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A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo e a murmuração da corte noprimeiro reinado

Autor(es): Barbosa, Socorro de Fátima P.

Publicado por: Associação Internacional de Lusitanistas

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VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 201-236

A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo e a murmuração

da corte no primeiro reinado1

SOCORRO DE FÁTIMA P. BARBOSA

Universidade Federal da Paraíba (UFPB), CNPq

RESUMOEste trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa sobre a escrita epistolar em pe-riódicos brasileiros do século XIX e tem como objetivo restaurar os sentidos da «In-trodução às Cartas chilenas» ou «Epístola a Critilo», publicada no Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedota, em 1826. A autoria dessa epístola é tema corrente nos estudos da his-tória da literatura, sempre a considerar a sua íntima relação com a Inconfidência mineira. Esta análise, ao contrário, se aproxima do objeto a partir de suas condições de produção de escrita à época, considerando dois aspectos precípuos, comummente esquecidos por críticos literários e historiadores, a sátira como escrita regrada, cujo assunto é o tempo presente, e o jornal no início do século XIX, com o uso recorrente da alegoria como prática de escrita. Assim, considerando a murmuração dos jornais e impressos da época, esta abordagem retoma os atos discursivos do tempo –o ano de 1826– para demonstrar a relação que a carta mantém com os desvios de conduta do imperador D. Pedro I.

Palavras-chave: Jornais e Periódicos do Século XIX; Escrita Epistolar; Sátira; D. Pedro I

1 Este artigo apresenta resultados parciais da pesquisa «A escrita epistolar nos quadros da cul-tura luso-brasileira: (1808 -1840)», em andamento, financiada com bolsa de produtividade do CNPq, cuja pesquisa é o desdobramento de uma investigação realizada de 2009 a 2011 sobre a escrita epistolar nos periódicos.

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ABSTRACTThis paper shows results of a research on the epistolary writing in Brazi-lian newspapers of nineteenth century and aims to restore the right sense of the “Introdução às Cartas Chilenas” or “Epístola a Critilo,” published on Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Pe-ças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedota, in 1826. This is a frequent topic in the studies on the History of Literature, which is always considering the aspects of authorship and its intimate rela-tionship with the «Inconfidência Mineira». The present analysis, in con-trast, approaches the subject from the conditions of writing production at that time, considering two relevant aspects, commonly overlooked by literary critics and historians: satire as a ruled writing mode, whose subject is the present time, and the newspaper in the beginning of ni-neteenth century, with the allegory recurrent uses as a writing practice. Thus, considering the murmuring of both newspapers and printed texts at that time, this approach drives to the discursive acts of the time –the year 1826- to demonstrate the relationship that the letter keeps with the misconduct of the emperor D. Pedro I.

Keywords: 19th Century Newspapers and Periodicals; Epistolary Writing; Satire; D. Pedro I.

1. Sobre manuscritos, pseudônimos e apócrifos em periódi-cos do século XIX

Este estudo tem como objetivo considerar o processo de escrita da «Introdução às cartas chilenas» ou «Epístola a Critilo», publicada no Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedotas, em 1826, e assinada com as iniciais C. M. C,2 lidas como as letras do nome do mineiro Clau-dio Manoel da Costa. A epístola, consagrada pela história da literatura brasileira, foi-lhe primeiramente atribuída por Varnhagen (1850), que logo depois abandonou esta hipótese em favor de Alvarenga Peixoto, retificando-a posteriormente. Atualmente, a autoria da «Epístola a Cri-tilo» é atribuída a Tomás Antonio Gonzaga quando foi incorporada às Cartas chilenas (1957; 1958), um conjunto de epístolas, primeiramente

2 Conferir os Anexos com a publicação da epístola no periódico Jornal Científico, Econômico, e Literário.

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publicado no periódico Minerva Brasiliense, em 1845.3 A autoria das cartas e sua íntima relação com a Inconfidência mineira, como libelo e pasquim libertário, é tema corrente nos estudos da historiografia da li-teratura brasileira desde o século XIX (Silva, 1865; Lapa, 1957 e 1958; Oliveira, 1972). Este trabalho, ao contrário, se aproxima desse objeto a partir das condições de produção de sua escrita à época, considerando dois aspectos precípuos a esta epístola, comummente esquecidos por críticos literários e historiadores: a sátira como escrita regrada, que tem como assunto o tempo histórico de sua enunciação e a cultura escrita que a carrega, no caso dessa epistola, o jornal do início do século XIX, que utilizou sobremaneira a alegoria como prática escriturária (Barbosa, 2007).

Ao retomar o estudo desta epístola, a partir de sua primeira pu-blicação no Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedotas, em 1826, sem considerar as apropriações, as adaptações e os vários usos que dela foram feitos pela posteridade, compreendo que a pesquisa dos objetos literários, em periódicos do século XIX, não deve retirar os textos escolhidos do seu contexto de produção, mas confrontá-los com os modos de ler e de escrever do tempo que, geralmente, são diversos daqueles elaborados pelos historiadores. Para tanto, não basta enunciar a filiação política dos jornais, tampouco considerar este suporte como arquivo morto, depositário de relíquias preciosas da literatura brasileira (Barbosa, 2007), mas analisar os procedimentos de escrita adotados pelo proprietário ou pelo redator, bem como o diálogo que o periódico esta-belece com outros jornais e os discursos do seu tempo dos quais se julga suficiente apenas extrair os indícios de realidade.4

3 Neste trabalho evito as questões célebres sobre autoria, originalidade, paródia, crítica e, principalmente, a que estabelece uma relação entre os versos desta Epístola e as Cartas Chilenas (1845), de Tomás Antonio Gonzaga já editadas (Gonzaga, 1957; Gonzaga, 1958). Para maiores informações, remeto o leitor para o exaustivo trabalho de Joaci Furtado (1997), no qual encontrará além de uma bibliografia completa sobre o assunto, uma acalorada discussão sobre todas as apropriações que as Cartas Chilenas tiveram desde o século XIX. O trabalho do escritor, contudo, não aborda a versão publicada no Jornal Científico (1826).

4 Foi na construção desta pesquisa metodológica, desenvolvida desde 2009, quando dei início a uma investigação sobre a escrita epistolar nos periódicos, que passei a questionar a construção desta epístola, publicada primeiramente em um periódico, com todos os mecanismos de escrita próprios às práticas de funcionamento dos periódicos do século XIX,

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O Jornal Científico tinha como redatores Felisberto Inácio Januário Cordeiro, que serviu diversos cargos públicos, e José Vitorino dos Santos, professor de geometria descritiva da Real Academia Militar, desde o período joanino teve apenas três números, maio, junho e julho de 1826, e deixou de circular por ter conseguido apenas 5 assinantes, o que não dava para pagar as despesas de impressão, como sugere a sua lacônica despedida: «e está, portanto, paralisada uma empresa, aliás lou-vável e proveitosa, por isso mesmo que, –sendo ditas despesas bastan-temente avultadas, não é possível aos abaixo assinados efetuá-las sem o auxílio de suficientes subscrições» (Jornal Científico, 1826, 270, V. III).5 E seria mais um entre as dezenas de periódicos da época, esque-cidos pela história da literatura, não fosse a publicação do poema «Vila Rica» e da «Introdução à Epístola a Critilo», dois textos aos quais se pode aplicar a categoria segundo a qual, alguns escritos anteriores ao romantismo são «capturados como prenúncio do Advento, prefigurando o progresso futuro da Identidade Nacional» (Hansen, 1997: 12).

A história da construção deste monumento tem início quando Rodrigues Lapa, confiante nas informações recebidas de terceiros, regis-tra haver no Jornal Científico referências que indicam serem as Cartas Chilenas de autoria de Gonzaga. Ao contrário do que afirma Rodrigues Lapa, não há nos três números do Jornal Científico qualquer referência às Cartas Chilenas. O historiador e maior estudioso deste assunto, no afã de comprovar a sua hipótese de ser o poeta mineiro o autor da epís-tola, constrói este fato literário sem ter consultado o jornal, tampouco ter lido Helio Viana, a quem atribui a informação de encontrar-se no Jornal Científico dados relativos à autoria da carta. Como revela em nota de rodapé,6 esta informação, reproduzida sempre como fato comprovado, lhe foi transmitida de segunda mão, por Afonso Pena (Lapa, 1958: 12).

mas romanticamente apropriada por historiadores daquele tempo. Conferir VARNHAGEN (1850).

5 Para efeito de uniformização, nas citações da «Epístola a Critilo» usarei apenas os dois primeiros nomes: «Jornal Científico», seguido das iniciais C. M. C.

6 A nota afirma o seguinte: «não podendo haver à mão, no momento em que escrevíamos isto, livro de Hélio Viana, devemos estas informações ao Dr. Afonso Pena Júnior, que consultou pessoalmente o referido prospeto»(Lapa, 1958: 12).

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Decerto que os redatores tinham como objetivo a publicação de manuscritos, como se observa na passagem a seguir extraída do primei-ro número de o Jornal Científico (grifos meus):

O de publicar de várias maneiras, vantajosa para o Brasil, onde parece ter havido omissão em se vulgarizarem pela Imprensa, (por este, ou por outro algum meio útil) muitas e excelente obras, raros e interessantes manuscritos que tanto no nosso idioma como nas línguas estran-geiras existem e são dignos de chegar ao conhecimento dos Brasilei-ros[...].

Lida na perspectiva daquele tempo presente deve-se considerar que os manuscritos elencados pelos editores estão no rol dos impressos existentes à época, os quais se constituíam em uma das formas de publi-cação de escritos, mas representavam um modo de divulgação da cultura escrita que não se opunha, nem se confrontava aos impressos (Chartier, 2002). Esta tese também é defendida por Lisboa (2011: 19) que estuda as gazetas manuscritas de Portugal. Para ele, «os mundos do impres-so e os mundos do manuscrito relacionavam-se, competiam, comple-tavam-se por toda a Europa, entre o século XV e XVIII». No Brasil, a circulação de manuscritos não ocorreu, como romanticamente nos foi transmitido, apenas como um modo de subversão às proibições da coroa portuguesa de impressão na Colônia. É Lisboa (2011) quem dá notícias do artigo de Ferlini (1984), que reproduz e analisa um manuscrito do período colonial com o título de Gazeta de Pernambuco. Ademais, ao contrário de uma concepção romântica e anacrônica, os manuscritos não devem ser concebidos apenas como tesouros não publicados dos gran-des autores da literatura brasileira, mas devem ser incluídos no rol das publicações populares, de uma prática de escrita na qual estão inseridos «outros escritos expostos (anúncios, libelos, pasquins, grafite etc.) [que] trazem um conteúdo subversivo: difamam os indivíduos, ridicularizam os poderosos, denunciam os poderes» (Chartier, 2002: 81). Com isso, refuta-se outra concepção anacrônica e romântica sobre os manuscritos, atualizada em várias leituras sobre o século XIX, que lhes atribui certo

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caráter subversivo, de objeto escondido, que teria ficado intocado, sem qualquer circulação ao longo dos anos. Os manuscritos, como demons-tram as devassas, os testamentos e a história da leitura e dos impressos, circulavam entre os leitores do mesmo modo que os livros, sendo a có-pia uma das práticas correntes de leitura e de escrita7. Segundo Chartier, desde o século XVI que a Europa testemunha em inventários a impor-tância e a frequência desses papeis manuscritos, «escritos do cotidiano e do privado» que assumem formas como «livros de contas, livros de razão, cartas, bilhetes etc» (Chartier, 2002: 83). No mundo luso tem-se o caso de O Reino da Estupidez, de Mello Franco, uma sátira à Univer-sidade de Coimbra, que teria circulado em forma manuscrita em 1785, quando da saída do seu autor da prisão. Ademais, não se deve esque-cer o fascínio que os manuscritos perdidos exerceram sobre a história de várias obras, entre elas Cardenio, de Shakespeare (Chartier, 2012), «cujo desaparecimento cria uma falta intolerável». No caso português, trata-se de um topos recorrente desde a Crônica do Imperador Clari-mundo, de João de Barros, no século XVI. A abordagem da «Epístola a Critilo» (Jornal Científico: C. M. C., 1826), no contexto deste artigo, é uma tentativa de desarticular os princípios de uma «ordem do discurso», nascida em começos do século XVIII, que se baseava, segundo Chartier (2012: 266) «na individualização da escrita, na originalidade das obras e na canonização do autor». A esta «nascente ordem do discurso» no caso brasileiro foram acrescidos dois novos ingredientes: a Inconfidên-cia Mineira e o nacionalismo literário que, como afirma Hansen (1997: 12), já citado anteriormente, via em todas as obras o prenúncio de uma «Identidade Nacional».

7 É o que se observa nas palavras de Manuel Ignacio Silva Alvarenga, ao responder à diligência do Desembargador Antonio Diniz da Cruz: «E logo foi mais perguntado por ele, Desembargador-chanceler, se, com efeito, se havia feito a dita sátira, se ele, respondente, fora o autor dela, ou se a vira e a publicara, e contra quem ela se dirigia. [...]. Respondeu que ele não fora o seu autor, mas que só a vira por lha introduzirem por baixo da porta; que ela constava de diversos sonetos que demonstravam se feitos por diversos, não só pela diversidade das letras, mas pela diversidade dos estilos; e que o sujeito contra quem os mesmo sonetos se dirigiam era um religioso ou dois Santo Antonio, dos quais só lhe parece chamar- se um Frei Raimundo». Autos da Devassa: prisão dos letrados do Rio de Janeiro, 1794. [Fábio Lucas et al]. 2.ª ed. Rio de Janeiro. Eduerj, 2002, p. 149.

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2. A sátira: fere para corrigir

Ao abordar o Jornal Científico o leitor da atualidade não pode deixar de observar que, em 1826, os jornais da corte dividiam-se entre os áulicos, como era o caso de O Spectador Brasileiro, o Diário Flumi-nense e a Gazeta do Brasil e os de oposição, alguns censurados, como O Verdadeiro Liberal, «cujo diretor Pierre Chapuis foi expulso do país» (Sodré, 1997: 99). O Diário do Rio de Janeiro, por sua vez, pregava isenção política mas se não tinha o caráter áulico, também se prestou a publicar declarações e editais do Império, e não apenas os anúncios de manteiga e de outras mercadorias que lhe valeram o epíteto de «Diário da Manteiga» e «Diário do Vintém». Em dois momentos, observa-se que o Jornal Científico buscou se diferençar daqueles de oposição, no que tinham de virulentos e na maneira como abordariam o tema de interesse central dos periódicos da época: a política. Nesse primeiro momento, representado pela passagem a seguir, os redatores demonstram o tom do seu jornal já na sua apresentação. Não se trata de mais um libelo contra a Coroa, mas de uma obra patriótica, motivo que corrobora o teor de correção dos costumes, e não de oposição ao governo, observados na «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» (Jornal Científi-co,1826: 3/4. Grifos meus):

A empresa em que vão entrar os dois Amadores das Ciências, e das Artes, é entre os testemunhos de Patriotismo um dos que mais acredi-tam aqueles que se interessam vivamente pela glória, e prosperidade Nacional. Este Periódico digna produção dos Autores dos Anais Científicos nos vem vingar da vergonha que tem lançado sobre nós algumas folhas, em outros tempos apareceram; e que hoje recome-çam a aparecer com o mesmo execrando rito.

O outro aspecto que interessa de perto à leitura que se propõe neste artigo é o de observar o modo como os redatores pretendem incluir a política no repertório de assuntos do jornal. A citação é longa, mas fun-damental para a compreensão da hipótese que defendo, segundo a qual,

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a «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» é uma composi-ção de 1826, que utiliza a sátira para criticar o comportamento obsceno do Imperador (Jornal Científico,1826: 95/96. Grifos meus):

Temos, porém certeza de que, alguns sujeitos tem condenado no Jornal a falta de mais um título geral, qual o de = Política =, por isso mesmo que este ramo é talvez aquele que, bem ou mal entendida-mente, mais os interessa […]. As Considerações sobre a Liberdade da Imprensa = a Memória sobre a divisão e assoreamento dos terrenos, = e as Providências = que lembramos serem indispensavelmente precisa, &c. &c., parece-nos que bem demonstram, que o artigo = Política = será indireta, útil e circunspectamente por nós desenvolvido, inde-pendente do maior aparato, que poderia dar-lhe um outro Título geral reservado para a sua explanação.

Para os leitores da época, era possível ler a epístola a partir de uma relação indireta estabelecida entre aquilo que estava escrito no jor-nal e a sua matéria. Outro aspecto fundamental desta epístola retira-do de suas versões posteriores foram as notas de rodapé, presentes na publicação original que, conforme veremos, duplicavam o seu sentido, favorecendo a sua leitura. O redator refere-se, sobretudo, à linguagem alegórica, tão presente à época, capaz de abordar de forma segura os mais variados assuntos. No dizer de Lopes Gama (1846: 146), um ho-mem daquele tempo, «a alegoria é muitas vezes um meio astucioso de dar lições a homens, a quem a cegueira das paixões ou orgulho do poder faria cegos, ou rebeldes à verdade. A alegoria torna-se necessariamente o tropo usual do escravo que quer dar a entender suas queixas legítimas sem o risco de ofender ao seu senhor». Razão pela qual, justifica-se o estilo empregado –a sátira, uma forma de linguagem alegórica– para consertar os vícios do imperador, a partir de uma das maneiras mais efi-cazes de escrever política de forma «indireta, útil e circunspecta», como o querem os redatores do Jornal Científico.

Em face de todas essas considerações, lê-se aqui esta epístola como sendo produzida, como já foi dito anteriormente, a partir de duas

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considerações de ordem teórico-metodológica: trata-se de escrito de um gênero específico, a sátira, concebido como uma escrita regrada, cuja referência não deve ser «postulada fora do funcionamento de um tipo (ou tipos) e de uma convenção literária no discurso poético» (Hansen, 1989: 36). Escrita e compreendida a partir da sua publicação em um pe-riódico do início do século XIX, aplica-se nesta leitura da «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» todas as estratégias de escrita previstas pelo gênero sátira e pelo suporte jornal, entre as quais estão o anonimato, o uso de iniciais, a dissimulação e o disfarce como estraté-gias retóricas de convencimento e de encobrimento, sendo todas com-preendidas e decifradas pelos seus leitores contemporâneos (Barbosa, 2011). Dessa forma, passa-se a tratar a «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» a partir dos critérios previstos para a sátira, os quais compreendem a sua «função social de reconhecimento», supondo que sua historicidade «de modo algum [é] exterior ou posterior à sua própria história», por isso, não é conveniente interpretar a sátira, uma vez que «nada oculta», mas «antes relacioná-la com outras práticas e eventos contemporâneos dela» (Hansen, 1987: 472). Depois, é preci-so considerar que, no que concerne à sátira, desde sempre houve uma relação muito estreita entre ela e a política no sentido mais amplo. Segundo Hodgart (2009: 38):

a sátira não é apenas a forma mais comum da literatura política, mas, na medida em que tenta influenciar o comportamento do público, é a parte mais política de toda a literatura [...].

Os inimigos da sátira são tirania e provincianismo, que muitas vezes andam juntos. Tiranos não gostam de qualquer forma de crítica, porque nunca sabem onde levará e na vida provincial livre crítica é sentida como subversiva da ordem e da decência [...]. Sátira política precisa de [...] um pouco de sofisticação: sofisticação política (tanto o humorista como o seu público devem compreender alguns dos processos de polí-tica) e sofisticação estética (o humorista deve ser capaz de contemplar o cenário político com humor e desprendimento, bem como com pai-xão, ou ele vai produzir apenas polêmica bruta).

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A sátira é, portanto, uma escrita do tempo presente e como for-ma mista «implica apropriação, interpolação, alteração, falsa atribuição etc. Nela, o plágio é estrutural» (Hansen, 1989: 44). Por isso, pode-se compreender ao mesmo tempo como arranjo da sátira e da escrita jor-nalística a publicação da «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» antecedendo o canto do poema Vila Rica, que é publicado sob o nome completo de Claudio Manuel da Costa e do seu pseudônimo, enquanto que à epístola é apenas associado o conjunto de iniciais C. M. da Costa. O efeito é programático e visa sustentar o verossímil da persona satírica e, ao contrário do que supõe Furtado (1997: 40), as iniciais não estabelecem «uma clara associação entre o nome de Cláudio Manuel da Costa e essa parte da sátira». Dessa forma, se atentamos para as relações de autoria da época (Foucault, 1992), podemos ler os ver-sos de Vila Rica como uma interpolação, uma vez que as inicias C. M. da Costa obrigatoriamente não remetem à pessoa do poeta. Dizendo de outro modo, observa-se na estratégia de criação desta epístola um modo verossímil com o que se concebia e se conhecia sobre os manuscritos à época (Chartier, 2002: 96):

O manuscrito moderno herda essa estrutura livresca que associa em um mesmo objeto textos de autores e, às vezes, gêneros diferentes. A consequência é o desaparecimento da «função-autor» (para retomar a expressão de Foucault), isto é, a atribuição da obra ou das obras pre-sentes em um mesmo livro a um nome próprio identificável em sua singularidade.

A favor deste argumento dois dados históricos: o primeiro é pro-veniente do corpo do próprio jornal quando informa em nota de rodapé sob o título de Poesia e Belas Letras: «todos os versos, de qualquer natureza que sejam, que debaixo deste título geral foram incluídos nos diferentes números deste Jornal sem declaração de nome de autor, são feitos por um dos Redatores». (n. II: 147). O pseudônimo à época não era considerado «declaração do nome de autor»; o segundo, considera a informação do Dicionário de Pseudônimos e Iniciais de Escritores Por-

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tugueses no qual se observa que um dos redatores do jornal, Felisberto Inácio Januário Cordeiro, escrevia com as seguintes iniciais: D. J. A. C.; T. J. J. C. e as que representavam o seu nome, F. I. J. C.; além dos pseu-dônimos Falmeno e Um Lisbonense. Como se observa, apenas uma das indicações de suposta autoria com letras corresponde às iniciais do seu nome, revelando-se, portanto, que sua presença na assinatura de textos da época não mantinha uma relação de obviedade ou de transparência com o nome do autor. Este último dado deve ser considerado como nor-ma para a leitura de textos poéticos, retóricos e políticos publicados nos periódicos pelo menos até meados do século XIX.

Em linhas gerais, a poesia nos periódicos da época, na qual está incluída a epístola satírica objeto deste estudo, deve ser compreendida à luz de alguns pressupostos: o primeiro deles diz respeito à presença das regras da retórica e da poética, partilhadas pelos leitores, que previam aquela escrita como didática ou de convencimento; segundo compreen-de que a linguagem alegórica garantiu aos jornalistas a chave para uma escrita livre e insolente, ao mesmo tempo em que deu aos leitores a pos-sibilidade de ler nos textos ali publicados sempre o sentido figurado que carregavam (Barbosa, 2011). Seguindo o percurso investigativo levado a cabo por João Adolfo Hansen (1989) no estudo da sátira atribuída a Gregório de Matos, no qual propõe recuperar os atos discursivos con-temporâneos a partir das «Atas da Câmara e das Cartas do Senado», esta abordagem retoma os atos discursivos do tempo –o ano de 1826– através dos periódicos da época, do relato de estrangeiros, das cartas de Leopoldina e das de D. Pedro para Domitila. Considerando que estes contêm os atos discursivos da parcela letrada da população, traduzidos em opiniões, murmurações, narrações, críticas, elogios sobre a figura do Imperador. Assim, os periódicos e estes relatos, tal qual as atas e cartas da Bahia do Dezessete, utilizadas por Hansen, «permitem estabelecer uma cartografia móvel de eventos e posições que, na circunstância de sua representação discursiva, relacionam-se ora de modo conflitivo, ora de modo adesivo, entre si e com seus objetos de intervenção segundo a hierarquia» (Hansen, 1989: 72).

Dito isto, ratifica-se a hipótese de que a «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» não é uma crítica à Monarquia ou um

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libelo contra o Imperador, mas a encenação do que seria uma prática decorosa e virtuosa para o Rei. Tampouco, refere-se aos desmandos do Governador Luís da Cunha Menezes, ou mesmo à corrupção, como a considerou a crítica romântica do século XIX, endossada pelos historia-dores do século XX (Furtado, 1997). Observe-se, nos versos abaixo o melhor argumento retórico para corroborar com a hipótese aqui defendi-da. A persona satírica não revela qualquer discordância com relação ao regime monárquico, mas apenas exige do seu herdeiro a prudência e o bom senso, prerrogativas de um soberano justo, segundo os argumentos de Critilo, personagem da obra de Baltazar Gracian (C. M. da C., 1826: 235):

De uma estéril mortal genealogia,Que o mérito produz de seus Maiores,Eles, Amigo, argumentar não devemPropalados talentos. A virtudeNem sempre aos netos, por herança, desce.Pode o pai ser piedoso, sábio e justo,Manso, afável, pacífico e prudente:Não se segue daí que um ímpio filhoPerverso, infame, díscolo e malvado,Não desordene de seus pais a glória.

Foi Afonso Arinos de Melo (1940) quem primeiro estabeleceu a relação do nome Critilo como sendo a referência a um personagem célebre de Baltazar Gracian, da sua obra máxima El Criticon (1946). Contudo, como estava preocupado com a questão da autoria, não levou adiante o processo de imitação, citação e paráfrase como algo próprio da escrita do tempo. Aliás, sua alusão à obra do jesuíta deve-se tão somen-te ao fato de seus livros terem sido encontrados no acervo de Claudio Manuel da Costa, argumento tomado por aqueles que queriam transfor-má-lo em autor das Cartas Chilenas.8 El Criticon é um tratado sobre a 8 É interessante observar como são criados os fatos literários. No caso das Cartas Chilenas,

este é construído pelo nome mais autorizado a falar deste assunto: Rodrigues Lapa. Assim, quando faz referência a Critilo também o associa ao livro de Gracian encontrado na biblioteca

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moral e a condição humana, escrito de forma alegórica. Tem início com a viagem de Critilo, um filósofo que naufragou e foi salvo em uma ilha por um habitante, a quem o náufrago deu, não apenas o nome de Andrenio, mas o introduziu, através do aprendizado da língua, no uni-verso do humano, através da união de dogmas da igreja católica, como os pecados capitais, com a filosofia greco-romana. A viagem no livro de Gracian está dividida em três partes ou idades, também presentes na «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» nos versos «Cri-tilo amado, Que teus escritos, de uma idade a outra Passarão, sempre de esplendor cingidos», sendo que a primeira ocorre «Na primavera da infância e no verão da juventude», a segunda, «Na sábia filosofia cortesã (o outono da idade viril)» e, por fim, «No inverno da velhice» , onde se encontra a sabedoria. Vivendo esta idade, «Critilo é o sábio, o prudente, o culto, o varão» que foi perseguido. Alegoria da alegoria, a persona Critilo da epístola remete a este de Gracian, um sábio, que conhece e prega ao seu parceiro de viagem, Andrenio, as virtudes e as verdades do reino humano, ao confrontá-lo com todos os vícios e enganos, ou o «an-fiteatro de monstruosidades». Ao dirigir-se a Critilo, aquele que escreve a carta está apresentando-lhe o seu soberano, ao mesmo tempo em que lhe pede observância sobre a postura de seu rei. Segundo Gracian, um príncipe de grande autoridade deve possuir grande modéstia (1943: 63). Das potências da alma –memória, entendimento e vontade–, o entendimento ocupa o mais puro e sublime lugar entre elas pois «é a rainha e senhora das ações e da vida penetra, sutileza, corre, atende e entende: ele estabeleceu o seu trono em uma libré própria cândido ileso, da alma, tudo oscuridade faltando no conceito e toda a mancha nos afetos, massa macia e flexível, apoiando as ha-

de Cláudio Manuel da Nóbrega, contudo, como seu trabalho visa a autoria das cartas, estabelece rapidamente uma hierarquia entre os nomes Critilo e Doroteu sem considerar, por exemplo, que não há qualquer menção ao último na «Epístola a Critilo», tampouco o autor da epístola que ora analisamos tem um autor nomeado: «O autor a si mesmo se dá o nome de Critilo, personagem conhecida do Criticon, obra do jesuíta espanhol Baltasar Grácian, existente na livraria de Claudio Manuel da Costa. É um nome sem significação especial. O mesmo não sucede já com o seu correspondente, Doroteu, em que parece haver, quanto a nós, um propósito mistificador. Doroteu seria, em rigor, o namorado de Dorotéia, e este, como se sabe, era um dos nomes de Marilia. Por isso se poderia pensar, a levarmos a sério, que o noivo de Marília não seria o autor mas o destinatário das famosas Cartas. É hoje opinião unanime que esse criptônimo esconde a figura do dileto amigo de Gonzaga, o Dr. Claudio Manuel da Costa (Lapa, 1958: 151. Grifos meus).

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bilidades de docilidade, temperança e prudência (1943: 83). Critilo é o censor facundo a quem o autor da epístola em análise se dirige para, através dos versos, enfeiar os delitos com o intuito de buscar a Cândida Virtude e a Sã doutrina (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 239). Na epístola, seus ensinamentos são traduzidos pela persona satírica em versos, com observações morais: «Vejo, ó Critilo, do chileno chefe, Tão bem pintada a história nos teus versos. Que não sei decidir qual seja a cópia, Qual seja o original».

Etimologicamente, o termo persona significa máscara. Na sátira, a persona é uma convenção, ou seja, uma máscara aplicada pelo poeta para figurar as duas espécies aristotélicas do cômico, «o ridículo e a ma-ledicência, ou o vício não nocivo, que causa riso, e o vício nocivo, que causa horror» (Hansen, 2004: 459). É possível observar na epístola em análise que a persona, em princípio, se divide entre ambas as espécies, na tentativa de encontrar o estilo que melhor se adapte ao que pretende narrar (Jornal Científico, C. M. de C., 1826: 233):

Vejo ó Critilo, do Chileno ChefeTão bem pintada a historia nos teus versos,Que não sei decidi qual seja a copia,Qual seja o original. Dentro em minha almaQue diversas paixões, que afetos váriosA um tempo se sujeitam! Gelo e tremo,Umas vezes de horror, de mágoa e susto;Outras vezes do riso apenas possoResistir aos impulsos. IgualmenteMe sinto vacilar entre os combatesDa raiva e do prazer. Mas ah! que disse!

A sátira permite a inconsistência da persona em duas vertentes: a peripatética e a estoica. Na primeira, a persona interpreta «o homem ho-nesto, civil, o cidadão, que se indigna contra os viciosos e os vícios que corrompem sua Cidade». Na vertente estoica, a indignação da persona é indigna, porque «irracional ou excessiva como qualquer outro vício»

215A introdução às CArtAs ChilenAs ou epístolA A Critilo ...

(Hansen, 2004: 461/462). Muito embora tentado e vacilante, a persona opta pela vertente peripatética e assume o caráter de cidadão exemplar, de «censor fecundo» que, com o castigado metro, afeia os delitos, em busca «Da cândida virtude a sã doutrina!» (Jornal Científico, C.M. de C., 1826: 233-234):

Vejo que um Calígula se empenha Em fazer que de Roma ao Consulado,9Se jure o seu cavalo por Colega.Vejo que os cidadãos, e as tropas armaO filho de Agripina, que os transportaEm grossos vasos sobre o Tibre, e logoPor inimigos lhes assina os matos,Que atacar manda com guerreiro estrondo:Direi que me recreia esta loucura?Que devo rir-me e sufocar o prantoQue pula dos meus olhos? Não, Critilo,Não é esta a moção que n’alma provo;Por entre estes delírios, insensível,Me conduz a razão, brilhante e sábia,A gemer igualmente na desgraçaDos míseros vassalos, que honrar devem,De um Tirano o poder, o Trono, o Cetro.

Dizendo de outro modo, compreende-se que a sátira, quando tra-ta de homens célebres e ilustres, se obriga a representar seus personagens com exemplos conhecidos da história. Como afirma Hansen, «a sátira não está, de modo algum, contra a moral. Ocorre nela, é certo, alguma des-proporção entre a racionalidade que prescreve e o desenvolvimento dos temas» (1987: 35, grifos do autor). No caso em apreço, a imagem da desproporção é representada pelo imperador Calígula e sua estultice: «Eu vejo que um Calígula se empenha Em fazer que de Roma ao Consu-lado, Se jure o seu cavalo por colega». Esta estratégia concede ao autor a liberdade de «o leitor poder aplicar esses exemplos para a cena contemporânea»,

9 Ver nota no Anexo 3.

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ao mesmo tempo em que o inocenta de qualquer intenção subversiva (Hodgart, 2009: 38).

Em 1826, concebia-se a epístola satírica, conforme o Dicionário da Língua Portuguesa, de António Morais Silva, como um «poema cen-sório dos costumes, e defeitos, públicos, ou de algum particular»; o que significa que a epístola propõe a partir de exemplos consagrados tanto de virtude, como de falta de decoro restituir, através do grotesco e do monstruoso, a justa medida de um reino fundado na prudência (Jornal Científico, C. M. de C., 1826: 233):

Trata-se aqui da humanidade aflita;Exige a natureza os seus deveres:Nem da mofa, ou do riso pode a ideiaJamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossosSe propõem do teu Chefe a infame história.Quem me dirá, que da estultice as obrasInfestas à virtude, e dirigidasA despertar o escândalo, conseguem,No prudente varão, mover o riso?

A «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» é, por-tanto, uma sátira ao Imperador D. Pedro I, cujo comportamento não condizia com sua posição, como revelam as suas várias biografias e os testemunhos dos estrangeiros que por aqui passaram. Em 1826, sua con-duta assumiu proporções obscenas ao misturar o público com o priva-do. Sobre este ano, antigos e novos biógrafos do imperador (Graham,10 2010; Monteiro, 1982; Sousa, 1988; Macaulay, 1986 e Lustosa, 2007) ressaltam-no, como aquele em que a relação dele com Domitila se torna pública. Contudo, ainda de acordo com esses biógrafos, não era apenas a vida amorosa e adúltera do monarca motivo para sátira, pois todos são

10 Graham (2010: 81) cita vários exemplos da falta de decoro do imperador, entre os quais: «durante o tempo em que as fragatas estavam se preparando, a atividade do Imperador era antes a de um jovem oficial recentemente nomeado do que um soberano que iria nomear os outros chefes».

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unânimes em ressaltar a sua natureza intempestiva, a sua brutalidade e a falta de temperança, sendo essas características de caráter psicológico ressaltadas por uma postura muito pouco condizente com o lugar que ocupava. No que tange à sua vida amorosa, «seu apetite sexual foi sem-pre excessivo e não conhecia limites nem diante da honra da família ou do marido da mulher desejada. Não havia mulher a quem ele não lanças-se um olhar avaliador!» (Lustosa, 2007: 93). É possível, através desses dados e da analogia com Calígula que, assim como D. Pedro, mantinha uma vida sexual promíscua (Suetônio, 2002: 262-263) e escandalosa11 compreender, como muito provavelmente o fizeram os leitores da época, o efeito programático dos seguintes versos (Jornal Científico, C.M. de C., 1826: 237):

Outro vai que, lascivo, e desenvoltoSó da carne as paixões adora e segue.Honras, decoros, vós sereis despojosDo seu bruto apetite. Em vão, cansadosPais de família, zelareis vós outrosDa vossa casa o pundonor herdado.Aos vis ataques do atrevido orgulhoHão de ceder as prevenções mais fortes.Vítimas da voraz sensualidadeVossas filhas serão vossas mulheres.Que direi do soberbo, do vaidoso,Do colérico, e de outros vários monstros,Que freio algum não conhecendo, passamA sustentar no autorizado CargoTudo quanto a paixão lhes dita e manda!

Os desmandos e a falta de freio do imperador no que concerne a sua vida amorosa levam-no a fazer uso dos jornais e periódicos da épo-11 Segundo Suêtonio (2002: 262-263), Calígula «entreteve com todas as suas irmãs um co-

mércio sexual vergonhoso. [...] Acreditava-se que tenha desvirginado Drúsila, quando ainda envergava a toga pretexta, pois fora surpreendido com ela por sua avó, Antonia, na casa em que ambos se criaram» [...] «Não dedicou às suas outras irmãs um amor impetuoso, nem lhes dispensou consideração: ele as prostituía, muitas vezes, com os seus próprios favoritos».

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ca, conforme se verá mais adiante, bem como dos homens públicos, para desempenhar a sua função de amante ardoroso e apaixonado, quebran-do todas as regras do decoro. Na sátira, segundo Hansen (1987: 338), «construído como irracional, o tipo vicioso não é livre, pois em todas as ocasiões só obedece à vontade, que o escraviza: não deseja, é desejado do seu desejo, como um ladrão levado a furto que leva». Ao trazer a tópica do sexo como crime contra naturam, a persona demonstra que este «corrompe a harmonia do bem comum» e, por isso, a figuração do medo que a persona inculca nos pais faz parte daquilo que Hansen –no contexto da sátira atribuída a Gregório de Matos, mas perfeitamente aplicado à sátira em questão– chama de «teatro do medo» (1989: 338). Considerando-se D. Pedro I como a cabeça do Império, sua corrupção é espelho para todos os súbditos, propondo-o culpado, «propõe ao público culpado de desejos a representação caricata e monstruosa deles guiada pela pastoral da sua prudência para a cena sacrificial do remorso e da catarse» (Hansen, 1989: 338), como revelam os versos a seguir: «Que pula dos meus olhos? Não, Critilo, –Não é esta a moção que n’alma provo. Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhan-te e sábia, A gemer igualmente na desgraça Dos míseros vassalos, que honrar devem, –De um tirano o poder, o trono, o cetro». Do sexo ilícito, nasce Isabel Maria em 1824, filha de Domitila, a quem o imperador, em 20 de maio de 1826, através de Decreto, reconhece como filha legítima e no mês seguinte apresenta oficialmente à imperatriz, quando passou a frequentar o palácio a fim de partilhar a educação com suas irmãs12 (Lustosa, 2007: 231).

Desde 1823 que Domitila de Castro fazia parte da vida de D. Pe-dro I na condição de sua amante. Em princípios desse ano, o Imperador trouxe toda a sua família para o Rio. Em junho, quando cavalgava desa-companhado pela região do subúrbio de Mata Porcos, local da residência da paulista, D. Pedro sofreu um grave acidente. Nesta época o romance dele com Domitila ainda não se tornara público e a queda do cavalo suscitou a curiosidade da corte sobre o que fazia naquela região sem a companhia de sua guarda. Maria Graham reporta o momento quando, convalescendo do acidente, o imperador recebera uma carta acusando

12 Para Maria Graham (2010), esta teria sido a maior das humilhações sofrida pela imperatriz.

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os Andrada: «uma senhora, cujo nome havia sido até então sussurrado no tom mais suave do mexerico, havia ultimamente se mudado de São Paulo» (Graham, 2010: 92). Embora soubesse das pequenas traições do marido, murmuradas pelas ruas e pelos empregados, a imperatriz afir-mava em carta de 10 de setembro de 1824, dirigida à irmã Maria Luisa, que não podia confiar nele, mas não demonstrava ter conhecimento ou se importar com os seus casos.13 A partir de 1825, alguns incidentes não só deram publicidade ao caso, como o transformaram em assunto de fuxicos internacionais. Do caso com Domitila conhecido internacional-mente, que será adiante tratado mais amiúde, à postura cotidiana, D. Pedro I desobedecia as mais rudimentares das posturas que lhe exigiam o cargo, faltando-lhe, portanto, decoro. Maria Graham (2010: 102) narra o momento do seu encontro com ele, «estava como se tivesse levantado da sesta, de chinelos sem meias, calças e casaco leve de algodão listado, e um chapéu de palha forrado e amarrado de verde». Sousa (1998: 174) afirma que a «Quinta da Boa Vista mais parecia uma típica propriedade rural de brasileiro rico do que um paço imperial. Como fazendeiro ze-loso de seus bens e aprazendo-se no papel de simples feitor, o monarca cuidava atentamente de tudo».

À falta de decoro na vida pessoal, juntam-se os problemas rela-cionados à virtude política, como se uma estivesse entrelaçada à outra, características que aliadas à sua pouca educação, ao temperamento, à vida dupla são atributos pertinentes para o vitupério baseado no lugar--comum da condição (Hansen, 1989). Em 1826, a situação do monarca era complicada e sua posição não parecia firme nem para os portugueses nem para brasileiros. Desde 1825 enfrentava a cisão da província da Cisplatina e sua anexação pelas Províncias Unidas do Rio da Prata, que culminaria com a guerra, em 1826. Ademais, a execução de Frei Caneca teria causado grande comoção popular, pelo fato de ele não ter perdoado a um religioso.14 Outro dado que poderia afastar o Imperador do campo da virtude política era a sua posição contrária à escravidão que feria no

13 «Infelizmente não consigo encontrar ninguém em quem possa depositar minha plena con-fiança, nem mesmo em meu esposo, porque, para meu grande sofrimento, não me inspira mais respeito, por mais que me supere e me controle» (Leopoldina, 2006: 429).

14 Para o conhecimento dos problemas políticos por que passavam o Brasil e o imperador, con-sultar: (Monteiro, 1982; Sousa, 1988; Macaulay, 1986 e Lustosa, 2007).

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coração os proprietários rurais do Brasil, todos escravocratas (Macau-lay, 1993: 192 e 242).

«Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhan-te e sábia, A gemer igualmente na desgraça Dos míseros vassalos, que honrar devem, –De um tirano o poder, o trono, o cetro». O que se quer ressaltar aqui é a desproporção observada nos retratos feitos sobre o Imperador, que ressaltavam, sobretudo, uma postura ambígua com que levava a vida pessoal. Segundo Monteiro (1982: 92, V. II),

O grande mal, que pesava sobre o reinado de D. Pedro I, e juntava-se à dúvida do povo quanto às suas ligações com Portugal para dimi-nuir-lhe a majestade, era o concubinato que afrontava os melindres da gente honesta, contaminava pelo mau exemplo a gente de moral fraca, impunha à Imperatriz a humilhação pública do seu repúdio. A desfa-çatez com que produzia tamanha imoralidade justificava os excessos oposicionistas contra ele.

O interessante desta sátira é que o seu autor conjuga o estilo gra-ve e o patético com as imagens e alusões risíveis ao comparar analoga-mente o Imperador a Calígula e Domitila a seu cavalo. Tomando-se o episódio do cavalo como aquele mais conhecido e mais jocoso, já que Calígula também é reconhecido pela crueldade e pela «natureza feroz e depravada» (Suetonio, 2002: 250), dados que, supostos pouco conheci-dos dos leitores da epístola, são arrolados em nota de fim de página no Jornal.15 Assim, a persona que narra na epístola sugere para D. Pedro I o oposto da justiça e da temperança, atributos que faltaram ao monarca, quando da execução sumária do frei Caneca. Esta desproporção é veros-símil porque na sátira «as transferências metafóricas incongruentes são programáticas». Assim, sabendo-se ser verdadeiro o gesto do imperador romano, o ato do imperador brasileiro também é satirizado, observan-do-se que «quanto mais é incongruente o efeito, mais ativa é a função valorativa da enunciação que dramatiza a incongruência adequada para

15 Conferir Anexos 3 e 4.

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o destinatário» (Hansen, 1987: 295). Desde 1823 observa-se o desejo de D. Pedro I de afrontar a sociedade que murmurava a boca pequena a sua relação com Domitila. Em carta endereçada à amante, ele informa sobre a joia –um colar de ametistas– que deveria combinar com o vestido que ele insistia que ela fizesse na madame Josefine, a mais afamada modista do reino à época. Para tanto, ele sugeria que ela ali fosse com o Barão de Sorocaba, Boaventura Delfim Pereira, casado com a irmã de Domi-tila. Como revelam as palavras do Imperador, na carta, ele não apenas queria que ela «apareça publicamente», mas que «apareças bem vestida e decente». Contudo, escreveu o Imperador, quando o fizesse esperava «que isto faça para se apresentar na Glória enervando todas que lá apa-recerem» (Rezzutti, 2011: 92, Carta 2). Contrariando a postura de um rei probo, sóbrio, decente e de temperança, o Imperador além de infringir as leis do sexo honesto, o faz com escárnio à população. Na epístola em análise, o trecho abaixo reforça o lugar-comum da sátira, segundo o qual «a corrupção do corpo falseia a ordem natural expressa no bem comum pela irrupção do gozo impuro» (Hansen, 1989: 329). Os versos «Nem sempre as águias de outras águias nascem, Nem sempre de leões, leões se geram, Quantas vezes as pombas e os Cordeiros São partos dos leões, das águias partos!» revelam a monstruosidade do sexo ilícito, a despro-porção. Neste caso, é a descendência o tipo satirizado de acordo com o lugar-comum da origem, numa alegoria perfeita, posto que Germânico, pai de Calígula, gozava de respeito e de admiração dos seus súditos, assim como D. João VI (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 235-236):

Pode o pai ser piedoso, sábio e justo,Manso, afável, pacífico e prudente:Não se segue daqui, que um ímpio filho,Perverso, infame, díscolo e malvado,Não desordene de seus pais a glória.Nem sempre as águias de outras águias nascem,Nem sempre de Leões leões se geram16,

16 Neste verso, encontra-se a nota b: «Como se dissera, que nem sempre sucede o que diz Horacio no liv. 4.º das Odes, O. 4. Fortes creantur fortibus et bonis/ est in iuuencis, est in equis patrum/ virtus neque inbellem feroces/ progenerant aquilae columbam» (Jornal Científico, 1826: 239-240).

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Quantas vezes as pombas e os CordeirosSão partos dos leões, das águias partos!

Com efeito, como já foi mencionado, em maio de 1824 nasce a filha de Domitila com o Imperador, Isabel, a quem nas cartas tratará sempre por Belinha, fato que irá promover a desordem «natural» da li-nhagem dinástica: «perverso, infame, díscolo e malvado», leão que não gera outro leão, mas a aberração. A partir de 1825, acontece a «institu-cionalização» do romance entre os dois. Ao Imperador já não interessa-va apenas incomodar as mulheres com a beleza de Domitila, pois como afirma em carta «já esta tarde começam os desavergonhados a saber quem eu sou, e quem é [sic] mecê e quanto eu a estimo»17 (Rezzutti, 2011, Carta 25). Na sátira, esta conduta pode ser associada aos versos seguintes:

Aqui se acha o lascivo; é o vaidoso!É o estúpido, enfim é o dementeO que ao vivo aparece nesta empresa. Tu, severo Catão,18 tu repreendes, Com teu mudo semblante a pátria Roma;Nem seus teatros de lascívia cheiosSofrem teus olhos nobremente irados.19

Isto ocorreu a partir do incidente que assumiu proporções im-pensáveis no qual Domitila foi destratada pela Baronesa de Goytacaz ao tentar assistir missa na tribuna reservada às damas do paço, na Ca-

17 E assim continua: «Mandei por uma fechadura na porta das tribunas para se fechar a porta, que não será aberta venha quem vier enquanto mecê não vier, e assim ficam todos sem lugar. Além disso, hei de tratar os maridos de bonito modo, e eu lhe prometo que mais nada hão de fazer aos amores»(Rezzutti, 2011, Carta 25).

18 Também denominado «o censor», foi um romano considerado exemplo de homem virtuoso pelos seus pares. Cf. Lima (2007: 33). Disponível em: http://www.hottopos.com/notand15/aless.pdf. Acesso em 19/12/2012.

19 Conferir a última nota, a de letra (d), no Anexo 4.

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pela Imperial. Isto fez com que fosse nomeada, por decreto de «Dona Leopoldina»,20 como Dama Camarista da Imperatriz, cargo que lhe con-feriu em abril de 1825 que, além do direito de usufruir da tal tribuna, a colocava em primazia sobre as demais damas de honra, «e o direito de estar presente a todas as reuniões e acompanhar a imperatriz a todas as excursões; assumir o lugar de honra logo após Sua Majestade em todas as ocasiões» (Graham, 2010: 218). A petição que conferiu a Domitila seu lugar de camareira-mor de Leopoldina foi deferida no dia do aniver-sário da princesa Maria da Glória, ocasião «em que toda a corte, mesmo grosseira como era, caiu em consternação».21 A fofoca e os murmúrios, próprios ao conteúdo da sátira, foram registrados por outros estrangei-ros a quem muito espantava a sua relação com Domitila, como revela Schlichthorst, em seu diário: «a primeira Camareira de Sua Majestade a Imperatriz, a paulista D. Dimitila de Castro e Canto, Viscondessa de Santos, é a amante declarada do Imperador» ([s/d]: 62).

O ano de 1826 vai ser lembrado pela morte de D. João VI, pela instalação da Assembléia Geral Legislativa, quando enfim os deputados e senadores puderam participar do processo legislativo brasileiro, re-gulamentando os dispositivos constitucionais, mas na vida de Pedro I, este ano será aquele da viagem que fez à Bahia e causou indignação aos brasileiros e a estrangeiros. Monteiro (1982: 101) afirma que «dias antes da partida afixavam-se pasquins nas paredes das ruas e cartas anônimas choviam em palácio com expressões de espanto acerca de tão escanda-losa companhia». Com efeito, esta viagem tornou ostensiva a «mance-bia, a princípio discreta» (Monteiro, 1982: 101). Sobre a viagem, Maria Graham (2010: 226) assim comenta:

20 Segundo Macaulay (1993: 213), D. Pedro I «convenceu D. Leopodina a escolher Domitila como uma das suas damas de companhia; a ingênua imperatriz pensou que se tratasse de uma recompensa por serviços prestados a seu marido pelo pai da indicada, o coronel João de Castro».

21 Segundo Graham (2010: 218), ao nomear Domitila como primeira dama da imperatriz, D. Pedro infligia «à Imperatriz o mais odiosos dos incômodos, isto é, sua presença –desde o momento em que saía de seus apartamentos privados. Na primeira explosão de indignação geral, várias das primeiras damas recusaram visitar a favorita, mas em breve fizeram-lhe compreender que a teimosia não resultaria em nenhum bem à Imperatriz».

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Ela com o imperador e as Princesinhas, havia embarcado para a Bahia; concordou, ainda que passasse mal no mar, na esperança de escapar da vista da Domitila de Castro, então elevada a Viscondessa de Santos. Qual não teria sido o seu desapontamento ao entrar em seu camarote, em ver Mme. de Santos já ali estabelecida, além do mais, nas funções de seu ofício.

Nesta viagem, Domitila se integrou na condição de dama de com-panhia de D. Leopoldina e dividiu com o imperador aposentos do palá-cio do governo da Bahia, enquanto a imperatriz hospedou-se no edifício da Relação. Em carta a seu pai, escrita no dia 28/04/1826, a imperatriz comenta que a viagem foi «extremamente desagradável em todos os sentidos», lamento repetido em carta a Maria Graham, de 29/04/1826, como uma «viagem bem penosa à Bahia e uma permanência de dois meses eternos» (Leopoldina, 2006: 446).22 Nesta data, dona Leopoldi-na ainda não havia tomado conhecimento do que se considera o golpe definitivo nesta oficialização de Domitila: o reconhecimento como filha legítima de Isabel Maria, em 20 de maio, e em 24 do mesmo mês ela recebe o título de duquesa de Goiás, com o tratamento de Alteza. Para Graham (2010: 234), chamou a atenção tanto o fato em si, que submetia a Imperatriz à humilhação, quanto o fato de fazê-lo «expedindo um ato governamental para declará-la legítima, e depois publicando essa lou-cura nas gazetas e jornais do Brasil, seguiu D. Pedro o exemplo de Luiz XIV, como uma justificação do ato vicioso e violento».

Teatro «das paixões humanas», a epístola representa este espetá-culo promovido pelo monarca assinalando ao mesmo tempo o seu efei-to trágico e cômico, com a presença de Tália e Melpomene deusas da comédia e da tragédia respectivamente (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 234):

Dos míseros vassalos, que honrar devem,

22 Em carta de sete de junho de 1826, escrita à amiga Maria Graham, ela afirma em P. S.: «Per-doai-me a má letra, mas depois de minha viagem por mar apanhei umas dores reumáticas nos dedos da mão direita, que me dificultam muito a escrita» (Leopoldina, 2006: 446).

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De um Tirano o poder, o Trono, o Cetro.Se Tália, e Melpomene nos pintamNos seus Teatros, paixões humanas,Ao ridículo gesto, ou ao semblanteDa Cena, que o coturno me apresenta:Eu me conformo ao interesse, quandoAborre [sic] o a maldade, e quando rendoÀ formosa Virtude os dignos votos.

A despeito do constrangimento e dos mexericos, ao voltar para o Rio de Janeiro, D. Pedro demanda da população um espetáculo. E como sempre, utiliza-se dos periódicos áulicos para fazê-lo. O Spectador Bra-sileiro do dia 31 de março registra a expectativa da população do Rio de Janeiro com a chegada da família real, «Muitas pessoas se aventuraram a fazerem apostas sobre o dia por todos esperado». Em O Verdadeiro Liberal, de 21 de março, observa-se uma nota na qual o redator informa sobre a apreensão dos moradores para festejar a volta de SS. MM. II e «segundo todas as aparências as festas hão de ser magníficas». Contudo, a julgar pelo que afirma o mercenário alemão Schlichthorst, esta expec-tativa poderia ser de outra natureza e não pelo amor ao imperador. Do ponto de vista desse estrangeiro, a população ignorou a chegada do na-vio D. Pedro I, no qual vinham a família real e Domitila (Schlichthorst, [s/d]:184, Grifos meus):

A cidade pôs luminárias. Plantou-se uma aleia de palmeiras novas, li-gadas por festões de flores e grinaldas de lâmpadas, do ponto de de-sembarque ao arco de triunfo levanta do à esquina do Arsenal. No dia seguinte, por volta do meio-dia, Sua Majestade desembarcou. Teve re-cepção muito fria, mal se ouvindo raros vivas. Até as tropas mer-cenárias alemãs, em espalier espaçadamente do Arsenal até a Ca pela Imperial, permaneceram impassíveis. D. Pedro parecia muito descontente.23

23 Ainda de acordo com o testemunho de Schlichthorst ([s/d]: 204), «no teatro, também na plateia dirigiram um discurso ao Imperador. Apesar do orador estar vestido decentemente, falando com fluência e elegância, toda a gente tinha opinião formada sobre essa efusão es-

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O último aspecto a salientar nesta epístola diz respeito a relação estabelecida entre a Igreja católica no exercício de seus atos festivos e o Imperador. A igreja sempre comungou com os atos obscenos, como pode ser entrevisto acima, estando, portanto, o imperador acima das leis do mundo e das de Deus. Nisto a persona satírica é quase literal, ainda mais quando se sabe que ele «era um frequentador assíduo da igreja» (Macaulay, 1993: 201), principalmente da igreja da Glória para onde ia a cavalo quase todas as manhãs (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 238):

Aqui vê-se o soberbo, que pensandoDo resto dos mais homens nada seremMais que humildes insetos; só de fúriasNutre o vil coração, e a seus pés calcaA pobre humanidade. Aqui se encontraO ímpio, o libertino, que ultrajandoTudo quanto é sagrado, tem por timbreAo público mostrar, que o Santo cultoQue nos intima a religião, somenteAos pequenos obriga, e que por arteOs conserva a ilusão no Fanatismo,Porque da obediência às Leis se dobrem;

Nesta passagem se verifica a crítica não à Igreja Católica, mas ao descumprimento dos seus princípios pelo imperador. Não bastassem as aparições públicas com Domitila, a viagem, com o reconhecimento da filha Isabel Maria, ele assumia publicamente ter sido o seu batizado de dois anos atrás, um embuste, «onde a menina recebera os santos óleos como filha de pais incógnitos» (Monteiro, 1982: 102). A sátira era, na-quele contexto, o modo seguro de apontar os desmandos do monarca e da religião católica, tendo em vista o fato de a Constituição de 1824 «es-

pontânea da mais profunda dedicação e do mais ardente patriotismo. O Imperador dá muito valor a essas demonstrações de amor do povo, apesar de saber muito bem que são regiamente pagas, embora cada um dos cantores desses coros laudatórios receba pessoalmente muito pouco. Somente dois tostões! disse chistosamente um desses infelizes».

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tabelecer o catolicismo romano como religião de Estado e ao declarar «inviolável» a pessoa do imperador, ela impedia, na opinião da maioria dos políticos e jornalistas brasileiros, os ataques diretos à Igreja e ao monarca» (Monteiro, 1982: 257).

O problema, no que concerne não apenas a «Epístola a Critilo», mas a todos os escritos que são retirados do seu contexto de produção e aos quais são indiferentemente aplicados critérios alheios ao tempo, é perder de vista aquilo que Pécora (2011) chama de «legibilidades ve-rossímeis». No caso de a «Epístola a Critilo», um escrito produzido em 1826, em um jornal com três números apenas, o paradigma que ditou sua leitura nos quadros da história da literatura brasileira foi o de se valorizar sua autoria, a pretensa relação com outro texto também pu-blicado em jornal vinte anos mais tarde. A obsessão pela autoria desse texto, o seu papel como libelo revolucionário e o caráter de nacionali-dade que se poderia aferir a um escrito anterior ao século XIX inscre-veram este escrito na tradição da literatura brasileira, deslocando-o da sua historicidade. Evidentemente que não se trata de uma prerrogativa da historiografia literária brasileira, mas de uma ordem de discurso que se estabeleceu no século XIX, com a «consagração do escritor», a «fe-tichização do manuscrito autógrafo» e a «garantia de autenticidade da obra» (Chartier, 2012: 266). Estas noções, lidas pelo avesso, permitem compreender outras formas de escrita e circulação dos escritos dos pe-riódicos, na primeira metade do século XIX. Elas mostram, sobretudo, que os periódicos proporcionavam a instabilidade e a mobilidade que os textos tinham, quando eram extraídos, adaptados, recortados, reescritos, interpolados e escritos com falsa atribuição.

Este estudo tentou mostrar como ainda sabemos pouco sobre a literatura no jornal do século XIX (Zilberman, 2004). Seu papel de ar-quivo já está muito bem posto por estudos clássicos e absolutamente importantes na história da literatura, mas é preciso concebê-lo como suporte, pois como bem afirma Mckenzie (2004), os gêneros novos e as transformações dos antigos nascem da exigência dos novos leitores e das formas tipográficas que lhe informam.

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Ao inscrever a «Epístola a Critilo» no contexto de produção dos periódicos, da década de 20 do século XIX, e associar a sátira à figura de D. Pedro I, este artigo parte de critérios compatíveis com as condi-ções de produção de escrita nos jornais. Assim, é possível identificar, de forma verossímil, os mecanismos por ele engendrados, para dar conta dos assuntos políticos do seu tempo, entre eles, a vida desregrada do Im-perador. Outra proposição apresentada por este artigo é o de considerar a produção cultural anterior ao mito fundador do romantismo, lendo-a e dela se apropriando sem ignorar, ao mesmo tempo, que as regras de composição dos gêneros retórico-poéticos prescreviam estes escritos, e que termos como originalidade e de validade estética eram alheios ao tempo. Com isto, evita-se a abordagem anacrônica destes escritos que consiste segundo Hansen (1997: 12), em tomar estes produtos literários como «expressão psicológica de uma subjetividade que, sendo homogê-nea com seu tempo, é generalizada como válida para todos os tempos». Neste estudo, buscou-se sair deste paradigma, principalmente, ao consi-derar a epístola satírica a partir dos pressupostos poéticos previstos para o gênero. Assim, compreendida como escrito histórico concernente ao tempo presente, ou seja, o ano de 1826, a «Epístola a Critilo» pôde ser relacionada ao comportamento desregrado de D. Pedro I e ser lida como apologia às regras da monarquia e não como libelo, anticolonialista ou antimonarquista. Neste sentido, considera-se com Lisboa (1987: 275), que a imprensa conseguiu «apoderar-se da ficção, da retórica e da poéti-ca, adaptando-se e adaptando os seus estilos com bastante facilidade de reconversão», para «impor uma nova leitura».

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231A introdução às CArtAs ChilenAs ou epístolA A Critilo ...

ANEXO 1

233A introdução às CArtAs ChilenAs ou epístolA A Critilo ...

ANEXO 2

[...]

234 Socorro de Fátima P. BarBoSa

ANEXO 3

235A introdução às CArtAs ChilenAs ou epístolA A Critilo ...

ANEXO 4