturalismo , este mtodo pode se

    propor como descendente do lingista suo Ferdinand de Saussure que no incio deste sculo elaborou a teoriasegundo a qual toda lngua um sistema de relaes que obedece regras determinadas. Vrios lingistas eliteratos tiveram uma influncia marcante na evoluo do mtodo. A maior parte dos biblistas que utilizam asemitica para o estudo da Bblia recorre a Algirdas J. Greimas e Escola de Paris, da qual ele o fundador.Abordagens ou mtodos anlogos, fundados sobre a Lingstica moderna, se desenvolvem em outros lugares. o mtodo de Greimas que iremos apresentar e analisar brevemente.

    A semitica repousa sobre trs princpios ou pressupostos principais:

    Princpio de imanncia: cada texto forma um conjunto de significados: a anlise considera todo o texto, massomente o texto; ela no apela a dados externos , tais como o autor, os destinatrios, os acontecimentosnarrados, a histria da redao.

    Princpio de estrutura do sentido: s h sentido atravs da relao e no interior dela, especialmente a relao dediferena; a anlise de um texto consiste assim em estabelecer a rede de relaes (de oposio, dehomologao...) entre os elementos, a partir da qual o sentido do texto se constri.

    Princpio da gramtica do texto: cada texto respeita uma gramtica, isto , um certo nmero de regras ouestruturas; em um conjunto de frases, chamado discurso, h diferentes nveis, tendo cada um a sua gramtica.

    O contedo global de um texto pode ser analisado em trs nveis diferentes:

    O nvel narrativo. Estuda-se, no relato, as transformaes que fazem passar do estado inicial ao estado terminal.No interior de um percurso narrativo, a anlise procura retraar as diversas fases, logicamente ligadas entre elas,que marcam a transformao de um estado em um outro. Em cada uma destas fases, apuram-se as relaes entreos papis exercidos por atuantes que determinam os estados e produzem as transformaes.

    O nvel discursivo. A anlise consiste em trs operaes: a) a identificao e a classificao das figuras, isto ,dos elementos de significao de um texto (atores, tempos e lugares); b) o estabelecimento dos percursos de cadafigura em um texto para determinar a maneira como esse texto o utiliza; c) a procura dos valores temticos dasfiguras. Esta ltima operao consiste em distinguir em nome do que (= valor) as figuras seguem, nesse textodeterminado, tal percurso.

    O nvel lgico-semntico. o nvel chamado profundo. Ele tambm o mais abstrato. Ele procede do postuladoque formas lgicas e significantes so subjacentes s organizaes narrativas e discursivas de todo discurso. Aanlise a esse nvel consiste em precisar a lgica que gera as articulaes fundamentais dos percursos narrativose figurativos de um texto. Para isto um instrumento muitas vezes empregado, chamado de quadrado

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    semitico , figura utilizando as relaes entre dois termos contrrios e dois termos contraditrios (porexemplo, branco e negro; branco e no-branco; negro e no-negro).

    Os tericos do mtodo semitico no cessam de apresentar desenvolvimentos novos. As pesquisas atuais sereferem notadamente a enunciao e inter-textualidade. Aplicado primeiramente aos textos narrativos daEscritura, que se prestam mais facilmente a isso, o mtodo cada vez mais utilizado para outros tipos dediscursos bblicos.

    A descrio dada pela semitica, e sobretudo o enunciado de seus pressupostos, j deixam perceber as

    contribuies e os limites deste mtodo. Estando mais atenta ao fato de que cada texto bblico um todocoerente que obedece a mecanismos lingsticos precisos, a semitica contribui nossa compreenso da Bblia,Palavra de Deus expressa em linguagem humana.

    A semitica pode ser utilizada para o estudo da Bblia apenas quando este mtodo de anlise separado decertos pressupostos desenvolvidos na filosofia estruturalista, isto , a negao dos sujeitos e da referncia extra-textual. A Bblia a Palavra sobre o real, que Deus pronunciou em uma histria e que ele nos dirige hoje porintermdio de autores humanos. A abordagem semitica deve ser aberta histria: primeiramente quela dosatores dos textos, em seguida quela de seus autores e de seus leitores. O risco grande, entre os utilizadores daanlise semitica, de ficar em um estudo formal do contedo e de no liberar a mensagem dos textos.

    Se ela no se perde nos mistrios de uma linguagem complicada mas ensinada em termos simples em seuselementos principais, a anlise semitica pode dar aos cristos o gosto de estudar o texto bblico e de descobriralgumas de suas dimenses de sentido; sem possuir todos os conhecimentos histricos que se relacionam

    produo do texto e a seu mundo scio-cultural. Ela pode assim mostrar-se til na prpria pastoral, para umacerta apropriao da Escritura em ambientes no especializados.

    C.Abordagens baseadas na Tradio

    Mesmo que eles se diferenciem do mtodo histrico-crtico por uma ateno maior unidade interna dos textosestudados, os. mtodos literrios que acabamos de apresentar permanecem insuficientes para a interpretao daBblia, pois eles consideram cada escrito isoladamente. Ora, a Bblia no se apresenta como um conjunto detextos desprovidos de relaes entre eles, mas como um composto de testemunhos de uma mesma e grandeTradio. Para corresponder plenamente ao objeto de seu estudo, a exegese bblica deve levar em consideraoeste fato. Tal a perspectiva adotada por vrias abordagens que se desenvolvem atualmente.

    1.Abordagem cannica

    Constatando que o mtodo histrico-crtico encontra algumas vezes dificuldades em alcanar o nvel teolgicoem suas concluses, a abordagem cannica , nascida nos Estados Unidos h uns vinte anos, entende por bemconduzir uma tarefa teolgica de interpretao partindo do quadro especifico da f: a Bblia em seu conjunto.

    Para faz-lo, ela interpreta cada texto bblico luz do Cnon das Escrituras, isto , da Bblia enquanto recebidacomo norma de f por uma comunidade de fiis. Ela procura situar cada texto no interior do nico desgnio deDeus, com o objetivo de chegar a uma atualizao da Escritura para o nosso tempo. Ela no pretende substituir omtodo histrico-crtico, mas deseja complement-lo.

    Dois pontos de vista diferentes foram propostos: Brevard S. Childs centraliza seu interesse sobre a formacannica final do texto (livro ou coleo), forma aceita pela comunidade como tendo autoridade para expressarsua f e dirigir sua vida.

    Mais do que sobre a forma final e estabilizada do texto, James A. Sanders coloca sua ateno sobre o processocannico ou desenvolvimento progressivo das Escrituras s quais a comunidade dos fiis reconheceu uma

    autoridade normativa. O estudo crtico deste processo examina como as antigas tradies foram reutilizadas emnovos contextos antes de constituir um todo ao mesmo tempo estvel e adaptado, coerente e fazendo unio dedados divergentes, do qual a comunidade de f tira sua identidade. Procedimentos hermenuticos foramacionados no decorrer desse processo e o so ainda aps a fixao do Cnon; eles so muitas vezes do gnero doMidrashim, servindo para atualizar o texto bblico Eles favorecem uma constante interao entre a comunidade esua Escrituras, fazendo apelo a uma interpretao que visa torna contempornea a tradio.

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    A abordagem cannica reage com razo contra a valorizao exagerada daquilo que supostamente original eprimitivo, como se somente isso fosse autntico. A Escritura inspirada a Escritura tal como a Igreja areconheceu como regra de sua f. Pode-se insistir a esse respeito, seja sobre a forma final na qual se encontraatualmente cada um dos livros, seja sobre o conjunto que eles constituem como Cnon. Um livro torna-se bblicosomente luz do Cnon inteiro.

    A comunidade dos fiis efetivamente o contexto adequado para a interpretao dos textos cannicos. A f e oEsprito Santo enriquecem a exegese; a autoridade eclesial, que se exerce a servio da comunidade, deve velar

    para que a interpretao permanea fiel grande Tradio que produziu os textos (cfDei Verbum, 10).

    A abordagem cannica encontra-se s voltas com mais de um problema, sobretudo quando ela procura definir o processo cannico . A partir de quando pode-se dizer que um texto cannico? Parece admissvel dizer:desde que a comunidade atribui a um texto uma autoridade normativa, mesmo antes da fixao definitiva dessetexto. Pode-se falar de uma hermenutica cannica desde que a repetio das tradies, que se efetualevando-se em conta os aspectos novos da situao (religiosa, cultural, teolgica), mantm a identidade damensagem. Mas apresenta-se uma questo: o processo de interpretao que conduziu formao do Cnon deveele ser reconhecido como regra de interpretao da Escritura at nossos dias?

    De outro lado, as relaes complexas entre o Cnon judaico das Escrituras e o Cnon cristo suscitam numerososproblemas para a interpretao. A Igreja crist recebeu como Antigo Testamento os escritos que tinham

    autoridade na comunidade judaica helenstica, mas alguns deles esto ausentes da Bblia hebraica ou seapresentam sob uma forma diferente. O corpus , ento, diferente. Por isso a interpretao cannica no pode seridntica, pois c, da texto deve ser lido em relao com o conjunto do corpus. Ma sobretudo, a Igreja l o AntigoTestamento luz do acontecimento pascal morte e ressurreio de Cristo Jesus que traz um radicalnovidade e d, com uma autoridade soberana, um sentido decisivo e definitivo s Escrituras (cf Dei Verbum, 4).Esta nova determinao de sentido faz parte integrante da f crist. Ela no deve, portanto, tirar toda consistncia interpretao cannica anterior, aquela que precedeu a Pscoa crist, pois preciso respeitar cada etapa dahistria da salvao. Esvaziar da sus substncia o Antigo Testamento seria privar o Novo Testamento de sua raizna histria.

    2.Abordagem com recurso s tradies judaicas de interpretao

    O Antigo Testamento tomou sua forma final no judasmo dos quatro ou cinco ltimos sculos que precederam aera crist. Esse judasmo foi tambm o ambiente de origem do Novo Testamento e da Igreja nascente.

    Numerosos estudos de histria judaica antiga e principalmente as pesquisas suscitadas pelas descobertas deQumrn colocaram em relevo a complexidade do mundo judeu, em terra de Israel e na dispora, ao longo deste

    perodo.

    neste mundo que comeou a interpretao da Escritura. Um dos mais antigos testemunhos de interpretaojudaica da Bblia a traduo grega dos Setenta. Os Targumim aramaicos constituem um outro testemunho domesmo esforo, que continuou at nossos dias, acumulando uma soma prodigiosa de procedimentos sbios para

    a conservao do texto do Antigo Testamento e para a explicao do sentido dos textos bblicos. Em todos ostempos, os melhores exegetas cristos, desde Orgenes e so Jernimo, procuraram tirar proveito da erudiojudaica para uma melhor inteligncia da Escritura. Numerosos exegetas modernos seguem esse exemplo.

    As tradies judaicas antigas permitem particularmente conhecer melhor a Bblia judaica dos Setenta, que emseguida tornou-se aprimeira parte da Bblia crist durante pelo menos os quatro primeiros sculos da Igreja, e noOriente at nossos dias. A literatura judaica extra-cannica, chamada apcrifa ou inter-testamentria, abundantee diversificada, uma fonte importante para a interpretao do Novo Testamento. Os procedimentos variados deexegese praticados pelo judasmo das diferentes tendncias reencontram-se no prprio Antigo Testamento, porexemplo nas Crnicas em relao aos Livros dos Reis, e no Novo Testamento, por exemplo, em certosraciocnios escritursticos de So Paulo. A diversidade das formas (parbolas, alegorias, antologia e florilgios,

    releituras, pesher, comparaes entre textos distantes, salmos e hinos, vises, revelaes e sonhos, composiessapienciais) comum ao Antigo e ao Novo Testamento assim como literatura de todos os ambientes judaicosantes e aps o tempo de Jesus. Os Targumim e os Midrashim representam a homiltica e a interpretao bblicade grandes setores do judasmo dos primeiros sculos.

    http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
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    Alm disso, numerosos exegetas do Antigo Testamento pedem aos comentadores, gramticos e lexicgrafosjudeus medievais e mais recentes, luzes para a inteligncia de passagens obscuras ou de palavras raras e nicas.Mais freqentes que antigamente, aparecem hoje referncias a essas obras judaicas na discusso exegtica.

    A riqueza da erudio judaica colocada a servio da Bblia, desde suas origens na antiguidade at nossos dias, uma ajuda muito valiosa para o exegeta dos dois Testamentos, condio, no entanto, de empreg-la comconhecimento de causa. O judasmo antigo era de uma grande diversidade. A forma farisaica, que prevaleceu emseguida no rabinismo, no era a nica. Os textos judeus antigos se escalonam por vrios sculos; importantesitu-los cronologicamente antes de fazer comparaes. Sobretudo, o quadro geral das comunidades judaicas e

    crists fundamentalmente diferente: do lado judeu, segundo formas muito variadas, trata-se de uma religioque define um povo e uma prtica de vida a partir de um escrito revelado e de uma tradio oral, enquanto quedo lado cristo a f ao Senhor Jesus, morto, ressuscitado e doravante vivo, Messias e Filho de Deus, que reneuma comunidade. Esses dois pontos de partida criam, para a interpretao das Escrituras, dois contextos que,apesar de muitos contatos e semelhanas, so radicalmente diferentes.

    3.Abordagem atravs da histria dos efeitos do texto

    Esta abordagem apia-se sobre dois princpios: a) um texto torna-se uma obra literria somente se ele encontraleitores que lhe do vida apropriando-se dele; b) essa apropriao do texto, que pode se efetuar de maneiraindividual ou comunitria e toma forma em diferentes domnios (literrio, artstico, teolgico, asctico e

    mstico), contribui a fazer compreender melhor o texto em si.

    Sem ser totalmente desconhecida da antiguidade, esta abordagem se desenvolveu entre 1960 e 1970 nos estudosliterrios, logo que a crtica interessou-se pelas relaes entre o texto e seus leitores. A exegese bblica s podiaobter benefcios com esta pesquisa, ainda mais que a hermenutica filosfica afirmava por seu lado a necessriadistncia entre a obra e seu autor, assim como entre a obra e seus leitores. Nesta perspectiva, comeou-se a fazerentrar no trabalho de interpretao a histria do efeito provocado por um livro ou uma passagem da Escritura (Wirkungsgeschichte ). Esfora-se em medir a evoluo da interpretao no decorrer do tempo em funo das

    preocupaes dos leitores e em avaliar a importncia do papel da tradio para iluminar o sentido dos textosbblicos.

    Colocar-se em presena do texto e de seus leitores suscita uma dinmica, pois o texto exerce uma irradiao eprovoca reaes. Ele faz ressoar um apelo, que ouvido pelos leitores individualmente ou em grupos. O leitor,alis, no nunca um sujeito isolado. Ele pertence a um espao social e se situa em uma tradio. Ele vem aotexto com suas questes, opera uma seleo, prope uma interpretao e, finalmente, ele pode criar uma outraobra ou tomar iniciativas que se inspiram diretamente na sua leitura da Escritura.

    Os exemplos de uma tal abordagem j so numerosos. A histria da leitura do Cntico dos Cnticos oferece umexcelente testemunho disso; ela mostra como esse livro foi recebido na poca dos Padres da Igreja, no ambientemonstico latino da Idade Mdia ou ainda por um mstico como so Joo da Cruz; assim ele permite melhordescobrir todas as dimenses do sentido deste escrito. Da mesma maneira no Novo Testamento possvel e til

    esclarecer o sentido de uma percope (por exemplo, aquela do jovem rico em Mt 19,16-26) mostrando suafecundidade no curso da histria da Igreja.

    Mas a histria atesta tambm a existncia de correntes de interpretao tendenciosas e falsas, com efeitosnefastos, levando, por exemplo, ao anti-semitismo ou a outras discriminaes raciais ou ainda a ilusesmilenaristas. V-se por isso que esta abordagem no pode ser uma disciplina autnoma. Um discernimento necessrio. Deve-se evitar o privilgio de um ou outro momento da histria dos efeitos de um texto para fazerdele a nica regra de sua interpretao.

    D.Abordagens atravs das cincias humanas

    Para se comunicar, a Palavra de Deus se enraizou na vida de grupos humanos (cfEcle 24,12) e ela traou a simesma um caminho atravs dos condicionamentos psicolgicos das diversas pessoas que compuseram osescritos bblicos. Resulta disso que as cincias humanas em particular a sociologia, a antropologia e a

    psicologia podem contribuir a uma compreenso melhor de certos aspectos dos textos. Convm, no entanto,notar que existem vrias escolas, com divergncias notveis sobre a prpria natureza dessas cincias. Dito isto,um bom nmero de exegetas tirou recentemente proveito desse gnero de pesquisas.

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    1.Abordagem sociolgica

    Os textos religiosos esto unidos por uma conexo de relao recproca com as sociedades nas quais elesnascem. Esta constatao vale evidentemente para os textos bblicos. Conseqentemente, o estudo crtico daBblia necessita um conhecimento to exato quanto possvel dos comportamentos sociais que caracterizam osdiversos ambientes nos quais as tradies bblicas se formaram. Esse gnero de informao scio-histrica deveser completado por uma explicao sociolgica correta, que interprete cientificamente, em cada caso, o alcancedas condies sociais de existncia.

    Na histria da exegese, o ponto de vista sociolgico encontrou seu lugar h muito tempo. A ateno que a Formgeschichte deu ao ambiente de origem dos textos ( Sitz im Leben ) um testemunho disso: reconhece-se que as tradies bblicas levam a marca dos ambientes scio-culturais que as transmitiram. No primeiro terodo sculo XX a Escola de Chicago estudou a situao scio-histrica da cristandade primitiva, dando assim crtica histrica um impulso aprecivel nesta direo. No decorrer dos vinte ltimos anos (1970-1990), aabordagem sociolgica dos textos bblicos tornou-se parte integrante da exegese.

    Numerosas so as questes feitas a esse respeito exegese do Antigo Testamento. Deve-se perguntar, porexemplo, quais so as diversas formas de organizao social e religiosa que Israel conheceu no decorrer de suahistria. Para o perodo anterior formao de um Estado, o modelo etnolgico de uma sociedade acfalasegmentria forneceu uma base de partida suficiente? Como se passou de uma liga de tribos, sem grande coeso,

    a um Estado organizado em monarquia e, de l, a uma comunidade baseada simplesmente sobre as ligaesreligiosas e genealgicas? Quais transformaes econmicas, militares e outras foram provocadas na estrutura dasociedade pelo movimento de centralizao poltica e religiosa que conduziu monarquia? O estudo das normasde comportamento no Antigo Oriente e em Israel no contribui com mais eficcia inteligncia do Declogo doque as tentativas puramente literrias de reconstruo de um texto primitivo?

    Para a exegese do Novo Testamento, as questes so evidentemente diferentes. Citemos algumas delas: paraexplicar o gnero de vida adotado antes da Pscoa por Jesus e seus discpulos, qual valor pode-se dar teoria deum movimento de carismticos itinerantes, vivendo sem domicilio, nem famlia, nem bens? Foi mantida umarelao de continuidade, baseada sobre o chamado de Jesus a segui-lo, entre a atitude de desprendimento radicaladotado por Jesus e aquela do movimento cristo aps a Pscoa, nos mais diversos ambientes da cristandade

    primitiva? O que sabemos da estrutura social das comunidades paulinas, levando-se em conta, em cada caso, acultura urbana correspondente?

    Geralmente a abordagem sociolgica d uma abertura maior ao trabalho exegtico e comporta muitos aspectos positivos. O conhecimento dos dados sociolgicos que contribuem a fazer compreender o funcionamentoeconmico, cultural e religioso do mundo bblico indispensvel crtica histrica. A tarefa da exegese, de bemcompreender o testemunho de f da Igreja apostlica, no pode ser levada a termo de maneira rigorosa sem uma

    pesquisa cientfica que estude os estreitos relacionamentos dos textos do Novo Testamento com a vivncia socialda Igreja primitiva. A utilizao dos modelos fornecidos pela cincia sociolgica assegura s pesquisas doshistoriadores das pocas bblicas uma notvel capacidade de renovao, mas preciso, naturalmente, que os

    modelos sejam modificados em funo da realidade estudada. o caso aqui de assinalar alguns riscos que a abordagem sociolgica faz correr a exegese. Efetivamente, se otrabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades vivas, previsvel encontrar algumas dificuldades logoque se quer aplicar seus mtodos a ambientes histricos que pertenam a um passado longnquo. Os textos

    bblicos e extra-bblicos no fornecem forosamente uma documentao suficiente para dar uma viso deconjunto da sociedade da poca. Alis, o mtodo sociolgico tende a dar mais ateno aos aspectos econmicose institucionais da existncia humana do que s suas dimenses pessoais e religiosas.

    2.Abordagem atravs da antropologia cultural

    A abordagem dos textos bblicos que utiliza as pesquisas de antropologia cultural est em ligao estreita com aabordagem sociolgica. A distino dessas duas abordagens situa-se ao mesmo tempo a nvel da sensibilidade,do mtodo e dos aspectos da realidade que retm a ateno. Enquanto que a abordagem sociolgica acabamosde diz-lo estuda sobretudo os aspectos econmicos e institucionais, a abordagem antropolgica interessa-se

    por um vasto conjunto de outros aspectos que se refletem na linguagem, arte, religio, mas tambm nosvesturios, ornamentos, festas, danas, mitos, lendas e tudo o que concerne a etnografia.

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    Geralmente a antropologia cultural procura definir as caractersticas dos diferentes tipos de homens no ambientesocial deles como por exemplo, o homem mediterrnico com tudo o que isso implica de estudo doambiente rural ou urbano e de ateno voltada aos valores reconhecidos pela sociedade (honra e desonra,segredo, fidelidade, tradio, gnero de educao e de escolas), maneira pela qual se exerce o controle social,s idias que se tem da famlia, da casa, do parentesco, situao da mulher, dos binmios institucionais (patro-cliente, proprietrio-locatrio, benfeitor-beneficirio, homem livre-escravo), sem esquecer a concepo dosagrado e do profano, os tabus, o ritual de passagem de uma situao a uma outra, a magia, a origem dosrecursos, do poder, da informao, etc.

    Tendo-se por base esses diversos elementos, constitui-se tipologias e modelos comuns a vrias culturas.

    Esse gnero de estudos pode evidentemente ser til para a interpretao dos textos bblicos e ele efetivamenteutilizado para o estudo das concepes de parentesco no Antigo Testamento, a posio da mulher na sociedadeisraelita, a influncia dos ritos agrrios, etc. Nos textos que relatam o ensinamento de Jesus, por exemplo as

    parbolas, muitos detalhes podem ser esclarecidos graas a essa abordagem. Ocorre o mesmo para as concepesfundamentais, como aquela do reino de Deus, ou para a maneira de conceber o tempo na histria da salvao,assim como para os processos de aglutinao das comunidades primitivas. Esta abordagem permite distinguirmelhor os elementos permanentes da mensagem bblica cujo fundamento est na natureza humana, e asdeterminaes contingentes segundo culturas particulares. Todavia, no mais que outras abordagens particulares,esta no est em si altura de levar em conta as contribuies especficas da revelao. Convm estar ciente

    disso no momento de apreciar o alcance de seus resultados.

    3.Abordagens psicolgicas e psicanalticas

    Psicologia e teologia no cessaram jamais de estar em dilogo uma com a outra. A extenso moderna das pesquisas psicolgicas ao estudo das estruturas dinmicas do inconsciente suscitou novas tentativas deinterpretao dos textos antigos, e assim tambm da Bblia. Obras inteiras foram consagradas interpretao

    psicanaltica de textos bblicos. Vivas discusses seguiram-nas: em qual medida e em quais condies as pesquisas psicolgicas e psicanalticas podem contribuir para uma compreenso mais profunda da SantaEscritura?

    Os estudos de psicologia e de psicanlise trazem exegese bblica um enriquecimento, pois, graas a eles ostextos da Bblia podem ser melhor entendidos enquanto experincias de vida e regras de comportamento. Areligio, sabe-se, sempre em uma situao de debate com o inconsciente. Ela participa, em uma larga medida, correta orientao das pulses humanas. As etapas que a crtica histrica percorre metodicamente precisam sercomplementadas por um estudo dos diversos nveis da realidade expressa nos textos. A psicologia e a psicanliseesforam-se em avanar nesta direo. Elas abrem a via para uma compreenso pluri dimensional da Escritura, eelas ajudam a decifrar a linguagem humana da revelao.

    A psicologia e, de outra maneira, a psicanlise deram particularmente uma nova compreenso do smbolo. Alinguagem simblica permite exprimir zonas da experincia religiosa que no so acessveis ao raciocnio

    puramente conceitual, mas tm valor para a questo da verdade. por isso que um estudo interdisciplinarconduzido em comum por exegetas e psiclogos ou psicanalistas apresenta vantagens certas, fundadasobjetivamente e confirmadas na pastoral.

    Numerosos exemplos podem ser citados, que mostram a necessidade de um esforo comum dos exegetas e dospsiclogos: para esclarecer o sentido dos ritos do culto, dos sacrifcios, dos interditos, para explicar a linguagemcheia de imagens da Bblia, o alcance metafrico dos relatos de milagres, a fora dramtica das vises e audiesapocalpticas. No se trata simplesmente de descrever a linguagem simblica da Bblia, mas apreender suafuno de revelao e de interpelao: a realidade luminosa de Deus entra aqui em contato com o homem.

    O dilogo entre exegese e psicologia ou psicanlise em vista de uma compreenso melhor da Bblia deve

    evidentemente ser crtico e respeitar as fronteiras de cada disciplina. Em todo caso, uma psicologia ou umapsicanlise que fosse atia se tornaria incapaz de considerar os dados da f. teis para definir a extenso daresponsabilidade humana, psicologia e psicanlise no devem eliminar a realidade do pecado e da salvao.Deve-se, alis, evitar de confundir religiosidade espontnea e revelao bblica ou de prejudicar o carterhistrico da mensagem da Bblia, que lhe assegura um valor de acontecimento nico.

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    Notemos ainda que no se pode falar da exegese psicanaltica como se houvesse apenas uma. Existe, emrealidade, provenientes de diversos domnios da psicologia e das diversas escolas, uma grande variedade deconhecimentos suscetveis de contribuir interpretao humana e teolgica da Bblia. Considerar absoluta umaou outra posio de uma das escolas no favorece a fecundidade do esforo comum, ao contrrio lhe e nocivo.

    As cincias humanas no se reduzem sociologia, antropologia cultural e psicologia. Outras disciplinaspodem tambm ser teis para a interpretao da Bblia. Em todos esses domnios preciso respeitar ascompetncias e reconhecer que pouco freqente que uma mesma pessoa seja ao mesmo tempo qualificada emexegese e em uma ou outra das cincias humanas.

    E.Abordagens contextuais

    A interpretao de um texto sempre dependente da mentalidade e das preocupaes de seus leitores. Estesltimos do uma ateno privilegiada a certos aspectos e, sem mesmo pensar, negligenciam outros. entoinevitvel que exegetas adotem, em seus trabalhos, novos pontos de vista que correspondam a correntes de

    pensamento contemporneas que no obtiveram, at aqui, uma importncia suficiente. Convm que eles o faamcom discernimento crtico. Atualmente os movimentos de libertao e o feminismo retm particularmente aateno.

    1.Abordagem da libertao

    A teologia da libertao um fenmeno complexo que preciso no simplificar indevidamente. Comomovimento teolgico ele se consolida no incio dos anos 70. Seu ponto de partida, alm das circunstnciaseconmicas, sociais e politicas dos pases da Amrica Latina, encontra-se em dois grandes acontecimentoseclesiais: o Concilio Vaticano II, com sua vontade declarada de aggiornamento e de orientao do trabalho

    pastoral da Igreja em direo s necessidades do mundo atual, e a 2 Assemblia plenria do CELAM (ConselhoEpiscopal Latino-americano) em Medellin em 1968, que aplicou os ensinamentos do Concilio s necessidades daAmrica Latina. O movimento se propagou tambm em outras partes do mundo (frica, sia, populao negrados Estados Unidos).

    difcil discernir se existe uma teologia da libertao e definir seu mtodo. to difcil quanto determinaradequadamente sua maneira de ler a Bblia para indicar em seguida as contribuies e os limites. Pode-se dizerque ela no adota um mtodo especial. Mas, partindo de pontos de vista scio-culturais e polticos prprios, ela

    pratica uma leitura bblica orientada em funo das necessidades do povo, que procura na Bblia o alimento dasua f e da sua vida.

    Ao invs de se contentar com uma interpretao objetivante, que se concentra sobre aquilo que diz o texto emseu contexto de origem, procura-se uma leitura que nasa da situao vivida pelo povo. Se este ltimo vive emcircunstncias de opresso, preciso recorrer Bblia para nela procurar o alimento capaz de sustent-lo em suaslutas e suas esperanas. A realidade presente no deve ser ignorada, mas, ao contrrio, afrontada em vista deilumin-la luz da Palavra. Desta luz resultar a prxis crist autntica, tendendo transformao da sociedade

    por meio da justia e do amor. Na f, a Escritura se transforma em fator de dinamismo de libertao integral.Osprincpios so os seguintes:

    Deus est presente na histria de seu povo para salv-lo. Ele o Deus dos pobres, que no pode tolerar aopresso nem a injustia.

    por isso que a exegese no pode ser neutra, mas deve tomar partido pelos pobres no seguimento de Deus, eengajar-se no combate pela libertao dos oprimidos.

    A participao a esse combate permite, precisamente, de fazer aparecer sentidos que se descobrem somente

    quando os textos bblicos so lidos em um contexto de solidariedade efetiva com os oprimidos.

    Como a libertao dos oprimidos um processo coletivo, a comunidade dos pobres a melhor destinatria parareceber a Bblia como palavra de libertao. Alm disso, os textos bblicos tendo sido escritos para comunidades, a comunidades que em primeiro lugar a leitura da Bblia confiada. A Palavra de Deus plenamente atual,

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    graas sobretudo capacidade que possuem os acontecimentos fundadores (a sada do Egito, a paixo e aressurreio de Jesus) de suscitar novas realizaes no curso da histria.

    A teologia da libertao compreende elementos cujo valor indubitvel: o sentido profundo da presena de Deusque salva; a insistncia sobre a dimenso comunitria da f; a urgncia de uma prxis libertadora enraizada na

    justia e no amor; uma releitura da Bblia que procura fazer da Palavra de Deus a luz e o alimento do povo deDeus em meio a suas lutas e suas esperanas. Assim sublinhada a plena atualidade do texto inspirado.

    Mas a leitura to engajada da Bblia comporta riscos. Como ela ligada a um movimento em plena evoluo, as

    observaes que seguem no podem que ser provisrias.

    Essa leitura se concentra sobre textos narrativos e profticos que iluminam situaes de opresso e que inspiramuma prxis tendendo a uma mudana social: aqui ou l ela pde ser parcial, no dando tanta ateno a outrostextos da Bblia. certo que a exegese no pode ser neutra, mas ela deve tambm evitar de ser unilateral. Alis,o engajamento social e politico no a tarefa direta do exegeta.

    Querendo inserir a mensagem bblica no contexto scio-poltico, telogos e exegetas foram levados ao recursode instrumentos de anlise da realidade social. Nesta perspectiva, algumas correntes da teologia da libertaofizeram uma anlise inspirada em doutrinas materialistas e nesse quadro tambm que elas leram a Bblia, o queno deixou de provocar questes, notadamente no que concerne o princpio marxista da luta de classes.

    Sob a presso de enormes problemas sociais, o acento foi colocado principalmente sobre uma escatologiaterrestre, muitas vezes em detrimento da dimenso escatolgica transcendente da Escritura.

    As mudanas sociais e polticas conduzem esta abordagem a se propr novas questes e a procurar novasorientaes. Para seu desenvolvimento ulterior e sua fecundidade na Igreja, um fator decisivo ser oesclarecimento de seus pressupostos hermenuticos, de seus mtodos e de sua coerncia com a f e a Tradiodo conjunto da Igreja.

    2.Abordagem feminista

    A hermenutica bblica feminista nasceu por volta do fim do sculo XIX nos Estados Unidos, no contexto scio-cultural da luta pelos direitos da mulher, com o comit de reviso da Bblia. Este ltimo produziu o TheWoman's Bible em dois volumes (New York 1885, 1898). Esta corrente se manifestou com grande vigor e teveum enorme desenvolvimento a partir dos anos '70, em ligao com o movimento de libertao da mulher,sobretudo na Amrica do Norte. Melhor dizendo, deve-se distinguir vrias hermenuticas bblicas feministas,

    pois as abordagens utilizadas so muito diversas. A unidade delas provm do tema comum, isto a mulher, e dofim perseguido: a libertao da mulher e a conquista de direitos iguais aos do homem.

    Deve-se mencionar aqui trs formas principais da hermenutica bblica feminista: a forma radical, a forma neo-ortodoxa e a forma crtica.

    A forma radical recusa completamente a autoridade da Bblia, dizendo que ela foi produzida por homens emvista de assegurar a dominao do homem sobre a mulher (androcentrismo).

    A forma neo-ortodoxa aceita a Bblia como profecia e suscetvel de servir, na medida em que ela toma partidopelos fracos e assim tambm pela mulher; esta orientao adotada como cnon no cnon , para colocar emrelevo tudo aquilo que em favor da libertao da mulher e de seus direitos.

    A forma crtica utiliza uma metodologia sutil e procura redescobrir a posio e o papel da mulher crist nomovimento de Jesus e nas Igrejas paulinas. Naquela poca teria-se adotado o igualitarismo. Mas esta situaoteria sido mascarada, em grande parte, nos escritos do Novo Testamento e ainda mais na sua seqncia, tendo

    progressivamente prevalecido o patriarcalismo e o androcentrismo.

    A hermenutica feminista no elaborou um mtodo novo. Ela se serve dos mtodos correntes em exegese,especialmente o mtodo histrico-crtico. Mas ela acrescenta dois critrios de investigao.

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    O primeiro o critrio feminista, tomado do movimento de libertao da mulher, na linha do movimento maisgeral da teologia da libertao. Ele utiliza uma hermenutica da suspeita: tendo a histria sido regularmenteescrita pelos vencedores, para encontrar a verdade no se deve confiar nos textos, mas procurar neles indciosque revelem outra coisa.

    O segundo critrio sociolgico; ele se baseia no estudo das sociedades dos tempos bblicos, de suaestratificao social e da posio que a mulher ocupava.

    No que concerne os escritos neo-testamentrios, o objeto do estudo, em definitivo, no a concepo da mulher

    expressa no Novo Testamento, mas a reconstruo histrica de duas situaes diferentes da mulher no primeirosculo: aquela que era habitual na sociedade judaica e greco-romana e a outra, inovadora, instituda nomovimento de Jesus e nas Igrejas paulinas, onde teria-se formado uma comunidade de discpulos de Jesus,todos iguais . Um dos apoios invocados para sustentar esta viso das coisas o texto de Gal3,28. O objetivo redescobrir para o presente a histria esquecida do papel da mulher na Igreja das origens.

    Numerosas so as contribuies positivas que provm da exegese feminista. As mulheres tomaram assim umaparte mais ativa na pesquisa exegtica. Elas conseguiram, muitas vezes melhor do que os homens, perceber apresena, o significado e o papel da mulher na Bblia, na histria das origens crists e na Igreja. O horizontecultural moderno, graas sua maior ateno dignidade da mulher e ao papel dela na sociedade e na Igreja, fazcom que sejam dirigidas ao texto bblico interrogaes novas, ocasies de novas descobertas. A sensibilidade

    feminina leva a revelar e a corrigir certas interpretaes correntes, que eram tendenciosas e visavam justificar adominao do homem, sobre a mulher.

    No que concerne o Antigo Testamento, vrios estudos esforaram-se de chegar a uma compreenso melhor daimagem de Deus. O Deus da Bblia no projeo de uma mentalidade patriarcal. Ele Pai, mas ele tambmDeus de ternura e de amor maternais.

    Na medida em que a exegese feminista se fundamenta sobre uma idia preconcebida, ela se expe a interpretaros textos bblicos de maneira tendenciosa e portanto contestvel. Para provar suas teses ela deve muitas vezes, nafalta de melhor, recorrer a argumentos ex silentio. sabido que estes so geralmente duvidosos; eles no podemnunca bastar para estabelecer solidamente uma concluso. De outro lado, a tentativa feita para reconstituir,graas a indcios fugitivos discernidos nos textos, uma situao histrica que esses mesmos textos pretendemquerer esconder, no corresponde mais a um trabalho de exegese propriamente dito, pois ela conduz rejeiodos textos inspirados preferindo uma construo hipottica diferente.

    A exegese feminista prope muitas vezes questes de poder na Igreja que so, sabe-se, objeto de discusses emesmo de confrontos. Nesse domnio, a exegese feminista s poder ser til Igreja na medida em que ela nocair nas armadilhas mesmas que denuncia e quando ela no perder de vista o ensinamento evanglico sobre o

    poder como servio, ensinamento endereado por Jesus a todos os seus discpulos, homens e mulheres.(2)

    F.Leitura fundamentalista

    A leitura fundamentalista parte do princpio de que a Bblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro,deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por interpretao literal ela entendeuma interpretao primria, literalista, isto , excluindo todo esforo de compreenso da Bblia que leve emconta seu crescimento histrico e seu desenvolvimento. Ela se ope assim utilizao do mtodo histrico-crtico, como de qualquer outro mtodo cientfico, para a interpretao da Escritura.

    A leitura fundamentalista teve sua origem na poca da Reforma, com uma preocupao de fidelidade ao sentidoliteral da Escritura. Aps o sculo das Luzes, ela se apresentou no protestantismo como uma proteo contra aexegese liberal. O termo fundamentalista ligado diretamente ao Congresso Bblico Americano realizado em

    Niagara, Estado de New York, em 1895. Os exegetas protestantes conservadores definiram nele cinco pontos

    de fundamentalismo : a inerrncia verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, adoutrina da expiao vicria e a ressurreio corporal quando da segunda vinda de Cristo. Logo que a leiturafundamentalista da Bblia se propagou em outras partes do mundo ela fez nascer outras espcies de leituras,igualmente literalistas , na Europa, sia, Africa e Amrica do Sul. Esse gnero de leitura encontra cada vezmais adeptos, no decorrer da ltima parte do sculo XX, em grupos religiosos e seitas assim como tambm entreos catlicos.

    http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#fn2http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#fn2
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    Se bem que o fundamentalismo tenha razo em insistir sobre a inspirao divina da Bblia, a inerrncia daPalavra de Deus e as outras verdades bblicas inclusas nos cinco pontos fundamentais, sua maneira de apresentaressas verdades est enraizada em uma ideologia que no bblica, apesar do que dizem seus representantes. Elaexige uma forte adeso a atitudes doutrinrias rgidas e impe, como fonte nica de ensinamento a respeito davida crist e da salvao, uma leitura da Bblia que recusa todo questionamento e toda pesquisa crtica.

    O problema de base dessa leitura fundamentalista que recusando de levar em considerao o carter histricoda revelao bblica, ela se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da prpria Encarnao. Ofundamentalismo foge da estreita relao do divino e do humano no relacionamento com Deus. Ele se recusa em

    admitir que a Palavra de Deus inspirada foi expressa em linguagem humana e que ela foi redigida, sob ainspirao divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram limitados. Por esta razo, ele tende atratar o texto bblico como se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Esprito e no chega a reconhecerque a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionadas por uma ou outrapoca. Ele no d nenhuma ateno s formas literrias e s maneiras humanas de pensar presentes nos textos

    bblicos, muitos dos quais so fruto de uma elaborao que se estendeu por longos perodos de tempo e leva amarca de situaes histricas muito diversas.

    O fundamentalismo insiste tambm de uma maneira indevida sobre a inerrncia dos detalhes nos textos bblicos,especialmente em matria de fatos histricos ou de pretensas verdades cientficas. Muitas vezes ele tornahistrico aquilo que no tinha a pretenso de historicidade, pois ele considera como histrico tudo aquilo que

    reportado ou contado com os verbos em um tempo passado, sem a necessria ateno possibilidade de umsentido simblico ou figurativo.

    O fundamentalismo tem muitas vezes tendncia a ignorar ou a negar os problemas que o texto bblico comportana sua formulao hebraica, aramaica ou grega. Ele muitas vezes estreitamente ligado a uma tradiodeterminada, antiga ou moderna. Ele se omite igualmente de considerar as releituras de certas passagens nointerior da prpria Bblia.

    No que concerne os Evangelhos, o fundamentalismo no leva em considerao o crescimento da tradioevanglica, mas confunde ingenuamente o estgio final desta tradio (o que os evangelistas escreveram) com oestgio inicial (as aes e as palavras do Jesus da histria). Ele negligencia assim um dado importante: a maneiracom a qual as prprias primeiras comunidades crists compreenderam o impacto produzido por Jesus de Nazare sua mensagem. Ora, aqui est um testemunho da origem apostlica da f crist e sua expresso direta. Ofundamentalismo desnatura assim o apelo lanado pelo prprio Evangelho.

    O fundamentalismo tem igualmente tendncia a uma grande estreiteza de viso, pois ele considera conforme realidade uma antiga cosmologia j ultrapassada, s porque encontra-se expressa na Bblia; isso impede odilogo com uma concepo mais ampla das relaes entre a cultura e a f. Ele se apia sobre uma leitura no-crtica de certos textos da Bblia para confirmar idias polticas e atitudes sociais marcadas por preconceitos,racistas, por exemplo, simplesmente contrrios ao Evangelho cristo.

    Enfim, em sua adeso ao princpio do sola Scriptura , o fundamentalismo separa a interpretao da Bblia daTradio guiada pelo Esprito, que se desenvolve autenticamente em ligao com a Escritura no seio dacomunidade de f. Falta-lhe entender que o Novo Testamento tomou forma no interior da Igreja crist e que ele Escritura Santa desta Igreja, cuja existncia precedeu a composio de seus textos. Assim, o fundamentalismo muitas vezes anti-eclesial; ele considera negligenciveis os credos, os dogmas e as prticas litrgicas que setornam parte da tradio eclesistica, como tambm a funo de ensinamento da prpria Igreja. Ele se apresentacomo uma forma de interpretao privada, que no reconhece que a Igreja fundada sobre a Bblia e tira suavida e sua inspirao das Escrituras.

    A abordagem fundamentalista perigosa, pois ela atraente para as pessoas que procuram respostas bblicaspara seus problemas da vida. Ela pode engan-las oferecendo-lhes interpretaes piedosas mas ilusrias, ao invs

    de lhes dizer que a Bblia no contm necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas. Ofundamentalismo convida, sem diz-lo, a uma forma de suicdio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsacerteza, pois ele confunde inconscientemente as limitaes humanas da mensagem bblica com a substanciadivina dessa mensagem.

    II. QUESTES DE HERMENUTICA

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    A.Hermenuticas filosficas

    A atividade da exegese chamada a ser repensada levando-se em considerao a hermenutica filosficacontempornea, que colocou em evidncia a implicao da subjetividade no conhecimento, especialmente noconhecimento histrico. A reflexo hermenutica teve nova fora com a publicao dos trabalhos de FriedrichSchleiermacher, Wilhelm Dilthey e, sobretudo, Martin Heidegger. Na trilha destes filsofos, mas tambmdistanciando-se deles, diversos autores aprofundaram a teoria hermenutica contempornea e suas aplicaes Escritura. Entre eles mencionaremos especialmente Rudolf Bultmann, Hans Georg Gadamer e Paul Ricceur. Nose pode aqui resumir-lhes o pensamento. Ser suficiente indicar algumas idias centrais da filosofia deles,

    aquelas que tm uma incidncia sobre a interpretao dos textos bblicos.(3)

    1.Perspectivas modernas

    Constatando a distncia cultural entre o mundo do primeiro sculo e aquele do sculo XX, e preocupado emobter que a realidade da qual trata a Escritura fale ao homem contemporneo, Bultmann insistiu na pr-compreenso necessria a toda compreenso e elaborou a teoria da interpretao existencial dos escritos do

    Novo Testamento. Apoiando-se no pensamento de Heidegger, ele afirma que a exegese de um texto bblico no possvel sem pressupostos que dirigem a compreenso. A pr-compreenso ( Vorverstndnis ) fundamentada na relao vital ( Lebensverhltnis ) do intrprete com a coisa da qual fala o texto. Para evitar osubjetivismo, preciso no entanto que a pr-compreenso se deixe aprofundar e enriquecer, at mesmo se

    modificar e se corrigir, por aquilo do qual fala o texto.

    Interrogando-se sobre a conceituao justa que definir o questionamento a partir do qual os textos da Escriturapodero ser entendidos pelo homem de hoje, Bultmann pretende encontrar a resposta na analtica existencial deHeidegger. Os existenciais heideggerianos teriam um alcance universal e ofereceriam as estruturas e os conceitosmais apropriados para a compreenso da existncia humana revelada na mensagem do Novo Testamento.

    Gadamer sublinha igualmente a distncia histrica entre o texto e seu intrprete. Ele retoma e desenvolve ateoria do crculo hermenutico. As antecipaes e as pr-concepes que marcam nossa compreenso provm datradio que nos sustenta. Esta consiste em um conjunto de dados histricos e culturais, que constituem nossocontexto vital, nosso horizonte de compreenso. O intrprete deve entrar em dilogo com a realidade qual serefere o texto. A compreenso se opera na fuso dos horizontes diferentes do texto e de seu leitor (Horizontverschmelzung ). Ela s possvel se h uma dependncia ( Zugehrigkeit ), isto , uma afinidadefundamental entre o intrprete e seu objeto. A hermenutica um processo dialtico: a compreenso de um texto sempre uma compreenso mais ampla de si mesmo.

    Do pensamento hermenutico de Ricoeur retm-se primeiramente o relevo dado funo de distanciao comocondio necessria a uma justa apropriao do texto. Uma primeira distncia existe entre o texto e seu autor,

    pois, uma vez produzido, o texto adquire uma certa autonomia em relao a seu autor; ele comea uma carreirade sentidos. Uma outra distancia existe entre o texto e seus leitores sucessivos; estes devem respeitar o mundo dotexto em sua alteridade. Os mtodos de anlise literria e histrica so assim necessrios interpretao. No

    entanto, o sentido de um texto s pode ser dado plenamente se ele atualizado na vida de leitores que seapropriam dele. A partir da prpria situao, os leitores so chamados a realar significados novos, na linha dosentido fundamental indicado pelo texto. O conhecimento bblico no deve se fixar s na linguagem; ele procuraatingir a realidade da qual fala o texto. A linguagem religiosa da Bblia uma linguagem simblica que faz

    pensar , uma linguagem da qual no se cessa de descobrir as riquezas de sentido, uma linguagem que visa umarealidade transcendente e que, ao mesmo tempo, desperta a pessoa humana dimenso profunda de seu ser.

    2. Utilidade para a exegese

    O que dizer dessas teorias contemporneas de interpretao dos textos? A Bblia Palavra de Deus para todas aspocas que se sucedem. Conseqentemente no se poderia dispensar uma teoria hermenutica que permite

    incorporar os mtodos de crtica literria e histrica em um modelo de interpretao mais amplo. Trata-se deultrapassar a distncia entre o tempo dos autores e primeiros destinatrios dos textos bblicos e nossa pocacontempornea, de modo a atualizar corretamente a mensagem dos textos para alimentar a vida de f doscristos. Toda exegese dos textos chamada a ser completada por uma hermenutica , no sentido recente dotermo.

    http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#fn3http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#fn3
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    A necessidade de uma hermenutica, isto , de uma interpretao no hoje do nosso mundo, encontra umfundamento na prpria Bblia e na histria de sua interpretao. O conjunto dos escritos do Antigo e do NovoTestamento apresenta-se como o produto de um longo processo de reinterpretao dos acontecimentosfundadores, ligado com a vida das comunidades de fiis. Na tradio eclesial, os primeiros intrpretes daEscritura, os Padres da Igreja, consideravam que a exegese que faziam dos textos s era completa quando elesevidenciavam o sentido para os cristos do tempo deles e na situao em que viviam. S se fiel intencionalidade dos textos bblicos na medida que se tenta reencontrar no corao de sua formulao a realidadede f que eles exprimem, e se esta se liga experincia dos fiis do nosso mundo.

    A hermenutica contempornea uma reao sadia ao positivismo histrico e tentao de aplicar ao estudo daBblia os critrios de objetividade utilizados nas cincias naturais. De um lado, os acontecimentos narrados naBblia so acontecimentos interpretados. De outro lado, toda exegese dos relatos desses acontecimentos implicanecessariamente a subjetividade do exegeta. O conhecimento justo do texto bblico s acessvel quele que temuma afinidade viva com aquilo do qual fala o texto. A pergunta que se faz a todo intrprete a seguinte: qualteoria hermenutica torna possvel a justa apreenso da realidade profunda da qual fala a Escritura e suaexpresso significativa para o homem de hoje?

    preciso reconhecer, efetivamente, que certas teorias hermenuticas so inadequadas para interpretar aEscritura. Por exemplo, a interpretao existencial de Bultmann conduz ao aprisionamento da mensagem cristna argola de uma filosofia particular. Alm disso, em virtude dos pressupostos que comandam esta

    hermenutica, a mensagem religiosa da Bblia esvaziada em grande parte de sua realidade objetiva (naseqncia de uma excessiva demitizao ) e tende a se subordinar a uma mensagem antropolgica. A filosofiatorna-se norma de interpretao invs de ser instrumento de compreenso daquilo que o objeto central de todainterpretao: a pessoa de Jesus Cristo e os acontecimentos da salvao realizados em nossa histria. Umaautntica interpretao da Escritura primeiramente acolhida de um sentido dado nos acontecimentos e, demaneira suprema, na pessoa de Jesus Cristo.

    Este sentido expresso nos textos. Para evitar o subjetivismo, uma boa atualizao deve ento ser fundada sobreo estudo do texto e os pressupostos de leitura devem ser constantemente submetidos verificao atravs dotexto.

    A hermenutica bblica, se ela da competncia da hermenutica geral de todo texto literrio e histrico, aomesmo tempo um caso nico dentro dela. Suas caractersticas especficas vm-lhe de seu objeto. Osacontecimentos da salvao e sua realizao na pessoa de Jesus Cristo do sentido a toda a histria humana. Asnovas interpretaes histricas s podero ser descoberta e desdobramento dessas riquezas de sentido. O relato

    bblico desses acontecimentos no pode ser plenamente entendido s pela razo. Pressupostos particularescomandam sua interpretao, como a f vivida na comunidade eclesial e luz do Esprito. Com o crescimento davida no Esprito cresce, no leitor, a compreenso das realidades das quais fala o texto bblico.

    B.Sentido da Escritura inspirada

    A contribuio moderna das hermenuticas filosficas e os desenvolvimentos recentes do estudo cientfico dasliteraturas, permitem exegese bblica de aprofundar a compreenso de sua tarefa, cuja complexidade tornou-semais evidente. A exegese antiga, que evidentemente no podia levar em considerao as exigncias cientficasmodernas, atribua a todo texto da Escritura sentidos de vrios nveis. A distino mais corrente se fazia entresentido literal e sentido espiritual. A exegese medieval distinguiu no sentido espiritual trs aspectos diferentesque se relacionam, respectivamente, verdade revelada, conduta a ser mantida e realizao final. Da oclebre dstico de Agostinho da Dinamarca (sculo XIII): Littera gesta docet, quid credas allegoria, moralisquid agas, quid speres anagogia .

    Como reao a esta multiplicidade de sentidos, a exegese histrico-c