12
A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA GESTÃO DAS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E EDUCAÇÃO NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE EVASÃO ESCOLAR E VIOLÊNCIA SEXUAL. Andrea Franzini 1 Resumo As políticas sociais incidem na vida das pessoas e estão intrinsicamente ligadas aos modelos de gestão pública. No trabalho apresentam-se modelos de gestão pública e desafios para a integração da Assistência Social, Saúde, Educação pela intersetorialidade. Analisa-se a intersetorialidade como estratégia de gestão pública no atendimento de crianças e adolescentes em gravidez precoce e abandono escolar. Referência teórica é a intersetorialidade aplicada aos modelos de gestão como inovação das políticas. A intersetorialidade é marco legal das políticas podendo ser fator de garantia ou revitimização. É necessário que gestores e profissionais efetivem mecanismos permanentes para fortalecer a intersetorialidade quebrando o paradigma da fragmentação. Palavras-Chave: Intersetorialidade. Gestão Pública. Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Abstract Social policies focus on ensuring people's lives and are intrinsically linked to public management models. The paper presents models of public management and challenges for the integration of Social Assistance, Health, Education from the intersectoriality. Intersectoriality is analyzed as a strategy of public management in the care of children and adolescents in early pregnancy and school dropout. Theoretical reference is the intersectoriality applied to the management models as innovation of the policies. Intersectoriality is the legal framework of policies and may be a guarantee or re-victimization factor. It is necessary that managers and professionals implement permanent mechanisms to strengthen intersectoral practices by breaking the paradigm of fragmentation. 1 Assistente Social. Mestre em Administração. Faculdade de Ciência e Tecnologia da AmazôniaFAM. E-mail: [email protected].

A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA GESTÃO DAS

POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E EDUCAÇÃO NA GARANTIA

DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO

DE EVASÃO ESCOLAR E VIOLÊNCIA SEXUAL.

Andrea Franzini1

Resumo

As políticas sociais incidem na vida das pessoas e estão intrinsicamente ligadas aos modelos de gestão pública. No trabalho apresentam-se modelos de gestão pública e desafios para a integração da Assistência Social, Saúde, Educação pela intersetorialidade. Analisa-se a intersetorialidade como estratégia de gestão pública no atendimento de crianças e adolescentes em gravidez precoce e abandono escolar. Referência teórica é a intersetorialidade aplicada aos modelos de gestão como inovação das políticas. A intersetorialidade é marco legal das políticas podendo ser fator de garantia ou revitimização. É necessário que gestores e profissionais efetivem mecanismos permanentes para fortalecer a intersetorialidade quebrando o paradigma da fragmentação. Palavras-Chave: Intersetorialidade. Gestão Pública. Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Abstract Social policies focus on ensuring people's lives and are intrinsically linked to public management models. The paper presents models of public management and challenges for the integration of Social Assistance, Health, Education from the intersectoriality. Intersectoriality is analyzed as a strategy of public management in the care of children and adolescents in early pregnancy and school dropout. Theoretical reference is the intersectoriality applied to the management models as innovation of the policies. Intersectoriality is the legal framework of policies and may be a guarantee or re-victimization factor. It is necessary that managers and professionals implement permanent mechanisms to strengthen intersectoral practices by breaking the paradigm of fragmentation.

1 Assistente Social. Mestre em Administração. Faculdade de Ciência e Tecnologia da Amazônia–FAM. E-mail:

[email protected].

Page 2: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

Keywords: Intersectoriality. Public administration. Human Rights of Children and Adolescents.

I. INTRODUÇÃO

A presente reflexão teórica acerca da gestão pública das políticas de

Assistência Social, Educação e Saúde tendo como prática inovadora o princípio da

intersetorialidade nos casos de violação dos Direitos Humanos de crianças e

adolescentes vítimas de evasão escolar com potencial perda do benefício do

Programa Bolsa Família e violência sexual contra adolescentes menores de

quatorze anos, surge de minha dissertação de Mestrado em Administração

apresentada na Universidade da Amazônia em dezembro de 2015. O resultado da

pesquisa apresenta a prática intersetorial como um consistente desafio na

necessária trajetória de garantia dos direitos humanos que precisa decorrer da

efetivação das políticas públicas.

II. GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICA E INTERSETORIALIDADE

A gestão das políticas públicas: modelos históricos brasileiros

A gestão das políticas públicas representa, em sua construção histórica

global e brasileira, um fator primordial e essencial no processo de luta pelo

fortalecimento dos Direitos Humanos de todos os cidadãos e cidadãs. Sob esse

aspecto é necessário observar como as políticas públicas, sobretudo as sociais, vem

sendo gerenciadas para atender a integralidade dos Direitos Humanos, em especial

da geração de crianças e adolescentes que necessitam ser tratados como seres

holísticos e integrais. Por esse fundamento o princípio da intersetorialidade precisa

ser analisado na gestão das políticas públicas como elemento impulsionador de

novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos

indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis de crianças e adolescentes.

O princípio da intersetorialidade e sua aplicação por meio gestão pública foi e

continua sendo condicionada pelos diferentes modelos que foram sendo desenhados e

impostos à sociedade na história do Brasil. Com base nas principais literaturas podemos

identificar quatro principais modelos de gestão das políticas públicas, por meio da

Page 3: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

administração pública, existentes no Brasil sendo os modelos patrimonialista, burocrático,

gerencialista e societal (social). O patrimonialismo segundo Rocha (1997, p. 231) pode ser

definido como segue:

O patrimonialismo na gestão da coisa pública; o personalismo na Administração Pública; o mandonismo na prática dos governos; o familiarismo no provimento dos cargos que teriam que ser públicos (e o são na nomenclatura legal), mas que são particularmente, fraternal ou amistosamente, guardados; todos os fatores, enfim, que tornam a res que deveria ser pública, tão pouco do povo substancialmente, impessoalmente, respeitosamente tratado, ainda estão presentes na prática administrativa brasileira.

O patrimonialismo foi muito criticado e a partir da crise mundial de 1929

provocando o fortalecimento dos ideais burocráticos no Brasil, sobretudo a partir das

décadas de ‘40 e ‘50 conforme argumenta Sarah: (2011, p. 823) :

A reforma administrativa do Estado Novo teve como propósito instaurar no país um serviço público nos moldes da burocracia weberiana, com base nos princípios do mérito e da impessoalidade, que viesse se contrapor às características patrimonialistas até então prevalecentes na administração pública. Esta administração moderna era parte de um projeto mais abrangente para o país — um projeto nacional e desenvolvimentista — no qual o Estado assumia um papel central, o de promotor do desenvolvimento e de instaurador da ordem moderna.

Se de um lado as lutas sociais que ocorrem no contexto global nas

décadas ’60 e ’70 tem reflexos no Brasil durante a ditadura impulsionando a

Constituição Federal de 1988 do outro lado a crise do Estado provoca um novo olhar

acerca da administração pública colocando em cheque o Estado de Bem Estar

Social. No Brasil observa-se o início das grandes reformas da administração

pública com a introdução do modelo gerencialista neoliberal como descreve Neto

(2010, p.140):

Surge, então, uma nova cultura gerencial que apregoa um modelo pós-fordista de trabalho e produção, e que defende o enxugamento das empresas, o crescimento das pequenas unidades produtivas, formatação de contratos flexíveis de trabalho. Surgem, paralelamente, as chamadas panaceias apregoadas pelos “gurus” da administração e que se apresentam como solução para os problemas de produção, sem maior comprometimento com os aspectos metodológicos e teóricos, como a reengenharia e a qualidade total. A nova cultura gerencial no setor público se apoiava a partir de 1987, em grande parte, no discurso de Young de defesa do empreendedorismo como um aspecto desejável e natural da personalidade humana e da ideia de que o empreendedorismo comunitário poderia substituir as provisões sociais do welfare state por iniciativas não lucrativas e de livre mercado.

Todavia, no mesmo contexto social, político e econômico, teve início,

após período ditatorial, uma fase de mobilização da sociedade brasileira pela

democracia. Segundo Paula (2005, p.44) seria necessário mudar o padrão de

relação Estado-Sociedade:

É importante ressaltar que a concretização dessas mudanças depende da maneira como o Estado e a sociedade brasileira se articulam para determinar seus papéis e

Page 4: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

espaços. Por outro lado, há a necessidade de alterar as históricas restrições impostas pela lógica de funcionamento da máquina estatal e a tendência à cultura

política autoritária e patrimonial.

Como indica Tenório (1998) o novo modelo de administração pública, que

começa a se configurar a partir de 1990 e se pauta no conceito de gestão social ou

societal, busca ultrapassar os limites da tecnoburocracia, do gerencialismo, para

promover a democracia ou, conforme argumenta Tenório: “a gestão social tenta

substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um gerenciamento mais

participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por meio de

diferentes sujeitos sociais” (TENÓRIO, 2002, p. 126).

Nesse contexto histórico da gestão pública surge o princípio da

governança como novo modelo de qualificação dessa busca de integração Estado-

sociedade conforme descrevem Kissler e Heidemann (2006, p. 483) ao analisarem a

governança pública no contexto da administração pública Alemã descrevendo as

mudanças do Estado por meio de três principais fases de transição do Estado

convencional para um novo modelo:

Assim, conceitualmente, o Estado tradicional vem se transformando de um Estado de serviço, produtor do bem público, em um Estado que serve de garantia à produção do bem público; de um Estado ativo, provedor solitário do bem público, em um Estado ativador, que aciona e coordena outros atores a produzir com ele; de um Estado dirigente ou gestor em um Estado cooperativo, que produz o bem público em conjunto com outros atores.

As políticas sociais brasileiras foram administradas historicamente a partir

desses modelos e a luta de muitas categorias de profissionais proporcionou

mudanças significativas de posturas dos gestores. As políticas de Assistência Social,

Educação e Saúde, como outras políticas sociais, se instalaram graças á lutas dos

movimentos sociais e o historicamente era uma concessão dos “nobres de coração

bondoso” se tornou direito humano constitucional. Nesse contexto a infância

brasileira foi sendo parte da mudança e a partir de 1988 a Constituição Federal em

seu artigo 227 estabelece a infância e adolescência brasileira como Prioridade

Absoluta e, sucessivamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal

8069/90).

2.2 O princípio da intersetorialidade: conceitos e relação com as políticas

públicas

Page 5: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

Do ponto de vista conceitual a intersetorialidade como princípio da gestão

das políticas públicas é tratada por vários autores. Segundo Tumelero (2013, p.7) a

intesertorialidade pode ser considerada a partir de três vertentes principais: a

dimensão epistemológica conceitual, a dimensão ético política e a dimensão jurídico-

administrativa. A primeira dimensão, epistemológica-conceitual, se refere ao

conceito de intersetorialidade como sinônimo de transetorialidade indicando a gestão

como processo de integração, articulação do conhecimento e das experiências dos

setores responsáveis pela execução de plano, programas e projetos se tornando

meio de alcance de resultados em situações complexas. Em relação à dimensão

ético-política da intersetorialidade a autora faz referência às interferências dos

diferentes projetos ideológicos e políticos que existem na disputa para o espaço

público e, inclusive, consequências da cultura política dos atores em presença na

cena pública. Sob esse ponto de vista Tumulero (2013, p.10) aponta algumas

posturas éticas que possibilitam o estabelecimento de algumas alianças estratégicas

rumo à efetivação da intersetorialidade das políticas públicas. Sendo assim

caminhos indicados são:

a) Liberdade de manifestação, estímulo aos debates políticos e às práticas que possibilitem autonomia e emancipação dos sujeitos sociais; b) Defesa dos Direitos Humanos e dos Direitos Sociais; c) Estímulo à participação social, entendida a dimensão de historicidade que implica tais processos; d) Defesa dos serviços sociais públicos na consolidação da cidadania – operados como bens públicos e não atendendo a interesses privados. Universalização dos serviços públicos.

A dimensão jurídico-administrativa da gestão tange aos processos de

construção de estratégias de caráter técnico, para efetivação da intersetorialidade.

Nesse sentido são necessários instrumentos que proporcionem ações efetivas a

partir da elaboração e pactuação de protocolos intra-setoriais, contemplando

diferentes níveis de complexidade dos serviços e de projetos, protocolos

intersetoriais, como a constituição de redes de políticas públicas com a participação

de organizações da sociedade civil em, sobretudo no campo da política social.

Inojosa (2001, p. 4) define a intersetorialidade como a articulação de

saberes e experiências para o planejamento, a realização de avaliação de políticas,

programas e projetos, cujo fim é alcançar resultados cooperativos em situações

complexas. A ausência de uma dinâmica pluridimensional significa que os diferentes

operadores públicos e associados atuam sobre os serviços que lhes são mais

Page 6: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

diretamente afetos. A intersetorialidade se torna, assim, uma qualidade necessária

ao processo de intervenção. Programas, projetos, equipes técnicas são desafiados

ao diálogo, ao trabalho conjunto com a perspectiva da inclusão social. A

intersetorialidade se torna elemento político indispensável na garantia dos direitos de

cidadãos e cidadãs, não como fator de favor para os cidadãos sim como

cumprimento da integralidade do “direito a ter direitos” conforme cita Pereira (apud

Monnerat, Almeida e Souza, 2014 p. 27):

E há, ainda quem veja no exercício da intersetorialidade a possibilidade de substituição de necessidades por direitos, como se as políticas sociais não tivessem como principal atribuição a concretização de direitos sociais para atender necessidades que no sistema capitalista, constituem a força desencadeadora da conquista da cidadania e de mudanças. Afinal, não se pode esquecer que o trabalho constitui uma necessidade vital e eterna, que medeia a relação do homem com a natureza e propicia a transformação de ambos. Por fim, e em maior conformidade com a perspectiva dialética, há os que percebem a presença de contradições e conflitos nas relações intersetoriais; e isso indica, no âmbito dessa temática, o prenuncio de uma abordagem analítica mais complexa, dinâmica e relacional, que pode ser mais bem explicitada a partir do exame da contribuição que o conceito de interdisciplinaridade poderá fornecer à noção de intersetorialidade.

De acordo com essa perspectiva observa-se que muitos gestores atuam

buscando respostas diferentes e isoladas, para resolver situações sociais

complexas, que são comuns a outros setores, inclusive considerando o mesmo

público alvo. A setorialização das demandas sociais provoca a não valorização do

cidadão na integralidade de seus direitos e, portanto, proporciona serviços públicos

fragmentados em seus planejamento e execução. Segundo Santos (São Paulo

2011, p.32):

A intersetorialidade é, porém, resultado de um processo ainda pouco claro e descoordenado de modelo de gestão de políticas públicas, cuja problematização impõe o desenvolvimento de modelos integrativos de gestão governamental. Pouco clara, pois a normatização associada aos programas somente recentemente forneceu orientações aos municípios sobre quais as ações e estratégias configuram uma ação intersetorial. Descoordenada, no sentido que os setores envolvidos interagem pouco para produzir os resultados previstos pelo programa, ou seja, o elo entre os setores ainda é fraco, com baixa troca de informações, experiências e trabalho em equipe.

Os elementos de análise da intersetorialidade como inovação da prática

da gestão pública são reforçados por Pereira (apud Monnerat, Almeida e Souza,

2014 p. 23):

Portanto, além de principio ou paradigma norteador, a intersetorialidade tem sido considerada como: uma nova lógica de gestão, que transcende um único “setor ” da política social; e/ou uma estratégia política de articulação entre “setores” sociais diversos e especializados. Além disso, relacionada à sua condição de estratégia, a intersetorialidade também é entendida como: instrumento de otimização de saberes ; competências e relações sinérgicas, em prol de um objetivo comum; e prática social compartilhada, que requer pesquisa, planejamento e avaliação para a realização de

ações conjuntas.

Page 7: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

A prática intersetorial para o cumprimento da prioridade absoluta depende

da postura dos gestores na sua prática de gestão e do olhar que cada um tem em

relação aos direitos humanos e integrais de crianças e adolescentes. Nesse sentido

a política de Assistência Social olha de forma claramente intersetorial a gestão da

política. A partir da Constituição Federal, de 1988, a Assistência Social perde a

natureza de ação meramente assistencialista e se torna uma política de proteção e

de desenvolvimento individual, social, econômico e cultural dos beneficiados. Por

esse motivo essa política é intrinsecamente ligada a todas as outras existentes. Em

seu artigo 5º a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS 1993) aponta que “a

assistência social realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, visando ao

enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de

condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos

sociais”. No Art. 4º da LOAS a Assistência Social rege-se pelo seguinte princípio:

“universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação

assistencial alcançável pelas demais políticas públicas”. A Política Nacional de

Assistência Social de 2004 (PNAS) apresenta as diretrizes da descentralização e da

territorialidade como características necessárias para o processo de universalização

e execução das ações da Assistência Social (2004, p.43), como se vê:

A política de assistência social tem sua expressão em cada nível da Federação, na condição de comando único, na efetiva implantação e funcionamento de um Conselho de composição paritária entre sociedade civil e governo; do Fundo, que centraliza os recursos na área, controlado pelo órgão gestor e fiscalizado pelo Conselho; do Plano de Assistência Social que expressa a política e suas inter-relações com as demais políticas setoriais e ainda com a rede sócio-assistencial. Portanto, Conselho, Plano e Fundo são os elementos fundamentais de gestão da Política Pública de Assistência Social. O artigo 11 da LOAS coloca, ainda, que as ações das três esferas de governo na área da assistência social realizam-se de forma articulada, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera Federal e a coordenação e execução dos programas, em suas respectivas esferas, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Dessa forma, cabe a cada esfera de governo, em seu âmbito de atuação, respeitando os princípios e diretrizes estabelecidos na PNAS, coordenar, formular e co-financiar, além de monitorar, avaliar, capacitar e sistematizar as informações.

Do ponto de vista da gestão a política de Assistência Social precisa

realizar um intrínseco entrelaçamento com as outras políticas em especial de Saúde

e Educação na garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes vítimas de

evasão escolar e violência sexual quebrando práticas fragmentadas existentes.

Moroni e Ciconello ainda argumentam (2007, p.80) “É chegado o

momento de, atingida certa estruturação e normatização necessária das diversas

Page 8: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

políticas públicas, trabalhar pela integração entre elas, na perspectiva da

indivisibilidade dos direitos.”

A dificuldade de aplicação da intersetorialidade é reflexo de ações

fechadas dos diferentes setores de atendimento (políticas setoriais) que buscam

prioritariamente a reafirmação de si mesmo até em virtude de influencias políticas. A

PNAS se entrelaça intrinsicamente com as políticas de saúde e educação e essas

tem também embutido a intersetorialidade em seus marcos legais. De acordo com o

que estabelece a Política Nacional de Saúde (2006, p.7):

O desafio colocado para o gestor federal do SUS consiste em propor uma política transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas áreas do setor sanitário, os outros setores do Governo, os setores privados e não-governamentais e a sociedade, compondo redes de compromisso e corresponsabilidade quanto à qualidade de vida da população em que todos sejam partícipes no cuidado com a saúde. O processo de construção de ações intersetoriais implica na troca e na construção coletiva de saberes, linguagens e práticas entre os diversos setores envolvidos na tentativa de equacionar determinada questão sanitária, de modo que nele torna-se possível produzir soluções inovadoras quanto à melhoria da qualidade de vida. Tal processo propicia a cada setor a ampliação de sua capacidade de analisar e de transformar seu modo de operar a partir do convívio com a perspectiva dos outros setores, abrindo caminho para que os esforços de todos sejam mais efetivos e eficazes.

A Lei de Diretrizes Básicas da Educação (2006) também envolve a

dimensão da educação no contexto do conjunto de outras políticas citando no seu

artigo 1:

A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

Nesse contexto conceitual da intersetorialidade podemos indicar que nos

casos de evasão escolar nos casos de crianças e adolescentes cujas famílias são

beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) e violência sexual (gravidez abaixo

de 14 anos) as políticas de Assistência Social, Educação e Saúde tem uma clara

base legal intersetorial. Nos casos de evasão escolar e a dimensão da

vulnerabilidade pela pobreza o processo de fortalecimento da autonomia é uma das

metas para à redução do descumprimento das condicionalidades do PBF

(Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, CNAS 2009, p. 8,13) e que a

articulação precisa abranger: serviços socioassistenciais de proteção social básica e

proteção social especial e serviços públicos locais de educação, saúde, trabalho,

cultura, esporte, segurança pública e outros conforme necessidades. No caso de

evasão e descumprimento da frequência escolar cabe a política de Educação

Page 9: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

conforme o Plano Nacional de Educação 2 : 2.3) criar mecanismos para o

acompanhamento individualizado dos (as) alunos (as)do ensino fundamental;

2.4) fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso, da permanência e

do aproveitamento escolar dos beneficiários de programas de transferência de

renda, bem como das situações de discriminação, preconceitos e violências na

escola, visando ao estabelecimento de condições adequadas para o sucesso

escolar dos (as) alunos (as), em colaboração com as famílias e com órgãos públicos

de assistência social, saúde e proteção à infância, adolescência e juventude;

2.5) promover a busca ativa de crianças e adolescentes fora da escola, em parceria

com órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à infância,

adolescência e juventude. Nessas situações o fluxo de informações entre a

Educação e a Assistência Social é fundamental para a redução da evação e garantia

da continuidade da presença escolar e do benefício.

Sobre o caso de gravidez precoce de adolescentes com idade abaixo de

14 anos que realizam seus partos nos hospitais a 3Lei Federal 10.778 de 24 de

novembro de 2003 estabelece a notificação compulsória em caso de violência contra

a mulher atendida nos serviços de saúde públicos ou privados, Em 2005 o

Ministério da Saúde elaborou a 4Norma Técnica para “Prevenção e Tratamento dos

agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” por meio

da qual orientou a ação dos gestores para organização dos serviços da saúde e de

suas relações intersetoriais nos casos de violências contra mulheres e adolescentes.

A norma do Ministério da Saúde cita a esse respeito (Ministério da Saúde 2005, p.

20-21):

Sob a perspectiva mais global, é preciso também fortalecer a rede de proteção contra a violência por meio de ações intersetoriais, evitando que as pessoas em situação de violência fiquem expostas durante o processo de atendimento nas diferentes instituições. A humanização implica uma relação sujeito-sujeito e não sujeito-objeto. Ela remete à consideração de seus sentimentos, desejos, ideias e concepções, valorizando a percepção pela própria usuária da situação que está vivenciando, consequências e possibilidades.

2 Plano Nacional de Educação. Revista Escola. Disponível em:

http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/pne-meta-2-691896.shtml. Acesso: out. 2015. 3 Presidência da República, Lei n. 10.778 de 24 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.778.htm 4Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica. 2ª ed. atual. e ampl. – Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

Page 10: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

III. CONCLUSÃO

Em consonância com os planos nacionais e marcos regulatórios descritos

acima, a intersetorialidade caracteriza-se, hoje, como um elemento básico, mas

desafiador do processo de planejamento estratégico integrado da gestão das

políticas públicas, nos três níveis do poder. A intersetorialidade pode se tornar

elemento norteador, que somado à cooperação, à transversalidade e à integração

das ações gerenciais das políticas possibilita um atendimento mais humanizado,

eficiente e eficaz dos direitos básicos da população e, em especial, dos direitos das

crianças e adolescentes brasileiros. Esse entrelaçar da gestão das políticas públicas

de Assistência Social, Educação e Saúde nos casos de evasão escolar e violência

sexual nem sempre está presente no dia a dia da vida das políticas públicas se

tornando um potencial campo de violação dos direitos humanos de crianças e

adolescentes com seus direitos já violados. Por esse motivo faz-se urgente alertar e

desperatar os profissionais sobre esse elemento da gestão. A luz dessa reflexão a

apresentação do trabalho tem como objetivos:

Compreender como os diferentes modelos de gestão das políticas públicas podem

violar os direitos humanos de crianças e adolescentes no caso de ações

fragmentadas e não intersetoriais;

Pautar a intersetorialidade como princípio fundamental na garantia dos direitos

humanos de crianças e adolescentes violados;

Discutir a prática intersetorial da Política de Assistência Social e sua transversalidade

junto às políticas de Saúde e Educação;

Apontar caminhos e mecanismos a serem construídos para a prática de gestão

intersetorial;

Discutir os desafios da prática dos profissionais do Serviço Social na dimensão de

gestores, coordenadores e técnicos de planos, programas e projetos tendo como

horizonte a intersetorialidade como elemento inovador da gestão.

Fortalecer a lutas dos profissionais do serviço social contra práticas funcionalistas,

tecnocratas, burocráticas e assistencialistas.

Conforme argumenta Junqueira (1997, p.37), a intersetorialidade pode ser

entendida como “a articulação de saberes e experiências no planejamento, na

realização e na avaliação de ações, com o objetivo de alcançar resultados

Page 11: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

integrados em situações complexas, visando a um efeito sinérgico no

desenvolvimento social”.

Sob esse aspecto a pauta da proposta desse trabalho é aprofundar esses

aspectos num contexto societário de não garantia dos direitos humanos e integrais

dos cidadãos e cidadãs que ainda sobrevivem e perpassam por atendimentos

desumanizados e amplamente funcionais às ordens quantitativas e burocráticas de

programas públicos que necessitam desenvolver-se e amplamente humanizar-se.

Essa aspecto é que caracteriza um dos desafios atuais das políticas públicas

brasileiras.

REFERÊNCIAS

____. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>.

____. PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (PNE). Disponível em: <http://www.portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/pne.pdf>.

____. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.

Política nacional de promoção da saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde,

Secretaria de Atenção à Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde,

2006http://www.assistenciasocial.al.gov.br/legislacao/.../LOAS.pdf. Acesso em: 20 de março de 2013.

____. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Estatuto da Criança e do Adolescente. 4. ed. Fórum Nacional DCA. Brasília: FNDA; CONANDA; SDH, 2011.

FARIAS, Edílson. Liberdade de Expressão e Comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

Kissler, Leo; Heidemann,Francisco. Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n3/31252.pdf. Acesso: jun. 2015.

FREITAS, A. B. Traços brasileiros para a análise organizacional. In: MOTTA, F. C. P. ; CALDAS, M. P. (org. ). Cultura organizacional e cultura brasileira. São Paulo: Atlas, 1997, p. 38-54.

INOJOSA, Rose Marie; KOMATSU, Suely. Descentralização e intersetorialidade na gestão

pública municipal no Brasil: a experiência de Fortaleza. Anais do XI Concurso de Ensayos

del Clad “El tránsito de la cultura burocrática al modelo de la gerencia pública:

Perspectivas, Posibilidades y Limitaciones”. Caracas, 1997.

JUNQUEIRA, L. A. P. Novas formas de gestão na saúde: descentralização e intersetorialidade. Revista Saúde Social, 6(2): p.31-46, 1997.

Page 12: A INTERSETORIALIDADE COMO PRINCÍPIO INOVADOR DA …€¦ · novas posturas gerenciais rumo ao atendimento desse conjunto de direitos indivisíveis, intransponíveis e intrasferíveis

MONNERAT, Giselle Lavinas, TEIXEIRA DE ALMEIDA Ney Luis, GONÇALVES DE SOUZA Rosimary. A intersetorialidade na agenda das políticas sociais. Campinas, SP: Papel Social, 2014 MORONI, J. A.; CICONELLO, E.A intersetorialidade nas políticas públicas. In: CNAS VI Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, MDS/CNAS, 2007, p. 79-87.

NAVARRO, Natalia. A intersetorialidade como modelo de gestão das políticas de combate à pobreza no Brasil: ocaso do programa bolsa família no município de Guarulhos. Dissertação de Mestrado. Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV. São Paulo, 2011.

NOGUEIRA, V. M. R. Direitos à saúde na sociedade contemporânea. Ser Social – Revista do Programa de Pós-graduação em Política Social, n. 10, Brasília, 2002.

SANTOS, Natália Navarros dos. A intersetorialidade como modelo de gestão das políticas de combate à pobreza no Brasil: o caso do programa bolsa família no município de Guarulhos. Dissertação de Mestrado. EAP- Fundação Getúlio Vargas, São Paulo 2011.

TUMELERO, Silvana M. Intersetorialidade nas políticas públicas. Disponível em: <http://www.litoral.ufpr.br/sites/default/files/TUMELERO_SILVANA%20Intersetorialidade_Cong_Chile.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2013.

WASSERMAN, S.; FAUST, K. Social network analysis: methods and applications. Cambridge, Massachusetts: Cambridge University Press, 1994.