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A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA IGREJA PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA ÍNDICE INTRODUÇÃO I. MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAÇÃO II. QUESTÕES DE HERMENÊUTICA III. DIMENSÕES CARACTERÍSTICAS DA INTERPRETAÇÃO CATÓLICA IV. INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA VIDA DA IGREJA CONCLUSÃO INTRODUÇÃO A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca importantes discussões. Elas adquiriram dimensões novas nestes últimos anos. Dado à importância fundamental da Bíblia para a fé cristã, para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras religiões, a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito. A. Problemática atual O problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna como algumas vezes se quer fazer crer. A Bíblia mesma atesta que sua interpretação apresenta dificuldades. Ao lado de textos límpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo certos oráculos de Jeremias, Daniel se interrogava longamente sobre o sentido deles (Dn 9,2). Segundo os Atos dos Apóstolos, um etíope do primeiro século encontrava-se na mesma situação a propósito de uma passagem do livro de Isaías (Is 53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intérprete (At 8,30-35). A segunda carta de Pedro declara que « nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretação particular » (2 Pd 1,20) e ela observa, de outro lado, que as cartas do apóstolo Paulo contêm « alguns pontos difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para sua própria perdição » (2 Pd 3,16). O problema é, portanto, antigo mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo: doravante, para encontrar os fatos e palavras de que fala a Bíblia, os leitores devem voltar a quase vinte ou trinta séculos atrás, o que não deixa de levantar dificuldades. De outro lado, as questões de interpretação

A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA IGREJA · PDF fileOs estudos bíblicos tiveram um progresso notável na Igreja católica e o valor científico deles foi cada vez mais

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  • A INTERPRETAO DA BBLIA NA IGREJA

    PONTIFCIA COMISSO BBLICA

    NDICE

    INTRODUO

    I. MTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAO

    II. QUESTES DE HERMENUTICA

    III. DIMENSES CARACTERSTICAS DA INTERPRETAO CATLICA

    IV. INTERPRETAO DA BBLIA NA VIDA DA IGREJA

    CONCLUSO

    INTRODUO

    A interpretao dos textos bblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca

    importantes discusses. Elas adquiriram dimenses novas nestes ltimos anos. Dado importncia

    fundamental da Bblia para a f crist, para a vida da Igreja e para as relaes dos cristos com os

    fiis das outras religies, a Pontifcia Comisso Bblica foi solicitada a se pronunciar a esse

    respeito.

    A. Problemtica atual

    O problema da interpretao da Bblia no uma inveno moderna como algumas vezes se quer

    fazer crer. A Bblia mesma atesta que sua interpretao apresenta dificuldades. Ao lado de textos

    lmpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo certos orculos de Jeremias, Daniel se

    interrogava longamente sobre o sentido deles (Dn 9,2). Segundo os Atos dos Apstolos, um etope

    do primeiro sculo encontrava-se na mesma situao a propsito de uma passagem do livro de

    Isaas (Is 53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intrprete (At 8,30-35). A segunda carta de

    Pedro declara que nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretao particular (2 Pd

    1,20) e ela observa, de outro lado, que as cartas do apstolo Paulo contm alguns pontos difceis

    de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para sua

    prpria perdio (2 Pd 3,16).

    O problema , portanto, antigo mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo: doravante, para

    encontrar os fatos e palavras de que fala a Bblia, os leitores devem voltar a quase vinte ou trinta

    sculos atrs, o que no deixa de levantar dificuldades. De outro lado, as questes de interpretao

    http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#INTRODUO#INTRODUOhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#I. MTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAO#I. MTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAOhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#II. QUESTES DE HERMENUTICA#II. QUESTES DE HERMENUTICAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#III. DIMENSES CARACTERSTICAS DA INTERPRETAO CATLICA#III. DIMENSES CARACTERSTICAS DA INTERPRETAO CATLICAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#IV. INTERPRETAO DA BBLIA NA VIDA DA IGREJA#IV. INTERPRETAO DA BBLIA NA VIDA DA IGREJAhttp://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html#CONCLUSO#CONCLUSO

  • tornaram-se mais complexas nos tempos modernos devido aos progressos feitos pelas cincias

    humanas. Mtodos cientficos foram aperfeioados no estudo do textos da antiguidade. Em que

    proporo esses mtodos podem ser considerados apropriados interpretao da Sagrada Escritura?

    A esta questo a prudncia pastoral da Igreja durante muita tempo respondeu de maneira muito

    reticente, pois muitas vezes o mtodos, apesar de seus elementos positivos, encontravam-se liga dos

    a opes opostas f crist. Mas uma evoluo positiva se produziu, marcada por uma srie de

    documentos pontifcios, desde encclica Providentissimus Deus de Leo XIII (18 novembro 1893

    at a encclica Divino afflante Spiritu de Pio XII (30 setembro 1943), e ela foi confirmada pela

    declarao Sancta Mater Ecclesie (21 abril 1964) da Pontifcia Comisso Bblica e sobretudo pele

    Constituio Dogmtica Dei Verbum do Concilio Vaticano II (18 novembro 1965).

    A fecundidade desta atitude construtiva manifestou-se de uma maneira inegvel. Os estudos

    bblicos tiveram um progresso notvel na Igreja catlica e o valor cientfico deles foi cada vez mais

    reconhecido no mundo dos estudiosos e entre os fiis. O dilogo ecumnico foi consideravelmente

    facilitado. A influncia da Bblia sobre a teologia se aprofundou e contribuiu renovao teolgica.

    O interesse pela Bblia aumentou entre os catlicos e favoreceu o progresso da vida crist. Todos

    aqueles que adquiriram uma formao sria nesse campo estimam doravante impossvel retornar a

    um estado de interpretao pr-crtica, pois o julgam, com razo, claramente insuficiente.

    Mas, ao mesmo tempo em que o mtodo cientfico mais divulgado o mtodo histrico-crtico

    praticado correntemente em exegese, inclusive na exegese catlica, ele mesmo encontra-se em

    discusso: de um lado, no prprio mundo cientfico, pela apario de outros mtodos e abordagens,

    e, de outro lado, pelas crticas de numerosos cristos que o julgam deficiente do ponto de vista da

    f. Particularmente atento, como seu nome o indica, evoluo histrica dos textos ou das tradies

    atravs do tempo ou diacronia o mtodo histrico-crtico encontra-se atualmente em

    concorrncia, em alguns ambientes, com mtodos que insistem na compreenso sincrnica dos

    textos, tratando-se da lngua, da composio, da trama narrativa ou do esforo de persuaso deles.

    Alm disso, o cuidado que os mtodos diacrnicos tm em reconstituir o passado, para muitos

    substitudo pela tendncia de interrogar os textos colocando-os em perspectivas do tempo presente,

    seja de ordem filosfica, psicanaltica, sociolgica, poltica, etc. Esse pluralismo de mtodos e

    abordagens apreciado por alguns como um indcio de riqueza, mas a outros ele d a impresso de

    uma grande confuso.

    Real ou aparente, essa confuso traz novos argumentos aos adversrios da exegese cientfica. O

    conflito das interpretaes manifesta, segundo eles, que no se ganha nada submetendo os textos

    bblicos s exigncias dos mtodos cientficos, mas, ao contrrio, perde-se bastante. Eles sublinham

    que a exegese cientfica obtm como resultado o provocar perplexidade e dvida sobre inumerveis

    pontos que, at ento, eram admitidos pacificamente; que ele fora alguns exegetas a tomar

    posies contrrias f da Igreja sobre questes de grande importncia, como a concepo virginal

    de Jesus e seus milagres, e at mesmo sua ressurreio e sua divindade.

    Mesmo quando no finaliza em tais negaes, a exegese cientfica se caracteriza, segundo eles, pela

    sua esterilidade no que concerne o progresso da vida crist. Ao invs de permitir um acesso mais

    fcil e mais seguro s fontes vivas da Palavra de Deus, ela faz da Bblia um livro fechado, cuja

    interpretao sempre problemtica exige tcnicas refinadas fazendo dela um domnio reservado a

    alguns especialistas. A estes, alguns aplicam a frase do Evangelho: Tomastes a chave da cincia!

    Vs mesmos no entrastes e impedistes os que queriam entrar! (Lc 11,52; cf Mt 23,13).

    Em consequncia, ao paciente labor do exegeta cientfico estima-se necessrio substituir abordagens

    mais simples, como uma ou outra prtica de leitura sincrnica que se considera como suficiente, ou

    mesmo, renunciando a todo estudo, preconiza-se uma leitura da Bblia dita espiritual ,

    entendendo-se pela expresso uma leitura unicamente guiada pela inspirao pessoal subjetiva e

    http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_divino-afflante-spiritu_po.htmlhttp://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html

  • destinada a alimentar esta inspirao. Alguns procuram na Bblia sobretudo o Cristo da viso

    pessoal deles e a satisfao da religiosidade espontnea que tm. Outros pretendem encontrar nela

    respostas diretas a toda sorte de questes, pessoais ou coletivas. Numerosas so as seitas que

    propem como nica verdadeira uma interpretao da qual elas afirmam terem tido a revelao.

    B. O objetivo deste documento

    H de se considerar seriamente, portanto, os diversos aspectos da situao atual em matria de

    interpretao bblica, de esta atento s crticas, s queixas e s aspiraes que se exprimem a esse

    respeito, de apreciar as possibilidades abertas pelos novos mtodos e abordagens e de procurar,

    enfim, precisar a orientao que melhor corresponde misso do exegeta na Igreja catlica.

    Esta a finalidade deste documento. A Pontifcia Comisso Bblica deseja indicar os caminhos que

    convm tomar para chegar a uma interpretao da Bblia que seja to fiel quanto possvel a seu

    carter ao mesmo tempo humano e divino. Ela no pretende tomar aqui posio sobre todas as

    questes que so feitas a respeito da Bblia, como por exemplo, a teologia da inspirao. O que ela

    quer examinar os mtodos suscetveis de contriburem com eficcia a valorizar todas as riquezas

    contidas nos textos bblicos, a fim de que a Palavra de Deus possa tornar-se sempre mais o alimento

    espiritual dos membros de seu povo, a fonte para eles de uma vida de f, de esperana e de amor,

    assim como uma luz para toda a humanidade (cf Dei Verbum, 21).

    Para alcanar este fim, o presente documento:

    1. far uma breve descrio dos diversos mtodos e abordagens, (1) indicando suas possibilidades e

    seus limites;

    2. examinar algumas questes de hermenutica;

    3. propor uma reflexo sobre as dimenses caractersticas da interpretao catlica da Bblia e

    sobre suas relaes com as outras disciplinas teolgicas;

    4. considerar, enfim, o lugar que ocupa a interpretao da Bblia na vida da Igreja.

    I. MTODOS E AB