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A Irmã da Tempestade - WordPress.com · na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." O Arqueiro

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DADOS DECOPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizadapela equipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdopara uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como osimples teste da qualidade daobra, com o fim exclusivo de

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compra futura.

É expressamente proibida etotalmente repudiável a venda,aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceirosdisponibilizam conteúdo dedominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmentegratuita, por acreditar que oconhecimento e a educaçãodevem ser acessíveis e livres atoda e qualquer pessoa. Você

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pode encontrar mais obras emnosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceirosapresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

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O ArqueiroGERALDO JORDÃO PEREIRA(1938-2008) começou sua carreira aos17 anos, quando foi trabalhar com seupai, o célebre editor José Olympio,publicando obras marcantes como Omenino do dedo verde, de MauriceDruon, e Minha vida, de CharlesChaplin.

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Em 1976, fundou a Editora Salamandracom o propósito de formar uma novageração de leitores e acabou criandoum dos catálogos infantis maispremiados do Brasil. Em 1992, fugindode sua linha editorial, lançou Muitasvidas, muitos mestres, de Brian Weiss,livro que deu origem à EditoraSextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldodescobriu O Código Da Vinci antesmesmo de ele ser lançado nos EstadosUnidos. A aposta em ficção, que nãoera o foco da Sextante, foi certeira: otítulo se transformou em um dosmaiores fenômenos editoriais de todosos tempos.

Mas não foi só aos livros que sededicou. Com seu desejo de ajudar opróximo, Geraldo desenvolveu diversos

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projetos sociais que se tornaram suagrande paixão.

Com a missão de publicar históriasempolgantes, tornar os livros cada vezmais acessíveis e despertar o amorpela leitura, a Editora Arqueiro é umahomenagem a esta figuraextraordinária, capaz de enxergar maisalém, mirar nas coisasverdadeiramente importantes e nãoperder o idealismo e a esperançadiante dos desafios e contratempos davida.

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Título original: The Storm Sister

Copyright © Lucinda Riley, 2015Copyright da tradução © 2015 por Editora

Arqueiro Ltda. Todos os direitos reservados. Nenhuma partedeste livro pode ser utilizada ou reproduzida

sob quaisquer meios existentes semautorização por escrito dos editores.

tradução: Fernanda Abreu

preparo de originais: Rafaella Lemosrevisão: Clarissa Peixoto e Raphani

Margiottaprojeto gráfico e diagramação: Valéria

Teixeiracapa: Raul Fernandes

imagem de capa: Yolande de Kort/ TrevillionImages

adaptação para ebook: Marcelo Morais

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NAFONTE

SINDICATO NACIONAL DOSEDITORES DE LIVROS, RJ

R43i Riley, Lucinda

A irmã da tempestade [recursoeletrônico] / Lucinda Riley [traduçãode Fernanda Abreu]; São Paulo:Arqueiro, 2015.recurso digital (As sete irmãs; 2)

Tradução de: The storm sisterSequência de: As sete irmãsFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe

Digital EditionsModo de acesso: World Wide

WebISBN 978-85-3940-478-3

(recurso eletrônico)

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1. Ficção irlandesa. 2. Livroseletrônicos. I. Abreu, Fernanda. II.Título. III. Série.

15-26860 CDD: 828.99153

CDU: 821.111(415)-3

Todos os direitos reservados, no Brasil, por

Editora Arqueiro Ltda.Rua Funchal, 538 – conjuntos 52 e 54 – Vila

Olímpia04551-060 – São Paulo – SP

Tel.: (11) 3868-4492 – Fax: (11) 3862-5818E-mail: [email protected]

www.editoraarqueiro.com.br

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PARA SUSAN MOSS,MINHA IRMÃ “DE ALMA”.

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“Todos estamos deitados nasarjeta, só que alguns

estão olhando para as estrelas.”

OSCAR WILDE

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Personagens

ATLANTIS

Pa Salt – pai adotivo dasirmãs

Marina (Ma) – tutora dasirmãs

Claudia – governanta deAtlantis

Georg Hoffman – advogadode Pa Salt

Christian – capitão dalancha da família

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AS IRMÃS D’APLIÈSE

MaiaAlly (Alcíone)Estrela (Asterope)Ceci (Celeno)Tiggy (Taígeta)ElectraMérope (desaparecida)

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Ally

Junho de 2007

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1

Mar Egeu

Sempre vou lembrar exatamenteonde me encontrava e o queestava fazendo quando recebi anotícia de que meu pai haviamorrido.

Estava deitada ao sol noconvés do Netuno, nua, com amão de Theo pousada sobreminha barriga em um gesto

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protetor. A curva deserta na praiadourada da ilha à nossa frentecintilava ao sol, aninhada em suaenseada rochosa. A água azul-turquesa, transparente comocristal, fazia preguiçosastentativas de formar ondas aobater na areia, que se desfaziamem uma espuma elegante como ade um cappuccino.

Calmaria, pensei. Tanto nomar quanto dentro de mim.

Tínhamos deitado âncora napequena baía da minúscula ilhagrega de Macheres no pôr do soldo dia anterior, depois havíamoscaminhado com dificuldade pelaágua até a praia, levando dois

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coolers, um repleto dossalmonetes e sardinhas frescasque Theo havia pescado maiscedo, e o outro cheio de vinho eágua. Pousei meu cooler na areia,ofegante por causa do esforço, eTheo beijou meu nariz comdelicadeza.

– Somos dois náufragos emnossa própria ilha deserta –declarou, abrindo bem os braçospara abarcar aquele cenário desonho. – Agora vou procurarlenha para assarmos os peixes.

Fiquei observando Theo medar as costas e sair caminhandoem direção às pedras, queformavam uma meia-lua ao redor

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da enseada na direção dosarbustos muito secos e espaçadosque brotavam nas fendas. Theoera magro, porém seu porte físiconão fazia jus à sua força develejador de alto nível. Emcomparação com meus outroscompanheiros de competições devela, que eram montanhas demúsculos com peitorais de Tarzã,ele chegava a ser diminuto. Umadas primeiras coisas que eureparara nele era seu andar umpouco irregular. Então, certa vez,ele me contou que tinha quebradoo tornozelo ao cair de uma árvorequando era pequeno e que afratura nunca tinha calcificado

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direito.– Acho que esse é mais um

motivo para o meu destinosempre ter sido viver no mar.Quando estou velejando, ninguémpercebe quão ridículo eu souandando em terra firme – disseraele, rindo.

Assamos o peixe e, maistarde, fizemos amor sob asestrelas. A manhã seguinte seria aúltima que passaríamos juntos noveleiro. Logo antes de concluirque não podia mais adiar a horade retomar o contato com omundo exterior e decidir ligar ocelular para descobrir que minhavida tinha se estilhaçado em mil

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pedaços, passei um tempo ali,deitada ao seu lado, perfeitamenteem paz. E me pus a recordar,como num sonho surreal, omilagre de nós dois e de comoacabáramos indo parar juntosnaquele lugar lindo...

Fazia mais ou menos um anodesde que eu tinha visto Theopela primeira vez, na RegataHeineken, em St. Maarten, noCaribe. A tripulação vencedora

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estava comemorando no jantardos campeões, e eu ficaraintrigada ao saber que ocomandante era Theo Falys-Kings. Theo era famoso no mundoda vela e, nos cinco anosanteriores, havia conduzido maistripulações à vitória do quequalquer outro capitão.

– Ele não é nem um poucocomo eu o imaginava – comenteiem voz baixa com Rob Bellamy,um velho companheiro detripulação com quem eu já tinhavelejado na equipe nacional daSuíça. – Parece mais um nerdcom esses oculinhos de armaçãogrossa – arrematei.

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Theo se levantou e foi atéoutra mesa.

– E ele anda de um jeito bemesquisito.

– Não é mesmo o típicovelejador fortão – concordouRob. – Mas, Al, o cara é umgênio. Tem um sexto sentidoquando se trata do mar, e nãoconfiaria em ninguém mais do quenele para ser meu capitão emmares revoltos.

Mais tarde nessa mesmanoite, Rob me apresentourapidamente a Theo, e reparei queseus olhos verdes entremeados decastanho-claro adotaram umaexpressão pensativa quando ele

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apertou minha mão.– Quer dizer que você é a

famosa Al D’Aplièse.Com seu sotaque britânico, a

voz era calorosa e firme.– A resposta para a última

parte da sua pergunta é sim –falei, encabulada com o elogio. –Mas acho que o famoso aqui évocê. – Fazendo o possível paranão deixar meus olhos vacilaremdiante daquele olhar insistente, vios traços de seu rosto sesuavizarem, e ele deu umarisadinha.

– Qual é a graça? –perguntei.

– Para ser sincero, você não

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é como eu imaginava.– Como assim?Mas a atenção de Theo foi

atraída por um fotógrafo quepediu uma pose do grupo, entãonão cheguei a ouvir o que elequeria dizer.

Depois disso, comecei anotar sua presença em diversoseventos sociais ligados às regatasdas quais participávamos. Theotinha uma qualidade indefinível,uma vibração, além de uma risadafácil e suave que, apesar de suapostura aparentemente reservada,parecia atrair as pessoas. Se oevento fosse formal, ele quasesempre aparecia de calça social e

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blazer de linho amarfanhado emrespeito ao protocolo e aospatrocinadores da competição,mas os sapatos surrados e oscabelos castanhos despenteadossempre o deixavam com cara dequem tinha acabado de sair dobarco.

Nesses primeiros encontros,foi como se estivéssemos em umadança nossa. Nossos olhares secruzavam com frequência, masele nunca tentou dar continuidadeàquela nossa primeira conversa.Foi só há um mês e meio, depoisde a minha equipe vencer emAntígua, quando estávamoscomemorando no Baile de Lorde

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Nelson, último evento da semanade competições, que ele seaproximou para me dar umtapinha no ombro.

– Parabéns, Al.– Obrigada – respondi,

satisfeita com o fato de a nossaequipe ter derrotado a dele, o queera raro.

– Tenho ouvido muita coisaboa sobre você nesta temporada.Quer fazer parte da minha equipena Regata das Cíclades, emjunho?

Eu já tinha recebido umaproposta para participar de outraequipe, mas ainda não haviaaceitado. Theo percebeu minha

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hesitação.– Você já está

comprometida?– É, estou. Provisoriamente.– Bom, este é o meu cartão.

Pense um pouco e me avise até ofim da semana. Seria muito útilter alguém como você a bordo.

– Obrigada – agradeci,tentando afastar da mente a minhaprópria hesitação. Quem, em sãconsciência, recusaria um convitepara trabalhar com o caraatualmente conhecido como “Reidos Mares”? Quando elecomeçou a se afastar, chamei-o: –A propósito, da última vez que agente conversou, por que você

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falou que eu não era como vocêimaginava?

Ele parou e me deu umaconferida rápida com o olhar.

– Eu nunca tinha encontradovocê pessoalmente; só tinhaouvido pedaços de conversassobre a sua habilidade com avela. Enfim... Você não é como euimaginava. Boa noite, Al.

Fiquei remoendo essaconversa enquanto voltava para omeu quarto numa pequenapousada próxima ao porto de St.John, deixando o ar da noite merefrescar e imaginando por queTheo me fascinava tanto. Ospostes conferiam às alegres

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fachadas multicoloridas da ruaum cálido brilho noturno, e oburburinho preguiçoso daspessoas em bares e cafés flutuavade longe na minha direção. Maseu não prestei atenção em nadadisso, de tão animada que estavacom a vitória... e com a propostade Theo Falys-King.

Assim que entrei no quarto,fui direto para o laptop e escrevium e-mail para ele aceitando oconvite. Antes de mandar o e-mail, tomei uma chuveirada,depois reli o texto e enrubesci aoconstatar que parecia empolgadademais. Decidi guardá-lo na pastade rascunhos e enviá-lo dali a um

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ou dois dias, então me estiquei nacama e flexionei os braços paraaliviar a tensão e as doresprovocadas pela regata maiscedo.

– Bom, Al – murmureicomigo mesma com um sorriso. –Essa, sim, vai ser uma regatainteressante.

Mandei o e-mail conforme oplanejado, e Theo me respondeuna mesma hora dizendo queestava contente por eu terdecidido entrar para a sua equipe.Então, há apenas duas semanas,foi com um nervosismoinexplicável que coloquei os pésa bordo do iate Hanse 540

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preparado para a competição noporto de Naxos, onde começariao treinamento para a Regata dasCíclades.

A regata não exigia muito emtermos competitivos, pois osparticipantes eram um misto develejadores sérios e entusiastasde fim de semana, todos animadoscom a perspectiva de passar umasemana velejando em um cenárioincrível, em meio a algumas dasilhas mais bonitas do mundo.Como éramos uma dastripulações mais experientes dacompetição, eu sabia quetínhamos fortes chances devencer.

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As tripulações de Theo eramconhecidas por serem sempremuito jovens. Meu amigo RobBellamy e eu éramos os maisvelhos e experientes. Eu ouviradizer que Theo preferia recrutaros talentos da vela bem no inícioda carreira, a fim de evitar maushábitos. Guy, um inglês fortão,Tim, um australianodespreocupado e Mick, umvelejador meio alemão, meiogrego, que conhecia as águas doEgeu como a palma da mão,completavam a tripulação de seispessoas.

Embora empolgada com aoportunidade de trabalhar com

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Theo, eu não estava às cegas.Tinha me esforçado para reunir omáximo de informações, nasminhas pesquisas na internet ecom gente que já havia trabalhadocom ele, sobre o enigmaconhecido como “Rei dosMares”.

Descobri que Theo erabritânico e havia estudado emOxford, o que explicava osotaque, mas na internet seu perfildizia que ele era um cidadãoamericano e que tinha conduzidoo time universitário de Yalemuitas vezes à vitória. Um amigoouvira dizer que ele vinha de umafamília rica, outro, que ele

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morava em um barco.“Perfeccionista”...

“Controlador”... “Difícil deagradar”... “Workaholic”...“Misógino”... Esses foram algunsdos outros comentários que euhavia reunido – o último deles daboca de uma companheiravelejadora que alegava ter sidocolocada de lado e maltratada emuma tripulação de Theo,afirmação que me deu o quepensar. Mas a maioriaesmagadora das opiniões dizia amesma coisa: “Sem qualquersombra de dúvida, o melhorcapitão com quem já trabalhei.”

Nesse primeiro dia a bordo,

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comecei a entender por que Theoera tão respeitado por seus pares.Eu estava acostumada comcapitães que viviam aos gritos,berrando comandos exingamentos para todo lado, feitoum chef de cozinha mal-humorado. O estilo discreto deTheo foi uma revelação paramim. Ele falava muito pouco aonos mandar executar nossasfunções e ficava só observando acerta distância. No fim do dia,reunia todo mundo e, com sua vozcalma e firme, assinalava ospontos fortes e fracos de cada um.Percebi que ele não deixavapassar nada, e seu ar natural de

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autoridade nos fazia prestaratenção em cada palavra quedizia.

– Falando nisso, Guy, nãoquero mais saber dessasescapadinhas para fumar duranteos treinos em condições de regata– completou ele, com um meiosorriso antes de nos dispensar.

Guy ficou com o rostovermelho, até a raiz dos cabeloslouros.

– Esse cara deve ter olhosna nuca – resmungou ele comigoum pouco depois, enquantodesembarcávamos para tomarbanho e trocar de roupa antes dojantar.

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Nessa primeira noite, saí dapensão com o resto da tripulaçãofeliz por ter decidido competircom eles. Passeamos pelo portode Naxos, com seu antigo castelode pedra iluminado acima dacidade e um labirinto deruazinhas sinuosas queserpenteiam entre as casascaiadas de branco. Osrestaurantes do porto estavamlotados de velejadores e turistasque saboreavam frutos do mar efaziam brindes com ouzo.Achamos um pequeno restaurantefamiliar em uma rua afastada,com cadeiras de madeira bambase louça que não combinava. A

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comida caseira era bem o queprecisávamos após o longo dia noiate. A maresia nos deixarafamintos.

Minha fome evidente atraiuos olhares de alguns homensenquanto eu devorava a moussakae generosas porções de arroz.

– O que foi? Nunca viramuma mulher comer? – comentei,sarcástica, enquanto me inclinavapara pegar mais um pedaço depão sírio.

Theo entrou na brincadeirafazendo uma ou outra observaçãosagaz, mas foi embora logodepois do jantar. Ele preferia nãoparticipar da noitada pós-refeição

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pelos bares do porto. Poucodepois, segui seu exemplo.Durante meus anos comovelejadora profissional, já haviaaprendido que o comportamentodos rapazes após o anoitecer nãoera algo que eu gostaria detestemunhar.

Nos dias que se seguiram,sob os olhos verdes atentos deTheo, começamos a nos entrosar,e logo nos tornamos uma equipefluida e eficiente. Minhaadmiração por seus métodosaumentou depressa. Na terceiranoite em Naxos, particularmentecansada depois de um diaextenuante sob o sol inclemente

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do mar Egeu, fui a primeira a melevantar da mesa do jantar.

– Certo, rapazes. Vou merecolher.

– Eu também. Boa noite,rapaziada. Sem ressaca a bordoamanhã, por favor – disse Theo,acompanhando-me para fora dorestaurante. – Posso ir com você?– perguntou ele ao me alcançar narua.

– Pode, claro – concordei,subitamente tensa por estarmossozinhos pela primeira vez.

Caminhamos de volta até apensão pelas ruas estreitas deparalelepípedos; o luar iluminavaas casinhas brancas com suas

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portas pintadas de azul e janelascom venezianas de ambos oslados. Fiz o que pude para puxarconversa, mas Theo dizia apenasum ou outro “sim” ou “não”, esuas respostas taciturnascomeçaram a me irritar.

Quando chegamos àrecepção da pequena pensão, elede repente se virou para mim edisse:

– Você tem mesmo uminstinto de velejadora, Al. Dá umbanho na maioria dos seuscompanheiros de tripulação.Quem ensinou você a velejar?

– Meu pai – respondi,surpresa com o elogio. – Ele me

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leva para velejar no lago Léman,em Genebra, desde que eu eramuito pequena.

– Ah, Genebra. Estáexplicado o sotaque francês.

Preparei-me para ocomentário típico “diga algumacoisa sexy em francês” que oshomens em geral faziam nessahora, mas ele não fez.

– Bom, seu pai deve ser umvelejador e tanto... ele fez umtrabalho excelente.

– Obrigada – agradeci,desarmada.

– O que você acha de ser aúnica mulher a bordo? Embora eutenha certeza de que essa não é a

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primeira vez... – emendou eledepressa.

– Sinceramente, eu nempenso nesse assunto.

Ele me encarou com umolhar observador através dosóculos com aros grossos.

– Ah, não? Bom, desculpedizer, mas eu acho que pensa,sim. Eu sinto que às vezes vocêexagera tentando compensar essefato, e é nessas horas que cometeerros. Sugiro que relaxe mais etente ser você mesma. Enfim, boanoite. – Ele abriu um brevesorriso, então subiu a escada delajotas brancas que conduzia aseu quarto.

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Nessa noite, deitada na camaestreita, senti os lençóis brancosengomados pinicando minha pelee as bochechas ardendo com acrítica de Theo. Por acaso eraculpa minha se a presença demulheres a bordo de embarcaçõesde competição profissionaisainda era uma relativa raridade –ou uma novidade, como diriamsem dúvida alguns dos meuscolegas homens? E quem TheoFalys-Kings pensava que era?Alguma espécie de psicólogopop, que saía por aí analisandogente que não precisava deanálise?

Eu sempre havia pensado

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que sabia lidar bem com aquelacoisa de “ser mulher em ummundo dominado pelos homens” econseguia levar na boa oscomentários brincalhões e asindiretas sobre minha condiçãofeminina. Havia construído ummuro impenetrável no universoprofissional e tinha duaspersonalidades distintas: em casaera “Ally” e, no trabalho, era“Al”. Sim, muitas vezes eradifícil, e eu tinha aprendido asegurar a língua, sobretudoquando os comentários eram denatureza obviamente sexista efaziam alusão ao meu supostocomportamento “de loura”.

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Sempre fiz questão de evitar essetipo de comentário mantendomeus cachos louros com reflexosruivos longe do rosto e presos emum firme rabo de cavalo e nãousando um pingo sequer demaquiagem para realçar os olhosou esconder as sardas. Paracompletar, eu dava duroigualzinho a qualquer um dosmarmanjos a bordo – e talvezmais ainda, pensei com irritação.

Ainda indignada, semconseguir pegar no sono, lembreido meu pai me dizendo quegrande parte da irritação que aspessoas sentem em relação acomentários pessoais em geral se

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deve ao fato de existir neles umtiquinho de verdade. À medidaque as horas foram passando, tiveque reconhecer que Theoprovavelmente tinha razão. Eunão estava sendo “eu mesma”.

Na noite seguinte, ele tornoua me acompanhar até a pensão.Embora não fosse fisicamentegrande, eu o achava muitointimidador, e me pegueigaguejando e tropeçando naspalavras. Sem dizer nada, eleescutou enquanto eu me esforçavapara explicar minha duplapersonalidade.

– Bom, meu pai... cujaopinião em geral não considero

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justa, um dia me disse que, se asmulheres usassem os própriospontos fortes em vez de ficaremtentando ser como os homens,elas mandariam no mundo. Talvezvocê devesse tentar fazer isso –comentou ele.

– Sendo homem, é fácilfalar, mas o seu pai por acaso játrabalhou em um ambientetotalmente dominado pormulheres? E, se tivessetrabalhado, será que teria sido“ele mesmo”? – rebati, irritadapor ser tratada com aquelacondescendência.

– Esse é um bom argumento– concordou Theo. – Bem, pelo

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menos talvez ajude um pouco seeu chamá-la de “Ally”. Combinamais com você do que “Al”. Vocêse importa?

Antes de eu ter a chance deresponder, ele parouabruptamente no cais do pitorescoporto, onde pequenasembarcações de pescabalançavam suavemente entreiates e lanchas maiores, com osruídos tranquilizadores de um marcalmo a bater em seus cascos. Vi-o erguer os olhos para o céu einflar visivelmente as narinaspara farejar o ar e tentardescobrir que tipo de clima o diaseguinte traria. Era algo que eu só

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tinha visto velejadores maisvelhos fazerem, e dei umarisadinha ao imaginar Theo comoum lobo do mar idoso edesgrenhado.

Ele se virou para mim comum sorriso intrigado.

– Qual é a graça?– Nenhuma – respondi. – E,

se você preferir, fique à vontadepara me chamar de Ally.

– Obrigado. Agora vamosdormir um pouco. Programei umdia pesado para a gente amanhã.

Nessa noite, assim como naanterior, perdi o sonorelembrando nossa conversa.Logo eu, que em geral dormia

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feito uma pedra, sobretudoquando estava treinando oucompetindo.

E os conselhos de Theotiveram um efeito contrário. Nosdias que se seguiram, cometivários errinhos bobos que mefizeram sentir mais uma novata doque a profissional que eu de fatoera. Repreendi-me comseveridade, mas, por ironia eapesar das provocações bem-humoradas dos colegas, Theo nãofez crítica nenhuma.

Na nossa quinta noite, muitoconstrangida e confusa com onível medíocre da minhaperformance, nada característico

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de mim, nem sequer jantei com oresto da tripulação. Em vez disso,fiquei sentada na varandinha dapensão e comi pão, queijo feta eazeitonas que a simpáticaproprietária havia providenciadopara mim. Afoguei as mágoas novinho tinto forte que ela me serviue, depois de várias taças,comecei a ficar tonta e sentir penade mim mesma. Estavacambaleando trôpega, levantandoda mesa para ir para a cama,quando Theo apareceu navaranda.

– Está tudo bem? –perguntou ele, ajeitando os óculosmais para cima do nariz para me

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enxergar melhor.Olhei para ele estreitando os

olhos, mas sua silhueta havia setransformado em um borrãoinexplicável.

– Tudo – respondi, com avoz arrastada, e voltei a me sentardepressa quando tudo em quetentava focar os olhos começou arodar.

– Ficamos preocupados porvocê não aparecer hoje. Não estádoente, está?

– Não – respondi, sentindo ogosto amargo da bile subir pelagarganta. – Está tudo bem.

– Se estiver doente, pode mecontar, tá? Não vou usar isso

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contra você. Posso me sentar?Não respondi. Na verdade,

constatei que não conseguia falar,dado o esforço que estavafazendo para controlar minhasnáuseas. Mesmo assim, ele sesentou na cadeira de plástico dooutro lado da mesa.

– Qual é o problema, então?– Nenhum – consegui dizer.– Ally, você está com uma

aparência terrível. Tem certeza deque não está passando mal?

– Eu... com licença.Dizendo isso, levantei-me

aos tropeços e mal conseguichegar até a beirada da varandaantes de vomitar por cima do

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guarda-corpo na calçada do outrolado.

– Coitadinha. – Senti duasmãos me segurarem com firmezapela cintura. – É óbvio que vocênão está nada bem. Vou ajudá-la air para o quarto. Qual é onúmero?

– Eu estou... estou muito bem– balbuciei como uma boba,totalmente horrorizada com o queacabara de acontecer.

E logo na frente de TheoFalys-Kings, um homem que, poralgum motivo, eu estavadesesperadamente tentandoimpressionar. No fim das contas,a situação não poderia ter sido

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pior.– Vamos lá.Ele passou meu braço inerte

por cima do próprio ombro emeio que me carregou para forada varanda enquanto os outroshóspedes nos olhavam comrepulsa.

Quando cheguei ao quarto,ainda vomitei mais algumasvezes, mas pelo menos foi naprivada. A cada vez que eu saíado banheiro, Theo estava à minhaespera, pronto para me ajudar ame deitar de novo.

– É sério – grunhi. – Amanhãde manhã vou estar bem, juro.

– Faz duas horas que você

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está dizendo isso entre umavomitada e outra – retrucou ele,pragmático, enquanto limpava osuor pegajoso da minha testa comuma toalha umedecida em águafria.

– Vá dormir, Theo –murmurei, grogue. – Eu já estoubem, sério mesmo. Só precisodormir.

– Daqui a pouco eu vou.– Obrigada por cuidar de

mim – murmurei ao mesmo tempoque meus olhos começavam afechar.

– Não tem de quê, Ally.Então, enquanto eu pairava

num mundo intermediário,

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naqueles poucos segundos antesde pegar no sono, nem lá nem cá,sorri.

– Eu acho que amo você –ouvi-me dizer, e então apaguei.

No dia seguinte, acordei umpouco trêmula, mas me sentindomelhor. Ao sair da cama, tropeceiem Theo, que havia pegado umtravesseiro extra e estavaencolhido no chão, ferrado nosono. Fechei a porta do banheiro,deixei-me cair sentada na bordada banheira e recordei aspalavras que havia pensado nanoite anterior... ai, meu Deus!Será que eu chegara a dizê-las?

Eu acho que amo você...

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De onde tinha saído aquilo,pelo amor de Deus? Ou será quetinha sido um sonho? Afinal decontas, estava passando muitomal e poderia ter delirado. MeuDeus, tomara, grunhi para mimmesma, segurando a cabeça entreas mãos. Mas... se eu não tivessedito nada, como conseguia melembrar daquelas palavras de ummodo tão vívido? Era ridículo,claro, mas agora Theo talvezpensasse que eu estava falandosério. E eu não estava... ou seráque estava?

Algum tempo depois, saí dobanheiro toda encabulada e vi queele estava indo embora. Não

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consegui encará-lo nos olhosquando me disse que iria até oquarto dele tomar uma chuveiradae voltaria para me buscar dali adez minutos, para irmos tomarcafé da manhã.

– Sério, Theo, pode ir. Nãoquero arriscar.

– Ally, você precisa pôralguma coisa para dentro. Se nãoconseguir manter a comida noestômago por uma hora depois decomer, infelizmente estará banidado veleiro até conseguir. Vocêconhece as regras.

– Tá bom – concordei,tristonha.

Quando ele saiu, desejei

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com todas as minhas forças ter opoder de ficar invisível. Nunca,em toda a minha vida, quiseraestar em outro lugar tanto quantonaquele instante.

Quinze minutos depois,saímos juntos para a varanda. Osoutros membros da tripulaçãoergueram os olhos da mesa paranós dois com sorrisos maliciososde quem tinha entendido tudo. Euquis socar todos eles.

– Ally passou mal –informou Theo enquanto nossentávamos. – Mas pelo vistovocê também não dormiu muitobem, Rob.

Os outros tripulantes deram

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risadinhas para Rob, que deu deombros, envergonhado, enquantoTheo começava a falarcalmamente sobre o treino quehavia planejado.

Fiquei sentada sem dizernada, satisfeita por ele termudado o rumo da conversa, massabia o que os outros estavampensando. E a ironia era queestavam todos muito errados. Euhavia jurado nunca ir para a camacom um companheiro deembarcação, pois sabia com querapidez as mulheres podiam ficarmal faladas no mundinho dasregatas. E agora parecia terconquistado essa má reputação

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sem motivo.Pelo menos consegui não

vomitar o café da manhã e pudeembarcar. A partir dessemomento, me esforcei ao máximopara deixar claro para todomundo – especialmente para opróprio – que eu não estava nemum pouco interessada em TheoFalys-Kings. Durante os treinos,mantinha a maior distânciapossível dele e lhe respondia emmonossílabos. À noite, depois dojantar, cerrava os dentes econtinuava sentada à mesa com osoutros quando ele se levantavapara voltar para a pensão.

Porque eu não o amava,

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dizia para mim mesma. E nãoqueria que ninguém mais pensasseisso. No entanto, na minhadeterminação por convencertodos à minha volta, percebi quenão havia nenhuma convicçãofirme na minha própria mente. Eume pegava olhando para elequando achava que ele não estavavendo. Admirava seu jeito calmoe contido de lidar com atripulação e seus comentáriossensíveis, que nos uniam e nosfaziam trabalhar melhor emequipe. E admirava a maneiracomo, apesar de ele não ser muitoalto em comparação com osoutros, seu corpo era firme e

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musculoso debaixo das roupas.Ficava observando enquanto eledemonstrava repetidas vezes queera o mais em forma e o maisforte de todos nós.

Sempre que a minha mentetraiçoeira se deixava levar nessadireção, eu fazia o possível parapuxá-la de volta. De uma horapara a outra, porém, comecei areparar que Theo vivia semcamisa. De fato, fazia muito calordurante o dia, mas será que eleprecisava mesmo ficar semcamisa para examinar os mapasda regata?

– Está precisando de algumacoisa, Ally? – perguntou-me ele

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certa vez, virando-se e meflagrando com os olhos pregadosnele.

Não me lembro nem do quebalbuciei ao lhe dar as costas,com o rosto muito vermelho devergonha.

Só fiquei aliviada por Theonunca ter mencionado o que eutalvez tivesse dito a ele na noiteem que passara mal. Comecei ame convencer de que tudo nãodevia mesmo ter passado de umsonho. Mesmo assim, sabia quealgo tinha acontecido comigo enão era possível voltar atrás.Algo sobre o qual, pela primeiravez na vida, eu parecia não ter

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nenhum controle. Da mesmaforma que meu padrão de sonohabitual tinha me abandonado,meu saudável apetite haviadesaparecido. Quando euconseguia pegar no sono, tinhasonhos vívidos com ele, do tipoque me fazia enrubescer aoacordar e que tornava meucomportamento em relação a eleainda mais desajeitado. Quandoeu era adolescente, lia históriasde amor e não lhes davaimportância; preferia os thrillersde trama densa. No entanto, aolistar mentalmente meus sintomasatuais, constatei com tristeza quetodos eles pareciam corresponder

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à mesma realidade: por algummotivo, eu dera um jeito de meapaixonar por Theo Falys-Kings.

Na última noite de treino,Theo se levantou da mesa depoisdo jantar e nos disse que tínhamosfeito um trabalho espetacular eque ele acreditava de verdadeque poderíamos vencer a regata.Depois do brinde, eu estava aponto de me retirar para a pensãoquando notei o olhar dele emmim.

– Ally, só tem uma coisa queeu queria conversar com você.Segundo o regulamento,precisamos de um membro datripulação que fique responsável

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pelos primeiros-socorros. Nãosignifica nada, é só burocracia euns formulários para assinar.Você faria isso?

Ele apontou para uma pastade plástico e meneou a cabeça emdireção a uma mesa vazia.Seguimos até ela.

– Eu não sei rigorosamentenada sobre primeiros-socorros. Esó porque sou mulher não querdizer que saiba cuidar dos outrosmelhor do que os homens – falei,desafiadora, enquanto nossentávamos à mesa longe dosoutros. – Por que não pede a Timou um dos outros?

– Ally, cale a boca, por

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favor. Era só uma desculpa. Olheaqui. – Theo me mostrou as duasfolhas de papel em branco queacabara de tirar da pasta. –Então... – continuou, passando-meuma caneta. – Em nome dasaparências, principalmente dasua, nós agora vamos ter umaconversa sobre as suasresponsabilidades como membroda tripulação responsável pelosprimeiros-socorros. E ao mesmotempo vamos conversar sobre ofato de que, na noite em que vocêpassou mal, disse que achava queme amava. E a verdade, Ally, éque eu acho que talvez estejasentindo a mesma coisa por você.

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Theo fez uma pausa, e eu oencarei com total incredulidadepara ver se ele estava meprovocando, mas estava entretidofingindo verificar os papéis.

– O que eu gostaria desugerir é que a gente descubra oque isso significa para nós dois –continuou ele. – Amanhã, voupegar meu iate e sumir durante umfim de semana prolongado.Gostaria que você viesse comigo.– Ele enfim ergueu os olhos paramim. – Você topa?

Minha boca abria e fechava,decerto criando uma boa imitaçãode um peixinho dourado, mas eusimplesmente não sabia o que

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responder.– Pelo amor de Deus, Ally,

diga que sim e pronto. Desculpe opéssimo trocadilho, mas estamosno mesmo barco. Nós doissabemos que existe algo entre agente, e isso desde o momento emque nos conhecemos, um anoatrás. Para ser franco, pelo queouvi a seu respeito, esperava umamulher musculosa e masculina.Mas aí apareceu você, com essesolhos azuis e essa deslumbrantecabeleira loura, e me desarmoucompletamente.

– Ah – falei, sem saber oque dizer.

– Então. – Ele pigarreou e

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percebi que estava igualmentenervoso. – Vamos fazer aquiloque mais amamos: ficar um tempode bobeira no mar e dar a essa“coisa”, seja ela qual for, umachance de evoluir. Na pior dashipóteses, você vai gostar do iate.É muito confortável e veloz.

– Vai... vai ter mais alguém abordo? – perguntei, quandoconsegui recuperar a voz.

– Não.– Então você vai ser o

capitão e eu, a única tripulante?– É, mas eu prometo não

obrigar você a subir nas cordasnem a passar a noite inteirasentada no cesto da gávea. – Ele

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então sorriu e seus olhos verdestinham uma expressão calorosa. –Ally, diga que sim e pronto.

– Tá – concordei.– Ótimo. Agora, quem sabe,

você possa assinar aqui na linhapontilhada para... Ahn, parafechar o acordo. – Ele apontoucom o dedo para um ponto dafolha em branco.

Olhei de relance em suadireção e vi que ele ainda estavasorrindo para mim. Finalmentelhe sorri de volta. Assinei meunome e lhe devolvi o papel. Ele oestudou com uma expressão sériafingida e em seguida a recolocoudentro da pasta de plástico.

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– Então, combinado – disseele, erguendo a voz para nossoscolegas poderem escutar.

Eles deviam estar mesmo deorelha em pé.

– E vejo você lá no porto aomeio-dia para lhe passar suastarefas.

Ele me deu uma piscadela ecalmamente voltamos para juntodos outros, mas meu ritmocontrolado era só um disfarcepara a maravilhosa onda deentusiasmo que me percorria pordentro.

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2

A verdade é que nem Theo nemeu tínhamos certeza do queesperar quando içamos as velas esaímos de Naxos no seu iateSunseeker, o esguio e potenteNetuno, que era pelo menos 20pés mais longo do que o Hanse,com o qual íamos participar daregata. Eu havia me acostumado adividir com muitas outras pessoasas pequenas cabines, e agora queestávamos só os dois, todo aquele

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espaço adquiria uma presençaexagerada. A cabine principal erauma luxuosa suíte, em tecaenvernizada, e quando vi a grandecama de casal me lembrei dascircunstâncias em quedormíramos no mesmo quartopela última vez.

– Comprei o iate bembaratinho uns dois anos atrás,quando o dono foi à falência –explicou ele enquanto conduzia aembarcação para fora do porto deNaxos. – Pelo menos agora eutenho um teto.

– Você mora mesmo nobarco? – indaguei, surpresa.

– Nos intervalos maiores,

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fico em Londres, na casa daminha mãe, mas no último anotenho morado aqui nas rarasocasiões em que não estoulevando outro barco até o localde uma regata ou competindo.Mas agora quero ter minhaprópria casa em terra firme. Naverdade, acabei de comprar uma,mas ela precisa de uma obraenorme e só Deus sabe quandovou ter tempo para isso.

Como eu já estavaacostumada com o superiateoceânico do meu pai, o Titã, quetinha um sofisticado sistemacomputadorizado de navegação,nós dois dividimos a “condução”,

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como Theo gostava de dizer.Nessa primeira manhã, porém,tive dificuldade para deixar delado o protocolo habitual quandoestava a bordo com ele. Sempreque Theo me pedia para fazeralguma coisa, eu precisava mesegurar para não responder:“Sim, capitão!”

Dava para sentir a tensãoentre nós; nenhum dos dois tinhacerteza de como ultrapassar abarreira do relacionamentoprofissional que tínhamos atéentão e levar as coisas para umpatamar mais íntimo. Nossasconversas eram engessadas; eupensava duas vezes antes de dizer

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qualquer coisa naquela situaçãoestranha, e acabava recorrendosobretudo a banalidades semimportância. Theo ficavapraticamente o tempo todocalado, e quando lançamos aâncora para almoçar, eu já estavacomeçando a achar que aquelaideia toda tinha sido um completodesastre.

Fiquei grata quando eleapareceu com uma garrafa de roséda Provence geladinho paraacompanhar nossa salada. Nuncafui de beber muito, e certamentenão no mar, mas de alguma formaconseguimos dar conta da garrafasem dificuldade. Para tirá-lo

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daquele silêncio constrangedor,decidi falar sobre regatas.Falamos sobre nossa estratégiapara as Cíclades e conversamossobre como seria diferente acompetição seguinte, nasOlimpíadas de Pequim. Minhasúltimas provas eliminatórias parauma vaga na equipe suíça seriamno fim do verão, e Theo me disseque iria velejar até os EstadosUnidos.

– Quer dizer que vocênasceu nos Estados Unidos? Masseu sotaque é britânico.

– Meu pai é americano, eminha mãe, inglesa. Eu estudeinum colégio interno em

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Hampshire, depois fui paraOxford, e de lá para Yale –explicou ele. – Sempre fui meioCDF.

– O que você estudou?– Letras clássicas em

Oxford, depois fiz mestrado empsicologia em Yale. Tive sorte deconseguir entrar para a equipe devela da universidade e acabeivirando capitão. Tudo bemprivilegiado. E você?

– Estudei flauta noConservatoire de Musique deGenève. Mas então estáexplicado... – Olhei para ele desoslaio com um leve sorriso.

– O que está explicado?

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– O fato de você gostar tantode analisar os outros. E uma partedo motivo de você fazer tantosucesso como capitão é porquesabe lidar tão bem com atripulação. Principalmentecomigo – arrematei, encorajadapela bebida. – Seus comentáriosme ajudaram, de verdade, mesmoque na hora eu não tenha gostadode escutá-los.

– Obrigado. – O elogio o fezencolher a cabeça com timidez. –Em Yale, me deram totalliberdade para aliar meu amorpela vela com a psicologia, e eudesenvolvi um estilo de comandoque alguns podem considerar um

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pouco fora do comum, mas quepara mim funciona.

– Seus pais apoiavam a suapaixão pela vela?

– Minha mãe sim, mas meupai... Bom, eles se separaramquando eu tinha 11 anos, e unsdois anos depois passaram porum divórcio difícil. Então, papaivoltou para os Estados Unidos.Eu passava as férias com ele láquando era mais novo, mas elevivia viajando a trabalho econtratava babás para ficaremcomigo. Foi me visitar algumasvezes quando eu estava em Yalepara me ver competir, mas nãoposso dizer que o conhecia muito

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bem. Só pelo que ele fez com aminha mãe, e reconheço que aantipatia dela em relação a eleatrapalhou meu julgamento.Bem... de toda forma, eu adorariaouvir você tocar flauta – disseele, recuperando-se, mudando deassunto de repente e meencarando de frente, olhos verdesmergulhados em azuis. Mas omomento logo passou; ele tornoua olhar para o outro lado e seremexeu na cadeira.

Frustrada pelo aparentefracasso das minhas tentativas defazê-lo se abrir, tambémmergulhei em um silênciocontrariado. Depois de levarmos

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a louça suja para a cozinha,mergulhei pela lateral do iate enadei num ritmo forte e rápidopara desanuviar meu cérebroembotado pelo vinho.

– Quer subir lá no convés decima para pegar um sol antes deprosseguirmos? – indagou elequando voltei a bordo.

– Está bem – concordei,embora sentisse que a minha peleclara e sardenta já tinha pegadosol mais do que suficiente.

Quando estava no mar, emgeral me cobria inteira com umbloqueador solar à prova d’água,mas isso praticamente equivalia ame pintar de branco, e não era um

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visual dos mais sedutores.Naquela manhã, tinha usado umfiltro solar mais leve, mas estavacomeçando a achar que aqueimadura não valeria a pena.

Theo pegou duas garrafasd’água no cooler e fomos nosacomodar no confortável convésde cima, na proa do iate.Deitamo-nos um ao lado do outrosobre as almofadas confortáveis,e arrisquei uma olhadela discretana sua direção; meu coração batiadescontrolado diante daproximidade seminua. Decidique, se ele não tomasse logo ainiciativa, eu teria que fazer algonada digno de uma dama e

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simplesmente pular em cima dele.Virei a cabeça para o outro lado,tentando impedir que maispensamentos safadinhosinvadissem a minha cabeça.

– Mas me fale sobre as suasirmãs e a casa no Lago Lémanonde vocês moram. Parece umlugar idílico – disse ele.

– E é... eu...Com o cérebro todo

bagunçado pelo desejo e peloálcool, a última coisa que euqueria era iniciar um longomonólogo sobre a minhacomplexa situação familiar.

– Estou meio com sono.Posso contar depois? – falei,

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virando de bruços.– É claro que pode. Ally?Senti o leve toque de seus

dedos nas minhas costas.– O quê? – Virei-me e ergui

os olhos para ele; minha gargantase contraiu de expectativa, efiquei sem ar.

– Seus ombros estão ficandoqueimados.

– Ah. Tá bom – rebati. –Bom, então vou lá para baixosentar na sombra.

– Quer que eu vá também?Não respondi, apenas dei de

ombros enquanto me levantava epercorria a estreita parte doconvés que dava na popa. Ele

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então segurou a minha mão.– Ally, o que houve?– Nada, por quê?– Você está parecendo

muito... tensa.– Ah! Você também –

retorqui.– É mesmo?– É – falei, enquanto ele me

seguia escada abaixo até a popa eeu me sentava pesadamente emum banco à sombra.

– Desculpe. – Ele suspirou.– Eu nunca fui muito bom nessaparte.

– A que “parte” exatamentevocê está se referindo?

– Ah, você sabe. Todos

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esses preâmbulos, saber comoconduzir a coisa. Quero dizer, eurespeito você e gosto de você, enão queria deixá-la com asensação de que a trouxe no iatepensando só em sacanagem. Vocêpoderia muito bem ter achado queera só isso que eu queria, já que étão sensível em relação a sermulher em um mundo de homense...

– Pelo amor de Deus, Theo,eu não sou nada sensível!

– Sério? – Ele revirou osolhos, incrédulo. – Para sersincero, hoje em dia a gente ficacom medo de levar um processopor assédio sexual pelo simples

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fato de olhar para uma mulhercom admiração. Já aconteceucomigo uma vez, com outratripulante da minha equipe.

– Foi mesmo? – Fingisurpresa.

– Foi. Acho que eu dissealguma coisa do tipo: “Oi, Jo.Que bom ter você a bordo paraanimar os rapazes.” Depois disso,não tive mais chance de meredimir.

Encarei-o.– Você não disse isso!– Ah, pelo amor de Deus,

Ally, o que eu quis dizer foi queela iria nos deixar em alerta. Areputação profissional dela era

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excelente. E por algum motivo elalevou a coisa para o outro lado.

– Não consigo imaginar porquê... – comentei, ácida.

– Infelizmente, nem euconsegui.

– Theo, eu estava sendoirônica! Entendo perfeitamentepor que ela se ofendeu. Você nãopode imaginar os comentários quenós velejadoras escutamos. Não éde espantar que ela tenha seofendido.

– Bom, foi por isso que eufiquei tão nervoso quando soubeque teria você a bordo.Principalmente porque eu achavavocê tão atraente.

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– Eu sou o contrário,lembra? – rebati. – Você mecriticou por tentar ser homem enão saber aproveitar meus pontosfortes!

– É verdade – disse ele comum sorriso. – E agora você estáaqui sozinha comigo etrabalhamos juntos, você talvezpense que...

– Theo! Isso já está ficandoridículo. Acho que é você quemtem problema, não eu! – dispareiem resposta, agora irritada deverdade. – Você me convidoupara vir ao seu iate, e eu vim porlivre e espontânea vontade!

– Veio, mesmo, mas, para

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ser sincero, essa coisa toda... –Ele fez uma pausa e me encaroucom um olhar intenso. – Você émuito importante para mim. Edesculpe me comportar como umidiota, mas faz tanto tempo quenão pratico essa coisa de...paquerar. E não quero fazer nadaerrado.

Meu coração amoleceu.– Bom, nesse caso, que tal

tentar parar de analisar tudo erelaxar um pouco? – sugeri. – Aíquem sabe eu relaxo também.Lembre-se: eu quero estar aqui.

– Tá, vou tentar.– Ótimo. – Examinei meus

braços queimados de sol. –

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Agora, como estou mesmocomeçando a parecer um tomatemaduro, vou descer para fazeruma pausa do sol. E você é muitobem-vindo para me acompanhar,se quiser. – Levantei-me e fui atéa escada. – E prometo nãoprocessá-lo por assédio sexual.Na verdade... – acrescentei,ousada. – Talvez eu até oencoraje um pouquinho.

Desapareci escada abaixo,rindo por ter feito um convite tãodireto e me perguntando como eleiria reagir. Quando entrei nacabine e me deitei na cama, senti-me poderosa. Theo podia ser ochefe no trabalho, mas eu estava

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decidida a obter paridade, ouquem sabe até proeminência, emqualquer relacionamento pessoalque nós dois pudéssemos vir ater.

Cinco minutos depois, eleapareceu encabulado na porta epediu mil desculpas por ter sido“ridículo”. Quando ele acabou defalar, mandei-o calar a boca e virpara a cama.

Depois que tudo aconteceu,as coisas ficaram bem entre nós.Nos dias que se seguiram, ambospercebemos que o que estavaacontecendo era muito maisprofundo do que uma simplesatração física: era a rara trindade

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de corpo, coração e mente. Porfim, então, mergulhamos naalegria mútua daquele encontro.

Nossa proximidadeaumentou a um ritmo mais velozdo que o normal, uma vez que játínhamos consciência dasqualidades e dos defeitos de cadaum, embora eu deva dizer que nãofalávamos muito sobre osúltimos. Apenas nosesbaldávamos com o quãomaravilhosos parecíamos aosolhos um do outro. Passávamos otempo inteiro fazendo amor,bebendo vinho e comendo ospeixes frescos que ele pescava dapopa do iate enquanto eu ficava

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deitada em seu colo lendo umlivro, preguiçosa. Nosso apetitefísico vinha acompanhado poruma fome igualmente insaciávelde saber o máximo quepudéssemos sobre o outro. Juntose sozinhos, na paz proporcionadapelo mar, minha sensação era deque estávamos vivendo fora dotempo e de que não precisávamosde nada a não ser um do outro.

Na nossa segunda noite,deitada nos braços de Theo sobas estrelas no convés superior,contei-lhe sobre Pa Salt e minhasirmãs. Como todos semprefaziam, ele escutou com fascínio ahistória da minha estranha e

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mágica infância.– Então deixe-me entender

direito: o seu pai, a quem suairmã mais velha apelidou de “PaSalt”, trouxe você e cinco outrasbebezinhas de suas viagens aoredor do mundo. Da mesma formaque outras pessoas colecionariamímãs de geladeira?

– É, basicamente isso.Embora eu goste de pensar quesou um pouco mais preciosa doque um ímã de geladeira.

– Isso a gente vai ver – disseele, mordiscando com delicadezaminha orelha. – Ele mesmocuidava de vocês?

– Não. Para isso tinha a

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Marina, que a gente semprechamou de “Ma”. Pa a contratoucomo babá quando adotou Maia,minha irmã mais velha. Ela épraticamente nossa mãe, e todasnós a adoramos. Como ela éfrancesa, esse foi um dos motivospelos quais fomos criadas falandofrancês, além de ser um dosidiomas oficiais da Suíça. ComoPa tinha obsessão por sermosbilíngues, falava com a gente eminglês.

– Ele fez um bom trabalho.Eu nunca teria percebido que oinglês não era sua língua materna,a não ser pelo seu sensacionalsotaque francês – disse ele,

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puxando-me para si e dando umbeijo nos meus cabelos. – Seu paialgum dia contou por que adotouvocês?

– Eu perguntei para Ma umdia, e ela respondeu que eleestava solitário em Atlantis etinha dinheiro de sobra paragastar, só isso. A gente nuncaquestionou por quê, simplesmenteaceitou que estava ali, comoqualquer criança. Somos umafamília, nunca precisamos demotivo. Nós simplesmente...somos.

– Parece um conto de fadas.O rico benfeitor que adota seisórfãs. Por que só meninas?

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– A gente brincava que,como ele tinha começado a nosbatizar em homenagem às estrelasda constelação das Sete Irmãs,adotar um menino talvezatrapalhasse a sequência – falei,com uma risadinha. – Mas, paraser sincera, nenhuma de nós faz amenor ideia.

– Quer dizer então que o seunome é Alcíone, a segunda irmã?É um pouco mais complicado depronunciar do que Al – provocouele.

– É, mas ninguém nunca mechama assim, a não ser Ma,quando está zangada – falei, comuma careta. – E não se atreva a

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começar!– Eu adoro seu nome, minha

pequena Alcíone. Acho quecombina com você. Mas por quesó seis irmãs, quando deveriamter sido sete para corresponder àmitologia?

– Não faço a menor ideia. Aúltima irmã, que teria sidobatizada de Mérope se Pa ativesse levado para casa, nuncachegou – expliquei.

– Que pena.– É mesmo. Mas levando em

conta o pesadelo que foi minhasexta irmã, Electra, quandochegou a Atlantis, acho quenenhuma de nós queria mais um

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bebê se esgoelando em casa.– Electra? – Theo

reconheceu o nome na hora. –Aquela supermodelo famosa?

– Ela mesma – respondi,cautelosa.

Theo se virou para mim,assombrado. Eu quase nuncamencionava que era parente deElectra, pois isso costumavagerar um interrogatóriointerminável para descobrir quemde fato estava por trás de um dosrostos mais fotografados domundo.

– Muito bem. E as suasoutras irmãs? – indagou ele,deixando-me feliz por não

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perguntar mais nada sobreElectra.

– Maia vem logo antes demim e é a mais velha. Ela étradutora, e herdou de Pa otalento com idiomas. Perdi aconta de quantos ela fala. E sevocê acha Electra bonita, deveriaver Maia. Enquanto eu sou ruiva esardenta, ela tem uma pelemorena linda de morrer, cabelosescuros, parece uma diva latinaexótica. Já em termos depersonalidade, ela é bemdiferente: vive praticamentereclusa e ainda mora em Atlantis.Diz que quer ficar lá para cuidarde Pa Salt. A gente acha que ela

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está se escondendo, mas de quê...– Deixei escapar um suspiro. –Eu não sei. Tenho certeza de quealguma coisa aconteceu quandoela foi para a universidade. Elamudou da água para o vinho.Enfim, eu adorava Maia quandoera pequena e ainda adoro,embora sinta que ela se afastou demim nos últimos anos. Para dizera verdade, ela fez isso com todomundo, mas nós éramos muitopróximas.

– Quando você se fecha,tende a ficar sozinho, se é quevocê me entende – murmurouTheo.

– Que profundo. –

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Provoquei-o com um sorriso. –Mas, sim, é mais ou menos isso.

– E a irmã seguinte?– Chama-se Estrela, e tem

três anos a menos do que eu. Naverdade, minhas duas irmãs domeio vieram em par. Ceci, aquarta, foi trazida para casa porPa só três meses depois deEstrela, e desde então as duas sãounha e carne. Ambas tiveram umavida meio nômade depois quedeixaram a universidade,viajaram pela Europa e peloExtremo Oriente, masaparentemente agora pretendemse fixar em Londres para Cecifazer um curso em uma fundação

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de arte. Se você me perguntassequem Estrela realmente é comopessoa, ou quais são seus talentose ambições, eu infelizmente nãosaberia dizer, porque Ceci adomina por completo. Ela nãofala muito, e deixa a irmã falarpelas duas. Ceci tem umapersonalidade bem forte, igual àde Electra. Como você podeimaginar, existe um pouco detensão entre as duas. Electra é tãointensa quanto seu nome sugere,mas eu sempre a achei muitovulnerável por dentro.

– Suas irmãs com certezadariam um estudo psicológicofascinante, disso eu tenho certeza

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– comentou Theo. – E a última?– A última é Tiggy, que é

muito fácil de descrever porque ésimplesmente um amor. Ela seformou em biologia e passou umtempo envolvida com pesquisa nozoológico de Servion antes de irtrabalhar em uma reserva decervos nas Terras Altas daEscócia. Ela é muito... – Busqueia palavra certa. – Muito etérea, etem um monte de crençasespirituais esquisitas.Literalmente parece flutuar emalgum ponto entre o céu e a terra.A verdade é que todas nósimplicamos com ela sem tréguaao longo dos anos toda vez que

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afirmava ter ouvido vozes ouvisto um anjo na árvore dojardim.

– Quer dizer que você nãoacredita em nada disso? –perguntou-me Theo.

– Eu diria que tenho os pésbem firmes no chão. Ou pelomenos na água – emendei, comum sorriso. – Tenho uma naturezamuito prática, e acho que é emparte por isso que minhas irmãssempre me consideraram a“líder” do nosso pequeno bando.Mas isso não significa que eu nãotenha respeito por aquilo que nãoconheço ou não entendo. E você?

– Bom, apesar de eu nunca

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ter visto nenhum anjo como a suairmã, sempre me senti protegido.Principalmente velejando. Passeipor vários momentos difíceis abordo, mas até agora... vou atébater na madeira... consegui sairileso. Talvez Poseidon esteja domeu lado, para usar uma analogiamitológica.

– Que continue assim pormuito tempo – murmurei, comfervor.

– Então por fim, mas nãomenos importante: me fale sobreesse seu incrível pai. – Theocomeçou a acariciar comdelicadeza os meus cabelos. – Oque ele faz da vida?

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– Para ser sincera outra vez,nenhuma de nós sabe muito bem.Seja lá o que for, com certezateve muito sucesso. O iate dele, oTitã, é um Benetti – falei,tentando traduzir a riqueza de Paem uma língua que Theo pudesseentender.

– Nossa! Assim o meu ficaparecendo um bote de criança.Bom... com esses dois palácios,na terra e no mar, imagino quevocê seja uma princesa secreta –provocou Theo.

– A gente com certeza teveuma vida boa, sim, mas Pa fezquestão de que todas nósganhássemos nosso próprio

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dinheiro. Depois de adultas,ninguém nunca recebeu nenhumtostão de mão beijada, a não serpara pagar os estudos.

– Um homem sensato. Vocêssão próximos?

– Ah, muito. Ele é... é tudopara mim e para todas nós. Tenhocerteza de que cada uma gosta depensar que tem umrelacionamento especial com ele,mas como nós dois temos emcomum o amor pela vela, passeimuito tempo sozinha com elequando era pequena. E não foi sóvela que ele me ensinou –arrematei. – Ele é a pessoa maisbondosa e mais sábia que já

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conheci.– Quer dizer que você é uma

verdadeira queridinha do papai.Pelo visto eu tenho um exemplo etanto a superar – observou Theo,descendo a mão dos meus cabelospara acariciar meu pescoço.

– Chega de falar de mim,quero saber de você – falei,distraída pelo seu toque.

– Depois, Ally, depois...você precisa saber o efeito queesse seu lindo sotaque francêstem em mim. Eu poderia passar anoite inteira ouvindo você falar. –Ele se levantou, apoiando-se nocotovelo, e se inclinou para medar um beijo na boca. Depois

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disso não dissemos mais nada.

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3

Na manhã seguinte, tínhamosdecidido velejar até Mikonospara comprar mantimentosquando Theo me chamou doconvés superior para que eu mejuntasse a ele no passadiço.

– Adivinhe só? – falou, comum ar satisfeito.

– O quê?– Eu estava batendo papo no

rádio com Andy, um amigovelejador que está por aqui com

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seu catamarã, e ele sugeriu nosencontrarmos em uma baía pertode Delos para uns drinques maistarde. E ele brincou dizendo quetinha um superiate chamado Titãatracado bem ao lado dele, demodo que a gente não tinha comonão o encontrar.

– Titã? – exclamei. – Temcerteza?

– Ele disse que era umBenetti, e duvido que o iate doseu pai tenha um sósia. Andytambém disse que tinha um outropalácio flutuante se aproximandoe que ele estava começando aficar claustrofóbico, então tinhase afastado alguns quilômetros até

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uma baía distante. E aí, vamostomar uma xícara de chá com seupai antes de ir encontrar Andy? –perguntou ele.

– Estou perplexa – respondi,sincera. – Pa não comentoucomigo que estava planejando virpara a Grécia, embora eu saibaque o seu lugar preferido paranavegar é o mar Egeu.

– Na verdade, ele não deviaimaginar que você estaria tãoperto. Você pode verificar se émesmo o iate do seu pai pelobinóculo quando chegarmos umpouco mais perto, para eu avisarao capitão pelo rádio que estamoschegando. Seria bem

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constrangedor se não fosse o iatedo seu pai e interrompêssemosalgum oligarca russo dando umaorgia em um barco cheio devodca e garotas de programa.Aliás, bem pensado. – Theo sevirou para mim. – Seu pai nuncaaluga o Titã, não é?

– Nunca – respondi, firme.– Certo, então, madame,

pegue o binóculo e volte pararelaxar lá em cima enquanto seufiel capitão assume o leme.Quando vir o iate, me faça umsinal pela janela que eu mandoum recado pelo rádio para o Titãdizendo que estamos chegando.

Subi de volta até o convés

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superior e me sentei, tensa, paraesperar avistar o Titã surgindo nohorizonte; perguntei-me como iriame sentir apresentando o homemque eu mais amava no mundo aohomem que amava mais a cadadia que passava. Tentei lembrarse Pa algum dia havia conhecidoalgum namorado meu. Talvez eu otivesse apresentado a algumpaquera na época da escola demúsica em Genebra, mas nãopassara disso. Para ser sincera,nunca tinha conhecido uma“pessoa especial” que tivessetido vontade de apresentar ao meupai ou ao resto da família.

Até agora...

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Vinte minutos mais tarde, umcasco de formato familiarapareceu e mirei nele o binóculo.Sim, com certeza era o iate de Pa.Virei-me, dei uma batidinha najanela de vidro do passadiçoatrás de mim e ergui o polegarpara Theo. Ele assentiu e pegou oreceptor do rádio.

Desci até a coberta, domeios cabelos despenteados pelovento em um rabo de cavalo bem-feito e vesti uma camiseta e umshort, subitamente animada porpoder virar o jogo com meu pai efazer uma surpresa para ele, sópara variar. De volta aopassadiço, perguntei a Theo se

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Hans, capitão do meu pai, já tinharespondido alguma coisa pelorádio.

– Não. Acabei de mandaroutra mensagem. Se nãorecebermos resposta, parece quevamos ter que arriscar e aparecersem avisar. Interessante. – Theopegou o binóculo e o mirou noiate próximo ao Titã. – Eu sei dequem é o outro superiate queAndy mencionou. Chama-seOlimpo e pertence ao magnataKreeg Eszu. A empresa dele, aLightning Communications, jápatrocinou algumas dasembarcações em que fui capitão,de modo que nos encontramos

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algumas vezes.– Sério? – Aquilo me

fascinou. Kreeg Eszu, à suamaneira, era tão famoso quantoElectra. – Como ele é?

– Bem, vejamos... não possodizer que me afeiçoei a ele.Sentei-me ao seu lado uma vezdurante o jantar, e ele passou anoite inteira falando de si e dosseus sucessos. E Zed, filho dele, épior ainda... um riquinho mimado,que acha que o dinheiro do paisignifica que pode fazer o quequiser.

Vi seus olhos se encheremde uma raiva pouco habitual.

Eu havia apurado os

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ouvidos. Não era a primeira vezque ouvia o nome de Zed Eszu sercitado por alguém próximo.

– Ele é tão ruim assim?– É, ruim mesmo –

confirmou Theo. – Uma amigaminha se envolveu com o cara, eele a tratou feito lixo. Enfim... –Theo tornou a levar o binóculoaos olhos. – Acho melhor a gentepassar outro rádio para o Titã.Parece que o iate está indoembora. Que tal você mandar orecado? Se o seu pai ou o capitãoestiverem escutando, talvezreconheçam a sua voz.

Fiz isso, mas não houveresposta. O iate continuou a

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ganhar velocidade, se afastandode nós.

– Quer que a gente vá atrás?– sugeriu Theo enquanto o Titã seafastava.

– Vou pegar meu celular eligar direto para Pa – falei.

– Enquanto você faz isso,vou apressar o passo aqui. Eles jádevem estar longe, mas, como eununca tentei alcançar umsuperiate, talvez isso sejadivertido – brincou ele.

Deixei-o brincando de gato erato com o iate de Pa e desci paraa coberta, segurando-me nobatente da porta quando eleacelerou. Vasculhei a mochila em

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busca do celular e tentei ligá-lo,encarando com impaciência a telasem vida. O aparelho me encaroude volta feito um bicho deestimação deixado à própria sorteque eu me esquecera de alimentar,e entendi que a bateria tinhaacabado. Tornei a vasculhar amochila em busca do carregador,até encontrar um adaptadoramericano adequado à tomadajunto à cama, em seguida plugueio telefone e torci para quevoltasse depressa a funcionar.

Retornei ao passadiço. Theotinha diminuído nossa velocidadepara um ritmo relativamentenormal.

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– Não temos como alcançarseu pai agora, nem na velocidademáxima. O Titã está à toda. Vocêligou para ele?

– Não, meu celular estácarregando.

– Tome aqui, use o meu.Theo me estendeu o telefone

e digitei o número de Pa Salt. Aligação caiu direto na caixapostal. Deixei recado explicandoa situação e pedindo a meu paipara me ligar assim que possível.

– Parece que seu pai estáfugindo de você – provocouTheo. – Talvez ele não queira servisto neste exato momento. Enfim,vou mandar um rádio para o

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Andy, descobrir onde ele está, evamos direto encontrá-lo.

Minha confusão deve tertransparecido no meu rosto, poisTheo me puxou para si e me deuum abraço.

– Ah, princesa, eu estava sóbrincando. É só uma linha abertade rádio, lembre-se, e o Titã podemuito bem não ter ouvido asmensagens. Com certeza jáaconteceu comigo. Você deveriater ligado direto para ele, logo decara.

– É – concordei. No entanto,enquanto seguíamos para Delosem um ritmo mais relaxado paraencontrar o amigo de Theo,

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pensei numa coisa: depois depassar tantas horas velejando comPa, eu sabia quanto ele faziaquestão de manter o rádio ligadoo tempo todo, e o capitão Hanssempre ficava alerta paraqualquer mensagem que o Titãrecebesse.

Agora, quando penso noassunto, lembro-me de ter ficadobastante abalada pelo resto datarde. Talvez tenha sido umapremonição em relação ao queestava por vir.

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Assim, acordei na manhãseguinte abraçada a Theo na lindae deserta baía de Macheres, tristepor pensar que teria que voltarpara Naxos mais tarde naquelemesmo dia. Theo já haviacomentado sobre seus planos detreinar para a regata que iriacomeçar dali a alguns dias, eaquela nossa idílica estadiaestava quase no fim – pelo menospor enquanto.

Deitada nua no convéssuperior ao lado dele, tentandodespertar do meu devaneio, tiveque forçar a mente a engatar a

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primeira para sair daquelemaravilhoso casulo que éramosnós dois. Meu telefone continuavacarregando desde a véspera, ecomecei a me levantar para irpegá-lo.

– Aonde você vai? – Theome segurou com força.

– Pegar meu celular. Seriabom ouvir meus recados.

– Volte logo, tá?Voltei, e ele então me

abraçou e me disse para largar otelefone por mais um tempinho.Basta dizer que demorei maisuma hora para ligá-lo.

Sabia que devia haveralguns recados de amigos e

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parentes, mas, enquanto tirava amão de Theo delicadamente decima da minha barriga para nãoacordá-lo, reparei que tinharecebido um número demensagens de texto bem maior doque o normal. E tinha váriosalertas de recados na caixapostal.

Todas as mensagens eramdas minhas irmãs.

Ally, por favor, meligue assim que puder.Beijos, Maia.

Ally, é a Ceci. Estátodo mundo atrás de você.

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Ligue para a Ma ou para agente assim que der.

Ally, querida, é aTiggy. A gente não sabeonde você está, masprecisamos falar com você.

Até que a mensagem deElectra fez meu corpo serpercorrido por calafrios de terror.Ai, meu Deus, Ally! Que coisahorrível, né? Dá para acreditar?Estou indo de LA para casaagora.

Levantei-me e fui até a proado iate. Estava claro que algoterrível havia acontecido. Foi

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com as mãos trêmulas que ligueipara a caixa postal e esperei paraouvir o que tinha feito minhasirmãs me procurarem comtamanha urgência.

Entendi assim que escutei orecado mais recente.

Oi, é a Ceci de novo.Parece que está todo mundocom medo de contar paravocê, mas a gente precisaque você volte para casaurgente. Ally, lamento muitoser eu a dar a má notícia,mas Pa Salt morreu. Sintomuito. Sinto muito. Por

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favor, ligue assim quepuder.

Ceci provavelmente pensouque tinha encerrado a ligaçãoantes de fazê-lo, pois um soluçoalto ecoou antes do bipe dorecado seguinte.

Meus olhos se perderam aolonge, sem ver nada, e pensei emcomo, na véspera mesmo, eu tinhavisto o Titã pelo binóculo. Deveter havido algum engano, pensei,para me reconfortar enquantoescutava o recado seguinte deMarina, minha mãe em tudo,menos no sangue, que também me

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pedia para entrar em contato comurgência, e em seguida recadossemelhantes de Maia, Tiggy eElectra...

– Ai, meu Deus, ai, meuDeus...

Segurei-me na amurada paranão cair. O celular escapuliu daminha mão e bateu no convés deteca com uma pancada. Abaixei acabeça; parecia que todo o meusangue estava se esvaindo, eachei que fosse desmaiar. Com arespiração pesada, desabei noconvés e enterrei a cabeça nasmãos.

– Não pode ser, não podeser verdade... – gemi.

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– Mas, querida, o que foique aconteceu? – Theo surgiu domeu lado, ainda nu, agachou-se eergueu meu queixo na suadireção. – O que houve?

Tudo que consegui fazer foiapontar para o celular caído.

– Más notícias? – indagouele, pegando o aparelho.

Assenti.– Ally, parece que você viu

um fantasma. Venha para asombra, e vamos pegar um copod’água.

Ainda segurando meucelular, ele me levantou doconvés e me escorou até umbanco de couro na coberta.

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Lembro-me de ter pensadoaleatoriamente se estaria fadada asempre ser vista por ele emsituações de total desamparo.

Ele pôs depressa um short epegou para mim uma das suascamisetas; com delicadeza,ajudou meu corpo inerte a vestir aroupa, em seguida me passou umabela dose de conhaque e um copod’água. Minhas mãos tremiamtanto que tive que pedir a ele paraligar para minha caixa postal,pois precisava ouvir os outrosrecados. Engasguei e cuspi aoengolir o conhaque, mas a bebidaaqueceu meu corpo e ajudou a meacalmar.

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– Tome. – Ele me passou oaparelho e, anestesiada, tornei aescutar o recado de Ceci e todosos outros, incluindo três de Maiae um de Marina, seguidos pelavoz desconhecida de GeorgHoffman, que eu lembravavagamente ser o advogado de Pa.Além disso, havia cinco recadosmudos nos quais a pessoaevidentemente não soubera o quedizer e acabara desligando.

Pousei o celular ao meu ladono banco. Theo não haviadesgrudado os olhos do meurosto.

– Pa Salt morreu – sussurreibaixinho, e passei um tempão com

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os olhos perdidos no vazio.– Como?– Não sei...– Tem certeza absoluta?– Tenho. Ceci foi a única

que teve a coragem de dizer comtodas as letras. Mas eu ainda nãoentendo como é possível... a genteviu o iate dele ontem mesmo.

– Infelizmente eu não tenhoexplicação para isso, princesa.Tome, o melhor a fazer é vocêligar para casa agora mesmo –disse ele, tornando a deslizar otelefone pelo banco na minhadireção.

– Eu... eu não consigo.– Entendo. Quer que eu

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ligue? Se você me der o telefoneeu...

– NÃO! – gritei. – Eu sópreciso voltar para casa. Agora!– Levantei-me, olhei em voltacom impotência, então ergui osolhos para o céu, como se umhelicóptero fosse aparecer lá emcima e me levar para o lugar emque eu precisava estar com tantaurgência.

– Escute, vou entrar nainternet e dar uns telefonemas. Jávolto.

Ele desapareceu nopassadiço enquanto eu fiquei alisentada, catatônica em choque.

Meu pai... Pa Salt... morto?!

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Essa ideia ridícula me fez deixarescapar uma gargalhada deindignação. Meu pai eraindestrutível, onipotente, vivo...

– Não, por favor – articulei,impotente.

Comecei a tremer de repentee a sentir os pés e as mãosformigarem como se eu estivessena neve dos Alpes, e não em umiate sob o sol do mar Egeu.

– Então tá – disse Theo aovoltar do passadiço. – Não vaidar para você pegar o voo de14h40 de Naxos para Atenas,então vamos ter de ir por mar.Tem um voo de Atenas paraGenebra bem cedinho amanhã de

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manhã. Fiz reserva para você, sórestavam poucos assentos livres.

– Então não vou conseguirchegar em casa hoje?

– Ally, já é uma e meia datarde, e o trajeto até Atenas debarco é longo. Sem falar no deavião até Genebra. Pelos meuscálculos, se usarmos a velocidademáxima na maior parte docaminho, com uma parada emNaxos para abastecer,conseguimos chegar em Atenashoje no pôr do sol. Ainda que nãome agrade entrar com este iate emum porto lotado como o Pireudepois de escurecer.

– Claro – respondi, no

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automático. Perguntei-me comoconseguiria suportar asintermináveis horas que meseparavam da viagem para casa.

– Certo, vou ligar o motor –disse Theo. – Quer vir sentar aomeu lado?

– Daqui a pouco.Cinco minutos depois,

quando escutei o clangorhidráulico ritmado da âncorasendo puxada e o ronco suave dosmotores ganhando vida, levantei-me e fui até a popa, onde meapoiei na amurada. Fiqueiolhando enquanto nosafastávamos da ilha, que navéspera eu considerava um

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verdadeiro paraíso, mas agoraseria para sempre o lugar ondeficara sabendo da morte do meupai. À medida que o iate ganhavavelocidade, comecei a ficarenjoada de choque e culpa. Nosúltimos dias, fora total ecompletamente egoísta. Só haviapensado em mim e na minhaprópria felicidade por terencontrado Theo.

E enquanto eu estavatransando, deitada abraçada comele, meu pai jazia, morrendo emalgum lugar. Como é que eualgum dia poderia me perdoarpor isso?

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Theo cumpriu o prometido, echegamos ao porto do Pireu, emAtenas, na hora em que o solestava se pondo. Durante oterrível trajeto, eu passara otempo inteiro deitada no seu colono passadiço, enquanto eleacariciava delicadamente meuscabelos com uma das mãos eusava a outra para manobrar comsegurança pelo mar batido.Depois de atracarmos, ele desceuaté a cozinha, pôs um macarrãono micro-ondas e me deu de

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comer como se eu fosse umacriança.

– Vamos descer paradormir? – perguntou, e pude verque a concentração das últimashoras o havia deixado exausto. –Temos que acordar às quatroamanhã por causa do horário doseu voo.

Concordei, pois sabia queele insistiria para ficar acordadocomigo caso eu não quisesse irpara a cama. Preparando-me parauma longa noite acordada, deixei-o me conduzir até lá embaixo,onde ele me ajudou a deitar nacama, tomou-me nos braços e meaninhou junto de si.

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– Se isso for algum consolo,Ally, eu amo você. Não “acho”...sei.

Encarei a escuridão e,embora não tivesse derramadouma só lágrima desde a notícia,constatei que meus olhos estavamsubitamente molhados.

– E juro que não estoudizendo isso só para fazer vocêse sentir melhor. Ia dizer hoje ànoite, de qualquer jeito –arrematou ele.

– Eu também amo você –sussurrei.

– Sério?– Sim.– Bom, se isso for verdade,

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fico mais feliz do que se tivesseganhado a regata Fastnet desteano. Agora tente dormir.

E, para minha própriasurpresa, reconfortada por Theo esua declaração de amor,adormeci.

Na manhã seguinte, enquantoo táxi se arrastava pelo trânsitode Atenas, pesado mesmonaquelas primeiras horas do dia,vi Theo verificando

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discretamente o relógio. Em geralquem controlava essas coisas eraeu, sempre monitorando o tempopara os outros, mas nessemomento fiquei satisfeita por eleassumir o comando.

Fiz o check-in quarentaminutos antes do voo, com oguichê já quase fechando.

– Ally, princesa, me digauma coisa... tem certeza que vocêvai ficar bem? – Theo franziu ocenho. – E não quer que eu vá atéGenebra com você?

– Eu vou ficar bem, sério –falei, e comecei a andar emdireção ao portão de embarque.

– Escute, se tiver alguma

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coisa que eu possa fazer, porfavor me avise.

Tínhamos chegado ao finalda fila do raio X que serpenteavaentre as balizas. Virei-me paraele:

– Obrigada, por tudo. Vocêfoi incrível.

– Não fui não, Ally, eescute... – Ele me puxou de voltacom urgência. – Não esqueça queeu amo você.

– Não vou esquecer –sussurrei, conseguindo, não seicomo, abrir um sorrisodesanimado.

– A qualquer momento emque não estiver se sentindo forte,

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é só me ligar ou mandarmensagem.

– Prometo fazer isso.– E aliás... – disse ele,

soltando-me do abraço. – Eu vouentender totalmente se você nãopuder mais participar da regata,dadas as atuais circunstâncias.

– Eu aviso assim que der.– Sem você nós vamos

perder. – Ele abriu um sorrisorepentino. – Você é a melhorvelejadora que eu já tive. Tchau,minha princesa.

– Tchau.Entrei na fila e fui tragada

pelo mar de pessoas queavançava lentamente. Quando

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estava prestes a pôr a mochila naesteira do raio X, virei-me.

Theo continuava lá.“Eu amo você”, articulou ele

com os lábios. Jogou-me umbeijo, deu um aceno e foi embora.

Durante a espera no portãode embarque, a bolha de amorsurreal na qual eu havia passadoos últimos quatro dias estouroude repente, e minha barrigacomeçou a se contrair deapreensão e angústia diante doque teria que enfrentar. Saquei ocelular e liguei para Christian, ojovem capitão da lancha da nossafamília, que me levaria da cidadeaté a casa da minha infância pelo

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Lago Léman. Deixei recadopedindo a ele que me pegasse àsdez da manhã no píer. Tambémlhe pedi para não comentar comMa nem com minhas irmãs sobrea minha chegada. Disse que eumesma avisaria.

No entanto, quandoembarquei no avião e pensei queestava na hora de fazer a ligação,constatei que era incapaz. Aterrível perspectiva de passarmais algumas horas sozinhadepois de ter a notícia confirmadapessoalmente por alguém dafamília me impediu. O aviãocomeçou a manobrar pela pista, equando decolamos e subimos

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pelo céu de Atenas em direção aosol nascente, apoiei a bochechaquente na janela fria e me sentiinvadida pelo pânico. Para medistrair, espiei a manchete de umexemplar do InternationalHerald Tribune que a comissáriade bordo havia me dado. Estavaprestes a deixar o jornal de ladoquando uma das notícias chamouminha atenção.

“CORPO DE MAGNATA BILIONÁRIOENCONTRADO EM ILHA GREGA.”

Havia a foto de um rosto

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vagamente conhecido, e abaixodela a legenda:

“Kreeg Eszu encontradomorto em praia de ilha gregahistórica.”

Fiquei encarando a notícia,chocada. Theo me dissera que erao iate de Eszu, o Olimpo, queestava perto do de Pa Salt na baíapróxima a Delos...

Deixei o jornal escorregarpara o chão e me pus a olhar pelajanela, arrasada. Não estavaentendendo aquilo... não estavaentendendo mais nada.

Quase três horas mais tarde,quando o avião começou aaterrissar no aeroporto de

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Genebra, meu coração pôs-se abater tão depressa que malconsegui respirar. Eu estavavoltando para casa, o que emgeral me deixava feliz e animada,já que a pessoa que mais amavano mundo estaria lá para meacolher de braços abertos naquelemundo mágico, só nosso. Dessavez, porém, sabia que ele não iriame receber. Nunca mais.

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4

– Quer dirigir, mademoiselleAlly? – Christian apontou parameu lugar habitual em frente aoleme onde eu me sentaria paranos conduzir pelas águas paradase calmas do Lago Léman.

– Hoje não, Christian – falei,e ele assentiu com um ar sério,confirmando com a expressão dorosto tudo que eu já sabia serverdade.

Deu a partida no motor e eu

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afundei em um dos bancostraseiros e abaixei a cabeça,desolada, sem conseguir olharpara lugar algum a não ser parabaixo, lembrando-me de como PaSalt tinha me posto no seu coloquando eu era pequenininha e medeixado dirigir uma lancha pelaprimeira vez. Agora, estava apoucos minutos de ser obrigadanão apenas a encarar a realidade,mas também a reconhecer o fatode que eu não tinha recebido nemrespondido os recados da minhafamília. Perguntei-me comoqualquer deus seria capaz de metirar dos píncaros da felicidade eme atirar no desespero abjeto que

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senti ao me aproximar deAtlantis.

Visto do lago, tudo para ládas cercas vivas perfeitas queprotegiam a casa da visão externaestava como sempre estivera.Com certeza teria havido algumengano, rezei, enquanto Christianencostava a lancha no deque e eusaltava e a amarrava com firmezaao cabeço. Pa viria me receber aqualquer momento, ele tinha queestar ali...

Segundos depois, vi Ceci eEstrela chegando pelo gramado.Então Tiggy também apareceu, eouvi-a gritar alguma coisa para aporta da frente aberta enquanto

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ela apressava o passo paraalcançar as duas irmãs maisvelhas. Comecei a correr pelogramado, mas meus joelhosperderam as forças de tantaapreensão e parei. Tenteiinterpretar a expressão no rostodelas.

Ally, pedi a mim mesma, alíder aqui é você, você precisa secontrolar...

– Ally! Ai, Ally, que bomque você chegou! – Tiggy foi aprimeira a me alcançar parada nogramado, tentando parecer calma.Abraçou-me e me apertou comforça. – Faz dias que estamosesperando você aparecer!

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Ceci foi a segunda a seaproximar, seguida por Estrela,sua fiel escudeira, que não dissenada, mas se uniu a Tiggy emnosso abraço.

Depois de algum tempo,afastei-me do abraço. Vi lágrimasnos olhos das minhas irmãs, ejuntas caminhamos até Atlantis.

Ao ver a casa, fui atingidapor uma nova onda de perda. PaSalt chamava aquilo de nossoreino particular. Construída noséculo XVIII, a casa chegava alembrar um castelo de conto defadas, com suas cinco torretas eseu exterior pintado de rosa.Aninhada em uma península só

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sua e cercada por esplendorososjardins, era um lugar em que eusempre me sentira segura... masque agora parecia vazio sem PaSalt.

Quando chegamos à varanda,Maia, minha irmã mais velha,saiu do pavilhão localizado aolado da casa principal. Pude verque os lindos traços de seu rostoestavam marcados pela dor, masse iluminaram de alívio quandoela me viu.

– Ally! – arquejou ela, ecorreu para me receber.

– Maia – falei, sentindo seusbraços me enlaçarem. – Quecoisa horrível, não é?

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– Horrível, mesmo. Mascomo você ficou sabendo? Fazdois dias que estamos tentandoencontrar você.

– Vamos entrar? – pergunteia elas. – Aí eu explico.

Minhas outras irmãs mecercaram para entrarmos em casa,enquanto Maia ficou para trás.Embora fosse ela a mais velha e aquem todas recorriamindividualmente quando tinhamalgum problema emocional, emgrupo quem assumia o comandoera sempre eu. E eu sabia que elaestava me deixando fazer issoagora.

Ma já estava à nossa espera

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no hall de entrada e me envolveuem um abraço cálido e silencioso.Deixei-me afundar no confortodaqueles braços e a apertei comforça. Fiquei aliviada quando elasugeriu que fôssemos todas para acozinha; a viagem tinha sidolonga, e eu estava louca por umcafé.

Enquanto Claudia, nossagovernanta, preparava café numacafeteira grande, Electra apareceuna cozinha – de algum jeito,mesmo de short e camiseta, seusbraços e pernas compridos emorenos tinham um aspectoelegante sem qualquer esforço.

– Ally – cumprimentou-me

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ela, em voz baixa. Pude ver comoparecia esgotada, como se alguéma tivesse furado e sugado o brilhode seus incríveis olhos cor deâmbar. Ela me deu um abraçorápido e apertou meu ombro.

Olhei para cada uma dasminhas irmãs, e pensei no quantoera raro ultimamente estarmostodas assim reunidas. Quandopensei no motivo deste encontro,senti um nó na garganta. Emboraeu alguma hora tivesse que serinformada sobre o que haviaacontecido com Pa, sabia queprimeiro precisava contar a elasonde estivera, o que tinha visto láe por que levara tanto tempo para

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chegar em casa.– Certo. – Respirei fundo

antes de começar. – Vou contar oque aconteceu porque, para sersincera, eu mesma ainda estouconfusa. – Quando nos sentamosem volta da mesa, reparei que Maestava em pé um pouco afastada eacenei para ela puxar umacadeira. – Ma, você tambémdeveria escutar o que vou dizer.Talvez possa ajudar a explicar.

Enquanto ela se sentava,tentei organizar os pensamentospara explicar a aparição do Titãna mira do meu binóculo.

– Então, eu estava no marEgeu, treinando para a regata da

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Cíclades na semana que vem,quando um amigo velejador meconvidou para passar um fim desemana prolongado no iate dele.O tempo estava incrível, e foiótimo relaxar de verdade no mar,para variar um pouco.

– De quem era o iate? –perguntou Electra, como eu sabiaque faria.

– De um amigo, já disse –respondi, evasiva. Por mais quequisesse compartilhar Theo comminhas irmãs em algum momento,certamente essa hora ainda nãotinha chegado. – Enfim, dois diasatrás, de tarde, a gente estava lá eo meu amigo me disse que outro

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colega velejador dele tinhamandado um rádio dizendo tervisto o Titã...

Ao relembrar esse instante,tomei um gole de café, emseguida me esforcei ao máximopara descrever como nossasmensagens de rádio tinham ficadosem resposta, e minhaincompreensão quando o iate dePa Salt tinha continuado a seafastar de nós. Todas escutaramminha história com uma atençãofascinada, e vi Ma e Maiatrocarem um olhar de tristeza.Então respirei fundo e lhes disseque, por causa do sinal ruim detelefonia celular na região, não

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tinha recebido nenhum dosrecados até a véspera. Detestei-me por mentir desse jeito, masnão consegui suportar contar aelas que havia simplesmentedesligado o telefone. Também nãodisse nada sobre o Olimpo, ooutro iate que Theo e eu tínhamosvisto na baía.

– Então, por favor – pedi,por fim. – Alguém pode me dizerque porcaria estava acontecendo?E por que o iate de Pa Salt estavana Grécia quando ele já estava...morto?

Viramo-nos todas para Maia.Vi que ela estava medindo aspalavras antes de falar.

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– Ally, Pa Salt sofreu uminfarto três dias atrás. Não houvenada que ninguém pudesse fazer.

Ouvir o jeito como ele haviamorrido da boca da minha irmãmais velha tornou tudo bem maisdefinitivo. Enquanto eu tentavaconter as lágrimas que já mebrotavam dos olhos, elaprosseguiu:

– O corpo dele foi levado deavião até o Titã, depois jogado nomar. Ele quis descansar nooceano; não queria nosincomodar.

Sem parar de encará-la, dei-me conta da terrível realidade.

– Ai, meu Deus... –

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sussurrei, por fim. – Então existeuma grande chance de eu tersurpreendido o funeral particulardele. Não é de espantar que o iatetenha se afastado de mim o maisdepressa possível. Eu...

Sem conseguir mais fingirque estava forte ou calma, segureia cabeça com as mãos e respireifundo várias vezes para controlaro pânico, enquanto minhas irmãsse reuniam à minha volta paratentar me reconfortar.Desacostumada a demonstraremoção na frente delas, ouvi-mepedindo desculpas ao mesmotempo que tentava me recompor.

– Deve ter sido um choque

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terrível para você entender o queestava de fato acontecendo. Agente sente muito, Ally – disseTiggy, delicada.

– Obrigada – consegui dizer,e em seguida balbuciei algunslugares-comuns sobre ter ouvidoPa me dizer certa vez que queriaser enterrado no mar. Quecoincidência ridícula eu tercruzado com o Titã durante a suaúltima viagem; pensar isso fezminha cabeça girar, e preciseiurgentemente de ar. – Escutem,vocês ficariam muito chateadas seeu ficasse um tempo sozinha? –perguntei, com a voz mais firmede que fui capaz.

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Todas concordaram e deixeia cozinha seguida pelas calorosaspalavras de apoio delas.

De pé no corredor, olhei emvolta, desesperada, tentando fazermeu corpo seguir na direção doconforto pelo qual ansiava, massabendo que, para onde quer queme virasse, ele continuaria mortoe eu não encontraria confortoalgum.

Saí pela pesada porta dafrente cambaleando; o que maisqueria era estar ao ar livre paraaliviar a sensação de pânico queme apertava o peito. Meu corpome conduziu automaticamente atéo deque, onde fiquei aliviada ao

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ver o Laser atracado. Subi abordo, icei as velas e soltei ascordas.

Quando me afastei damargem, senti que o vento estavabom, então alcei a bujarrona e saívelejando pelo lago o maisdepressa que consegui. Depois dealgum tempo, exausta, lanceiâncora em uma enseada protegidapor uma península rochosa.

Deixei meus pensamentosfluírem para tentar entender o queacabara de saber, mas elesestavam tão confusos que nãoaconteceu grande coisa, e fiqueiapenas olhando para a água feitouma idiota, sem pensar em

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absolutamente nada, desejandoconseguir atinar coisa com coisa.Os fios emaranhados da minhaconsciência se recusavam a seconformar com o que de fatotinha acontecido. Ter estadopresente no que pelo visto fora ofuneral de Pa Salt... Por que logoeu estava lá para presenciaraquilo? Será que havia ummotivo? Ou seria apenascoincidência?

Aos poucos, conforme meucoração começou a desacelerar emeu cérebro voltava a funcionarde novo, a dura realidade meatingiu. Pa Salt tinha morrido, eera provável que isso não tivesse

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nenhuma explicação ou motivo. Ese eu, a eterna otimista, quisessesuperar isso, precisavasimplesmente aceitar os fatoscomo eram. No entanto, todas asreferências que eu em geral usavaquando algo horrível aconteciacomigo pareciam não se encaixar;todas as banalidades vazias eramlevadas embora pela maré da dore da incredulidade que sentia.Entendi que, para onde quer que aminha mente me levasse, oscaminhos conhecidos doreconforto tinham desaparecido, enada nunca faria eu me sentirmelhor com o fato de meu pai terido embora sem se despedir de

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mim.Fiquei um tempão ali,

sentada na popa do Laser, cientede que mais um dia terminavaaqui na Terra sem a presençadele. E de que, de alguma forma,eu tinha que lidar com a culpahorrorosa que sentia por ter postoa minha felicidade em primeirolugar no momento em que minhasirmãs tanto tinham precisado demim – e Pa também. Eu os haviadecepcionado na hora maisimportante de todas. Ergui osolhos para o céu, lágrimasescorrendo pelo rosto, e pediperdão a Pa Salt.

Engoli um pouco d’água e

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me recostei na popa para deixarque a brisa cálida envolvesse omeu corpo. O balanço suave dobarco me tranquilizou, comosempre acontecia, e cheguei acochilar um pouco.

Tudo que temos é omomento presente, Ally. Nuncase esqueça disso, está bem?

Acordei pensando queaquela era uma das citaçõespreferidas de Pa. E, muito emboraainda ficasse vermelha devergonha ao imaginar o que deviaestar fazendo com Theo na horaem que Pa dava seu últimosuspiro – naquela contrastantejustaposição dos processos da

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vida que começava e terminava –,pensei que pouco teria importadopara ele ou para o Universo se euestivesse apenas tomando umaxícara de chá ou dormindo a sonosolto. E sabia que, mais do queninguém, meu pai teria ficadomuito feliz por eu ter encontradoalguém como Theo.

Voltei para Atlantis umpouco mais calma. No entanto,ainda havia uma informação queeu deixara de fora ao descreverpara minhas irmãs como tinhaencontrado o iate de Pa. Sabiaque precisava compartilharaquilo com alguém para tentarentender o que havia acontecido.

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Como em todos os gruposgrandes de irmãos, o nosso tinhavários subgrupos: Maia e euéramos as mais velhas, e foi a elaque decidi confidenciar o quevira.

Atraquei o Laser no deque esubi de volta até a casa; pelomenos o peso no meu peito estavamenor do que ao sair. Marina,ofegante, me alcançou nogramado, e eu a cumprimenteicom um sorriso desamparado.

– Ally, você saiu no Laser?– Sim. Precisava de um

tempo para esfriar a cabeça.– Bom, você se

desencontrou das outras. Elas

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foram para o lago.– Todas?– Menos Maia. Ela se

trancou no pavilhão paratrabalhar um pouco.

Trocamos um olhar e,embora eu pudesse ver quanto amorte de Pa também lhe pesava,amei Ma por sempre colocarnossas preocupações e anseiosem primeiro lugar. Era óbvio queela estava muito preocupada comMaia, sua preferida, como semprefora o meu palpite.

– Eu estava mesmo indofalar com ela, então nós vamosfazer companhia uma para a outra– disse.

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– Nesse caso, pode avisar aela que Georg Hoffman vaichegar daqui a pouco? Ele querfalar comigo primeiro, nãoconsigo imaginar por quê. Entãoela precisa estar na casa daqui auma hora. Você também, claro.

– Pode deixar – assenti.Ma apertou minha mão com

carinho e voltou a seguir para acasa principal.

Chegando ao pavilhão, batide leve à porta, mas não obtiveresposta. Como sabia que Maiasempre deixava a portadestrancada, entrei e chamei seunome. Cheguei na sala de estar evi minha irmã dormindo

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encolhida no sofá, com os traçosperfeitos relaxados e os cabelosescuros lustrosos naturalmentearrumados, como se estivesseposando para uma sessão defotos. Quando cheguei perto, elase sentou, assustada e encabulada.

– Desculpe, Maia. Vocêestava dormindo, né?

– Acho que sim – respondeuela, corando.

– Ma disse que as outrassaíram, então pensei em virconversar. Você se importa?

– Claro que não.Ficou claro que ela estava

dormindo um sono profundo, epara lhe dar tempo de acordar

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sugeri que eu preparasse um chápara nós duas. Quando nosacomodamos com as xícarasfumegantes nas mãos, percebi queas minhas tremiam e eu precisavade algo mais forte do que chápara contar minha história.

– Tem um pouco de vinhobranco na geladeira – disse Maia,compreensiva, e foi buscar umataça de vinho na cozinha paramim.

Depois de tomar um gole,reuni as forças e contei-lhe sobreter visto o iate de Kreeg Eszuperto do de Pa dois dias antes.Para minha surpresa, elaempalideceu, e embora eu tivesse

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ficado perturbada com aproximidade do Olimpo,sobretudo agora que sabia o queestava acontecendo no Titã, Maiapareceu bem mais chocada do queeu esperava. Vi-a tentar serecompor e, à medida queconversávamos, tentar minimizara importância daquilo e me daralgum conforto.

– Ally, por favor, esqueçaisso de o outro iate estar porperto... é irrelevante. Mas o fatode você estar lá para ver o lugarem que Pa escolheu ser enterradona verdade é reconfortante. Quemsabe, como sugeriu Tiggy ontem ànoite, mais para o fim do verão

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possamos fazer um cruzeiro juntase depositar uma coroa de floresna água.

– Mas o pior é que eu mesinto tão culpada! – falei derepente, sem conseguir mais mesegurar.

– Por quê?– Porque... porque aqueles

poucos dias no iate foram tãolindos! Eu estava tão feliz, maisfeliz do que jamais estive na vida.E a verdade é que eu não queriaque ninguém me encontrasse,então desliguei o celular. Eenquanto eu estavaincomunicável, Pa estavamorrendo! Bem, quando ele

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precisou de mim, eu não estavalá!

– Ally, Ally... – Maia veiose sentar ao meu lado e começoua afastar os cabelos do meu rostoenquanto me confortava comcarinho. – Nenhuma de nós estavalá. E eu sinceramente acho que éassim que Pa queria que fosse.Por favor, lembre que eu moroaqui, e até eu tinha voado paralonge do ninho quando tudoaconteceu. Pelo que Ma falou,não havia nada mesmo a fazer. Ea gente precisa acreditar nisso.

– É, eu sei. Mas parece queexistem tantas coisas que euqueria perguntar para ele, contar

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para ele... e agora ele se foi.– Acho que todas estamos

nos sentindo assim. Mas pelomenos temos umas às outras.

– É verdade. Obrigada,Maia – respondi. – Não é incrívelcomo nossas vidas podem virarde cabeça para baixo em questãode horas?

– É, sim, e em algummomento eu gostaria de saber omotivo dessa sua felicidade –disse ela com um sorriso.

Pensei em Theo e aproveiteio conforto que isso meproporcionou.

– Em algum momento euconto a você, prometo, só não vai

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ser agora. Como você está, Maia?– perguntei, querendo mudar deassunto.

– Bem – respondeu ela. –Ainda em choque, como todomundo.

– É claro que você está emchoque, e não deve ter sido fácilcontar para as outras. Sinto muitonão ter estado aqui para ajudar.

– Bom, pelo menos o fato devocê estar aqui agora significaque podemos encontrar GeorgHoffman e começar a tocar a vidapara frente.

– Ah, esqueci que Ma nospediu para subir até a casa emuma hora – falei, olhando para o

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relógio. – Georg vai chegar aqualquer momento, mas pareceque ele quer conversar primeirocom ela. Então... – Suspirei. –Posso tomar mais uma taça devinho enquanto a gente espera,por favor?

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Às sete, Maia e eu subimos até acasa para encontrar GeorgHoffman. Nossas irmãs jáestavam esperando na varandahavia algum tempo, aproveitandoo sol do fim do dia, apesar detensas e impacientes. Electra,como sempre, disfarçava onervosismo fazendo comentáriossarcásticos sobre o gosto de PaSalt pelo drama e o mistérioquando Marina finalmente chegou

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com Georg. Ele era um homemalto, grisalho, e estava usando umterno cinza impecável: o típicoadvogado suíço bem-sucedido.

– Desculpe fazê-lasesperarem tanto, meninas, mas euprecisava organizar umas coisas– disse ele. – Meus pêsames atodas. – Ele apertou a mão decada uma de nós. – Posso mesentar?

Maia indicou a cadeira aoseu lado, e quando ele se sentoupude perceber sua tensão, ao vê-lo torcer em volta do pulso orelógio caro, porém discreto.Marina pediu licença e entrou emcasa para nos deixar sozinhas

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com o advogado.– Bem, meninas – começou

ele. – Sinto muitíssimo que nossoprimeiro encontro ao vivo sejanestas circunstâncias tão trágicas.Mas tenho a impressão de jáconhecer todas vocês muito bempor intermédio do seu pai, e aprimeira coisa que preciso lhesdizer é que ele as amava muito. –Vi uma emoção genuína brotar emseu rosto. – Não só isso, eletambém tinha muito orgulho daspessoas em quem vocês setransformaram. Nos falamos logoantes de ele... nos deixar, e elequeria que eu lhes dissesse isso.

Ele olhou para cada uma de

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nós antes de se virar para a pastaque tinha à sua frente.

– Tenho certeza de que aprimeira coisa a fazer é tirar asquestões financeiras do caminho egarantir a vocês que todas terãorecursos razoáveis pelo resto davida. Apesar disso, seu pai faziaquestão de que não vivessemcomo princesas preguiçosas,então vocês todas vão receberuma quantia que será suficientepara sustentá-las, mas nunca vailhes proporcionar uma vida deluxo. Essa parte, como eleenfatizou para mim, é o que vocêsterão que conseguir por simesmas, como ele o fez. Os bens

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do seu pai vão para um fundo depensão em nome de todas vocês,e ele me concedeu a honra deadministrar. Caberá a mimdecidir lhes dar ou não ajudafinanceira sempre que vocês meprocurarem com uma proposta ouum problema.

Escutamos com atenção, enenhuma de nós disse nada.

– Esta casa também faz partedo fundo de pensão, e tantoClaudia quanto Marina disseramque teriam prazer em continuaraqui e tomar conta de tudo. Nodia em que a última de vocêsmorrer, o fundo será dissolvido, apropriedade poderá ser vendida e

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o lucro dividido entre osdescendentes que vocês vierem ater. Se não houver descendentes,o dinheiro será doado a umainstituição de caridade que seupai escolheu. Pessoalmente, achoque ele fez uma escolha muitointeligente – comentou Georg,deixando enfim de lado o tomformal de advogado. – Garantiuque a casa continuará aqui até ofim da vida de vocês, entãosempre terão um lugar seguropara voltar. Mas é claro que omaior desejo dele era que todasvocês ganhassem o mundo edeterminassem o próprio destino.

Entreolhamo-nos, pensando

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em que tipo de mudança issoresultaria para todas nós. No meucaso, refleti, ao menos meu futurofinanceiro não seria afetado. Eusempre havia sido independente,e trabalhara duro para conquistartudo o que tinha. Quanto ao meudestino... pensei em Theo enaquilo que torcia para quecontinuássemos a compartilhar.

– Agora há mais uma coisaque o seu pai deixou para vocês,e devo pedir a todas que meacompanhem – disse Georg,despertando-me de meusdevaneios. – Por aqui, por favor.

Seguimos Georg, sem saberaonde ele estava nos levando, e

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ele nos fez dar a volta na casa eno terreno até chegarmos aojardim secreto de Pa Salt,abrigado atrás de uma fileira decercas vivas de teixoimaculadamente podadas. Fomosrecebidos pela profusão de coresdas lavandas, levísticos e cravosamarelos que sempre atraíamborboletas no verão. O bancopreferido de Pa ficava sob umarco de rosas brancas, e nessanoite as flores pendiam,preguiçosas, acima do lugar emque ele costumava se sentar.Quando éramos mais novas, eleadorava nos ver brincar napequena praia de seixos que ia do

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jardim até o lago, onde eu,desajeitada, havia tentado remarna pequena canoa verde que eleme dera de presente no meuaniversário de 6 anos.

– Isso é que quero mostrar avocês – disse Georg, arrancando-me de meus devaneios eapontando para o meio doterraço.

Ali, uma bela esculturahavia surgido em cima de umpedestal de pedra mais ou menosna altura do meu quadril, e todasnos aproximamos para vermelhor. Tratava-se de uma boladourada atravessada por uma finaflecha de metal, rodeada por aros

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metálicos que se entrelaçavam emtorno dela. Quando reparei nodesenho de continentes e oceanosgravados delicadamente na esferadourada central, entendi queaquilo era um globo terrestre, eque a ponta da flecha apontavabem para onde a Estrela do Nortedeveria estar. Um aro de metalmais largo envolvia o globo naaltura do Equador, e nela estavamgravados os doze símbolosastrológicos do zodíaco. Aescultura parecia um antigoinstrumento de navegação, mas oque Pa quisera dizer com aquilo?

– Isso aqui é uma esferaarmilar – informou Georg a todas

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nós.Ele então explicou que as

esferas armilares existem hámilhares de anos e que os gregosantigos originalmente as usavampara determinar a posição dasestrelas e a hora do dia.

Agora que entendia para queservia, admirei a extremainteligência daquele mecanismoantigo. Deixamos escaparexclamações de admiração, masfoi Electra quem as interrompeu,impaciente:

– Sim, mas o que isso tem aver com a gente?

– Explicar isso não faz partedas minhas atribuições – disse

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Georg como se pedisse desculpa.– Mas, se vocês olharem comatenção, verão que os nomes detodas vocês aparecem nos arospara os quais acabei de apontar.

E, de fato, ali estavam eles,gravados no metal em caracteresnítidos e elegantes.

– Essa aqui é a sua, Maia. –Apontei. – Tem uns númerosdepois do nome, que me parecemum conjunto de coordenadas –falei, passando a examinar osmeus. – Sim, tenho certeza de queé isso mesmo.

Havia outras coisas escritasalém das coordenadas, e foi Maiaquem percebeu que eram palavras

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em grego; comentou que astraduziria mais tarde.

– Tá, é uma escultura bemlegal e está aqui no terraço. – Apaciência de Ceci estava seesgotando. – Mas o que elasignifica?

– Isso também não cabe amim dizer – respondeu Georg. –Marina está servindo champanheno terraço principal, conformeinstruções do seu pai. Ele queriaque todas vocês brindassem o seufalecimento. Em seguida vouentregar a cada uma um envelopeque ele deixou. Espero que issoexplique bem mais do que possolhes contar.

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Matutando sobre aspossíveis localizações dascoordenadas, caminhei de voltacom minhas irmãs até o terraçoprincipal. Ficamos todas mudas,tentando entender o quesignificava o legado deixado pornosso pai. Quando Ma serviu umataça de champanhe para cadauma, perguntei-me quanto elasabia sobre as atividades daquelanoite, mas sua expressão estavaimpassível.

Georg ergueu a taça para obrinde.

– Por favor, juntem-se a nósna celebração da vida notável queseu pai teve. Tudo que posso lhes

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dizer é que este era o funeral queele desejava, com todas as suasmeninas reunidas em Atlantis, larque ele teve a honra de dividircom vocês durante todos essesanos.

– A Pa Salt – dissemos todosjuntos ao erguer nossas taças.

Enquanto bebíamos ochampanhe, imersos cada qual emsuas reflexões, pensei no quetínhamos visto e senti umanecessidade desesperada derespostas.

– Mas e aí? Quando vamosreceber as cartas? – indaguei.

– Vou pegá-las agora – disseo advogado, levantando-se e

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saindo da mesa.– Bom, este deve ser o

velório mais bizarro que eu já vi– comentou Ceci.

– Pode me servir um poucomais de champanhe? – pedi a Ma,enquanto perguntas começavam aser disparadas ao redor da mesa eTiggy se punha a chorar baixinho.

– Ah, eu só queria que eleestivesse aqui para explicarpessoalmente... – sussurrou ela.

– Mas ele não está, querida– falei, recuperando as forças aosentir que o clima começava aficar sombrio e desanimado. – Epor algum motivo eu acho que éperfeito assim. Ele tornou as

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coisas o mais fáceis possível. Eagora temos que tirar forças umasdas outras.

Todas elas assentiram comtristeza, inclusive Electra, eapertei a mão de Tiggy. Georgvoltou e pôs sobre a mesa seisenvelopes grandes de papel decarta. Olhei e vi que na frente decada um deles, na caligrafiainconfundível de Pa, estavaescrito o nome de uma de nós.

– Essas cartas foramdeixadas comigo umas seissemanas atrás – disse oadvogado. – No caso da morte doseu pai, fui instruído a entregaruma para cada uma de vocês.

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– Temos que abri-las agoraou depois, quando estivermossozinhas? – perguntei.

– Seu pai não estipulou nadaem relação a isso – foi a respostade Georg. – Tudo que ele dissefoi que deveriam abri-las quandocada uma de vocês estivessepronta e se sentisse à vontadepara fazê-lo.

Olhei para minhas irmãs eentendi que todas nósprovavelmente devíamos estarpensando que preferiríamos lernossa carta a sós.

– Então meu trabalho estáfeito – disse Georg com ummeneio de cabeça. Entregou um

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cartão de visita a cada uma denós e nos disse para entrar emcontato caso precisássemos. – Dequalquer jeito, conhecendo seupai, tenho certeza de que ele jádeve ter previsto tudo de quecada uma de vocês pode precisar.De modo que chegou a hora de eudeixá-las. Mais uma vez,meninas, meus sentimentos.

Eu sabia como devia serdifícil para o advogado nostransmitir aquele misteriosolegado de Pa, e fiquei contentequando Maia lhe agradeceu emnome de todas nós.

– Adeus. Se precisarem demim, sabem onde me encontrar.

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Com um sorriso sem alegria,ele disse que sabia onde ficava asaída e se retirou.

Ma também se levantou damesa.

– Acho que vocês devemestar com fome. Vou pedir aClaudia para servir o jantar aquifora – disse ela, desaparecendodentro da casa.

Eu havia passado o diainteiro sem nem pensar em comer.Ainda estava concentrada nascartas e na esfera armilar.

– Maia, você acha quepoderia voltar até a escultura etraduzir aquelas citaçõesgravadas? – perguntei.

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– Claro – respondeu ela,enquanto Marina e Claudiavoltavam com os pratos etalheres. – Farei isso depois dojantar.

Electra espiou os pratos e selevantou para ir embora.

– Espero que vocês nãofiquem chateadas, mas estou semfome.

– Você está com fome? –perguntou Ceci a Estrela ao verElectra sair.

Estrela apertava com forçaseu envelope na mão.

– Acho que seria bom agente comer alguma coisa –murmurou baixinho.

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Era a coisa mais sensata afazer e, quando a comida chegou,nós cinco tentamos nos forçar aengolir as fatias de pizza caseirase a salada. Então, uma após aoutra, todas as minhas irmãsforam saindo aos poucos atérestarem apenas Maia e eu.

– Maia, você fica chateadase eu também for me deitar?Estou completamente exausta.

– É claro que não ficochateada – respondeu ela. – Vocêfoi a última a saber, ainda está serecuperando do choque.

– É, acho que é isso mesmo– concordei. Levantei-me e lhedei um beijo na bochecha. – Boa

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noite, Maia querida.– Boa noite.Fiquei culpada por deixá-la

sozinha à mesa mas, assim comoo restante de minhas irmãs, euprecisava ficar um pouco sozinha.Além do mais, a carta que estavasegurando me queimava os dedos.Ao pensar onde poderia encontrarsolidão e paz, decidi que meuquarto da infância seria o lugarque me traria mais confortonaquele momento, então subi osdois lances de escada.

Os nossos quartos ficavamno último andar da casa, e quandoMaia e eu éramos pequenas, àsvezes brincávamos de princesas

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na torre. O meu era claro edecorado com simplicidade:paredes lisas brancas e cortinasquadriculadas de branco e azul.Tiggy um dia dissera que o quartoparecia a cabine antiquada de umbarco. Um espelho redondo eraemoldurado por uma corda salva-vidas com as palavras “SS Ally”gravadas em molde vazado, umpresente de Natal de Estrela eCeci anos antes.

Ao me sentar na cama eolhar para o envelope, perguntei-me se minhas outras irmãsestariam abrindo os delas,ansiosas, ou se estariam cheias deapreensão quanto ao que

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poderiam encontrar. O meu tinhauma leve saliência que se moveuquando o segurei na mão. Detodas, eu sempre fora a maisansiosa para abrir os presentes deNatal ou aniversário, e ao estudaraquele envelope tive a mesmasensação. Abri-o com um rasgo e,ao sacar uma grossa folha depapel, sobressaltei-me quandoalgo pequeno e sólido caiu emcima do edredom. Espantada,percebi que era um sapinhomarrom.

Depois de examiná-lo comatenção por alguns instantes e emseguida me sentir boba por pensarque pudesse ser uma criatura

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viva, peguei-o. Tinha as costascobertas por pintinhas amarelas eos olhos eram suaves eexpressivos. Corri os dedos pelasuperfície do sapinho enquanto oaninhava na palma da mão, sementender o motivo que tinhalevado Pa Salt a incluí-lo naminha carta. Até onde eu melembrava, sapos nunca haviamtido importância especial paranenhum de nós dois. Talvezaquilo fosse uma dasbrincadeirinhas de Pa Salt e acarta devia explicar tudo.

Peguei-a, desdobrei o papele comecei a ler.

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AtlantisLago Léman

Suíça

Ally, minha querida,Agora que começo a

escrever esta carta, possoimaginar você, minha lindae vibrante segunda filha,lendo as palavras depressa,louca para chegar ao fim. Edepois tendo que ler tudooutra vez, mais devagar.

Enfim, a esta alturavocê já sabe que não estoumais entre vocês, e tenho

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certeza de que o choquedeve ter sido imenso paracada uma das minhasmeninas. Sei também que,como você é a mais otimistade todas, aquela cujapositividade e alegria deviver iluminaram a minhavida, vai chorar a minhapartida, mas, depois, comosempre fez, vai dar a voltapor cima e seguir em frente.E é assim que deve ser.

Talvez, de todas asminhas filhas, você seja amais parecida comigo. E sóposso dizer quanto sempreme orgulhei de você e

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esperar que, embora nãoesteja mais presente paraprotegê-la, você continuelevando a sua vida como fezaté aqui. O medo é oinimigo mais poderoso queos seres humanos têm queenfrentar, e o seu caráterdestemido é o melhorpresente que Deus lhe deu.Nunca perca isso, queridaAlly, nem mesmo agoraquando está sofrendo, estábem?

O motivo pelo qual lheescrevo – além de umadespedida oficial – é quedecidi algum tempo atrás

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que seria certo deixar paracada uma de vocês umapista quanto à sua famíliade origem. Com isso nãoquero dizer que desejo quevocês larguem tudo agoramesmo, mas ninguém nuncapode saber exatamente oque vai acontecer no futuronem quando vão precisar ouquerer saber.

Vocês já devem tervisto a esfera armilar comas coordenadas gravadas.Elas indicam um bom localpara cada uma de vocêsiniciar sua viagem. Hátambém um livro na estante

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do meu escritório escritopor um homem chamadoJens Halvorsen, morto hámuito tempo. Ele vai lherevelar muitas coisas etalvez a ajude a decidir sequer explorar suas origensmais a fundo. Se essa for asua intenção, você temrecursos suficientes paradescobrir como.

Minha querida menina,você nasceu com muitosdotes; às vezes – cheguei apensar –, quase excessivos.Ter algo em excesso podeser tão difícil quanto nãoter o bastante. Também

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temo que, por ter meencantado tanto com nossapaixão comum pelo mar, eupossa ter lhe desviado doseu curso quando tinhaoutro caminho pela frente,aberto com a mesmafacilidade. Você tinha umgrande talento para amúsica, e eu adorava ouvi-la tocar flauta. Se eu tiverfeito isso, me perdoe, massaiba que aqueles dias quepassamos juntos no lagosão alguns dos mais felizesque tive. Então, do fundomeu coração: obrigado.

Junto com esta carta

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está um de meus objetosmais preciosos. Mesmo quevocê não escolha descobrirseu passado, guarde-o comcarinho e, talvez, um dia,entregue-o a seus própriosfilhos.

Ally, querida, tenhocerteza de que, mesmodepois do golpe sofrido, asua tenacidade e a suapositividade lhe permitirãoser o que quiser, com quemvocê quiser. Não desperdiceum só segundo da sua vida,está bem?

Vou continuarcuidando de você.

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Seu pai, que tanto teama,

Um beijo,Pa Salt

Justo como Pa haviaprevisto, tive que ler a carta duasvezes, pois da primeira passeicorrendo pelas palavras. Sabiaque ainda a leria mais centenas devezes nos dias e anos queestavam por vir.

Fiquei deitada na cama como sapinho na mão, ainda semsaber que relevância ele tinha epensando no que Pa Salt disserana carta. Então decidi que queria

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conversar com Theo a respeito,pois talvez ele me ajudasse aentender. Por instinto, levei a mãoà bolsa para pegar o celular e verse ele havia mandando algumamensagem de texto, mas então melembrei de que tinha deixado oaparelho carregando na cozinhaao chegar em casa de manhã.

Atravessei o patamar daescada em silêncio, pois nãoqueria incomodar minhas irmãs.Vi a porta de Electra entreabertae espiei para dentro do quartocom cuidado, para o caso de elaestar dormindo. Ela estavasentada na beirada da cama, decostas para mim, tomando um

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gole de uma garrafa. De início,pensei que devia ser água, masquando ela tomou outro golepercebi que era vodca. Fiqueiolhando enquanto ela tornava aatarraxar a tampa e depoisempurrava a garrafa para baixoda cama.

Saí da porta antes que elame visse, terminei de percorrer opatamar pé ante pé e desci oprimeiro lance da escada,abalada com o que acabara dever. De todas nós, Electra era delonge a mais obcecada com asaúde, e me espantava queestivesse bebendo destiladosàquela hora da noite. No entanto,

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pensando bem, talvez as regrasnormais não se aplicassem anenhuma de nós naquele momentotriste e difícil.

Por instinto, parei nopatamar intermediário da escadae fui em direção aos aposentos dePa, no segundo andar; de umahora para outra, estavadesesperada para senti-lopróximo de mim.

Hesitante, abri a porta comum empurrão, e lágrimas mebrotaram dos olhos ao encarar acama alta de solteiro na qual meupai pelo visto tinha dado seuúltimo suspiro. O quarto eramuito diferente do resto da casa:

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utilitário, com pouca mobília,com um piso de tábua corrida semtapetes, a cama com cabeceira demadeira e um criado-mudo demogno já bem danificado pelotempo. Em cima da mesinhaestava o despertador de Pa.Lembrei-me de ter entradonaquele quarto certa vez, quandoera muito pequena, e ficadofascinada com aqueledespertador. Pa me deixaraapertar e soltar o botão, apertar esoltar, para fazer o alarme tocar eparar. Eu ria, deliciada, a cadavez que o despertador tocava.

– Preciso dar corda tododia, senão ele para – dissera-me

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ele, fazendo exatamente isso.O despertador agora não

fazia tique-taque.Atravessei o quarto e me

sentei na cama. Os lençóisestavam lisinhos, imaculados,mas mesmo assim estiquei aspontas dos dedos para alisar oalgodão branco engomado dotravesseiro, no lugar em que acabeça do meu pai haviarepousado pela última vez.

Perguntei-me onde estariaseu velho relógio de pulso OmegaSeamaster, e o que teriaacontecido com o restante do queo pessoal da funerária teriachamado de seus “pertences

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pessoais”. Ainda podia ver orelógio em seu pulso, com omostrador de ouro simples eelegante e a correia de couro jábem desgastada no quarto furo.Eu certa vez havia lhe dado deNatal uma nova, que eleprometera usar quando a velhafinalmente arrebentasse, mas issonunca aconteceu.

Minhas irmãs e eu muitasvezes pensávamos que Pa poderiater comprado o relógio quequisesse ou se vestido só comroupas de marca, mas todas nósachávamos que ele havia sevestido sempre do mesmo jeito,até onde nossa memória

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alcançava – ao menos quando nãoestava velejando. O velho paletóde tweed sempre combinava comuma camisa branquinhaperfeitamente lavada e passada,abotoaduras de ouro discretascom as suas iniciais e uma calçaescura cujos vincos na frentetinham uma precisão militar. Nospés, ele calçava invariavelmentesapatos sociais marrons defurinhos, sempre com a biqueirareluzente. Na verdade, pensei,correndo os olhos pelo quarto epousando-os no pequeno guarda-roupa e na igualmente pequenacômoda de mogno – os únicosoutros móveis do quarto –, as

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necessidades pessoais de Pasempre beiraram a frugalidade.

Olhei para a foto no porta-retratos em cima da cômoda, demeu pai, minhas irmãs e eu, abordo do Titã. Embora ele tivesse70 e poucos anos na ocasião,dava para ver que tinha o físicode um homem bem mais jovem.Alto, muito bronzeado, tinha ostraços bonitos e marcados pelavida ao ar livre, vincados em umlargo sorriso, e posava reclinadona amurada do iate cercado pelasfilhas. Então meu olhar foi atraídopelo único quadro pendurado naparede, posicionado bem emfrente à cama estreita.

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Levantei-me e fui observá-lo. Era um desenho em carvão deuma jovem muito bonita, quecalculei ter uns 20 e poucos anos.Ao olhar mais de perto, vi quesua expressão continha uma certatristeza. Os traços eram belos,mas quase grandes demais para orosto estreito em formato decoração. Os olhos imensos eramproporcionais aos lábioscarnudos, e pude ver uma covinhade cada lado da boca. A moçatinha uma farta cabeleira grossa ecacheada que descia até abaixodos ombros. O desenho estavaassinado, mas não conseguidecifrar as letras.

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– Quem é você? – pergunteià moça do desenho. – E quem erao meu pai...?

Com um suspiro, voltei até acama de Pa, deitei-me e meencolhi em posição fetal.Lágrimas escorreram dos meusolhos até encharcar o travesseiroque ainda tinha o cheiro limpo ecítrico dele.

– Estou aqui, Pa querido –murmurei. – Mas e você? Ondeestá?

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6

Na manhã seguinte, acordei nacama de Pa meio grogue, maspurificada. Nem sequer melembrava de ter pegado no sono,e não fazia ideia de que horaseram. Levantei-me e fui olharpela janela. Tudo que o quarto dePa Salt não tinha de luxo era maisdo que compensado pela vista dajanela. O dia estava glorioso e osol se refletia na superfície lisado lago, que parecia se estender

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em um infinito enevoado para aesquerda e para a direita. Bem àfrente, vi o verde luxuriante dacolina que subia íngreme pelamargem oposta. E nesses poucossegundos Atlantis me pareceuoutra vez um lugar mágico.

Subi até meu quarto, tomeibanho, e saí do chuveiropensando em Theo e no quantoele devia estar preocupado por euainda não ter ligado dizendo quetinha chegado. Vesti-me àspressas, peguei o laptop e descias escadas correndo para pegar ocelular que pretendia buscar nanoite anterior. Havia váriasmensagens de Theo, e meu

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coração se aqueceu ao lê-las.

Só para saber se está tudo bem.Muitos beijos.

Boa noite, querida Ally. Meuspensamentos estão com você.

Não quero incomodar. Ligue ouescreva quando puder. Saudades. Bj

Eram mensagens carinhosase nada exigentes; nem sequerpediam uma resposta imediata.Sorri e respondi lembrando-meda carta de Pa, na qual ele medizia que eu poderia ser qualquercoisa ou estar com qualquerpessoa que quisesse.

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E naquele momento euqueria estar com Theo.

Em pé junto à bancada dacozinha, Claudia preparava massaem uma tigela. Cumprimentou-meoferecendo um café quente, queaceitei agradecida.

– Sou a primeira a descer? –perguntei a ela.

– Não. Estrela e Ceci jásaíram para Genebra de lancha.

– Sério? – falei, dando umgole no café forte e escuro. – E asoutras ainda não acordaram?

– Se acordaram, eu não vi –respondeu ela com calmaenquanto continuava a bater amassa com as mãos vigorosas.

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Peguei um croissant frescoem meio ao banquete de café damanhã disposto no centro da mesacomprida e mordi a massaamanteigada.

– Não é maravilhosopodermos ficar aqui em Atlantis?Pensei que talvez tivessem quevender a propriedade.

– É, é muito bom sim. Paratodo mundo. Vai querer maisalguma coisa? – perguntou-meClaudia enquanto virava oconteúdo da tigela sobre umaassadeira e a colocava ao lado doforno.

– Não, obrigada.Ela meneou a cabeça, em

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seguida despiu o avental e saiu dacozinha.

Durante a nossa infância,Claudia tinha sido uma presençatão constante em Atlantis quantoMa e Pa Salt. O sotaque alemãodava à sua voz um tom severo,mas todas sabíamos que ela tinhao coração de manteiga.Conhecíamos pouco sobre asorigens dela. Quando crianças,porém, ou mesmo no início daidade adulta, jamais nos ocorreuquestionar detalhes de onde,como e por quê. Assim comotodas as outras coisas no universoencantado em que havíamos sidocriadas, Claudia simplesmente

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era.Pensei então nas

coordenadas da esfera armilar eem como os segredos contidosnelas poderiam abalar tudo o quesabíamos – ou o que nãosabíamos – sobre nós mesmas atéali. Não era fácil pensar isso, masPa Salt obviamente nos haviadeixado as coordenadas por ummotivo, e eu precisava confiar nadecisão dele. Agora, cabia a cadauma de nós, individualmente,explorá-las mais a fundo ou não,como preferíssemos.

Peguei uma caneta e umbloquinho no aparador e saí dacozinha pela porta dos fundos; a

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luz da manhã ofuscou meus olhos.Foi refrescante sentir o ar frio napele. A grama fresca e úmida deorvalho, ainda não aquecida pelosol, roçou as laterais dos meuspés. Os jardins exibiam umatranquilidade perfeita, e somenteo trinado ocasional de um pássaroflutuando no ar e as suavesbatidas da água na margem dolago perturbavam o silêncio.

Refiz o caminho da noiteanterior e dei a volta na casa atéo jardim especial de Pa Salt,admirando as variedades de rosasque haviam acabado de abrir eespalhavam seu forte perfumepelo ar matinal.

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A bola dourada no centro daesfera armilar reluzia ao sol, quejá fazia sombra nos arosnavegacionais. Com a manga dacamisa, limpei o orvalho do arogravado com o meu nome e corrio dedo pela inscrição em grego,perguntando-me o que dizia e háquanto tempo Pa vinha planejandoisso.

Pus mãos à obra e anoteicom cuidado as coordenadas decada uma, tentando não pensarpara onde cada uma delas iria noslevar – sobretudo a minha. Entãoreparei em uma coisa. Tornei acontar os aros, e toquei o sétimo.O nome gravado nele era

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“Mérope”.– Nossa sétima irmã que

nunca chegou – falei, baixinho,perguntando-me por que cargasd’água Pa havia posto o nomedela na esfera quando agora jáera tarde demais para trazê-lapara casa algum dia.

Tantos mistérios, pensei,enquanto voltava para a casa. Eninguém para responder àsminhas perguntas.

De volta à cozinha com ascoordenadas, liguei o laptop ecomi outro croissant enquantoaguardava, frustrada, umaconexão de internet – que maisparecia ter saído de férias e

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deixado no seu lugar umasubstituta temporária e amadora.Quando a conexão enfim resolveufuncionar, pesquisei sites queusavam coordenadas para situarlocais e acabei optando peloGoogle Earth. Pensei com queirmã deveria começar e resolvi irpor ordem de idade, deixando,porém, as minhas coordenadaspor último. Digitei ascoordenadas de Maia e,perguntando-me se o site iriareconhecê-las, observei o globogirar, ficar mais próximo, eindicar uma localização precisa.

– Nossa, funciona mesmo –murmurei, fascinada.

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Passei uma hora frustrante,com uma conexão que não paravade cair, mas quando Claudiareapareceu na cozinha paracomeçar a preparar o almoço, eujá tinha conseguido anotar osprincipais dados de cada conjuntode coordenadas, exceto dasminhas.

Digitei-as e prendi arespiração por um tempointerminável enquanto ocomputador fazia sua mágica.

– Meu Deus! – murmureiquando li os detalhes.

– O quê? – perguntouClaudia.

– Nada – respondi depressa,

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anotando a localização nobloquinho ao meu lado.

– Vai querer almoçar, Ally?– Sim, seria ótimo, obrigada

– assenti, distraída, refletindosobre o fato de que o localapontado pela busca parecia serum museu.

Aquilo não fazia o menorsentido, mas, afinal de contas, eutambém não sabia que lógicatinham as coordenadas dasminhas irmãs.

Ergui os olhos bem na horaem que Tiggy entrou na cozinha;ela me abriu um sorrisoencantador.

– Somos só você e eu para

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almoçar?– É, parece que sim.– Que ótimo, não é? – disse

ela, flutuando em direção à mesa.Apesar de todas as suas

ideias espirituais esquisitas, aovê-la se sentar diante de mim,invejei sua paz interior – queprovinha de uma crençainabalável de que a vida era maisdo que a vida em si, como elagostava de dizer. Tiggy pareciacarregar todo o frescor das TerrasAltas escocesas na pele perfeita enos fartos cabelos ruivos, e suacalma se refletia nos suaves olhoscastanhos.

– Como você está, Ally?

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– Bem. E você?– Indo. Eu sinto ele ao meu

redor, sabe? Como... – Elasuspirou e passou a mão peloscachos lustrosos. – Como se eleainda estivesse aqui.

– É, Tiggy, mas infelizmenteele não está.

– É, mas só porque você nãoconsegue ver uma pessoa, issoquer dizer que ela não existe?

– Na minha cartilha, sim –respondi, ríspida, sem saber seestava com disposição para oscomentários esotéricos dela.

A única maneira de lidarcom a perda de Pa que euconhecia era aceitá-la o quanto

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antes.Claudia interrompeu nossa

conversa servindo uma saladacaesar.

– Há suficiente para todas,mas se ninguém mais vier, elaspodem comer no jantar.

– Obrigada. Aliás, eu anoteitodas as coordenadas e descobricomo localizá-las no GoogleEarth – falei, servindo-me desalada. – Quer saber a sua,Tiggy?

– Em algum momento vouquerer. Mas não agora. Enfim,será que isso importa?

– Para ser sincera, não sei.– Porque de onde quer que

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eu tenha vindo, foram Pa Salt eMa que cuidaram de mim e mecriaram para ser quem eu sou.Talvez eu pegue as informações e,caso um dia sinta necessidade deprocurar, resolva fazer isso. Eumeio que... – Ela suspirou, epercebi sua incerteza. – Nãoquero acreditar que vim denenhum outro lugar. Pa Salt é meupai e sempre vai ser.

– Entendo. Então, só porcuriosidade, onde você acha quePa Salt está, Tiggy? – pergunteiquando começamos a comer.

– Não sei, Ally. Mas elecom certeza não partiu, disso eutenho certeza.

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– Isso no seu mundo ou nomeu?

– E faz diferença? Bom, paramim pelo menos não faz –emendou ela antes que euconseguisse responder. – Nóssomos apenas energia. Assimcomo tudo que existe à nossavolta.

– Bem, acho que essa é umaforma de ver as coisas –retruquei, e eu mesma pude notaro cinismo na minha voz. – Sei queessas crenças funcionam paravocê, Tiggy. Mas, neste momento,logo após o funeral de Pa, elasnão servem para mim.

– Eu entendo. Mas o círculo

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da vida continua, e não só paranós, humanos, mas para a naturezatoda também. Uma rosadesabrocha e atinge o ápice desua beleza, depois morre, e outrana mesma roseira floresce no seulugar. E Ally... – Ela me olhou derelance e abriu um leve sorriso. –Eu estou com o pressentimento deque, apesar dessa notícia terrível,alguma coisa boa estáacontecendo com você nestemomento.

– É mesmo? – Olhei paraela, desconfiada.

– É. – Ela pousou a mãosobre a minha. – Aproveiteenquanto puder, está bem? Como

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você sabe, nada dura parasempre.

– É, eu sei – falei,subitamente na defensiva e mesentindo vulnerável com aquelecomentário certeiro. Mudei deassunto. – Mas e você, comoestá?

– Estou bem... – Ela pareciaestar tentando tranquilizar a simesma tanto quanto a mim. –Estou, sim.

– Ainda curtindo cuidar dosseus veados lá na reserva?

– Eu amo o meu trabalho. Éperfeito para mim, mesmo que eunão tenha um instante de sossego,com a falta de funcionários.

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Falando nisso, preciso mesmovoltar o mais rápido possível. Jáchequei os voos e vou emborahoje à tarde. Electra também vaipara o aeroporto comigo.

– Mas já?– Pois é, mas o que a gente

pode fazer aqui? Tenho certeza deque Pa preferiria que todas nóstocássemos a vida, em vez deficar choramingando pelos cantos.

– É, você tem razão –concordei. Então, pela primeiravez, meus pensamentos foramalém daquele terrível hiato, emdireção ao futuro. – Eu iaparticipar da Regata das Cícladesdaqui a alguns dias.

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– Então vá, Ally, sério –incentivou Tiggy.

– Talvez eu vá mesmo –murmurei.

– Então está bem. Tenho quefazer as malas e me despedir deMaia. De todas nós, acho que elafoi a mais afetada. Está arrasada.

– Eu sei. Tome, leve as suascoordenadas. – Entreguei-lhe afolha de papel na qual as haviaanotado.

– Obrigada.Observei-a se levantar e

então parar na porta da cozinha eolhar para mim com umaexpressão compreensiva.

– E lembre sempre que estou

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apenas a um telefonema dedistância, se precisar de mim naspróximas semanas.

– Obrigada, Tiggy. Podecontar comigo também.

Depois de ajudar Claudia atirar a mesa, subi novamente atémeu quarto, perguntando-me sedeveria ir embora de Atlantis.Tiggy tinha razão: não havia maisnada a fazer ali. E a ideia devoltar para o mar, para não dizeraos braços de Theo, me fezdescer outra vez para o térreocom o laptop e verificar se haviaalgum voo para Atenas nas 24horas seguintes. Quando entrei nacozinha, vi Ma em pé, diante da

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janela, de costas para mim,obviamente perdida empensamentos. Ela me ouviu entrare se virou, sorrindo, mas nãoantes de eu conseguir detectar atristeza fugidia em seu olhar.

– Oi, chérie. Tudo bem comvocê?

– Estou pensando se volto deavião para Atenas e participo daregata das Cíclades, como tinhaplanejado. Mas fico preocupadaem deixar você e as outrasmeninas aqui. PrincipalmenteMaia.

– Eu acho uma excelenteideia você ir competir, chérie.Tenho certeza de que é

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exatamente o que o seu pai terialhe dito para fazer. Não sepreocupe com Maia. Estou aquicom ela.

– Eu sei que está – falei,pensando em como, mesmo elanão sendo nossa mãe biológica,era impossível pensar em outrafigura materna que nos amasse enos apoiasse tanto.

Levantei-me, fui até ela e lhedei um abraço bem apertado.

– E lembre-se: estamostodas aqui para ajudar você,também.

Subi a escada e fui falar comElectra, para lhe passar suascoordenadas antes de ela ir

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embora. Quando bati à porta doquarto, ela abriu, mas não meconvidou para entrar.

– Oi, Ally. Estou na correria,fazendo as malas.

– Só vim trazer as suascoordenadas da esfera armilar.Aqui estão.

– Acho que eu não quero.Sério, Ally, qual o problema donosso pai? Parece que ele estájogando com a gente do além-túmulo – disse ela, soturna.

– Ele só queria que a gentesoubesse de onde veio, Electra,só para o caso de algum diaprecisarmos dessa informação.

– Então por que ele não fez

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como a maioria dos outros sereshumanos normais? Tipo escreveros fatos no papel, em vez de nossubmeter a uma estranha caça aotesouro genealógica? Meu Deus,ele sempre foi muito controladormesmo...

– Electra, por favor! Eleprovavelmente não queria revelarnada assim, na hora, caso a gentepreferisse não saber. Então sónos deixou informação suficientepara a gente descobrir sequisesse.

– Bom, eu não quero – disseela, friamente.

– Por que está com tantaraiva dele? – perguntei, com

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cautela.– Eu, eu não estou... – Seus

olhos cor de âmbar brilharam dedor e incompreensão. – Tá. Estou,sim. Eu... – Ela deu de ombros ebalançou a cabeça. – Não consigoexplicar.

– Bem, fique com issomesmo assim. – Sabendo porexperiência que não deveriainsistir mais, estendi-lhe oenvelope. – Não precisa fazernada com a informação.

– Obrigada, Ally. Desculpe.– Não tem problema. Tem

certeza de que você está bem,Electra?

– Eu... tenho. Estou bem.

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Agora tenho que fazer a mala.Nos vemos daqui a pouco.

A porta se fechou na minhacara, e fui embora sabendo muitobem que ela estava mentindo.

Nessa mesma tarde, Maia,Estrela, Ceci e eu descemos até odeque para nos despedirmos deElectra e Tiggy. Maia tambémlhes entregou suas citaçõestraduzidas.

– Acho que Estrela e eu

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também vamos embora hoje maistarde – comentou Ceci quandoestávamos subindo de volta paraa casa.

– Sério? Não podemos ficarmais um pouco? – perguntouEstrela, chorosa.

Como sempre, reparei ocontraste físico entre as duas:Estrela, alta e magra quase aponto de parecer esquelética,dona de cabelos louro-platinadose de uma pele branca feito neve; eCeci, morena e atarracada.

– De que adianta? Pa nãoestá mais aqui, a gente já faloucom o advogado, e precisamoschegar a Londres o quanto antes

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para encontrar um lugar paramorar.

– Tem razão – disse Estrela.– O que você vai fazer em

Londres enquanto Ceci estiverestudando arte? – perguntei.

– Ainda não sei muito bem –respondeu Estrela, olhando paraCeci.

– Está pensando em fazer umcurso da Cordon Bleu, não é,Estrela? – respondeu Ceci no seulugar. – Ela cozinha superbem,sabia?

Maia e eu trocamos um olharpreocupado enquanto Cecichamava Estrela com a intençãode verificar os voos para

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Heathrow naquela noite.– Não precisa nem dizer

nada – falou Maia com umsuspiro depois de as duas saírem.– Eu sei.

Fomos caminhando emdireção à varanda conversandosobre nossa preocupação com orelacionamento entre Estrela eCeci. Elas sempre haviam sidoinseparáveis ao extremo. Minhaúnica esperança era que, quandoCeci se concentrasse no curso dearte, as duas se desgrudassem umpouco.

Reparei em como Maiaestava pálida e me dei conta deque ela não havia almoçado.

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Disse-lhe que se sentasse navaranda e fui até a cozinha pedira Claudia que preparasse algopara comer. Ela me lançou umolhar compreensivo e começou afazer uns sanduíches, enquantovoltei para ficar com Maia.

– Maia, não quero serenxerida, mas você abriu suacarta ontem à noite? – indaguei,cuidadosa.

– Abri, sim. Bom, naverdade foi hoje de manhã.

– E está claro que ficouaborrecida.

– No começo, sim, masagora estou bem, Ally. Sério –disse ela. – E você?

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Seu tom havia se tornadoseco, e eu sabia que aquilosignificava que eu devia parar deinsistir.

– Sim, eu abri a minha –afirmei. – Era linda e me fezchorar, mas também me deixouum pouco mais animada. Falandonisso, passei a manhãpesquisando as coordenadas nainternet. Agora sei exatamente deonde cada uma de nós veio. Euma coisa eu posso dizer: temalgumas surpresas na lista –acrescentei. Claudia trouxe umatravessa de sanduíches e acolocou sobre a mesa antes de seretirar depressa.

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– Você sabe exatamente ondenós nascemos? Onde eu nasci? –indagou Maia, hesitante.

– Sim, ou pelo menos ondePa nos encontrou – esclareci. –Você quer saber, Maia? Eu possocontar ou posso deixá-lapesquisar sozinha.

– Eu... não tenho certeza.– Tudo que posso dizer é o

seguinte: Pa conheceu mesmomuitos lugares – foi a brincadeirasem graça que consegui fazer.

– Então você sabe de ondeveio? – perguntou ela.

– Sei, mesmo que ainda nãofaça sentido.

– E as outras? Você disse a

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elas que sabe onde nasceram?– Não, mas expliquei como

procurar as coordenadas noGoogle Earth. Quer que eu contea você também? Ou prefere sósaber onde Pa a encontrou? –sugeri.

– No momento, eu realmentenão sei – disse ela, baixando oslindos olhos.

– Bem, como eu falei, é bemfácil pesquisar.

– Então, provavelmente, éisso que eu vou fazer quandoestiver pronta – disse ela.

Ofereci-me para anotar asinstruções de como pesquisar ascoordenadas, mas duvidava que

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Maia algum dia fosse ter coragemde procurá-las.

– Você teve tempo detraduzir aquelas citações emgrego gravadas na esfera armilar?– indaguei.

– Tive. Traduzi todas.– Bom, eu gostaria muito de

saber o que Pa escolheu paramim. Pode me dizer, por favor?

– Não me lembroexatamente, mas posso voltar aopavilhão e anotar para você –disse Maia.

– Então, pelo visto, nós duassomos capazes de oferecer àsoutras irmãs as informações deque elas precisam se quiserem

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explorar seu passado.– Sim, mas talvez seja cedo

demais para qualquer uma de nósdecidir se vai querer seguir aspistas que Pa nos deixou.

– Talvez. – Suspirei,pensando em Theo e nas semanasque tinha pela frente. – Além domais, tenho a Regata das Cícladesque vai começar em breve, e tereique ir embora daqui assim quepossível para me juntar àtripulação. Sinceramente, Maia,depois do que vi alguns diasatrás, voltar para o mar vai sercomplicado.

– Faço ideia. Mas você vaificar bem, tenho certeza – disse

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ela, me tranquilizando.– Tomara. Para ser sincera, é

a primeira vez que ficoapreensiva desde que comecei acompetir profissionalmente.

Dizer isso em voz alta paraminha irmã mais velha foi umalívio. Nos útimos dias, sempreque eu pensava nas Cíclades, aúnica imagem que me vinha àmente era a de Pa deitado em seucaixão no fundo do mar.

– Ally, há anos você sededica à vela, então não se deixeintimidar. Faça isso por Pa. Elenão iria querer que você perdessea confiança em si mesma –incentivou Maia.

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– Tem razão. Mas você vaificar bem aqui sozinha?

– É claro que vou. Por favor,não se preocupe comigo. Eu tenhoMa e o meu trabalho. Vou ficarbem.

Enquanto ajudava Maia aacabar com os sanduíches,consegui que ela prometessemanter contato e perguntei segostaria de velejar comigo no fimdo verão, embora soubesse queela provavelmente não aceitaria.

Ceci apareceu na varanda.– Conseguimos dois lugares

em um voo para Heathrow.Christian vai nos levar aoaeroporto daqui a uma hora.

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– Então vou ver se consigoum voo para Atenas e vou comvocês. Maia, não se esqueça deanotar a citação para mim, estábem? – pedi, e saí para pegar meulaptop.

Depois de encontrar um voode última hora para Atenas quesairia no fim do dia, fiz as malasàs pressas. Ao verificar meuquarto para me certificar de queestava levando tudo, dei com osolhos na flauta, aninhada dentrode seu estojo na prateleira. Faziatempo que não era aberta. Porimpulso, e pensando em como Pahavia mencionado o instrumentoem sua carta, peguei-a e decidi

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levá-la comigo. Theo tinha ditoque gostaria de me ouvir tocar e,talvez, depois de treinar umpouco, eu até conseguisse mesmotocar. Então desci para o térreoem busca de Ma para medespedir.

Ela me deu um abraçoapertado e dois beijos cálidos nasbochechas.

– Cuide-se, chérie, porfavor, e venha me visitar quandopuder.

– Virei sim, Ma. Prometo –falei.

Então Maia e eu andamosjuntas até o deque.

– Boa sorte na regata – disse

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minha irmã, entregando-me oenvelope com a tradução dacitação que Pa tinha escolhidopara mim.

Dei-lhe um último abraço eembarquei na lancha, onde Ceci eEstrela já estavam me esperando.Nós três acenamos para Maiaenquanto Christian se afastava dodeque. Quando avançamos lagoadentro, pensei em Pa Salt medizendo que nunca deveríamosolhar para trás. Sabia, no entanto,que faria isso de novo e de novo,e olharia para o que tinha sido ejá não era mais.

Afastei-me de Ceci e Estrelae fui até a popa da lancha ainda

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com o envelope apertado na mão,sentindo que era adequado ler acitação de Pa ali, no Lago Léman,onde ele e eu tínhamos velejadojuntos tantas vezes. Abri oenvelope e tirei o pedaço depapel lá de dentro.

Em momentos de fraqueza,você vai encontrar sua maiorforça.

À medida que Atlantisdiminuía de tamanho ao longe e acasa desaparecia entre asárvores, implorei para que aspalavras de Pa penetrassem meuespírito e me ajudassem aencontrar a coragem de que euprecisava para seguir em frente.

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Theo tinha me mandado umamensagem dizendo que estaria àminha espera no aeroporto deAtenas. Quando saí pelo portãodo desembarque, ele veio naminha direção parecendo ansiosoe me deu um abraço.

– Estava tão preocupadocom você, querida... Está tudobem? Você deve estar arrasada,coitadinha. E emagreceu –acrescentou ele, apalpando

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minhas costelas.– Estou bem – afirmei, com

convicção, sentindo seu cheiromaravilhoso e reconfortante.

Ele pegou minha mochila e,juntos, saímos para o calor escuroe sufocante de uma noite de julhoem Atenas.

Tomamos um táxi cujosbancos de vinil colavam na pele eque fedia a cigarro; pelo visto,estávamos a caminho de um hotelno porto de Faliro, de ondepartiria a Regata das Cícladesdali a 24 horas.

– Estou falando sério: se nãoestiver com ânimo, a gente se virasem você, mesmo – disse Theo

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enquanto percorríamos as ruas dacidade.

– Não sei se devo interpretarisso como um elogio ou como uminsulto – retruquei.

– Um elogio, com certeza,levando em conta que você éimportante para a equipe. Mascomo estamos falando de você,que eu amo, não quero que sesinta pressionada.

Eu amo você. Toda vez queele dizia essas palavras comnaturalidade, eu sentia umaemoção especial. E agora eleestava ali, do meu lado,segurando minha mão e repetindoa mesma coisa. Eu também o

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amava por sua sinceridade, porsua franqueza e pelo fato de elenão fazer joguinhos. Como elemesmo me dissera certa vezdurante aqueles diasmaravilhosos a bordo do Netuno,antes de eu ficar sabendo sobre amorte de Pa Salt: se eu partisse oseu coração, ele simplesmenteteria que encontrar outro para pôrno lugar.

– Sério, eu sei que é issoque Pa gostaria que eu fizesse.Voltar para bordo de um veleiro epara a minha vida, em vez deficar choramingando pelos cantos.E vencer, é claro.

– Ally. – Ele apertou minha

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mão. – A gente vai fazer isso porele. Eu prometo.

Na manhã seguinte, quandoembarquei no Hanse junto com orestante da tripulação, os outrostambém pareciam tomados poruma verdadeira ânsia de vencer.Fiquei tocada com o fato de todostentarem tornar minha vida o maisfácil possível. Em matéria dedificuldade, as Cíclades nãochegavam nem aos pés das outras

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regatas offshore das quais eu játinha participado: eram oito diasno total, mas com um intervalo de24 horas e um dia de descanso emcada ilha pela qual passássemos.

Theo reparou que eu tinhalevado a flauta.

– Por que não a leva abordo? Você pode fazer umaserenata para nos incentivar –sugeriu ele.

Enquanto chispávamos pelomar sob o glorioso poente donosso primeiro dia de regata,levei o instrumento aos lábios esorri para Theo antes de tocaruma versão de sopro improvisadada Fantasia de Thomas Tallis,

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música que se tornara famosa porcausa do épico sobre navegaçãoMestre dos mares. Do leme, Theoolhou para trás e sorriu,reconhecendo a brincadeira semdizer nada, ao mesmo tempo queentrávamos no porto de Milos.Todos os rapazes me aplaudiramcom elegância e tive a sensaçãode ter prestado minha pequenahomenagem a Pa Salt.

Ganhamos a primeira pernada regata com folga, chegamos emterceiro na segunda perna e emsegundo na terceira. Ficamosempatados no primeiro lugar comuma equipe grega.

Na penúltima noite da

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competição, estávamos no portode Finikas, na pequena e idílicailha grega de Syros, onde oshabitantes tinham preparado umacomemoração para todos osparticipantes. Depois do jantar,Theo reuniu a tripulação.

– Senhores... e senhora, eusei que vocês todos vão pensarque eu sou um estraga-prazeres,mas seu capitão está ordenandoque vocês durmam cedo.Enquanto a concorrência está seacabando... – Ele meneou acabeça em direção à tripulaçãogrega, já meio embriagada que,abraçada pelos ombros, dançavauma coreografia típica ao som de

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um bouzouki. – Nós vamosdormir nosso sono reparador eacordar amanhã renovados eprontos para ganhar. Certo?

Ouviu-se um ou outrogrunhido, mas todos obedecerame retornaram ao barco e às suasrespectivas cabines.

Devido à proximidade emque vivíamos com o resto datripulação, Theo e eu tínhamoscombinado um jeito de podermoster alguns momentos a sós à noitesem levantar suspeitas. Como euera a única mulher, tinha meupróprio compartimento apertadona proa do veleiro, enquantoTheo dormia no banco do

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compartimento que servia decozinha e área de estar.

Eu esperava até ouvir osoutros usarem o pequeno cubículoque continha uma pia e um vasosanitário. Então, quando osilêncio caía, subia até em cimano escuro, onde aquela mãoquentinha estava sempre à esperapara me puxar para si. Nóspassávamos cinco minutostrocando carinhos, nervosos, feitodois adolescentes com medo deserem flagrados pelos pais.Então, para ter um álibi casoalguém me ouvisse andando pelobarco, eu descia de novo até acozinha, abria o cooler, pegava

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uma garrafa d’água, voltava paraminha cabine e fechava a portacom alarde. Estávamosconvencidos de estar executandoessa farsa tão bem que ninguémna tripulação teria a menor ideiado que estava acontecendo entrenós. Quando ele me puxou parasi, na véspera da final da regata,senti que seus beijos de boa-noiteestavam mais apaixonados do queo normal.

– Nossa, espero que vocêesteja disposta a passar pelomenos 24 horas na cama comigopara compensar toda a frustraçãoque tenho sofrido nesses últimosdias – grunhiu ele.

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– Sim, meu capitão. Como osenhor quiser. Mas não é justomandar o restante da tripulaçãopara a cama cedo e depois ocapitão desobedecer às própriasordens – sussurrei em seu ouvidoao mesmo tempo que retirava suamão boba do meu seio esquerdo.

– Você tem razão, comosempre. Então vai, minha Julieta,some da minha vista, ou não voumesmo conseguir conter minhaluxúria por você.

Aos risos, dei-lhe um últimobeijo e me desvencilhei do seuabraço.

– Eu amo você. Durma bem.– Eu também amo você –

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articulei em resposta sem emitirsom algum.

Mais uma vez, a estratégiadisciplinada de Theo rendeufrutos. Foi tenso ficar ombro aombro com a tripulação gregadurante a última perna da regata,mas, como comentou ele em tomtriunfante no sábado, aopassarmos pela linha de chegadano porto de Vouliagmeni uns bonscinco minutos antes dos gregos,

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no final das contas o ouzo acaboulevando a melhor. Na cerimôniade encerramento, o restante datripulação pôs sobre a minhacabeça a coroa da vitória feita defolhas de louro, os flashesdispararam e todo mundo tomoubanho de champanhe. Quandoalguém me estendeu uma garrafapara eu beber, levantei-a e, emsilêncio, disse a Pa Salt queaquela vitória era para ele. Emandei para o céu um fervoroso“Estou com saudades”.

Depois do jantar decomemoração, Theo me deu amão na mesa e me puxou para queeu me levantasse.

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– Em primeiro lugar, umbrinde a Ally. Considerando ascircunstâncias, acho que todospodemos concordar que ela foiincrível.

Os rapazes deram vivas, eseu tom caloroso e sincero fezmeus olhos se encherem delágrimas.

– Em segundo lugar, gostariaque todos vocês considerassem apossibilidade de fazer parte daminha tripulação na regataFastnet, em agosto. Vou comandaro Tigresa em sua regata inaugural.Talvez alguns de vocês já tenhamouvido falar nesse veleiro... é ummodelo novinho, que acabou de

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ser lançado. Eu já o vi, e possodizer sem sombra de dúvidas queele vai nos conduzir a mais umavitória. O que me dizem?

– O Tigresa? – indagou Rob,animado. – Estou dentro!

O resto dos rapazesconcordou num coroentusiasmado.

– Estou incluída no convite?– perguntei.

– Claro que está, Ally. –Com isso, Theo se virou paramim, me abraçou e me deu umbeijão na boca.

O beijo gerou uma novarodada de aplausos enquanto eume soltava do abraço, vermelha

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até a raiz dos cabelos.– E essa era a última coisa

que eu ia anunciar. Ao queparece, Ally e eu somos um casal.Então, se alguém tem algumproblema com isso é só avisar,certo?

Vi todos os rapazesarquearem as sobrancelhas comum ar de tédio.

– Notícia velha – comentouRob com um suspiro.

– É mesmo... Grande coisa –disse Guy.

Encaramos com surpresa orestante da tripulação.

– Vocês já sabiam? –perguntou Theo.

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– Desculpe, capitão, mas agente passou os últimos diasamontoado. E como ninguém maisteve o prazer de pôr a mão nabunda da Ally sem levar um tapa,nem de ganhar um beijo e unsamassos de boa-noite, nãoprecisava ser nenhum gênio paraentender – disse Rob. – Todomundo já sabe há séculos. Foimal.

– Ah – foi tudo que Theoconseguiu dizer enquanto meapertava com mais força.

– Arrumem logo um quarto!– gritou Guy, enquanto o restantedos rapazes fazia comentáriosmaliciosos quaisquer.

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Theo me deu outro beijo e euquis que o chão se abrisse parame esconder ao perceber que oamor podia mesmo ser cego.

Então arrumamos “umquarto” em um hotel ali mesmoem Vouliagmeni. Theo cumpriusua palavra e nos manteve maisdo que ocupados por 24 horas.Deitados na cama, conversamossobre os planos para a Fastnet eoutros assuntos.

– Mas, me diga, você estádisponível para embarcar comigono Tigresa?

– Agora estou, sim.Normalmente, em agosto euestaria no Titã, passando as férias

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anuais com Pa Salt e minhasirmãs... – Engoli em seco eprossegui depressa. – Aí, emsetembro, se eu passar na fasefinal das eliminatórias, esperocomeçar a treinar com a equipesuíça para a Olimpíada dePequim.

– Eu também estarei lá, comos americanos.

– Tenho certeza de que vaiser um adversário e tanto, e nãoposso deixá-lo vencer –provoquei.

– Bem, obrigado, bela dama.Espero estar à altura do desafio.– Theo me fez uma mesurafingida. – Mas e os próximos

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dias? Eu vou tirar fériasmerecidas na casa de veraneio daminha família. Fica a poucashoras daqui por mar. Depois, éclaro, vou para a ilha de Wightme preparar para a Fastnet. Querir comigo?

– Para as férias ou aFastnet?

– Os dois. Mas pensandobem, sei que você é umavelejadora experiente, mas aFastnet são outros quinhentos. Ésério... Eu participei da últimaedição dessa regata, há dois anos,e quase perdemos um dos nossostripulantes quando estávamosdando a volta na Fastnet Rock. O

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vento por pouco não jogou Mattpara fora do barco. É uma regataperigosa, e... – Ele inspiroufundo. – Para ser sincero, agoraestou começando a me perguntarse foi uma boa ideia sugerir quevocê fizesse parte da tripulação.

– Por quê? Porque eu soumulher?

– Pelo amor de Deus, Ally,chega desse papo! É claro quenão é por causa disso. É porqueamo você e se alguma coisaacontecesse, eu não conseguiriasuportar a culpa. Mas, enfim,vamos pensar nisso nos próximosdias, está bem? De preferênciabebendo alguma coisa em uma

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varanda com vista para o mar.Amanhã de manhã tenho quedevolver o Hanse para o dono noporto, o mesmo em que deixei oNetuno ancorado, então a gentepoderia zarpar direto. O queacha?

– Na verdade, eu estavapensando que deveria ir para casa– falei. – Ficar com Ma e Maia.

– Se achar que deve, eu vouentender perfeitamente. Embora,sendo egoísta, eu adoraria sevocê viesse comigo. Estáparecendo que o ano que vem vaiser uma loucura para nós dois.

– Eu quero muito ir, masprimeiro preciso ligar para Ma e

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me certificar de que está tudobem, aí posso decidir.

– Por que não faz issoenquanto eu tomo umachuveirada? – disse ele, dando-me um beijo no alto da cabeça,pulando da cama e indo emdireção ao banheiro.

Quando liguei para Ma, elame garantiu que estava tudo bemem Atlantis e que não haviaabsolutamente nenhumanecessidade de eu voltar.

– Tire umas férias, chérie.Maia decidiu passar um tempofora, então não vai estar aqui,mesmo.

– Ah, é? Estou surpresa –

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comentei. – Mas tem certeza deque não está se sentindo sozinhasem mais ninguém em casa? Juroque dessa vez meu celular vaificar ligado o tempo todo, casoprecise de mim.

– Eu estou bem e não vouprecisar, chérie – respondeu ela,estoica. – Infelizmente, o pior jáaconteceu.

Encerrei a ligação e me sentisubitamente triste, como toda vezque me permitia pensar que Panão estava mais com a gente. MasMa tinha razão. O pior já tinhaacontecido. E pela primeira vezdesejei pertencer a algumareligião com regras estabelecidas

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para lidar com a morte. Apesarde antigamente considerar essasregras arcaicas, agora eu via queeram um ritual criado para ajudaras pessoas a atravessarem a fasemais sombria da vida – a perdade alguém.

Na manhã seguinte, Theo eeu saímos do hotel e fomos a péaté o porto.

Depois de um drinquecomemorativo a bordo com odono do Hanse – que, encantadocom a vitória, já falava com Theosobre futuras regatas –,caminhamos pelo porto e subimosa bordo do Netuno. Antes dezarpar, Theo mapeou nosso

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trajeto no sistema de navegação.Recusou com veemência me dizerpara onde estávamos indo, e,enquanto ele ocupava o leme maisuma vez e conduzia o barco parafora do porto de Vouliagmenirumo ao mar aberto, ocupei-meem encher a geladeira e o coolercom cerveja, água e vinho.

Por mais que eu tentasse meconcentrar na beleza da paisagemmarítima conforme velejávamospelas calmas águas azul-turquesa,a dicotomia de emoções quehavia experimentado duranteminha última viagem no Netunovoltou feito uma enxurrada.Peguei-me pensando que havia

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semelhanças entre Pa Salt e meunamorado: ambos gostavam demistério e com certezaapreciavam estar no controle dasituação.

Bem na hora em que euestava me perguntando se haviame apaixonado por uma figurapaterna, senti o Netuno diminuir avelocidade e ouvi a âncorabaixar. Instantes depois, quandoTheo apareceu no convés ao meulado, decidi não compartilharcom ele meus últimospensamentos. Do jeito que elegostava de analisar tudo, oassunto seria interminável.

Enquanto tomávamos uma

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cerveja e comíamos uma saladade queijo feta e azeitonas frescasque eu havia comprado em umabarraquinha no porto, expliqueimelhor para Theo a história daesfera armilar com suas citaçõese coordenadas gravadas. E faleisobre a carta que Pa Salt haviame deixado.

– Bom, com certeza pareceque ele estava bem preparado.Isso deve ter exigido algumplanejamento.

– Ah, sim, ele era bem essetipo de pessoa. Sempreorganizava tudo de formaperfeita.

– Pelo visto era o meu tipo

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de pessoa – comentou Theo, numreflexo dos pensamentos que eutivera antes. – Também já fiz meutestamento e deixei instruçõespara o meu funeral.

– Não diga uma coisa dessas– falei, com um calafrio.

– Desculpe, Ally, mas todovelejador leva uma vida cheia deperigos, e nunca se sabe o quepode acontecer.

– Enfim, tenho certeza deque Pa teria gostado muito devocê. – Para mudar logo deassunto, olhei para o relógio. –Não seria melhor continuarmos aviagem para qualquer que seja onosso destino?

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– Sim, daqui a pouco. Querocalcular perfeitamente a hora danossa chegada. – Theo abriu umsorriso misterioso. – Quer nadarum pouco?

Três horas mais tarde, ao vero poente tomar o céu com umintenso brilho alaranjado acimade uma ilha minúscula, refletindoas casas caiadas que margeavamo litoral, entendi por que elequisera esperar.

– Viu? Não é simplesmenteperfeito? – perguntou ele numsussurro ao entrarmos no pequenoporto, com uma das mãos no lemee a outra em volta da minhacintura.

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– É – concordei, observandoa maneira como os raios do pôrdo sol haviam penetrado asnuvens como uma gema de ovoque libera seu conteúdo após serestourada. – Pa sempre disse queos poentes gregos eram os maislindos do mundo.

– Então isso é mais umacoisa sobre a qual teríamosconcordado. – Theo me deu umbeijo carinhoso no pescoço.

Considerando ospensamentos que tivera maiscedo, resolvi que, enquantodurassem nossas férias,definitivamente manteriadistância das preferências e

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implicâncias de Pa Salt.Entramos no porto e um

jovem moreno se apressou emsegurar a corda que lhe lanceipara atracar o veleiro.

– Agora você vai me dizeronde a gente está? – perguntei aTheo.

– Faz alguma diferença?Você vai acabar descobrindo. Porenquanto, vamos chamar apenasde “Algum Lugar”.

Imaginando que fôssemos terque subir a encosta íngremecarregando nossas mochilas,fiquei surpresa quando Theo medisse para deixá-las no barco.Depois de trancar bem a cabine,

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desembarcamos e Theo deualguns euros ao rapaz pararecompensá-lo pela ajuda. Entãome pegou pela mão e me conduziupelo porto até uma fila demobiletes. Vasculhando o bolso,ele encontrou uma chave edestrancou um cadeado, queliberou o emaranhado de pesadascorrentes de metal enroladas emvolta de uma delas.

– Os gregos são um povoencantador, mas a situaçãoeconômica atual é bemdesesperadora, de modo que émelhor se precaver. Não querochegar aqui um dia e descobrirque roubaram as duas rodas. Pode

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subir – disse ele, e eu o fiz comrelutância, desanimada.

Eu odiava essas motonetas.No ano sabático que tirara entre aescola e faculdade, seguira oconselho de Pa Salt e partira paraconhecer o mundo com duasamigas, Marielle e Hélène.Começamos pelo ExtremoOriente e fomos à Tailândia, aoCamboja e ao Vietnã. De volta àEuropa, onde eu havia arrumadoum emprego de verão comogarçonete na ilha de Kynthos,percorremos a Turquia a bordo demobiletes alugadas. A caminho doaeroporto de Bodrum paraKalkan, Marielle avaliou mal uma

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curva fechada e traiçoeira, ebateu.

Encontrar o corpoaparentemente sem vida de minhaamiga no meio da vegetaçãorasteira do morro e em seguidaficar parada no meio da estrada,desesperada para que algum carropassasse e nos ajudasse foi umasituação que eu nunca tinhaconseguido esquecer.

Como a estrada continuaradeserta, eu acabara recorrendo aocelular. Liguei para a únicapessoa em que consegui pensarque saberia o que fazer. Expliqueia Pa Salt o que tinha acontecido eonde, e ele me disse para não me

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desesperar, que a ajuda estava acaminho. Meia hora de agoniamais tarde, um helicópteroapareceu com um piloto e umparamédico. Nós três fomoslevadas para um hospital emDalaman. Marielle sobreviveucom a pélvis estilhaçada e trêscostelas quebradas, mas apancada na cabeça até hoje lhecausa fortes enxaquecas.

Nessa noite, na garupa deTheo, depois de nunca mais terchegado perto de uma motonetadesde o acidente de Marielle,senti um frio no estômago.

– Preparada? – indagou ele.– Tanto quanto jamais estarei

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– murmurei em resposta,apertando sua cintura com os doisbraços como se fossem um torno.

Enquanto começávamos asubir as ruas estreitas de “AlgumLugar”, decidi que, se Theo fosseum daqueles homens imprudentesque gostam de impressionar aoguiar uma moto, pediria a ele queparasse e me deixasse saltar.Mesmo não sendo desse tipo,fechei os olhos enquantodeixávamos o porto para trás eseguíamos por uma estradaíngreme e poeirenta. Depois dealgum tempo e de uma subida quepareceu durar uma eternidade –mas que na verdade deve ter

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levado menos de quinze minutos–, senti quando ele freou e amobilete se inclinou para um doslados, então ele pousou um pé nochão e desligou o motor.

– Pronto, chegamos.– Que bom.Abri os olhos, trêmula de

alívio, e me concentrei em descerda mobilete.

– Não é lindo? – perguntouele em tom de admiração. – Avista da subida é espetacular, maseu acho que esta aqui é a melhorde todas.

Como eu tinha passado asubida inteira de olhos fechados,não sabia dizer nada sobre a

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vista. Então ele pegou minha mãoe me conduziu por um gramadoáspero e ressecado. Oliveirasmuito antigas coalhavam o terrenoem declive, que descia em ânguloacentuado até o mar lá embaixo.Assenti concordando que eralindo, sim.

– Para onde estamos indo? –perguntei, enquanto ele meconduzia pelo olival.

Não estava vendo casanenhuma na nossa frente. Só haviaum celeiro velho, provavelmentepara as cabras.

– Para lá. – Ele apontou parao estábulo e se virou para mim. –Lar doce lar. Não é incrível?

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– É... eu...– Ally, você está muito

pálida. Está se sentindo bem?– Estou – garanti a ele no

mesmo instante em que enfimchegamos ao estábulo, e meperguntei qual de nós dois nãotinha entendido direito. Se aquiloali de fato era o seu “lar”, mesmoque eu tivesse que descer noescuro cada quilômetro daquelaencosta, era isso que eu faria.Não passaria a noite ali nem porum decreto.

– Sei que agora parece umcasebre, mas eu comprei fazpouco tempo e queria que vocêfosse a primeira a ver,

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principalmente na hora do pôr dosol. Sei que precisa de muitasobras, e é claro que oregulamento de construção poraqui é bem rígido – continuou ele,abrindo a porta de madeira cheiade farpas para entrarmos.

Pelo telhado, à luz docrepúsculo, pude ver as primeirasestrelas que começavam adespontar no imenso buracoaberto lá em cima. O interiortinha um cheiro forte de cabra, oque fez meu estômago já afetadose revirar outra vez.

– O que acha? – perguntouele.

– Eu acho que, como você

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falou, a vista é linda.Enquanto eu estava ali em

pé, ouvindo Theo explicar quehavia contratado um arquitetopara planejar uma cozinha bemaqui, uma sala de estar grandelogo ali e ainda uma varanda comvista para o mar, maneei acabeça, impotente, e cambaleeiaté lá fora, sem conseguir maissuportar o cheiro de cabra. Corripelo chão áspero de terra batida econsegui dobrar a esquina doceleiro antes de me curvar equase vomitar.

– O que foi, Ally? Estápassando mal outra vez?

Theo logo apareceu do meu

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lado e me amparou com os braçosenquanto eu balançava a cabeça,consternada.

– Não, sério, eu estou bem.É só... é que...

E então me sentei na grama edesatei a chorar feito umacriança. Contei-lhe sobre oacidente de mobilete, falei dasaudade que estava sentindo domeu pai e de como lamentava ofato de ele estar me vendo tãochateada outra vez.

– Olhe, quem precisa pedirdesculpas sou eu. É tudo culpaminha. É claro que você estáexausta por causa da regata e dotrauma da morte do seu pai. Você

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transmite uma impressão tão boade ser forte que eu não soubeajudá-la, logo eu, um homem quegosta de se gabar por ser capazde decifrar os outros comoninguém. Vou ligar para um amigoe dizer para ele vir nos buscar decarro agora mesmo.

Cansada demais paradiscutir, fiquei sentada na gramaobservando Theo se levantar efazer uma ligação no celular. Osol agora estava sumindo no marlá embaixo e, à medida que fui meacalmando, concluí que Theotinha razão: a vista era mesmo detirar o fôlego.

Dez minutos depois,

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prostrada, fui conduzida morroabaixo em um Volvo muito velhopor um homem igualmente velhoque Theo me apresentourapidamente como Kreon,enquanto ele nos seguia namobilete. Na metade da descida,o carro dobrou à direita e pegououtra estrada poeirenta eesburacada, que mais uma vezparecia não levar a lugar nenhum.Dessa vez, porém, quandochegamos ao fim, vi as luzes deboas-vindas de uma linda casaempoleirada bem na beirada deum penhasco.

– Sinta-se em casa, querida– disse Theo, quando entramos

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num hall espaçoso. Uma mulherde meia-idade e olhos escurosapareceu e o abraçoucalorosamente, murmurandopalavras carinhosas em grego. –Esta é Irene, nossa governanta –explicou ele. – Ela vai lhemostrar seu quarto e preparar umbanho de banheira para você. Voudescer até o porto com Kreonpara pegar nossas coisas nobarco.

A banheira, no fim dascontas, ficava em uma varandaque, assim como o restante dacasa, era escavada nas rochasirregulares que desciam íngremespela encosta do morro até o mar

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que batia lá embaixo. Depois deme deliciar em um banho de águaperfumada e cheia de espuma, fuiaté o quarto lindo e arejado.Depois saí para explorar a casa eencontrei uma sala de estarmobiliada com muito bom gosto,que se abria para uma varandaprincipal imensa, com uma vistaespetacular e uma piscina infinitaque nem um competidor olímpicoteria esnobado. Concluí queaquela casa era um pouco comoAtlantis, só que suspensa no ar.

Pouco depois, enrolada emum roupão de algodão macio quehavia encontrado sobre a cama,sentei-me em uma das

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confortáveis poltronas davaranda. Irene apareceu com umagarrafa de vinho branco e duastaças.

– Obrigada.Fiquei bebericando enquanto

admirava a escuridão salpicadade estrelas, aproveitando o luxodaquelas acomodações depois devários dias no mar. Agoratambém sabia que, quandolevasse Theo para conhecerAtlantis, ele ficaria totalmente àvontade. Muitas vezes, quando eulevava alguma amiga do colégiointerno para passar uns dias lá ouentão velejar no Titã, via suapersonalidade gregária ser

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esmagada, tamanho o assombroao ver como nós vivíamos. Entãoela ia embora e, na vez seguinteem que a encontrava, era como seirradiasse algo que eu agoraimagino ser animosidade, e anossa amizade nunca mais voltavaa ser como antes.

Felizmente, com Theo nãohaveria nenhum dessesproblemas. Estava claro que afamília dele era tão bem de vidaquanto a minha. Ri ao pensar quenós dois passávamos no mínimotrês quartos da vida dormindo emcamas duras dentro de cabinesabafadas e nos considerávamoscom sorte quando o único

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chuveiro apertado produzia umfilete de água, fosse ela quente oufria.

Senti a mão de alguém nomeu ombro e um beijo no rosto.

– Oi, meu amor. Está sesentindo melhor?

– Sim, muito. Obrigada.Nada como um banho de banheiraquentinho depois de alguns diasde regata.

– Verdade – concordouTheo, servindo-se do vinho esentando-se diante de mim. –Daqui a pouco vou fazer a mesmacoisa. E, mais uma vez, Ally, meperdoe. Sei que posso ser bemteimoso quando estou em uma

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missão. Mas eu queria muitomostrar a você minha casa nova.

– Não tem problema, sério.Tenho certeza de que vai ficarincrível quando estiver pronta.

– Não tão incrível quantoesta, claro, mas pelo menos vaiser minha. Às vezes isso é tudoque importa, não? – completouele, dando de ombros.

– Para ser sincera, nuncapensei em ter uma casa só minha.Eu viajo tanto competindo quecomprar uma casa parece inútilquando posso simplesmentevoltar para Atlantis. E nós,velejadores, ganhamos tão poucoque eu não poderia comprar

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grande coisa, mesmo.– Por isso comprei um

estábulo de cabras – concordouTheo. – Mas, apesar disso, não hácomo negar que nós dois sempretivemos uma rede de segurançapara nos amparar em caso denecessidade. Pessoalmente, eupreferiria morrer de fome do quepedir dinheiro ao meu pai. Oprivilégio tem seu preço, vocênão acha?

– Pode ser, mas duvido quealguém sinta pena de mim ou devocê.

– Não estou sugerindo quesejamos dignos de pena, mas,apesar de este nosso mundo

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moderno materialista pregar ocontrário, não acho que odinheiro seja capaz de resolvertodos os problemas. Veja meupai, por exemplo. Ele inventouum chip para computadores que otornou multimilionário aos 35anos, mesma idade que eu tenhoagora. Durante toda a minhainfância, adorava me contar quetivera que dar duro quando joveme me dizer que eu precisavaentender a sorte que eu tinha. Éclaro que a experiência dele nãofoi – nem é – a minha, porque eufui criado com dinheiro. É quasecomo um círculo que se fecha:meu pai não tinha nada, e isso o

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inspirou a fazer o que pudessecom a sua vida, enquanto euostensivamente sempre tive tudo,mas ele fez eu me sentir culpadopor isso. Então passei a vidainteira tentando me virar sem aajuda dele, sempre duro e com asensação de nunca tercorrespondido às suasexpectativas. Com você foi assimtambém? – indagou ele.

– Não, embora Pa Salt tenhanos ensinado o valor do dinheiro.Ele sempre dizia que tínhamosnascido para ser nós mesmas eque deveríamos nos esforçar paraser o melhor que pudéssemos ser.Sempre senti que ele se orgulhava

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de mim, sobretudo em relação àvela. Acho que isso ajudava,porque era uma paixão comum anós dois. Embora ele tenhaescrito uma coisa bem estranha nacarta que me deixou. Deu aentender que eu não tinhaprosseguido minha carreira namúsica porque quis agradá-lovirando velejadora profissional.

– E não é verdade?– Não exatamente. Eu amava

as duas coisas, mas haviaoportunidades na vela e euaproveitei. A vida é assim, não é?

– É – concordou Theo. –Curiosamente, sou a mistura dosmeus pais: tenho o faro do meu

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pai para as coisas técnicas e oamor da minha mãe pela vela.

– Bom, já eu, como souadotada, não faço a menor ideiado que está nos meus genes.Minha vida foi toda criação ezero genética.

– Nesse caso, não seriafascinante descobrir se os seusgenes tiveram alguma influênciana sua vida até aqui? Talvez umdia você deva pegar as pistas queseu pai deixou e descobrir deonde veio. Seria um estudopsicológico incrível.

– Seria mesmo – falei,abafando um bocejo. – Mas estoucansada demais para pensar

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nisso. E você está fedendo acabra. Já passou da hora do seubanho.

– Tem razão. Vou lá eaproveito para pedir a Irene queponha a mesa do jantar. Volto emdez minutos. – Ele me deu umbeijo no nariz e saiu da varanda.

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8

Agora mais calmos depois daonda inicial de paixão do iníciode namoro, Theo e euaproveitamos aqueles poucosdias preguiçosos em “AlgumLugar” para nos conhecermosmelhor. Peguei-meconfidenciando a ele coisas quenunca tinha contado a ninguém.Detalhes mínimos, semimportância para qualquer outrapessoa, mas que para mim

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significavam muito. A atenção deTheo não fraquejou uma vezsequer enquanto ele me escutava,olhos verdes cravados em mim,com aquele olhar intenso. Não seicomo, mas ele conseguia fazer eume sentir mais amada do que eujamais me sentira na vida.Mostrou-se especialmenteinteressado em Pa Salt e nasminhas irmãs – no “orfanato deluxo”, como passou a se referir anossa vida em Atlantis.

Certa manhã quente e úmida,quando o ar estava tão abafadoque tanto Theo quanto eu notamosque um temporal era iminente, eleveio se juntar a mim no sofá que

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ficava na parte sombreada davaranda.

– Por onde você andou? –perguntei quando ele se sentou.

– Infelizmente, estavafazendo uma teleconferênciamuito chata com nossopatrocinador da Fastnet, oadministrador da tripulação e odono do Tigresa. Enquanto elesdiscutiam questões de semântica,fiquei rabiscando um papel.

– É mesmo?– É. Quando era mais nova,

você já tentou formar anagramascom o seu nome ou escrevê-lo detrás para a frente? Eu tentei com omeu, e saiu uma coisa ridícula –

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disse ele com um sorriso. –“Oeht”.

– É claro que eu já fiz isso, eo resultado foi igualmente bobo.O meu é “Ylla”.

– Já fez anagramas com oseu sobrenome?

– Não – respondi,perguntando-me aonde ele queriachegar.

– Tá. Bom, eu adoro brincarcom palavras, e agora mesmo,enquanto aquela conversa quaseme fazia morrer de tanto tédio,fiquei brincando com o seusobrenome.

– E daí?– Certo, sei que sou

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obsessivo e adoro um mistério,mas também conheço um poucode mitologia grega, pois estudeiletras clássicas em Oxford epassei todos os verões aqui desdecriança – explicou Theo. – Possomostrar a você o que descobri?

– Já que insiste... – assenti.Ele me entregou um pedaço depapel com algumas palavrasrabiscadas.

– Está vendo em queD’Aplièse se transforma?

Pronunciei a palavra que elehavia escrito abaixo do meusobrenome; pelo visto, Theo ahavia formado usando as mesmasletras de D’Aplièse.

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– Plêiades.– Isso. Reconhece essa

palavra?– Com certeza me soa

familiar – reconheci, acontragosto.

– Ally, Plêiades é o nomegrego do agrupamento de estrelasque contém as Sete Irmãs.

– E daí? O que você estádizendo? – retruquei, sentindo-meirracionalmente na defensiva.

– Só estou dizendo que éuma grande coincidência você esuas irmãs terem sido batizadasem homenagem às sete... ou seráque eu deveria dizer seis famosasestrelas – corrigiu-se ele. – E,

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além disso, o seu sobrenome serum anagrama de Plêiades. Seu paitambém tinha esse sobrenome?

Senti um calor queimarminha face enquanto vasculhava amemória para ver se conseguiame lembrar de alguém já terchamado Pa de Sr. D’Aplièse. Osempregados da nossa casa e os doTitã sempre o chamavam apenasde “patrão”, com exceção deMarina, que o chamava de Pa Saltcomo nós ou então se referia a elecomo “o seu pai”. Tentei pensarse já vira um sobrenome escritoem alguma correspondência dele,mas tudo de que consegui melembrar foram envelopes e

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pacotes de aspecto oficialendereçados a alguma de suasmuitas empresas.

– Provavelmente – respondi,por fim.

– Desculpe, Ally. – Theohavia percebido meu desconforto.– Estava só tentando descobrir seele tinha apenas inventado umsobrenome para vocês ou setambém se chamava assim. Dequalquer forma, muitas pessoasmudam de nome oficialmente. Naverdade, é um nome bem bonito.Você se chama “AlcíonePlêiades”. Quanto ao apelido PaSalt, eu...

– Chega, Theo!

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– Desculpe, é que acho issofascinante. Estou convencido deque seu pai era muito maisinteressante do que parece.

Nessa hora, pedi licença eentrei em casa, desconfortávelcom o fato de Theo ter percebidoalgo tão íntimo sobre a minhafamília apenas brincando comalgumas letras, e que eu e minhasirmãs nunca tivéssemos notadoantes. Ou, se tínhamos, pelomenos a questão nunca havia sidoconversada abertamente entrenós.

Quando voltei para avaranda, Theo seguiu minha deixae não tocou mais no assunto.

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Durante o almoço, contou-memais sobre seus pais e seuamargo divórcio. Ele passara ainfância inteira entre a casa damãe, na Inglaterra, e as férias como pai, nos Estados Unidos. Em umestilo tipicamente seu, relatou ahistória quase na terceira pessoa,de modo analítico, como se elapouco tivesse a ver com ele, maspude notar a tensão subjacente e araiva subconsciente que elesentia. Pareceu-me que, porlealdade à mãe, Theo nunca tinhadado uma chance ao pai. Mas euainda não me sentia confiante osuficiente para lhe dizer isso,embora achasse que, com o

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tempo, viria a fazê-lo.Nessa noite, na cama, ainda

abalada pela revelação sobre meusobrenome, não consegui pegarno sono. Se o nosso sobrenomeera um anagrama criado por Papor causa de sua obsessão com asestrelas e a mitologia das SeteIrmãs, então quem éramos nós?

E, mais importante ainda:quem ele tinha sido?

A terrível verdade era queagora eu jamais poderiadescobrir.

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No dia seguinte, pegueiemprestado o laptop de Theo epesquisei as Sete Irmãs dasPlêiades. Embora Pa tivesseconversado sobre as estrelas comtodas nós, e Maia em especialtivesse passado bastante tempocom ele em seu observatório comcúpula localizado bem no alto deAtlantis, eu nunca havia meinteressado muito pelo assunto.Todas as informações que Pahavia me transmitido eramtécnicas, quando estávamosvelejando juntos. Ele dera omelhor de si para me ensinar a me

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orientar pelas estrelas ao navegare me contara que as Sete Irmãseram conhecidas por seremusadas há milhares de anos paraguiar os marinheiros. Depois dealgum tempo, fechei ocomputador e pensei que, fossemquais fossem as razões para eleter nos batizado com aquelesnomes, isso era apenas mais ummistério que jamais seriasolucionado. E que tentardesvendá-lo só me deixaria maisabalada ainda.

Falei sobre isso com Theodurante o almoço, e eleconcordou comigo.

– Sinto muito, Ally. De

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verdade. Eu nunca deveria tertocado nesse assunto. O queimporta é o presente e o futuro. Equem quer que tenha sido o seupai, tudo que me importa é queele fez a coisa certa ao adotarvocê quando era bebê. E apesarde eu ter descoberto mais coisasque estou me coçando para contarpara você... – Ele me espiou comum olhar inquisitivo.

– Theo!– Tá bom, tá bom – aceitou

ele. – Entendo que agora não é omomento.

E não era, mas mesmoassim, mais tarde nesse dia,peguei a carta de Pa na última

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página do meu diário, onde ahavia deixado, e a li mais umavez. Talvez a intenção de Theotivesse sido exatamente essa.Talvez, pensei, um dia eu devessemesmo seguir a trilha que Padeixara para mim. Ou então, nopior dos casos, encontrar o livroque ele havia mencionado, o talque estava em uma das prateleirasde seu escritório em Atlantis...

À medida que nossas férias

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iam chegando ao fim, tive asensação de que Theo havia setornado parte de mim. Quandorepeti essa frase para mimmesma, mal pude acreditar queera eu quem a estava dizendo.Mas, apesar de esta ser uma ideiaromântica, eu sentia mesmo queele era minha alma gêmea. Comele, eu me sentia completa.

E só percebi o quanto essarecém-descoberta sobre nóspodia ser assustadora quando, àsua maneira calma de sempre, elecomeçou a discutir a logísticapara sair de “Algum Lugar” – queeu agora sabia ser a Ilha de Anafi– e voltar à realidade.

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– Em primeiro lugar, tenhoque visitar minha mãe emLondres. Depois vou buscar oTigresa em Southampton e levar oveleiro até a Ilha de Wight. Pelomenos assim vou poder sentir umpouco o barco. E você, querida?

– Eu também precisavapassar algum tempo em casa –falei. – Ma até que convencequando diz que está bem, mas semMaia nem Pa em casa eu sinto quedeveria estar lá com ela.

– Dei uma olhada nos voos.Por que não velejamos juntos atéAtenas no Netuno, no fim desemana, e depois você pega umvoo para Genebra? Verifiquei no

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site, e ainda tem vaga em um voona hora do almoço que sai maisou menos no mesmo horário domeu para Londres.

– Ótimo. Obrigada –respondi, bruscamente, sentindo-me de repente muito vulnerável,com medo de ficar sem ele e doque o futuro nos reservava.

Cheguei a ter medo de nãohaver um futuro depois de“Algum Lugar”.

– Ally, o que houve?– Nada. Tomei muito sol

hoje, e o melhor seria eu medeitar cedo. – Levantei-me e fizmenção de sair da varanda, masantes disso ele me segurou pela

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mão.– A gente ainda não terminou

a conversa, então, sente-se, porfavor. – Ele me sentou comfirmeza de volta na cadeira e medeu um beijo na boca. – É óbvioque a gente precisa conversarsobre outros planos além donosso voo para casa. A Fastnet,por exemplo. Tenho pensadomuito nisso desde que chegamosaqui, e quero fazer uma sugestão.

– Pode falar – concordei,apesar de soar contrariada atémesmo para mim. Não era sobreaquele tipo de “plano” que euestava interessada em ouvir nomomento.

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– Eu quero que você venha etreine junto com a tripulação. Masse eu achar que as condiçõesmeteorológicas estão perigosasdemais para você ficar a bordodurante a regata propriamente ditaou se você começar a regata, maseu lhe disser em algum momentoque precisa ficar em terra, vocêtem que jurar que vai obedecer àsminhas ordens.

Com esforço, aquiesci.– Sim, capitão.– Não faça graça, Ally.

Estou falando sério. Já disse quenão conseguiria me perdoar sealguma coisa acontecesse comvocê.

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– Essa decisão não deveriaser minha?

– Não. Como seu capitão,para não dizer seu namorado, adecisão é minha.

– Quer dizer que eu nãoposso fazer você parar se acharque as condições estão perigosasdemais para velejar?

– É claro que não! – Elebalançou a cabeça, frustrado. –Sou eu quem vou tomar a decisão.Para o bem ou para o mal.

– E se for “para o mal” e eusouber que é?

– Aí você me diz, e eu vouescutar seu aviso, mas quem vaitomar a decisão final sou eu.

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– Por que não posso ser eu?Não é justo, eu...

– Ally, isso está ficandoridículo. Estamos em círculos e,além do mais, tenho certeza deque nada disso vai acontecer.Tudo que estou tentando dizer éque você tem que me escutar, estábem?

– Certo – concordei,emburrada. Aquilo era o maisperto que nós dois já tínhamoschegado de um bate-boca, e como pouco tempo que nos restavanaquele lugar perfeito, eu nãoqueria deixar a situação sedeteriorar ainda mais.

Vi a expressão nos olhos

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dele se suavizar. Ele estendeuuma das mãos na minha direção eacariciou meu rosto com osdedos.

– Mais importante ainda, nãovamos esquecer que existe umfuturo depois da Fastnet. Porque,apesar de todo o trauma, essasforam as melhores semanas daminha vida. Ally, querida, vocêsabe que a verbosidade românticanão faz o meu estilo, mas seriaótimo se a gente arrumasse umjeito de ficar juntos sempre. Oque acha?

– Para mim parece ótimo –balbuciei, sem conseguir passarem poucos segundos de

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“extremamente irritada” para“vamos passar a vida juntos”.

Quase dei uma olhada nospapéis diante de Theo para ver se“conversar sobre o futuro comAlly” estava anotado na agenda.

– Por mais antiquado queisso possa parecer, eu sei quenunca vou encontrar ninguémcomo você. Assim sendo, econsiderando que nem eu nemvocê somos mais crianças eambos já vivemos bastante, sóestou dizendo a você que eu tenhocerteza. E ficaria louco defelicidade se a gente se casasseamanhã. E você?

Encarei-o, tentando absorver

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o que ele estava dizendo, mas nãoconsegui.

– Isso por acaso é umpedido de casamento à la Theo? –disparei.

– Acho que é, sim. E então?– Entendi.– E...?– Bem, Theo, para ser bem

direta, isto aqui não é uma cenade Romeu e Julieta.

– Não. Não é, mesmo. Comovocê pôde constatar, eu não tenhomuito talento para os momentosimportantes. Só quero passar logopor eles e tocar a ... tocar a vida,eu acho. E realmente gostaria demorar com você... quero dizer, de

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me casar com você – corrigiu ele.– A gente não precisa se

casar.– Não, mas acho que é nessa

hora que a minha criaçãotradicional assume a dianteira. Euquero passar o resto da vida comvocê e, portanto, preciso fazer umpedido formal de casamento.Gostaria que você virasse a Sra.Falys-Kings, e de poder dizer“minha esposa e eu” para aspessoas.

– Eu talvez não queira usarseu sobrenome. Hoje váriasmulheres não põem o nome domarido – contrapus.

– É verdade, é verdade –

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concordou ele, calmo. – Mas étão mais simples, não acha? Terum nome só? Para as contas nobanco e também para pouparexplicações nas conversas aotelefone com eletricistas,bombeiros e...

– Theo?– O quê?– Pelo amor de Deus, cale a

boca um instante! Por mais que oseu lado prático seja enfurecedoràs vezes e antes de você meanalisar tanto a ponto de me fazerrecusar seu pedido, quero dizerque também me casaria com vocêamanhã.

– Sério?

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– Claro.Então reparei no que pensei

serem lágrimas se formando nosseus olhos. E a parte de mim quetanto se parecia com ele percebeuque até os seres humanosexternamente mais seguros de sificavam vulneráveis quandoacreditavam que a pessoa queamavam correspondia ao seuamor. E que os queria eprecisavam deles com o mesmodesespero. Cheguei mais perto elhe dei um abraço apertado.

– Bem. Isso é maravilhoso,não é? – Ele sorriu e enxugou osolhos discretamente.

– Levando em consideração

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quanto esse pedido foi ridículo,sim, maravilhoso.

– Ótimo. Bem... mesmo issosendo também meio antiquado, epode pôr a culpa na minhacriação, eu gostaria muito sepudéssemos ir às comprasamanhã e escolher alguma coisapara marcar o fato de que vocêestá comprometida comigo.

– Noivar, você quer dizer? –provoquei. – Mesmo que vocêpareça um personagem de umromance de antigamente, euadoraria.

– Obrigada. – Ele entãoolhou para as estrelas, balançou acabeça e olhou para mim. – Não é

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um milagre?– Que parte?– Tudo. Passei 35 anos me

sentindo sozinho no mundo, e aívocê apareceu, do nada. E derepente eu entendi tudo.

– Entendeu o quê?Ele balançou a cabeça e

ergueu os ombros de leve.– O amor.

Fizemos o que Theo pedira,e na manhã seguinte ele me levou

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até a capital da ilha, Chora – narealidade pouco mais que umvilarejo caiado e modorrentoencarapitado no alto de um morrocom vista para o litoral sul dailha. Passeamos pelas ruasestreitas e pitorescas, ondeencontramos duas lojinhasminúsculas que vendiam joiasfeitas à mão junto com umamistureba de produtosalimentícios e utilidades para olar, além de um pequeno mercadode rua com algumas barracas debugigangas. De modo geral, eununca tinha sido muito ligada emjoias, e depois de passar meiahora experimentando diversos

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anéis, pude ver que Theo estavacomeçando a perder a paciência.

– Mas, enfim, deve teralguma coisa aqui de que vocêgosta – instou ele quandoparamos diante da última barracado mercado.

Na verdade, meus olhoshaviam sido atraídos por uma daspeças.

– Você se importaria se nãofosse um anel?

– A esta altura, eu não meimporto nem se for um piercingde mamilo, contanto que seja algoque a deixe feliz e que a gentepossa ir almoçar. Estou morrendode fome.

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– Tá, então eu quero istoaqui.

Apontei para um amuletousado para afastar o mau-olhado,um pingente tradicional gregoformado por um olho estilizadode vidro azul pendurado em umadelicada correntinha de prata.

O vendedor tirou a peça domostruário e a segurou na palmada mão para podermos vermelhor, indicando a etiqueta depreço manuscrita. Theo tirou osóculos escuros e segurou opingente entre o polegar e oindicador para examiná-lo.

– Ally, é fofo, mas custa 15euros. Não é exatamente um anel

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de brilhante.– Eu gosto. Os marinheiros

usam esse amuleto para evitarmares revoltos. E, afinal decontas, o meu nome significa queeu sou protetora dos marinheiros.

– Eu sei, mas não tenhomuita certeza se um olho grego émesmo um símbolo apropriadopara um noivado.

– Bem, eu adorei, e antes denós dois ficarmos doidos edesistirmos, será que pode sereste, por favor?

– Contanto que você prometame proteger.

– É claro que eu prometo –falei, abraçando-o pela cintura.

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– Tá. Mas vou logoavisando, só para fazer tudo comomanda o figurino, talvez depoiseu precise dar a você algo mais...tradicional.

Alguns minutos depois,saímos do mercado com opequeno talismã pendurado nomeu pescoço. Voltamos apercorrer as ruas tranquilas àprocura de uma cerveja e de algopara almoçar.

– Pensando bem, acho queacorrentar você pelo pescoço ébem mais apropriado do que sópor um dedo, ainda que em algummomento a gente tenha quearrumar um anel de verdade para

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você usar – disse ele. – Só que,infelizmente, não tenho certeza sevou poder correr para a Tiffanyou a Cartier.

– Quem é que estámostrando as raízes agora? –provoquei. Encontramos umamesa à sombra na frente de umataberna e nos sentamos. – E, sópara você saber, eu detesto coisasde marca.

– Tem razão. Desculpedeixar transparecer o meupassado arraigado de countryclub de Connecticut. – Ele pegouum cardápio de plástico. – Masentão, o que você vai querercomer?

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No dia seguinte, depois deme separar de Theo no aeroportode Atenas com relutância, sentei-me no avião me sentindo perdidasem ele. Não parava de me virarinvoluntariamente na direção demeu espantado vizinho para dizera Theo algo em que acabara depensar, mas aí me lembrava deque ele não estava mais do meulado. Admiti para mim mesmaque me sentia completamente semrumo longe dele.

Não tinha avisado a Ma que

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voltaria para casa, pois penseique seria bacana simplesmenteaparecer e lhe fazer uma surpresa.Enquanto a aeronave metransportava até Genebra e eu mepreparava para chegar a umaAtlantis que havia perdido seucoração, minhas emoções sealternaram entre a alegria peloque tinha encontrado e o pesarpelo que havia perdido e para oqual estava retornando. E dessavez minhas irmãs não estariampresentes para preencher oimenso vazio deixado por Pa Salt.

Quando cheguei, pelaprimeira vez na vida ninguémdesceu para me receber no deque,

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o que me deprimiu mais ainda.Claudia tampouco estava em seulugar habitual na cozinha, massobre a bancada havia um bolo delimão recém-saído do forno, poracaso o meu preferido. Corteiuma generosa fatia, saí da cozinhae subi a escada até meu quarto.Joguei a mochila no chão e mesentei na cama para admirar aesplêndida vista do lago por cimadas árvores e escutar o silêncioperturbador.

Tornei a me levantar, fui atéa estante e peguei a garrafa comum barco dentro que Pa Salt tinhame dado de presente deaniversário quando completei 7

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anos. Observei a intrincadaréplica de madeira e lona dentrodo vidro e sorri ao me lembrar decomo havia atormentado Pa Saltpara que me contasse como obarquinho conseguira passar peloestreito gargalo da garrafa.

– Por magia, Ally –sussurrara ele em tom de segredo.– E todo mundo precisa acreditarnisso.

Tirei meu diário da mochila,louca para senti-lo perto de mimoutra vez, e peguei a carta que elehavia escrito para mim. Reli osdetalhes e resolvi descer até seuescritório e procurar o livro queele sugerira que eu lesse.

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Parada na porta doescritório, deixei os conhecidosaromas de frutas cítricas, arfresco e segurança encheremminhas narinas.

– Ally! Desculpe não estarem casa quando você chegou.Não sabia que você viria. Masque surpresa maravilhosa!

– Ma! – Virei-me paraabraçá-la. – Tudo bem com você?Tive uns dias de folga e quis virme certificar de que você estavabem.

– Estou, estou sim... – disseela, meio apressada. – E você,chérie? Como está?

Senti seus olhos

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observadores e inteligentes meavaliarem.

– Você me conhece, Ma. Eununca fico doente.

– Ally, nós duas sabemosque eu não estava perguntandosobre a sua saúde – retrucou Macom delicadeza.

– Andei ocupada, então achoque isso ajudou. Aliás, nósganhamos a regata – falei, feitouma boba.

Ainda não estava prontapara contar a Ma sobre Theo e apossível felicidade que tinhaencontrado. Estar ali em Atlantissem Pa fazia isso parecerinadequado.

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– Maia também está aqui.Ela foi para Genebra mais cedo,logo depois de o... amigo quetrouxe do Brasil ir embora. Vaivoltar logo e tenho certeza de quevai ficar feliz em ver você.

– Eu também vou ficar felizem vê-la. Ela me mandou um e-mail faz alguns dias e pareciafeliz de verdade. Mal possoesperar para saber mais sobre aviagem.

– O que acha de um chá?Venha até a cozinha, assim podeme contar tudo sobre a regata.

– Está bem. – Obediente, saído escritório de Pa atrás dela.

Talvez fosse apenas o fato

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de ter aparecido em casa semligar, mas senti que ela estavatensa, que havia perdidotemporariamente sua serenidadehabitual. Conversamos sobreMaia e a regata das Cíclades, evinte minutos depois ouvimos alancha chegando. Fui receberminha irmã no deque.

– Surpresa! – falei, abrindoos braços para ela.

– Ally! – Maia pareciamaravilhada. – O que estáfazendo aqui?

– Por estranho que pareça,esta também é a minha casa –respondi, com um sorriso,enquanto subíamos juntas, de

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braços dados.– Eu sei, mas não estava

esperando você aparecer.Decidimos nos sentar na

varanda, e fui pegar uma jarra dalimonada caseira de Claudia.Fiquei observando Maia enquantoa ouvia falar sobre a viagemrecente ao Brasil, e pensei quefazia muitos anos que não a viatão viva. A pele estava linda, osolhos brilhavam. Descobrir seupassado graças às pistaspóstumas de Pa Salt com certezaparecia ter ajudado Maia a securar.

– E, Ally, tem mais umacoisa que eu queria contar a você.

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Que talvez devesse ter contado hámuito tempo...

Ela então me disse o quehavia acontecido na universidadeque a fizera se esconder desdeentão. Fiquei com lágrimas nosolhos ao escutar a história eestendi a mão para reconfortá-la.

– Maia, que terrível você tertido que passar por isso tudosozinha. Por que não me contou,caramba? Eu sou sua irmã!Sempre achei que fôssemospróximas. Eu teria dado força avocê, teria mesmo.

– Eu sei, Ally, mas vocêtinha só 16 anos na época. Alémdo mais, eu estava envergonhada.

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Então perguntei quem eraessa pessoa horrível que tinhacausado tanta dor à minha irmã.

– Ah, ninguém que vocêconheça. Um cara que conheci nauniversidade chamado Zed.

– Zed Eszu?– Isso. Você talvez tenha

visto o nome dele no jornal. O paidele era o magnata que sesuicidou.

– E cujo iate eu vi perto dode Pa naquele dia horrível em quesoube da morte dele, se você bemse lembra – falei, com umarrepio.

– Por ironia, foi Zed que,sem perceber, me forçou a

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embarcar no avião para o Rio deJaneiro quando eu ainda estavadecidindo se ia ou não. Depois de14 anos de silêncio, ele medeixou uma mensagem de voz donada, dizendo que viria à Suíça eperguntando se a gente poderia seencontrar.

Olhei para ela com umaexpressão estranha.

– Ele queria encontrar você?– Sim. Disse que tinha

ficado sabendo da morte de Pa esugeriu que talvez a gente pudesseconsolar um ao outro. Se haviaalgo que me faria sair correndoda Suíça, era isso.

Perguntei-lhe se Zed sabia o

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que havia acontecido com elatantos anos antes.

– Não. – Maia balançou acabeça com firmeza. – E, sesoubesse, duvido que tivesse seimportado.

– Eu acho quedefinitivamente foi melhor paravocê se livrar dele – disse,sombria.

– Então você o conhece?– Não pessoalmente. Mas

tenho um... amigo que conhece.Enfim, pelo visto embarcar nesseavião foi a melhor coisa que vocêjá fez – falei, disfarçando antesque Maia me fizesse outrasperguntas. – Mas você ainda não

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me contou sobre esse brasileirolindo que trouxe para cá. Achoque Ma ficou caidinha por ele.Quando cheguei, ela nãoconseguia falar em outra coisa.Ele é escritor?

Conversamos um poucosobre ele e, então, Maiaperguntou de mim. Decidi queaquele era o momento dela, jáque tinha encontrado alguémdepois de tantos anos, e não lhedisse nada sobre Theo. Em vezdisso, falei sobre a Fastnet e aseliminatórias das Olimpíadas queseriam em breve.

– Ally! Que maravilha! Meavise sobre o resultado, tá? –

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pediu ela.– Claro.Nesse exato instante, Marina

apareceu na varanda.– Maia, chérie, eu só soube

que você estava em casa quandoencontrei Claudia agora há pouco.Christian deixou isto mais cedopara você e infelizmente esquecide lhe entregar.

Marina lhe passou umenvelope, e os olhos de Maia seacenderam quando ela reconheceua caligrafia.

– Obrigada, Ma.– Vocês vão querer jantar?– Se tiver comida, claro.

Maia? – Olhei para minha irmã. –

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Você me faz companhia? É tãoraro termos uma chance de pôr aconversa em dia.

– Faço, claro – disse ela,levantando-se. – Mas, se vocênão se importar, vou dar umpulinho no pavilhão antes.

Ma e eu olhamos com um arcúmplice para ela e para a cartabem apertada em sua mão.

– Nos vemos mais tardeentão, chérie – falou Marina.

Segui Ma de volta até emcasa, sentindo-me extremamenteperturbada pelo que Maiaacabara de me contar. Por umlado, era bom termos tiradoaquilo do caminho e eu agora

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entender por que minha irmã tinhaficado tão distante depois dauniversidade e se jogado no queera praticamente um exílioautoimposto. Mas o fato de ela terme contado que o motivo de suador se chamava Zed Eszu era algototalmente diferente...

Com seis mulheres jovens nafamília, todas tão diferentes entresi, a quantidade de fofoca sobrenamorados e casos de amorvariava muito dependendo dotemperamento de cada uma. Atéagora, Maia tinha se mantidototalmente fechada em relação àsua vida sentimental, já Estrela eCeci tinham uma à outra e

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raramente falavam com as outrasirmãs. Sobravam Electra e Tiggy,que haviam – as duas – seconfidenciado comigo ao longodos anos...

Subi até meu quarto e fiqueiandando para lá e para cá,pensando nas implicações moraisde saber algo que afetavapotencialmente outras pessoasque eu amava, e se era precisocompartilhar essa informação ouficar calada. No entanto, comoMaia acabara de se abrir comigopela primeira vez em anos,resolvi que cabia a ela decidircontar ou não sua história àsnossas outras irmãs. De que

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adiantaria eu interferir?Depois de resolver isso,

chequei o celular e abri umsorriso espontâneo ao ver umamensagem de Theo.

Minha Ally querida. Saudades. Batidomas verdadeiro.

Respondi na hora:

Eu também (mais batido ainda).

Enquanto tomava umachuveirada antes de descer para

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jantar com Maia, senti muitavontade de contar a ela sobre ogrande amor que também acabarade encontrar, mas tornei a lembrara mim mesma que, depois detantos anos, aquele precisava sero momento dela. O meu poderiaesperar outra ocasião.

Durante o jantar, Maia medisse que voltaria ao Brasil nodia seguinte.

– Só se vive uma vez, não é,Ma? – disse ela, radiante defelicidade, e pensei que nuncatinha visto minha irmã maisbonita.

– É, sim – respondeu Ma. –E se as últimas semanas nos

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ensinaram algo, foi isso.– Chega de me esconder –

disse Maia, erguendo o copo. –Mesmo se não der certo, pelomenos eu vou ter tentado.

– Chega de se esconder –falei, sorrindo, e brindei com ela.

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9

Maria e eu nos despedimos deMaia com acenos e beijos quandoela foi embora de Atlantis.

– Estou tão feliz por ela! –comentou Ma, enxugando os olhosdiscretamente enquanto nosvirávamos e caminhávamos devolta até a casa, onde preparamosum chá e conversamos sobre opassado difícil de Maia e seufuturo, ao que tudo indicava, cor-de-rosa. Pelo que Ma falou, ficou

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óbvio que ela nutria sentimentossemelhantes aos meus em relaçãoa Zed Eszu. Terminei o chá edisse a ela que precisava checarmeus e-mails.

– Tem problema se eu usar oescritório de Pa? – perguntei,porque o melhor sinal de internetda casa era lá.

– Claro que não. Lembre-se:esta casa agora é sua e das suasirmãs – respondeu Ma com umsorriso.

Fui buscar o laptop noquarto e abri a porta do escritóriodo meu pai. O aspecto era omesmo de sempre, com asparedes revestidas de carvalho

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combinando com os confortáveismóveis antigos. Hesitante, sentei-me na cadeira de madeira deencosto curvo e assento de courode Pa Salt e pus o laptop sobre aescrivaninha de nogueira à minhafrente. Enquanto o sistemainicializava, girei a cadeira eobservei com um olharinexpressivo a profusão deobjetos que Pa tinha nas estantes.Não havia nenhum temaespecífico comum a todos, e eusempre imaginara que fossemapenas peças das quais ele haviagostado durante suas muitasviagens. Meus olhos entãoexaminaram a estante que cobria

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uma das paredes do chão ao teto,e me perguntei onde estaria olivro mencionado por ele nacarta. Quando vi Dante ao lado deDickens e Shakespeare ao lado deSartre, entendi que os livrosestavam arrumados em ordemalfabética, e o gosto de Pa Saltera tão eclético e variado quantoele próprio tinha sido.

O laptop, sempretemperamental, decidiu entãoavisar que precisava serreiniciado, de modo que,enquanto aguardava, levantei e fuiaté o aparelho de CD de Pa. Todomundo tinha tentado fazê-loevoluir para um iPod, mas,

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embora ele tivesse um monte decomputadores e equipamentoseletrônicos sofisticados noescritório, dizia que era velhodemais para mudar e preferia“ver de forma concreta” a músicaque desejava pôr para tocar.Quando liguei o aparelho,fascinada ao pensar que iriadescobrir a última música que PaSalt tinha escutado, o recinto derepente foi tomado pelos lindoscompassos iniciais do“Amanhecer”, da suíte Peer Gynt,de Grieg.

Fiquei pregada onde estava,e uma onda de lembranças meinundou. Aquela era a obra para

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orquestra preferida de Pa, e elemuitas vezes havia me pedido quetocasse os compassos de aberturapara ele na flauta. Aquela setornara a música-tema da minhainfância, e escutá-la me fezpensar em todos os gloriosospoentes que havíamos admiradojuntos quando ele me levava até olago para me ensinarpacientemente a velejar.

Quanta saudade...E não era só dele que eu

estava com saudade.Por instinto, enquanto a

música saía dos alto-falantesescondidos e preenchia o recintocom sua gloriosa sonoridade,

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peguei o fone no aparelho sobre aescrivaninha para fazer umaligação.

Quando o levei ao ouvido,prestes a digitar o número,percebi que havia alguém nalinha.

O choque de ouvir o timbreconhecido da voz que havia mereconfortado desde a infância meforçou a interromper a conversa.

– Alô?! – falei, e estendi amão às pressas para desligar oaparelho de CD, para ter certezaabsoluta de que era ele.

Mas a voz do outro ladohavia se transformado em um bipemonótono, e percebi que ele

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havia desligado.Fiquei sentada, recuperando

o fôlego, depois me levantei, fuiaté o hall e gritei por Ma. Meusgritos também fizeram Claudia vircorrendo da cozinha. A essaaltura, eu já estava tomada porsoluços histéricos, e quando Maapareceu no topo da escada fuiaté ela.

– Ally, chérie, o que houve,pelo amor de Deus?

– Eu... eu acabei de escutar avoz dele, Ma! Eu escutei a vozdele!

– De quem, chérie?– Pa Salt! Ele estava falando

na linha quando peguei o telefone

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do escritório para digitar umnúmero. Ai, meu Deus! Ele nãomorreu, ele não morreu!

– Ally. – Vi Ma lançar umolhar incisivo para Claudiaenquanto passava o braço emvolta do meu ombro e meconduzia até a sala de estar. –Chérie, por favor, tente seacalmar.

– Me acalmar como?! Meuinstinto me dizia que ele nãoestava morto, Ma, o que significaque ele ainda está vivo em algumlugar. E alguém nesta casa estáfalando com ele... – Lancei-lheum olhar de acusação.

– Ally, sério, eu entendo o

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que você acha que escutou, masisso tem uma explicação simples.

– E qual poderia ser?– O telefone tocou faz alguns

minutos. Eu escutei, mas estavalonge demais para atender, entãoa ligação caiu na secretária.Tenho certeza de que o que vocêouviu foi a mensagem do seu paina secretária eletrônica.

– Mas eu estava sentada bemem frente ao telefone e ele nãotocou antes de eu tirar o gancho!

– Mas você tinha colocado amúsica bem alta. Dava paraescutar até no meu quarto lá emcima. Isso pode ter abafado otoque do telefone.

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– Tem certeza de que vocênão estava falando com ele? Ouquem sabe Claudia? – perguntei,desatinada.

– Ally, por mais que vocêprecise que eu lhe diga algodiferente disso, infelizmente nãovai ser possível. Quer ligar parao fixo aqui da casa com o seucelular? Se deixar tocar quatrovezes, vai ouvir a mensagem doseu pai na secretária eletrônica.Por favor, experimente – sugeriuela.

Dei de ombros, agoraconstrangida por ter acusado Mae Claudia de mentirem para mim.

– Não, é claro que eu

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acredito em vocês – falei. – Masé que... eu queria que fosse ele.Quis pensar que toda essa terrívelsituação tinha sido um engano.

– É isso que todas nósqueremos, Ally, mas o seu pai sefoi, e nada do que qualquer umade nós fizer vai trazê-lo de volta.

– É, eu sei. Desculpe.– Não precisa se desculpar,

chérie. Se houver alguma coisaque eu puder fazer...

– Não – falei, levantando-me. – Vou dar meu telefonema.

Marina me olhou e sorriucom uma expressãocompreensiva. Voltei para oescritório de Pa Salt, sentei-me

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novamente diante da escrivaninhae fiquei encarando o telefone.Peguei o fone, digitei o númerode Theo, e o celular caiu na caixapostal. Como queria falar comuma pessoa de verdade, e nãocom uma gravação, recoloquei ofone no gancho de forma abruptasem deixar recado.

Então me lembrei de queainda precisava procurar o livroque Pa Salt queria que eu lesse.Levantei-me, examinei os títulosda seção “H” da estante,encontrei-o em poucos segundos eo tirei da prateleira.

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Grieg, Solveig og JegEn biografi av Anna og Jens

HalvorsenJens Halvorsen

Sem entender nada, a não serque era algum tipo de biografia,levei-o de volta até aescrivaninha e me sentei.

O livro com certeza era bemvelho, pois tinha as páginas

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frágeis e amareladas. Vi que forapublicado em 1907, exatos cemanos antes. Por ser musicista,entendi na hora a que Sr.Halvorsen o autor devia estar sereferindo. Solveig, a tristeheroína do poema de Ibsen,aparecia na música de renomemundial escrita por Edvard Griegpara acompanhar a peça. Vireimais uma página e notei que haviatambém um prefácio, no qualreconheci as palavras “Grieg” e“Peer Gynt”. Infelizmente, porém,foi tudo que consegui ler, pois orestante das palavras estavaescrito no que supus sernorueguês, língua materna tanto

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de Grieg quanto de Ibsen, sendoportanto indecifrável para mim.

Com um suspiro dedecepção, folheei o livro edescobri algumas imagens empreto e branco de uma minúsculamulher vestida com o figurino deteatro de uma camponesa. Alegenda informava: “AnnaLandvik som Solveig, September1876.” Estudei as fotos comatenção e vi que, fosse quemfosse, Anna Landvik era muitojovem quando foram tiradas. Porbaixo da pesada maquiagem depalco, era quase uma criança. Deiuma olhada nas outras imagens eencontrei mais fotos dela, à

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medida que envelhecia, então medemorei ao deparar com os traçosconhecidos do próprio EdvardGrieg. Anna Landvik estava de péao lado de um piano de cauda eGrieg a aplaudia atrás doinstrumento.

Havia também outrasimagens de um belo rapaz, obiógrafo, sentado em uma poseformal ao lado de Anna Landvik,que segurava uma criançapequena no colo. Frustrada com ofato de o livro não revelar quasenada devido à barreira da língua,senti minha curiosidade se aguçar.Precisava mandar traduzir aquiloe pensei que Maia, que era

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tradutora, provavelmenteconheceria alguém que pudesseme ajudar.

Considerando minhaafinidade com a música, eramuito comovente pensar que meusantepassados pudessem ter tidoligação com um dos grandescompositores eruditos – ainda porcima um dos preferidos de Pa eeu. Seria por isso que ele amavatanto a suíte Peer Gynt? Talveztivesse me mostrado essa músicapor causa da minha ligação comela.

Mais uma vez, lamentei suamorte e as perguntas quepermaneceriam para sempre sem

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resposta.– Está tudo bem, chérie?Despertada de meus

devaneios, ergui os olhos e vi Made pé na porta.

– Tudo.– Estava lendo?– Estava – falei, pousando a

mão sobre o livro de um modoprotetor.

– Bom, o almoço estáservido na varanda.

– Obrigada, Ma.

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Diante de uma salada dequeijo de cabra e uma taça devinho branco geladinho, pedidesculpas outra vez a Ma peloacesso de histeria mais cedo.

– Sério, não há de que sedesculpar – disse ela, tentandome tranquilizar. – E então? Nósduas já sabemos as novidades deMaia, mas você não disse quasenada sobre si mesma. Como vocêestá, Ally? Sinto que algumacoisa boa aconteceu. Você parecediferente.

– Na verdade... o fato é queeu também conheci alguém, Ma.

– Bem que eu imaginei –

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retrucou ela com um sorriso.– Foi por isso que não

recebi as mensagens de vocês.Estava com ele quando Pamorreu, e tinha desligado ocelular – falei de repente,precisando dizer a verdade, queestava me pesando. – Eu sintomuito, muito mesmo. Estou mesentindo tão culpada, Ma...

– Mas não tem por que ficar.Quem poderia imaginar o que iriaacontecer?

– A verdade é que pareceque estou em uma montanha-russaemocional... – Dei um suspiro.–Acho que nunca estive mais felize mais triste ao mesmo tempo. É

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muito estranho. Sinto culpa porestar feliz.

– Duvido muito que o seupai fosse querer que você sesentisse assim, chérie. Mas quemé esse homem que roubou o seucoração?

Então lhe contei tudo. E osimples fato de dizer o nome deTheo já fez com que eu mesentisse melhor.

– Será que ele é o homem dasua vida, Ally? Com certeza eununca ouvi você falar de ninguémdesse jeito.

– Acho que sim. Na verdade,ele... bom, ele me pediu emcasamento.

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– Nossa! – Ma me encaroucom surpresa. – E você aceitou?

– Aceitei, mas ainda vaidemorar muito para a gente secasar. Ele me deu isto aqui. –Puxei a correntinha de prata debaixo da gola da roupa e lhemostrei o pingente do olho grego.– Sei que é tão rápido que chegaa ser ridículo, mas essa pareceser a coisa certa. Para nós dois. Evocê me conhece, Ma, eu nuncafui de me deixar levar peloromantismo, então tudo isso é umpouco estranho para mim.

– Eu conheço você, sim, e épor isso que acho que essahistória deve ser para valer.

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– Na verdade, ele me lembraPa. Queria tanto que Pa tivesseconhecido Theo. – Suspirei ecomi uma garfada de salada. –Mudando de assunto, você achaque Pa queria mesmo que a gentedescobrisse a nossa origem?

– Acho que ele quis deixaras informações necessárias para ocaso de algum dia vocêsdecidirem fazer isso. É claro quea escolha é sua.

– Bom, com certeza issoparece ter ajudado Maia.Enquanto ela estava descobrindoseu passado, acabou encontrandoseu futuro ao mesmo tempo.

– É, foi mesmo – concordou

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Ma.– Mas eu acho que talvez já

tenha encontrado o meu, sem terprecisado pesquisar minhahistória. Talvez um dia euinvestigue isso, mas não agora.Só quero tentar aproveitar opresente e ver aonde ele me leva.

– E você tem toda razão.Espero que traga Theo aqui embreve, para eu poder conhecê-lo.

– Vou trazer, sim, Ma – falei,sorrindo ao pensar nesse dia. –Prometo que vou.

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Após vários dias da comidacaseira de Claudia, de noitesbem-dormidas e do gloriosoclima de verão, sentia-merenovada e tranquila. Todas astardes, saía com o Laser paradespreocupados passeios de velano lago. Enquanto o sol mebanhava, eu me deitava no barcoe deixava meus sentimentos emrelação a Theo me invadirem.Quando estava na água, eu mesentia mais próxima tanto delequanto de Pa. Aos poucos,entendi que estava mereconciliando com a ideia de ter

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perdido meu pai e começando aaceitá-la. Embora tivesse dito aMarina que não iria investigarmeu passado por enquanto, játinha mandado um e-mail paraMaia lhe perguntando se elaconhecia algum tradutor donorueguês. Ela respondeu quenão, mas que iria se informar.Alguns dias depois, me escreveude volta com o contato de umacerta Magdalena Jensen. Eu ligueipara Magdalena, e ela disse queteria prazer em traduzir o livropara mim. Depois de tirar cópiasda capa e das fotos, só porgarantia caso o original seperdesse, eu o embalei

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cuidadosamente e despachei paraela por FedEx.

Enquanto preparava amochila para a viagem até a ilhade Wight, que ficava próxima aolitoral da Inglaterra e onde eucomeçaria a treinar para a regata,senti um arrepio de nervosismoem relação ao futuro subir pelaminha espinha. A Regata Fastnetera uma empreitada e tanto, eTheo estaria no comando de umatripulação de vinte pessoasaltamente experientes. Eu mesmanunca tinha feito nada tãodesafiador. Teria que estardisposta a encarar qualquerdificuldade e preparada para

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observar e aprender. Pensandobem, o fato de ele ter meconvidado já era uma grandehonra.

– Pronta para partir? –indagou Ma quando apareci nohall com a mochila e a flauta, queTheo me pedira para levar outravez. Ele parecia mesmo adorarme ouvir tocar.

– Estou.Ela me puxou para si, me

deu um abraço e então me sentirodeada por todo o conforto e asegurança que ela representava.

– Vai tomar cuidado nessaregata, não vai, chérie? –perguntou ela enquanto saíamos

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da casa e descíamos até o deque.– Por favor, Ma, não se

preocupe. Eu tenho o melhorcapitão do mundo, juro. Theo vaime manter em segurança.

– Então não deixe de escutaro que ele diz, está bem? Eu seicomo você pode ser cabeça-dura.

– É claro que vou escutar oque ele diz – afirmei com umsorriso irônico, pensando comoela me conhecia bem.

Afastei a lancha do dequeenquanto Christian jogava ascordas a bordo e subia.

– Dê notícias, Ally – disseMa.

– Pode deixar.

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E quando a lancha aceleroupelo lago, senti de verdade queestava navegando em direção aomeu futuro.

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10

– Oi, Ally.Encarei Theo com surpresa

enquanto o caldeirão de pessoasque era o aeroporto londrino deHeathrow passava por mim feitouma imensa onda.

– O que você está fazendoaqui?

– Que pergunta é essa?Quem ouvir vai pensar que vocênão está feliz em me ver –resmungou ele, brincalhão, antes

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de me puxar para si bem no meiodo corredor de desembarque e metascar um beijo.

– É claro que estou feliz! –respondi, rindo, quandointerrompemos o beijo para tomarfôlego, e pensei em como elesempre dava um jeito de superarminhas expectativas. – Achei quevocê estivesse ocupado noTigresa. Venha, estamos causandoum engarrafamento de gente –acrescentei, desvencilhando-medele.

Theo me conduziu até oponto de táxi do lado de fora doterminal.

– Entre – falou ele, e deu

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algumas instruções ao motorista.– Não vamos de táxi até a

estação da balsa para a ilha deWight, não é? – indaguei. – Ficamuito longe daqui.

– Não, Ally, claro que não.Só que, quando chegarmos lá,vamos começar a treinar semparar. Então pensei que seria umaboa ideia passarmos uma noitejuntos antes de eu virar “capitão”de novo e você só “Al”. – Ele mepuxou para um abraço. – Fiqueicom saudade, querida – sussurrouele.

– Eu também – falei, e vi otaxista nos olhar pelo retrovisorcom um sorrisinho malicioso.

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Para minha total surpresa edeleite, o táxi encostou em frenteao hotel Claridge’s, onde Theotinha reservado um quarto.Passamos a tarde e a noitecompensando o tempo perdido.Antes de apagar a luz, olhei paraele dormindo ao meu lado edeixei sua presença me invadir. Eentendi que, onde quer que eleestivesse, lá seria o meu lugar.

– Então, antes de pegar o

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trem para Southampton, temos quefazer uma visita obrigatória –disse ele enquanto tomávamoscafé na cama no dia seguinte.

– É mesmo? A quem?– À minha mãe. Eu lhe disse

que ela mora em Londres, nãodisse? E ela está louca paraconhecer você. Então,infelizmente, acho que vai ter quetirar essa bundinha perfeita dacama enquanto eu tomo umaducha.

Levantei-me e examineimeus pertences, ansiosa porque,para todos os efeitos, estava indoconhecer minha futura sogra. Nãotinha nada mais arrumado do que

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calças jeans, moletons e tênis quepusera na mala para as rarasnoites em que não estivesse noiate, vestida dos pés à cabeçacom roupas de Gore-Tex, a irmãimpermeável mas nem um poucosexy da lycra.

Entrei no banheiro paraprocurar na nécessaire um rímel eum batom, mas constatei que pelovisto os tinha esquecido emAtlantis.

– Eu não trouxe nemmaquiagem – choraminguei paraTheo através do box.

– Ally, eu adoro você aonatural – disse ele ao sair docubículo embaçado. – Você sabe

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como eu detesto muitamaquiagem. Agora será que vocêconsegue tomar banho rápido?Temos que sair agorinha.

Quarenta minutos depois,após percorrermos um labirintode ruas que Theo me disseficarem em uma região deLondres chamada Chelsea, o táxiencostou diante de uma bela casabranca. Três degraus de mármoreconduziam à porta da frente,ladeada por vasos de pedra quetransbordavam com gardêniasperfumadas.

– Chegamos – disse ele.Subiu depressa os degraus, tirouuma chave do bolso e destrancou

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a porta. – Mãe? – chamou aoentrarmos no hall, e eu o seguipor um corredor estreito até umacozinha bem arejada dominadapor uma mesa de carvalho rústicae por um imenso aparador galêsabarrotado de peças de cerâmicacoloridas.

– Aqui fora, querido! –cantarolou uma voz femininapelas portas de vidro abertas.

Saímos para uma varandacom piso de pedra, onde umamulher magra de cabelos louro-escuros presos em um rabo decavalo curto podava roseiras nopequeno, mas bem provisionado,jardim murado.

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– Mamãe foi criada nointerior da Inglaterra e tentareproduzir o mesmo ambienteaqui no centro de Londres –murmurou Theo em tomcarinhoso. Ao nos ver, sua mãeergueu o rosto e abriu um sorrisoencantado.

– Oi, querido. Oi, Ally.Quando ela veio caminhando

na minha direção, um par deolhos azul-claros cravou em mimo mesmo olhar intenso de seufilho. Achei-aextraordinariamente bonita, comtraços de boneca e a pele claratípica das inglesas.

– Ouvi falar tanto em você

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que sinto como se já a conhecesse– disse ela, dando-me dois beijoscalorosos no rosto.

– Oi, mãe – disse Theo, elhe deu um abraço. – Você estácom uma cara boa.

– Ah, é? Hoje de manhãmesmo eu estava contando oscabelos brancos no espelho. – Eladeu um suspiro fingido. –Infelizmente, a idade chega paratodo mundo. Mas o que vocêsquerem beber?

– Um café? – sugeriu Theo,olhando para mim com um arinterrogativo.

– Perfeito – concordei. – Apropósito, como sua mãe se

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chama? – sussurrei para eleenquanto a seguíamos de voltapara dentro de casa. – Não achoque já esteja no estágio em queposso chamá-la de “mamãe”.

– Meu Deus, desculpe! Onome dela é Celia. – Theo pegouminha mão e apertou. – Tudobem?

– Claro, tudo ótimo.Durante o café, Celia fez

algumas perguntas sobre mim, equando lhe contei sobre a mortede Pa Salt, reconfortou-me demodo caloroso, compadecida.

– Acho que filho nenhum serecupera por completo da perdade um dos pais, principalmente

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uma filha que perde o pai. Sei queeu fiquei arrasada quando perdi omeu. O máximo que se podeesperar é conseguir aceitar essefato. E ainda está muito cedo paraisso, Ally. Espero que meu filhonão esteja exigindo demais devocê – completou ela, lançandoum olhar a Theo.

– Não está não, Celia. E,para ser sincera, ficar chorandopelos cantos torna tudo bem maisdifícil. Eu prefiro me manterocupada.

– Bem, eu com certeza vouficar muito contente quando essaRegata Fastnet terminar. E talvez,quando vocês tiverem seus

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próprios filhos, entendam comomeu coração fica apertado doinício ao fim de qualquer regatada qual Theo participa.

– Falando sério, mãe. Eu jácompletei essa regata duas vezese sei o que estou fazendo –protestou Theo.

– E ele é mesmo um capitãoincrível, Celia. A tripulação fariaqualquer coisa por ele –acrescentei.

– Tenho certeza disso, e éclaro que fico cheia de orgulhodo meu filho, mas às vezesgostaria que ele tivesse escolhidoser contador, corretor da bolsa devalores ou pelo menos algo que

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não envolvesse tanto risco.– Por favor, mãe, você

normalmente não é tão ansiosaassim. Como já conversamosinfinitas vezes, eu poderia seratropelado por um ônibusamanhã. Além do mais, quem meensinou a velejar foi você. – Elelhe deu um encontrão afetuoso.

– Desculpem, vou calar aminha boca. Como eu disse maiscedo, deve ser a idade chegandoe todos aqueles pensamentosdramáticos que vêm junto.Falando nisso, teve notícias doseu pai recentemente? – indagouCelia, e notei uma leve mudançaem seu tom de voz.

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Theo demorou algunssegundos para responder.

– Tive. Ele me mandou ume-mail dizendo que estava na casado Caribe.

– Sozinho? – Celia ergueuuma das sobrancelhas de formatoelegante.

– Não faço ideia. E tambémnão me interessa – respondeuTheo, firme.

Ele mudou de assunto eperguntou à mãe se ela iria sairdo país no mês de agosto.

Fiquei escutando sem dizernada enquanto os doisconversavam sobre seus planosiminentes de passar uma semana

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no sul da França e alguns dias naItália por volta do fim do mês.Pela maneira descontraída comose tratavam, ficou claro que osdois se adoravam.

Depois de cerca de umahora, Theo esvaziou a segundaxícara de café e, relutante, olhoupara o relógio de pulso.

– Mãe, infelizmente temosque ir.

– Já? Não querem almoçarprimeiro? Posso fazer uma saladarapidinho, não vai dar trabalhonenhum.

– Não dá. Temos umareunião a bordo do Tigresa comtoda a tripulação às cinco, e

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pegaria muito mal se o capitãochegasse atrasado. Então nossaideia é tomar o trem de meio-diae meia em Waterloo. – Ele selevantou. – Vou dar um pulo nobanheiro, vejo vocês duas no hall.

– Foi ótimo conhecer você,Ally – falou Celia depois queTheo saiu da cozinha. – Quandoele me disse que você era amulher da vida dele, fiqueinervosa, o que é compreensível.Ele é meu filho único e é tudopara mim. Mas agora vejo quevocês foram feitos um para ooutro.

– Obrigada por dizer isso.Estamos muito felizes – agradeci,

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sorrindo.Quando nos levantamos da

mesa para ir até o hall, elaestendeu a mão e a pousou no meubraço.

– Cuide bem dele, sim?Theo nunca pareceu entender oque é o perigo.

– Farei o melhor que puder,Celia.

– Eu...Ela estava prestes a dizer

algo mais quando Theo tornou aaparecer ao nosso lado.

– Tchau, mãe. Eu ligo, masnão se preocupe se eu não dernotícias durante a semana daregata.

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– Vou tentar – respondeuCelia, e sua voz falhou. – E vouestar lá para torcer por você nalinha de chegada em Plymouth.

Sem querer me intrometer nadespedida dos dois, avancei emdireção à porta da frente, mas nãopude deixar de reparar namaneira como Celia o abraçou,como se não conseguisse suportara ideia de se separar do filho.Depois de algum tempo, Theo sedesvencilhou e ela acenou paranós dois com um sorriso amareloenquanto saíamos.

Na viagem de trem atéSouthampton, Theo pareceudistraído e mais calado do que o

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normal.– Está tudo bem? – perguntei

a ele, que olhava pensativo pelajanela.

– Estou preocupado comminha mãe, só isso. Ela hoje mepareceu diferente do normal. Emgeral não é tão pessimista;costuma se despedir de mim comum sorriso radiante e um abraçorápido.

– Ela adora você, isso éevidente.

– E eu também a adoro. Foiela quem fez de mim tudo que eusou hoje, e sempre apoiou minhacarreira de velejador. Talvez elaesteja mesmo ficando velha –

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concluiu ele, dando de ombros. –Sem falar, é claro, que duvidoque algum dia ela vá superar meupai e o divórcio deles.

– Você acha que ela ainda oama?

– Tenho quase certeza,embora isso não queira dizernecessariamente que ela gostedele. Como poderia? Quandodescobriu a lista de casos que eletinha, ficou mais do que arrasada.Coitada, ela se sentiu tãohumilhada que pediu que elefosse embora de casa, mesmo queisso tenha deixado seu coraçãopartido.

– Meu Deus, que horror.

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– Pois é. No fundo papaitambém a adora. Os dois sãoinfelizes separados, mas acho quea fronteira entre amor e ódio émuito tênue. Talvez seja comoviver com um alcoólatra: chegauma hora em que você precisaescolher entre perder a pessoaque ama ou a própria sanidade. E,por mais que os outros nos amem,ninguém pode nos salvar de nósmesmos, não é?

– É.De repente, Theo segurou

minha mão.– Nunca deixe a mesma

coisa acontecer com a gente, Ally.Está bem?

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– Nunca – respondi, comfervor.

Os dez dias seguintes foramfrenéticos, tensos e exaustivos,como sempre acontecia antes deuma regata – ainda mais pelo fatode a Fastnet ser uma dascompetições mais difíceis etecnicamente exigentes do mundo.Pelo regulamento, 50% datripulação precisava terpercorrido no mínimo 300 milhas

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náuticas em regatas offshore noúltimo ano. Na primeira noite,quando Theo reuniu todos osvinte tripulantes a bordo doTigresa, percebi que eu tinhamuito menos experiência do que amaioria deles. Embora Theofosse conhecido por incentivarjovens talentos e houvessechamado alguns tripulantes daRegata das Cíclades, ficou claroque não queria correr riscos e,por isso, havia escolhido osoutros membros a dedo, na eliteda comunidade da velainternacional.

O trajeto da regata eraexigente e perigoso: primeiro

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seguia pelo litoral sul daInglaterra, em seguida cruzava oMar Celta até a Rocha Fastnet, nacosta irlandesa, para então voltare terminar em Plymouth. Ventosoeste e sudoeste muito fortes,correntezas traiçoeiras e sistemasmeteorológicos famosos por suaimprevisibilidade haviamfrustrado as chances de muitasembarcações nas ediçõesanteriores. Além do mais, comotodos sabíamos, houvera diversasmortes ao longo dos anos.Nenhuma tripulação se inscreviana Fastnet de forma leviana,muito menos uma como a nossa,cujo objetivo era vencer.

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Diariamente, nósacordávamos ao raiar do sol epassávamos o dia inteiro no mar,repetindo incontáveis vezes asmanobras necessárias para levarao limite a habilidade dostripulantes e aquele estupendoveleiro, que era uma verdadeirajoia. Embora durante algumassessões de treino eu percebesseque Theo ficava frustrado quandoalgum tripulante não “trabalhavaem equipe”, como costumavadizer, ele não perdeu a calmasequer uma vez. Todas as noites,durante o jantar, a estratégia e astáticas para cada trecho da regataeram discutidas e refinadas de

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maneira incansável, e a últimapalavra era sempre dele.

Além dos treinos de velapropriamente ditos, tínhamosvárias palestras profundas sobresegurança. Fazíamos simulaçõesusando os sofisticadosequipamentos de segurança doiate, e cada um de nós recebeu umEPIRB, um transmissor pessoal,que deveria ficar preso em nossoscoletes salva-vidas. Mesmoquando não estávamos com asvelas içadas, a tripulaçãotrabalhava sem parar no veleiro everificava meticulosamente cadadetalhe sob o olhar vigilante deTheo: da verificação do rol de

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equipamentos ao teste dasbombas e guinchos, e ao içamentoe checagem de todo o velame.Entre suas muitas outras funçõescomo capitão, Theo eraresponsável por alocar os leitos eorganizar um revezamento devigilância.

Graças à sua inspiradaliderança, o esprit de corpsestava bem elevado quando elenos deu a última palestra deincentivo na véspera do início daregata, no dia 12 de agosto. Nofim, todos os integrantes datripulação se levantaram paraaplaudi-lo.

Estávamos agora totalmente

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preparados. O único senão era aprevisão de tempo desastrosapara os dias seguintes.

– Agora preciso ir ao RoyalOcean Racing Club para obriefing dos capitães, querida –disse-me Theo, dando um beijorápido na minha bochechaenquanto o restante da tripulaçãocomeçava a se dispersar. – Voltepara o hotel e tome um banho debanheira demorado. É o últimoque vai poder tomar em muitotempo.

Fiz isso e tentei ao máximocurtir o luxo daquela águaescaldante, mas, ao olhar pelajanela mais tarde, vi como o

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vento havia aumentado e agorarugia pelo porto, fustigando comviolência as 271 embarcaçõesreunidas na ilha e ao seu redor.De repente, senti um frio nabarriga. Aquilo era a última coisade que precisávamos, e osemblante de Theo estavasombrio quanto ele se juntou amim mais tarde no quarto dehotel.

– Novidades? – perguntei.– Todas ruins, infelizmente.

Como já sabíamos, a previsão écatastrófica e estão até pensandoem adiar o início da regata.Emitiram um alerta de climasevero, com previsão de ventos

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muito fortes. Para ser sincero, nãopoderia ser pior.

Com um ar muito abatido,ele se sentou. Fui até lá emassageei seus ombros.

– Você precisa se lembrar deque é só uma regata.

– Eu sei, mas se eu ganhasseseria o auge da minha carreira atéagora. Estou com 35 anos, Ally, enão posso continuar fazendo issopara sempre. Que droga! – disseele, socando o braço da cadeiracom o punho fechado. – Por quelogo este ano?

– Bom, vamos ver o que oamanhã vai trazer. As previsõesmuitas vezes erram.

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– Mas a realidade não –suspirou ele, apontando para océu cada vez mais escuro lá fora.– Enfim, você tem razão, não hánada que eu possa fazer. Eles vãoligar para todos os capitãesamanhã de manhã às oito para nosavisar se o início da regata vaiser adiado. Então agora é a minhavez de tomar um banho quente eme deitar cedo.

– Vou encher a banheira.– Obrigado. E... Ally?– Hum? – No caminho para

o banheiro, me virei.Ele me abriu um sorriso.– Eu amo você.

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Como ele temia, a regata foiadiada pela primeira vez em 83anos de existência. Os tripulantesalmoçaram no Royal LondonYacht Club, todos com a carafechada, observando o céu pelajanela e torcendo por um milagre.Uma nova decisão seria tomadana manhã seguinte, bem cedo,então depois do almoço Theo e euvoltamos desanimados para oquarto do hotel no porto.

– O tempo vai acabarabrindo, Theo. Sempre abre.

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– Ally, eu entrei em todos ossites possíveis e imagináveis,sem falar que liguei pessoalmentepara o centro de meteorologia, eparece que um sistema de baixapressão se instalou e vaipermanecer pelos próximos dias.Mesmo que a gente consigacomeçar a regata, chegar ao fimvai ser dificílimo. Mas, enfim,pelo menos temos tempo paramais um banho quente debanheira. – Ele olhou para mim eabriu um sorriso repentino.

Nesse domingo à noite,jantamos juntos no restaurante dohotel. Estávamos tensos epreocupados. Theo se permitiu

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até tomar uma taça de vinho, algoque normalmente jamais faria navéspera de uma regata, evoltamos para o quarto um poucomais calmos do que tínhamossaído. Nessa noite, quandotransamos, ele demonstrou umaurgência e uma paixão fora donormal. Depois do sexo, desabounos travesseiros e me puxou paraum abraço.

Quando estávamos quasepegando no sono, ouvi-o dizer:

– Ally?– Hum?– Se tudo correr bem

amanhã, a gente vai zarpar. Mas acoisa vai ser feia. Só queria

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lembrar a você agora aquilo queme prometeu em “Algum Lugar”.Se eu disser que quero você forado barco, vai obedecer às minhasordens como capitão.

– Theo, eu...– Estou falando sério, Ally.

Não posso deixar você embarcaramanhã se não tiver certeza deque vai me obedecer.

– Então sim – respondi,dando de ombros. – Você é meucapitão. Tenho que obedecer àssuas ordens.

– E antes de você perguntaroutra vez, não é porque você émulher, nem porque eu tenhaqualquer dúvida sobre a sua

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capacidade. É porque eu amovocê.

– Eu sei.– Ótimo. Durma bem, meu

amor.

Na manhã seguinte, bemcedo, recebemos a notícia de quea Regata Fastnet iria começar –com 24 horas de atraso. Apósavisar à tripulação, Theo foidireto para o veleiro, e pude verque ele já estava focado e

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revigorado.Uma hora mais tarde, juntei-

me a ele a bordo do Tigresa comos outros tripulantes. Mesmo noporto, os barcos se balançavamperigosamente de um lado para ooutro, castigados pelo vento epelas ondas.

– Meu Deus, e pensar que euneste exato momento poderiaestar conduzindo um iate alugadode luxo pelo Caribe – resmungouRob quando ouvimos o tiro quemarcava a largada eaguardávamos tensos para sair doporto.

Enquanto esperávamos,Theo reuniu todos no convés para

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uma foto de bon voyage.Até mesmo os mais

experientes velejadores do nossogrupo estavam com a expressãomeio assustada quando finalmentedeixamos o abrigo do porto. Omar extremamente revolto, que ovento transformava em umturbilhão de espuma, deixou todomundo encharcado em poucossegundos.

Durante as oito turbulentashoras seguintes, à medida que aintensidade do vento continuavaaumentando, Theo permaneceucalmo. Raras foram as vezes emque perdeu o equilíbrio aomanejar o leme do veleiro pelo

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mar enfurecido, e emitia umasérie quase constante de ordenspara nos manter no curso epreservar nossa velocidade. Asvelas foram abertas e fechadasuma dezena de vezes, e tivemosque enfrentar condições árduas eimprevisíveis, incluindo rajadasde quarenta nós que pareciamsurgir do nada. Durante todo essetempo, a chuva nos fustigava semtrégua.

Nesse primeiro dia, dois denós ficamos incumbidos dastarefas de cozinha. Tentamosesquentar uma sopa, mas, mesmocom o fogão lastreado projetadopara manter as panelas no prumo,

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a inclinação do veleiro era tãoforte que o líquido se derramavapara todos os lados e em mais deuma ocasião nos queimou. Entãorecorremos a alguns dos pacotesde comida pré-cozida e aaquecemos no micro-ondas. Ostripulantes desciam em turnos,tremendo dentro de suas roupasde regata e exaustos demais paratirá-las durante o curto intervalode tempo que levariam paracomer. Sua expressão de gratidão,porém, lembrava-me que, em umaregata, as tarefas domésticas eramtão importantes quanto as queeram realizadas acima do convés.

Theo estava no último turno

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para fazer a refeição; enquantoengolia a comida, contou-me quevárias embarcações já tinhamdecidido buscar abrigo emdiferentes portos no litoral sul daInglaterra.

– Vai piorar muito quandosairmos do Canal da Mancha parao Mar Celta. Principalmente ànoite – completou, olhando para orelógio.

Eram quase oito da noite, e aluz estava começando a baixar.

– O que os outros acham? –perguntei.

– Todo mundo vota porcontinuar. E eu acho que o veleiroaguenta...

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Nesse exato instante, nósdois fomos derrubados dosbancos quando o Tigresa adernoupara estibordo. Soltei um ganidoquando bati violentamente com abarriga na quina da mesa. Theo, ohomem que eu genuinamenteacreditara ser capaz de andarsobre as águas, estava agora selevantando do chão.

– Certo. Chega – disse eleao me ver curvada por causa dador. – Como você disse, é só umaregata. Vamos aportar.

E antes de eu conseguir dizerqualquer coisa ele já estavasubindo de dois em dois osdegraus que conduziam ao

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convés.Uma hora depois, Theo nos

guiou para dentro do porto deWeymouth. Apesar das roupas àprova d’água de alta tecnologia,estávamos encharcados até osossos, além de completamenteexaustos. Após ancorarmos,baixarmos as velas e checarmostodo o equipamento para ver senão havia avarias, Theo nosconvocou à cabine principal.Prostrados, sentamo-nos ondehavia lugar, com que as roupas decompetição cor de laranja nosfaziam parecer lagostas meiomortas capturadas pela rede deum pescador.

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– Hoje à noite está perigosodemais para continuar, e não voupôr a vida de nenhum de vocêsem risco. Mas a boa notícia é quequase todos os outros barcos dacompetição já se abrigaram, entãotalvez ainda tenhamos uma levevantagem. Ally e Mick vãopreparar um macarrão para maistarde, e enquanto isso vocêspodem tomar banho na ordemestabelecida. Assim que o solraiar, vamos zarpar de novo.Alguém ponha a chaleira no fogopara podermos fazer um chá e nosesquentar um pouco. Amanhã demanhã precisamos estar em plenaforma.

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Mick e eu nos levantamoscambaleando e fomos em direçãoà cozinha. Enchemos uma panelagrande com macarrão e pusemoso molho pronto para esquentar.Mick nos preparou um chá e bebio meu com gratidão, imaginandoo calor fluindo por todo meucorpo até os dedos gelados dospés.

– Eu bem que aceitaria umgolinho de alguma coisa maisforte – disse Mick com umsorriso. – Dá para entender porque os marinheiros deantigamente viviam à base derum, não é?

– Ei, Al, você é a próxima

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no chuveiro – chamou Rob.– Não se preocupe, eu passo

a minha vez e tomo banho maistarde.

– Ótimo – disse ele,agradecido. – Vou fingir que souvocê.

Meus dotes culináriosduvidosos nunca foram tãoapreciados quanto nessa noite.Logo depois de comermos elavarmos as tigelas de plástico,todos começaram a se dispersarpara dormir enquanto podiam.Como o veleiro não havia sidoprojetado para tantos tripulantesdormirem ao mesmo tempo, aspessoas se acomodaram como

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dava, nos bancos ou no chãomesmo, enroladas em levíssimossacos de dormir.

Fui tomar minha ducha meperguntando se me sentiria melhorou pior com a água gelada, queera tudo que restava para o fim dafila. Quando saí, Theo estava meesperando do lado de fora.

– Ally, preciso falar comvocê. – Ele me puxou pela mãopelo compartimento agora napenumbra, cheio de corposinertes, até o espaço diminutocheio de equipamentos denavegação que chamava de“escritório”. Fez eu me sentar esegurou minhas duas mãos.

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– Ally, você acredita que eute amo?

– É claro que acredito.– E acredita que acho você

uma velejadora incrível?– Não tenho certeza. – Dei-

lhe um meio sorriso enigmático. –Por quê?

– Porque eu não vou maislevar você nesta regata. Um boteinflável vai vir pegá-la daqui apoucos minutos. Fiz reserva paravocê em uma pousada no porto.Desculpe, mas para mim não dá.

– Não dá o quê?– Não dá para arriscar. A

previsão do tempo está péssima,e já conversei com vários outros

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capitães que estão falando emdesistir. Acho que o Tigresa podecontinuar, mas não posso deixarvocê continuar a bordo. Entendeisso?

– Não. Não entendo. Por queeu? Por que não os outros? –protestei.

– Por favor, querida, vocêsabe por quê. – Ele fez uma pausaantes de continuar. – E, se quisermesmo saber a verdade, comvocê a bordo fica bem maisdifícil me concentrar e fazer otrabalho que precisa ser feito.

Encarei-o, chocada e atônita.– Eu... Por favor, Theo, me

deixe ficar – implorei.

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– Desta vez não. Temosainda muitas outras batalhas paravencer juntos, querida. E váriasdelas não vão ser na água. Nãovamos colocar isso em risco.

– Mas se está tãopreocupado com o fato de eucontinuar competindo, por quenão tem problema você fazer omesmo? Se outros barcos estãopensando em desistir, por quetambém não desiste? – À medidaque meu cérebro processavaaquele anúncio devastador, minharaiva ia começando a aumentar.

– Porque esta regata semprefoi o meu destino, Ally. Eusimplesmente não posso

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decepcionar todo mundo. Émelhor você arrumar suas coisas.Seu bote vai chegar a qualquermomento.

– Mas e eu? Possodecepcionar todo mundo? Possodecepcionar você? – perguntei;minha vontade era gritar, maspensei nos outros tripulantesdormindo ali perto. – Meu papelé proteger você!

– Você com certeza vai medecepcionar se continuardiscutindo comigo – disse ele,ríspido. – Junte suas coisas.Agora. É uma ordem do seucapitão. Por favor, obedeça.

– Sim, capitão – retruquei,

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petulante, sabendo que precisavaaceitar a derrota.

Quando fui buscar minhamochila, porém, estava uma feracom Theo, por vários e confusosmotivos. Ao subir de volta para oconvés, vi as luzes do boteatravessando o porto na nossadireção e fui até a popa baixar aescada.

Estava decidida a ir emborasem me despedir dele. Segurei aboça que o capitão do bote melançou e a prendi em um doscunhos do convés enquanto eleemparelhava com o veleiro.Quando havia acabado de pisarna escada para descer, a luz de

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uma lanterna vinda de cimabrilhou na minha cara.

– A sua pousada se chamaThe Warwick – disse a voz deTheo.

– Tá – respondi, sementonação.

Joguei a mochila no bote quese balançava e desci mais umdegrau. Foi então que a mão dealguém me segurou pelo braço, eele me puxou de volta na suadireção.

– Pelo amor de Deus, Ally,eu amo você. Amo você... –murmurou ele, me abraçando; aspontas dos meus dedos dos pés seequilibravam mal e mal no último

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degrau da escada. – Nunca seesqueça disso, está bem?

Apesar da raiva que eusentia, meu coração amoleceu.

– Nunca – falei, pegando alanterna da sua mão e iluminandoseu rosto para gravar seus traçosna memória. – Se cuide, amor –sussurrei.

Relutante, Theo me soltoupara poder desamarrar a boça.Desci os degraus restantes e puleidentro da embarcação que meaguardava.

Nessa noite, exaurida pelamais árdua experiência comovelejadora que já tivera quesuportar, não consegui dormir.

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Além do mais, tinha revirado amochila e percebido que, napressa de sair do Tigresa, haviaesquecido meu celular a bordo.Agora não poderia ter nenhumcontato direto com Theo;recriminei-me pela minha burrice.Fiquei andando de um lado para ooutro do quarto, dividida entre aindignação por ter sido despejadaem terra firme sem a menorcerimônia e um medo semtamanho ao ver as nuvens revoltase a chuva torrencial no porto láfora, ouvindo o clangor contínuode velames fustigados pelo vento.Sabia quanto aquela regatasignificava para ele, mas tive

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medo de que o seu desejo devencer obscurecesse a suaavaliação profissional. Derepente, vi o mar como o que defato era: um animal furioso,indomável, capaz de reduzir sereshumanos a destroços com suamagnífica potência.

Quando um dia escurocomeçou a nascer, vi o Tigresa semover de novo e começar a sairdo porto de Weymouth rumo aomar aberto.

Segurei com força meu colarde noivado e entendi que nãohavia mais nada que pudessefazer.

– Tchau, meu amor –

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sussurrei, e fiquei observando atéo veleiro virar um pontinhominúsculo arremessado pelasondas cruéis do mar aberto.

Passei as horas seguintes mesentindo completamente isolada.Por fim, dei-me conta de que erainútil ficar ali em Weymouthsozinha e infeliz, então pus ascoisas na mochila, peguei umtrem e em seguida a balsa devolta para Cowes. Pelo menosassim estaria perto do centro decomando da regata e poderiasaber como estavam indo ascoisas sem ter que depender dainternet. Todos os veleiros tinhamlocalizadores GPS, mas eu sabia

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que, quando o tempo estava ruim,esses aparelhos eram conhecidospor não serem confiáveis.

Três horas e meia depois, fizo check in no mesmo hotel em queTheo e eu tínhamos noshospedado durante os treinos, efui a pé até o Royal YachtSquadron para ver o queconseguia descobrir. Fiqueidesanimada ao avistar várias dastripulações que tinham começadoa competição conosco reunidasem grupos cabisbaixos ao redordas mesas.

Vi Pascal Lemaire, umfrancês com quem tinha velejadoalguns anos antes, e fui falar com

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ele.– Oi, Al – disse ele,

surpreso. – Não sabia que oTigresa tinha desistido.

– Não desistiu, não. Pelomenos não que eu saiba. Meucapitão me mandou desembarcarontem. Achou que estava perigosodemais.

– Ele tem razão, está mesmo.Dezenas de veleiros já desistiramoficialmente da regata ou estãoesperando no porto até o tempomelhorar. Nosso capitão decidiusair da competição. Para asembarcações menores como anossa, o mar estava umverdadeiro inferno. Poucas vezes

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na vida vi um tempo desses. Mascom um veleiro de cem pés o seupessoal deve ficar bem, e esseque o seu namorado estácapitaneando é o melhor queexiste – garantiu-me ele ao verminha expressão angustiada. –Aceita uma bebida? Vários denós estamos aqui, afogando asmágoas.

Aceitei o convite e me junteiao grupo, que inevitavelmentecomeçou a comparar aqueletempo ao da Regata Fastnet de1979, quando 112 veleiros foramderrotados pelas ondas e 18pessoas haviam perdido a vida,entre elas três membros das

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equipes de resgate. Meia horamais tarde, perturbada e aflitacom a situação do Tigresa e deTheo, pedi licença e vesti meucasaco antes de descer a ruacastigada pela chuva até o centrode comando da regata, que ficavano Royal Ocean Racing Club, aliperto. Chegando lá, perguntei nahora se havia alguma informaçãosobre o Tigresa.

– Sim, eles estão algumasmilhas depois de Bishop Rock, eno momento estão avançando bem– disse o operador depois deverificar o monitor. – Estão naquarta posição. Mas, enfim, peloandar da carruagem, com o tanto

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de desistências que vêm sendoanunciadas, é capaz de ele ganharpor eliminação – acrescentou ele,com um suspiro.

Reconfortada ao saber que,pelo menos até onde se sabia,tudo estava sob controle e Theoestava bem, voltei para o RoyalYacht Squadron e pedi umsanduíche. Outros tripulantesexaustos e desgrenhadoscomeçaram a chegar. Aintensidade do vento haviaaumentado outra vez, ouvi-osdizer, mas como estavaperturbada demais para conseguirprestar atenção na conversa,voltei para o hotel, e acabei

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conseguindo umas duas horas desono agitado. Por fim desisti dedormir, e às cinco da manhãseguinte, ao mesmo tempo queuma aurora cinza lutava paradespontar, eu já estava de voltaao centro de comando. Quandoentrei, fez-se um silêncio norecinto.

– Alguma notícia?Vi os operadores trocando

olhares nervosos.– O que houve? – perguntei,

sentindo o coração de repentesubir à boca. – Está tudo bemcom o Tigresa?

Mais uma troca de olhares.– Recebemos um pedido de

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socorro por volta das três e meiada madrugada. Parece que umhomem caiu no mar. Organizamosuma busca da guarda-costeira eum resgate por helicóptero. Aindaestamos aguardando notícias.

– Eles sabem quem é? O queaconteceu?

– Desculpe, princesa, porenquanto não temos mais nenhumdetalhe. Por que não vai tomar umchá, e avisamos assim quesoubermos de alguma coisa?

Assenti, fazendo força paracontrolar a histeria que sentiacrescer dentro de mim. O Tigresaera um veleiro de última geração,com um excelente sistema de

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comunicação. Eu sabia que osoperadores estavam mentindo aoafirmarem não saber nenhumdetalhe. E, se eles estavammentindo, isso só podia significaruma coisa.

Com o coração batendo tãodepressa que pensei que fossedesmaiar, rumei para o banheirofeminino, deixei-me cair sentadaem cima do vaso sanitário ecomecei a arquejar, sentindo opânico tomar conta de mim.Talvez estivesse errada; talvezeles apenas não pudessemdivulgar os detalhes atéesclarecerem exatamente o quehavia acontecido. Mas no fundo

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da minha alma eu já sabia.

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O corpo de Theo foi levado devolta à terra firme de helicóptero.O diretor da regata teve agentileza de me oferecer um carropara me levar de balsa atéSouthampton mais tarde, e de lá,se eu quisesse, até o hospital,onde o corpo dele estaria nonecrotério.

– Você e a mãe dele estãolistadas como parentes maispróximas. Lamento muito dizer

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isso, mas uma das duasprovavelmente vai precisar...bom... preencher a papeladanecessária. É melhor eu entrar emcontato com a Sra. Falys-Kingsou você pode fazer isso?

– Eu... eu não sei – respondi,anestesiada.

– Talvez seja melhor euligar. Estou muito preocupado queela escute a notícia no rádio ouveja na televisão. Infelizmente,vai ser uma notícia importante nomundo inteiro. Eu sinto muito,Ally, muito mesmo. Vou poupá-lados lugares-comuns habituaissobre Theo fazer aquilo queamava. Estou simplesmente

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consternado por você, pelatripulação dele e pelo mundo davela.

Não respondi. Não havia oque dizer.

– Certo – disse o diretor; eraevidente que não sabia o quefazer comigo, sentada, catatônica,ali na sala. – Quer que eu a levede volta até o hotel, para tentardescansar um pouco?

Dei de ombros, impotente.Sabia que a sua intenção era boa,mas duvidava que algum dia fosseconseguir “descansar” outra vez.

– Está tudo bem, obrigada.Vou voltar a pé.

– Se eu puder fazer alguma

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coisa, Ally, por favor me avise.Você tem meu celular, então mefale se vai querer o carro. Atripulação está trazendo o Tigresade volta até Cowes. Tenho certezade que eles vão querer falar comvocê em algum momento paracontar exatamente o queaconteceu, se você estiver comcabeça. Enquanto isso, vou ligarpara a mãe de Theo.

Arrastando os pés, semconseguir pensar em nada,margeei o porto a pé de volta atémeu hotel, e parei por um instantepara observar o mar cinzento ecruel. Fiquei ali, em pé, ecomecei a gritar obscenidades

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para aquele mar, aos berros, feitouma louca, perguntando por queele tinha levado meu pai e agoraTheo.

E nessa hora jurei a mimmesma nunca mais colocar os pésem um barco.

As horas seguintes foram umvazio. Fiquei sentada no quarto,sem conseguir pensar nemprocessar coisa alguma.

Tudo que sabia era queagora não restava mais nada.

Nada.O telefone ao lado da cama

tocou e me levantei como umrobô para atender. Era a recepçãoavisando que alguns amigos

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estavam esperando lá embaixopara falar comigo.

– Um senhor chamado RobBellamy e três outros – disse amulher.

Apesar de anestesiada, eusabia que, por mais doloroso quefosse encarar a tripulação,precisava saber como Theo tinhamorrido. Pedi à recepcionista quelhes avisasse que eu iriaencontrá-los no lounge do hotel.

Quando entrei, encontreiRob, Chris, Mick e Guy à minhaespera. Igualmente em choque,eles mal conseguiam olhar paramim ao murmurar seus pêsames.

– A gente fez tudo que

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pôde...– Que coragem pular atrás

do Rob...– Não foi culpa de ninguém,

foi um trágico acidente...Aquiesci e conseguir

responder com monossílabos àssuas palavras de condolências,fazendo o possível para parecerum ser humano funcional. Por fim,Mick, Chris e Guy se levantarampara ir embora, mas Rob disseque ficaria.

– Obrigada, rapazes – falei,dando-lhes um aceno patéticoquando os três se retiraram.

– Al, se você me permitir,preciso de uma bebida. – Rob fez

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sinal para a garçonete queaguardava no canto junto àestação de serviço. – E antes deeu contar exatamente o queaconteceu, você também precisa.

Por fim, enquanto cada qualempunhava um copo de conhaque,Rob inspirou fundo, e vi queestava com os olhos marejados.

– Rob, por favor, conte logo– apressei-o.

– Está bem. Como o tempoestava péssimo, a gente estavacom as velas reduzidas, e não emmovimento. Eu estava no convésde proa, no meu turno de vigia,quando Theo chegou para merender. Quando soltei meu colete

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da corda de segurança, uma ondaimensa me acertou e fuiarremessado para fora do barco.Parece que apaguei, então comcerteza teria me afogado, masTheo deu o alarme, jogou a boiade marcação e pulou no mar atrásde mim. Continuei apagado, mas aessa altura todos os outros jáestavam no convés, e medisseram que Theo deu um jeitode nadar até mim, me puxar até aboia e me prender a ela, mas que,nessa hora, outra onda gigante oarrastou para longe de mim e paradebaixo d’água. Depois disso,eles o perderam totalmente devista, pois estava muito escuro e

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o mar estava muito agitado, evocê sabe tão bem quanto eu quenessas condições é impossívelenxergar alguém na água. Se pelomenos ele tivesse conseguidocontinuar agarrado à boia... – Robengoliu um soluço. – Talveztivesse se safado. A tripulaçãopediu um helicóptero de resgatepelo rádio, e eles me encontrarame me içaram a bordo graças à luzda boia. Mas o Theo... bom, elesacabaram encontrando o... o... ocorpo dele uma hora depois pelosinal do EPIRB. Meu Deus, Al,eu sinto muito... Nunca vouconseguir me perdoar por isso.

Pela primeira vez desde que

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havia recebido a notícia, sentialgum tipo de emoção verdadeiratornar a correr por minhas veias.Pousei a mão em cima da dele.

– Rob, todos nósconhecemos os perigos da vela, eTheo os conhecia melhor do queninguém.

– Eu sei tudo isso, Al, masse eu não tivesse soltado meucolete naquele momento... quemerda! – disse ele, e levou umadas mãos ao rosto para tapar osolhos. – Era para vocês doisficarem juntos... e agora, porculpa minha, não vão poder. Vocêdeve me odiar!

Rob foi então tomado por

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soluços incontroláveis, e tudo queconsegui fazer foi afagar seuombro com gestos mecânicos. Opior era que parte de mim oodiava mesmo, pois ele haviasobrevivido, e Theo não.

– Não foi culpa sua. Rob.Ele fez o que qualquer capitãoteria feito. E eu não teriaesperado dele nada menos do queisso. É que algumas coisas... –Quando a minha lenga-lenga seesgotou, mordi o lábio paraimpedir que minhas própriaslágrimas rolassem.

– Ally, me perdoe, quemdeveria estar aqui sentado aosprantos não era eu. – Culpado,

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Rob secou os olhos. – Eu sóprecisava confessar como estavame sentindo.

– Obrigada. E agradeço porter me contado o que aconteceu,agradeço mesmo. Também nãodeve ter sido fácil para você.

Passamos algum temposentados em silêncio antes de elese levantar.

– Se houver alguma coisaque eu possa fazer, por favor, meligue. Falando nisso... – Eleenfiou a mão no bolso da calçajeans. – Encontrei isto aqui nacozinha. É seu?

– É. Obrigada. – Peguei ocelular da mão dele.

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– O Theo salvou a minhavida – sussurrou ele. – Ele é umherói, caramba. Eu... eu sintomuito.

Observei-o sair do lounge,desconsolado, e fiquei sentada,pensando que nada mais meprendia ali. Tinha certeza de queCelia iria querer reconhecer ocorpo do filho. Quando melevantei, louca para sair daquelelugar que servira de cenário àminha aniquilação pessoal,perguntei-me para onde poderiair. De volta para Genebra, pensei.Mas lá também me aguardava oimenso buraco de uma perda.

Não havia refúgio possível.

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Entrando no quarto, comeceia fazer as malas mecanicamente.

Dessa vez, deixei o celulardesligado pelo motivo oposto dequando estava velejando comTheo. Estava abalada demaispara falar com minha família elhe contar o que havia acontecido.Além do mais, nenhuma dasminhas irmãs sabia sobre o nossonamoro. Eu havia alegrementepartido do princípio de quehaveria tempo de sobra no futuropara elas o conhecerem. E, sendoque nós mesmos nos conhecíamoshavia muito pouco tempo, comoeu poderia explicar a elas o queele significava para mim? Como

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explicar o fato de, ainda que sóestivéssemos juntos fisicamentehavia poucas semanas, eu sentirque nossas almas estavam unidaspela vida inteira?

Quando Pa Salt morreu, eutinha pensado que pelo menos asua morte fazia parte da ordemnatural do ciclo da vida. E tinhaTheo para me consolar, para meoferecer a esperança de um novocomeço. Ao pensar nisso, entendiquanto havia confiado nele parapreencher o gigantesco vaziodeixado por Pa. Mas agora eletambém tinha partido; comoqualquer sonho que eu pudesse terpara o futuro. Em poucas e

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sinistras horas, não só Theo, mastambém a minha paixão de umavida inteira pela vela tinham sidobrutalmente arrancados de mim.

Bem na hora em que euestava prestes a sair do quartocom minha mochila, o telefone damesinha de cabeceira tocou.

– Alô? – atendi, cautelosa.– Ally, aqui é a Celia. O

diretor da regata me disse quevocê estava hospedada no NewHolmwood.

– Eu... oi.– Como você está? –

perguntou ela.– Péssima – balbuciei, sem

mais forças para bancar a forte.

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Entendia que, pelo menos comela, não havia por que fazer isso.– E você?

– Péssima também. Acabeide chegar do hospital.

Ficamos as duas emsilêncio, cada qual digerindo ohorror que aquelas palavrasdefinitivas representavam. Quasepude sentir Celia tentando conteras lágrimas antes de tornar afalar.

– Estava me perguntandopara onde você vai agora, Ally.

– Eu não tenho certeza... nãosei.

– Então que tal pegar a balsapara Southampton? Podemos ir

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juntas para Londres, e você podepassar uns dias comigo. Aatenção sensacionalista da mídiaque essa história toda estácomeçando a atrair é umpesadelo. A gente poderia montaras barricadas e passar um tempoquietinhas na minha casa. O queacha?

– Eu acho que... que eu iriaadorar. – Engoli em seco,agradecida e aliviada, enquantosentia as lágrimas transbordaremdos olhos.

– Você tem meu telefone. Ésó me avisar a que horas vaichegar na estação deSouthampton, e eu encontro você

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lá.– Aviso, sim, Celia. E

obrigada.Desde então, muitas vezes

pensei que, se não fosse por essetelefonema na hora mais sombria,eu poderia muito bem ter mejogado no mar revolto atrás deTheo quando estivesse na balsapara Southampton.

Quando nos encontramos naestação e vi seu rosto branco feitoum fantasma escondido atrás deimensos óculos escuros, corripara seus braços abertos damesma forma que teria feito comMa. Passamos um tempão assim,duas quase desconhecidas

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totalmente ligadas pela dor; sónós duas no mundo éramoscapazes de compreender uma àoutra.

Chegando em Waterloo,pegamos um táxi até a bela casabranca em Chelsea, e Celia nospreparou uma omelete, poisambas nos demos conta de quenão tínhamos comido nada desdeque ficáramos sabendo da notícia.Ela também serviu uma taçagrande de vinho para cada uma, eficamos sentadas na varandanaquela noite quente e calma deagosto.

– Ally, preciso lhe dizer umacoisa. Talvez você ache um

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absurdo, mas a verdade é que... –Um forte arrepio percorreu seucorpo delicado. – Quando vocêsestiveram aqui, eu sabia. Quandome despedi dele, tive a sensaçãode que era para sempre.

– Pois é. O Theo sentiu seumedo, Celia. Depois que saímosdaqui, no trem para Southampton,ele ficou todo esquisito.

– Será que foi por causa domeu pressentimento ou de algumpressentimento dele? Você lembraque ele foi ao banheiro e disseque nos encontraria no hall logoantes de vocês saírem? Bom,depois de fechar a porta, volteipara a cozinha e encontrei isto

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aqui em pé na mesinha,endereçado a mim.

Ela empurrou um envelopegrande na minha direção, e li apalavra “Mamãe” escrita nafrente com a caligrafia cheia dearabescos de Theo.

– Quando abri, encontrei aídentro uma cópia novinha dotestamento dele, além de umacarta para mim – explicou ela. –E uma para você também, Ally.

– Eu... – Levei a mão à boca.– Ai, meu Deus.

– Eu já li a minha, mas a suaestá aqui, fechada, claro. Talvezvocê ainda não aguente ler, maspreciso lhe entregar, pois foi isso

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que ele me pediu para fazer nacarta que deixou para mim.

Ela tirou um envelope menorde dentro do grande e me passou.Segurei-o com as mãos trêmulas.

– Mas, Celia, se ele estavacom um pressentimento, então porque não desistiu da regata, comofizeram tantos outros capitães?

– Acho que nós duassabemos por quê, Ally. Vocêtambém veleja, e entende quetoda vez que coloca os pés em umbarco no início de uma regata estáenfrentando perigo. Como Theonos disse naquele dia, ele poderiamuito bem ter sido atropelado porum ônibus – disse ela com um dar

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de ombros pesaroso. – Talvez eleapenas achasse que o seu destinoera...

– Morrer aos 35 anos?! Comcerteza não. Se ele achasse isso,como poderia ter me amado? Eleme pediu em casamento! A gentetinha a vida inteira pela frente.Não. – Balancei a cabeça comveemência. – Não consigo aceitarisso.

– É claro que não, e vocêprecisa me perdoar por tocar noassunto, mas eu acho issoreconfortante, de um jeitoestranho. A morte confunde muitoa gente. Nenhum de nós realmenteaceita a mortalidade das pessoas

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que ama. Apesar disso, junto como nascimento, a morte é a únicacerteza na vida.

Baixei os olhos para a cartaainda fechada que tinha nas mãos.

– É, Celia, talvez você tenharazão. – Suspirei, resignada. –Mas por que ele teria deixado umtestamento novo ou um bilhetepara cada uma de nós se nãotivesse tido alguma espécie depremonição?

– Para ser sincera, vocêsabe como era o Theo: sempremuito organizado e eficiente, atémesmo na morte.

Involuntariamente, nós duassorrimos.

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– É. Igualzinho ao meu pai.Bom, acho melhor eu ler a cartadele.

– Não se apresse. E agora,querida, se me dá licença, vousubir e tomar um banho debanheira demorado.

Celia então se retirou, e eusabia que era mais para me deixarum pouco sozinha do que porqualquer outro motivo.

Tomei um gole grande devinho, pousei o copo e, com osdedos tremendo, abri o envelope.Não pude deixar de pensar queaquela era a segunda carta doalém que eu recebia em poucassemanas.

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Remetente: eu, semendereço fixo

(na verdade, a bordodo trem de Southamptonindo encontrar você em

Heathrow)

Minha querida,Admito que esta é uma

ideia meio ridícula querecentemente vem mepassando pela cabeça. Mas,como você já sabe e minha

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mãe vai confirmar, eu soumuito organizado. Ela temuma cópia do meutestamento desde quecomecei a competir emregatas. Não que eu tenhagrande coisa para deixar,mas acho mais fácil para osque ficam quando a pessoadeixa tudo ajeitado.

E, é claro, agora quevocê chegou e virou ocentro do meu universo e apessoa com quem queropassar o resto da minhavida, as coisas mudaram.Como tudo ainda não está“oficializado” e eu preciso

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pôr um anel no seu dedopara se juntar ao colar quevocê já está usando nopescoço, parece-me vitalgarantir que todos saibamquais são as nossasintenções, pelo menosfinanceiramente, casoalguma coisa aconteçacomigo.

Tenho certeza de quevocê vai ficar radiante eempolgada (hahaha!)quando eu disser que estoulhe deixando meu estábulode cabras em “AlgumLugar”. Pude ver naquelaprimeira noite quanto você

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amou aquele lugar (só quenão), mas o terreno e oalvará de construção pelomenos valem alguma coisa.(“Alguma Coisa em Algumlugar”: seria um nomepossível para a casa, vocênão acha?). Além disso,quero que você fique com oNetuno, minha atual casano mar. Para ser sincero,esses são meus únicos bensmateriais com algum valor.Tem também a motinho, masacho que você ficariaofendida se eu lhe deixasseisso. Ah, e não possoesquecer o modesto fundo

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de pensão que meugeneroso pai me deu, e quepelo menos vai bancarqualquer vinho tintosuspeito que você resolvabeber em “Algum Lugar”no futuro.

Desculpe, estamospassando por um trecho detrilhos meio sacolejante,então perdoe a caligrafiatenebrosa; tenho certeza deque vou arrancar esta cartada mamãe no minuto em quevoltarmos da regata paradigitá-la no computador. Sepor acaso eu não fizer isso,posso ficar descansado

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sabendo que tudo ficoucomo eu desejava queficasse.

Mas, Ally, e eu talvezagora fique meio piegas,queria dizer quanto amovocê e quanto você passou asignificar para mim nocurto tempo desde que agente se conheceu, ou seja:tudo. Você balançou meubarco, literalmente (esperoque goste da analogianáutica), e mal possoesperar para passar o restoda minha vida ajudandovocê enquanto vomita,conversando sobre as

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origens do seu estranhosobrenome e descobrindocada ínfimo detalhe sobre asua pessoa enquanto formosficando velhos edesdentados.

E se por algum motivovocê vier a ler esta carta,erga os olhos para asestrelas no céu e saiba queestou olhando para você láde cima. E provavelmentetomando uma cerveja com oseu Pa enquanto ele meconta sobre seus maushábitos da infância.

Minha Ally, Alcíone,você não faz ideia da

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alegria que me trouxe.Seja FELIZ! É esse o

seu presente.Muito beijos, Theo

Fiquei ali sentada, rindo echorando ao mesmo tempo. Acarta era tão a cara de Theo quemeu coração se partiu outra vez.

Na manhã seguinte, Celia eeu nos encontramos na mesa docafé. Na noite anterior, ela haviame mostrado onde ficava meuquarto, mas não me fizeraqualquer pergunta sobre oconteúdo da carta. Fiquei gratapor isso. Ela me disse que tinha

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que ir registrar o óbito de Theo eorganizar o traslado de seu corpoaté Londres, e que precisávamosdefinir juntas uma data para ofuneral.

– Ele me pediu mais umacoisa na carta que deixou paramim. Perguntou se você poderiatocar flauta no funeral dele.

– Sério?Encarei-a; estava pasma com

o nível de organização de Theo.– Sério. – Ela suspirou. –

Ele já tinha dado instruções paraa cerimônia anos atrás. Um mistode funeral com homenagemcelebratória seguido por umacremação, que por sinal ele

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insiste que ninguém deve assistir.E depois ele queria que as cinzasfossem jogadas no porto deLymington, onde aprendeu avelejar comigo quando erapequeno. Você acha que conseguetocar?

– Eu... eu não sei.– Bom, ele me disse que

você toca lindamente. Como podeimaginar, as músicas que eleescolheu não são nadaconvencionais, como ele mesmonão era. Ele queria que vocêtocasse “Jack’s the Lad”, doFantasia sobre CançõesMarítimas Britânicas. Tenhocerteza de que já ouviu essa

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música na série anual deconcertos Last Night of theProms, que celebra as tradiçõesda Grã-Bretanha.

– Sim, conheço essa música.Não acho que exista um sómarinheiro vivo que não saibapelo menos a melodia... Ébasicamente a mesma daquelaantiga dança de marinheiros, a“Sailor’s Hornpipe”.

Rememorei algumas dasnotas que havia tocado muitosanos antes, mas que aindaconhecia intimamente. Tudonaquele pedido era a cara deTheo: um símbolo de seu amorpela vela e da sua alegria de

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viver.– É, acho que eu adoraria

tocar.Então, pela primeira vez

desde a morte dele, caí emprantos.

Durante os dias horríveisque se seguiram, fechamos asescotilhas enquanto a imprensaacampava do lado de fora dacasa. Vivemos como duasreclusas, aventurando-nos a sair

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apenas para comprar comida e umvestido preto para cada uma usarno funeral. À medida queexecutávamos as penosas tarefasque me fizeram respeitar muitomais Pa Salt por seu enterro auto-organizado, meu respeito porCelia também aumentou. Emborafosse óbvio que Theo era tudo nasua vida, ela nunca se deixoudominar pela tristeza.

– Não sei se já cheguei acomentar isso com você, mas oTheo sempre amou a igreja deHoly Trinity, em Sloane Street.Não fica muito longe daqui. Eleestudou em um colégio particularbem pertinho, e era a igreja que

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ele frequentava. Lembro-me devê-lo cantar o solo em um coralna noite de Natal lá, quando deviater uns 8 anos – contou ela comum sorriso afetuoso. – O que achade fazermos o funeral nessaigreja?

O fato de ela estar pedindominha opinião para tomar aquelasdecisões, mesmo que os meuscomentários fossem irrelevantes,me tocou de um jeitoindescritível. Celia conheceraTheo a vida inteira; ele era seuúnico filho. Mesmo assim, tinhaelegância e empatia suficientespara ver e entender o que eusentia por ele. E o que ele havia

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sentido por mim.– O que você achar melhor,

Celia. Sério.– Tem alguém que você

queira convidar?– Tirando quem você já

convidou, os tripulantes e acomunidade náutica em geral,ninguém nos conhecia como casal– respondi, sincera. – Então nãoacho que eles entenderiam.

Mas ela entendia. E muitasvezes, quando nos encontrávamosna cozinha às três da manhã, nahora em que a dor era mais forte,sentávamo-nos à mesa e tínhamosconversas infindáveis sobreTheo, tentando encontrar o

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reconforto por que tantoansiávamos. Pequenaslembranças, para as quais Celiadispunha de uma vasta reserva de35 anos enquanto a minhaabarcava apenas umas poucassemanas. Graças a ela, passei aconhecer Theo melhor, e nuncame cansava de ver suas fotos deinfância ou ler alguma carta cheiade erros de ortografia que elehavia escrito no colégio interno.

Por mais que eu soubesseque aquilo não era a realidade,reconfortava-me o fato de Celia eeu o mantermos vivo com cadapalavra que dizíamos. E isso erao mais importante.

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12

– Está pronta? – indagou Celiaquando nosso carro estacionouem frente à igreja de Holy Trinity.Assenti e, com um rápido apertode mão solidário, nós duasdescemos em frente às câmerasdos fotógrafos e entramos. Aigreja era cavernosa, e vê-laassim, abarrotada, quase melevou às lágrimas que eu haviajurado não derramar.

Theo já estava à minha

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espera no altar quando desci ocorredor com sua mãe em direçãoao caixão. Engoli em seco comforça diante dessa paródiamedonha do casamento que, seele tivesse sobrevivido, nós doispoderíamos ter tido.

Acomodamo-nos na primeirafila, e a missa começou. Theohavia escolhido várias músicaspara a ocasião. Depois dodiscurso do vigário, chegou aminha vez. Fui me juntar àpequena orquestra composta porviolinos, um violoncelo, duasclarinetas e um oboé que Celiaconseguira reunir junto ao altar daigreja. Depois de fazer uma prece

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silenciosa, levei a flauta à boca ecomecei a tocar. À medida que oresto dos instrumentos se juntavaa mim e o andamento da músicase acelerava, vi as pessoaspresentes na igreja começarem asorrir, e então, uma depois daoutra, se levantarem. Uma vez queestavam todas de pé, elas sepuseram a executar o movimentode joelhos dobrados da dançaconhecida como “Sailor’sHornpipe”, com os braçoscruzados junto ao corpo. Nossapequena orquestra acelerou oritmo e deu o máximo de si, etodos foram dançando cada vezmais depressa, na mesma

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cadência da música.Quando terminamos, um

rugido se ergueu da plateia, e osvivas e as palmas começaram.Houve um bis, como naturalmenteacontecia sempre que aquelamúsica era tocada. Então volteicom minha flauta para a primeirafila e me sentei ao lado de Celia.Ela apertou minha mão com força.

– Obrigada, Ally querida.Muitíssimo obrigada.

Então Rob foi até o altar,subiu os degraus diante do caixãode Theo e ajeitou o microfone.

– Celia, mãe do Theo, mepediu para dizer algumaspalavras. Como todos vocês

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sabem, ele perdeu a vidasalvando a minha. Nunca voupoder lhe agradecer pelo que fezpor mim naquela noite, mas seique o seu sacrifício causou umsofrimento terrível para Celia eAlly, a mulher que ele amava.Theo, todos que já fizeram partede uma equipe capitaneada porvocê deixam aqui seu amor, seurespeito e seu agradecimento.Você era o melhor, ponto. EAlly... – Ele olhou diretamentepara mim. – Esta é a música queele pediu que tocassem paravocê.

Mais uma vez senti a mão deCelia segurando a minha enquanto

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um dos membros do coro selevantava e cantava uma lindaversão de “Somewhere”, do filmeAmor, sublime amor. Tentei sorrircom a piada secreta que Theoquisera fazer comigo com aquelamúsica chamada “Em algumlugar”, mas a letra me comoveualém da conta. Quando a cançãoterminou, oito membros datripulação de Theo na Fastnet,inclusive Rob, ergueramdelicadamente o caixão sobre osombros largos e começaram asair da igreja. Celia me puxouconsigo, e nós duas encabeçamosa procissão que ia atrás docaixão.

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Enquanto saíamos, vi algunsrostos conhecidos na igreja.Estrela e Ceci estavam presentese sorriram para mim com amor eempatia quando passei. Celia e euficamos paradas em SloaneStreet, vendo colocarem o caixãode Theo no carro funerário queconduziria seu corpo na solitáriajornada até o crematório. Depoisde o carro se afastar e ambasdizermos um derradeiro esilencioso adeus, virei-me paraela e perguntei como minhasirmãs tinham ficado sabendo.

– Na carta que me deixou,Theo me pediu para avisar aMarina se alguma coisa

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acontecesse com ele, para ela esuas irmãs ficarem sabendo. Elepensou que você ia precisardelas.

Aos poucos, as pessoasforam saindo pela frente da igrejae se reunindo na calçada para secumprimentar em voz baixa.Várias delas vieram direto naminha direção, a maioria amigosdo mundo da vela, e todas derampêsames e expressaram surpresacom o meu talento musical atéentão desconhecido. Olhei emvolta e vi um homem alto de ternoescuro e óculos de sol, um poucoafastado do resto. Algo nele mepareceu tão desolado que pedi

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licença ao grupo em que estava efui até lá.

– Oi – falei. – Eu sou Ally,namorada do Theo. Me pedirampara avisar a todos que estãoconvidados para comer e beberalguma coisa na casa da Celia.Fica só a cinco minutos a pédaqui.

O homem se virou para mim;os óculos escuros escondiamqualquer expressão em seusolhos.

– É, eu sei onde fica. Jámorei lá.

Foi então que me dei contade que aquele homem era o pai deTheo.

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– É um grande prazerconhecê-lo.

– Tenho certeza de que vocêdeve entender que, por mais queeu queira voltar lá, infelizmentenão serei bem-vindo.

Sem saber como responder,apenas olhei para meus própriospés, constrangida. Era óbvio queele estava triste e que,independentemente do quepudesse ter acontecido nopassado entre ele e a mulher,também tinha perdido um filho.

– Que pena – consegui dizer.– Você deve ser a moça com

quem Theo me disse que ia secasar. Ele me mandou um e-mail

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poucas semanas atrás – continuouele com seu sotaque americanocarregado, muito diferente dasinflexões bem marcadas do inglêsbritânico de Theo. – Já estou indoembora, mas tome aqui meucartão, Ally. Vou passar uns diasaqui em Londres, e seria ótimopoder conversar com você sobreo meu filho. Apesar do que vocêcertamente escutou a meurespeito, eu amava muito Theo.Acho que você é inteligente obastante para saber que todahistória tem sempre dois lados.

– Sim – respondi, lembrandoque Pa Salt me disseraexatamente a mesma coisa certa

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vez.– É melhor você voltar lá,

mas foi ótimo conhecê-la. Atébreve, Ally – disse ele antes dese virar e se afastar com umpasso vagaroso. Pude sentir odesconsolo saindo por cada porodo seu corpo.

Virei as costas para orestante dos presentes e vi Ceci eEstrela esperandorespeitosamente eu terminaraquela conversa. Fui até elas, e asduas me abraçaram.

– Nossa, Ally – disse Ceci.– A gente está deixando milrecados no seu celular desde queficou sabendo! Sentimos muito,

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muito mesmo, não é, Estrela?– É. – Estrela assentiu, e

percebi que ela também estava àbeira das lágrimas. – Quehomenagem linda, Ally.

– Obrigada.– E que maravilha ouvir

você tocar flauta. Não perdeu ojeito – acrescentou ela.

Vi Celia acenar para mim eapontar para o grande carro pretoque aguardava junto ao meio-fio.

– Escutem, preciso ir com amãe do Theo, mas vocês vão lána casa dela?

– Infelizmente não vamospoder – respondeu Ceci. – Masolhe, nosso apartamento fica em

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Battersea, logo do outro lado daponte. Quando estiver se sentindomelhor, dê uma ligada e apareça,tá?

– A gente adoraria ver você,Ally – disse Estrela, dando-meoutro abraço. – Todas as meninasmandaram beijos. Cuide-se, estábem?

– Vou tentar. E mais uma vezobrigada por terem vindo. Nemsei dizer quanto isso é importantepara mim.

Subi no carro, fiqueiobservando as duas descerem arua juntas e me senti intensamentetocada pela presença delas.

– Suas irmãs são um amor.

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Que coisa maravilhosa terirmãos. Assim como Theo, eu soufilha única – comentou Celiaenquanto o carro se afastava domeio-fio.

– Está tudo bem? –perguntei.

– Não, mas a homenagem foilinda, muito alto astral. E nem seidizer quanto significou para mimouvir você tocar. – Ela fez umapausa de alguns segundos e deuum suspiro profundo. – Repareique você estava falando agora hápouco com Peter, pai do Theo.

– Sim.– Ele devia estar escondido

nos fundos da igreja. Não o vi

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quando entrei. Se tivesse visto, euo teria chamado para se sentar nafrente conosco.

– Teria mesmo?– Claro! Podemos não ser os

melhores amigos, mas tenhocerteza de que ele está tãoarrasado quanto eu. Imagino quetenha dito que não vai passar láem casa.

– É, mas ele disse que iaficar uns dias em Londres egostaria de me ver.

– Ai, ai. Que tristeza nãopodermos nos reunir nem sequerpara o funeral do nosso própriofilho. Mas, enfim, estou muitograta por seu apoio – disse ela. O

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carro encostou em frente à casa. –Eu não teria conseguido passarpor isso sem você, Ally. Agoravamos receber nossos convidadose celebrar a vida do nossomenino.

Alguns dias depois, acordeino quarto de hóspedesconfortável e com decoração umtanto datada da casa de Celia.Uma cortina florida na janelacombinava com a cabeceira da

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grande cama de madeira na qualeu estava deitada e também com opapel de parede já desbotado.Olhei de relance para o relógio evi que eram quase dez e meia damanhã. Desde o funeral, eufinalmente tinha voltado a dormir,porém tinha um sono quaseanormal de tão pesado, eacordava como se estivesse deressaca ou tivesse tomado um dosremédios para dormir que Celiame oferecia, mas eu recusava.Fiquei deitada na penumbra mesentindo tão exausta quanto nanoite anterior, embora tivessedormido direto por dez horas.Refleti que não podia continuar

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ali, escondida com Celia, pormais reconfortantes que fossemnossas intermináveis conversassobre Theo. Ela viajaria para aItália no dia seguinte, e emborativesse tido a gentileza de meconvidar para ir junto, eu sabiaque precisava seguir em frentecom a minha vida.

Restava saber para onde ir.Já tinha decidido entrar em

contato com o técnico da equipenacional de vela da Suíça paralhe avisar que não participariacom eles das eliminatórias paraas Olimpíadas. Embora Celiativesse me dito várias vezes queeu não deveria deixar o que

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aconteceu estragar meu futuro eatrapalhar minha paixão, sempreque eu pensava em voltar ao marum calafrio percorria meu corpo.Talvez um dia isso fosse passar,mas não a tempo de iniciar o queeu sabia que seriam meses detreinamento árduo para o maisimportante evento esportivo doplaneta. Além disso, no local detreinamento, haveria pessoas quetinham conhecido Theo, e aindaque conversar com a mãe deletivesse sido uma válvula deescape maravilhosa, eu me sentiaextremamente vulnerável sempreque alguma outra pessoamencionava o seu nome.

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Agora que estava sem Theoe não velejava mais, os dias àminha frente pareciamsubitamente vazios, um vácuointerminável que eu não faziaideia de como preencher.

Talvez eu fosse a nova“Maia” da família, ponderei,fadada a voltar a Atlantis e vivermeu luto em solitário esplendor,como ela fizera. Sabia muito bemque Maia havia criado asas evoado rumo à sua nova vida noRio de Janeiro, então eu poderiavoltar para casa e ocupar seuninho no pavilhão.

O que eu passara a entendernas últimas semanas era que,

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antes, tinha uma vida privilegiadae, se devesse julgar a mim mesmae meus próprios defeitos,precisaria admitir que semprehavia considerado com desdémqualquer pessoa mais fraca doque eu. Não entendia por que osoutros não conseguiam selevantar, sacudir a poeira defosse qual fosse o trauma quehouvessem suportado, e seguir emfrente. De modo brutal, começaraa perceber que, a menos que setenha sofrido na pele uma perda euma dor tão profunda, eraimpossível compreender deverdade alguém que passasse poraquela situação.

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Tentando desesperadamentepensar positivo, disse a mimmesma que o que havia meacontecido talvez metransformasse em uma pessoamelhor. Inspirada por essepensamento, acabei pegando ocelular. Senti vergonha ao admitirque não o havia ligado desde amorte de Theo, mais de quinzedias antes. Vendo que a bateriaestava outra vez descarregada,pluguei o aparelho na tomada efui tomar uma ducha. Enquantoestava no banho, escutei os“pings” insistentes das mensagensde texto e de voz chegandoquando o aparelho voltou à vida.

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Sequei-me, vesti a roupa, eme preparei mentalmente antes depegar o telefone e percorrer asintermináveis mensagens de Ma ede minhas irmãs – e asincontáveis outras de quem ficarasabendo sobre Theo. Ally, queriaestar aí com você, não consigonem imaginar como você deveestar se sentindo, mas mandoaqui todo o meu amor, escreveuMaia. Ally, tentei ligar, masninguém atende. Ma me contou efiquei arrasada. Estou aqui, Ally,dia e noite, se você precisar demim. Beijos, Tiggy.

Então passei aos recados devoz. Assim como os de texto, sem

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dúvida a maioria seria de gentedando os pêsames. Depois dediscar o número da caixa postal,porém, senti o estômago serevirar ao escutar a mais antigadelas, deixada dez dias antes. Aligação estava ruim e a vozabafada, mas eu sabia que eraTheo.

Oi, meu amor. Estouaproveitando a oportunidadepara ligar do telefone porsatélite. A gente está emalgum lugar no Mar Celta. Otempo está terrível e atéando perdendo o equilíbrio.

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Sei que está brava porqueexpulsei você do barco, mas,antes de tentar dormir umasduas horas, eu só queria quevocê soubesse que isso nãoteve nada a ver com o seutalento como velejadora.Para ser sincero, queria queestivesse a bordo agora,pois você vale dez dos carasque estão aqui. Você sabeque eu só a mandei emboraporque amo você, minhaAlly querida. E espero queainda queira falar comigoquando eu voltar! Boa noite,querida. Mais uma vez, amovocê. Tchau.

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Abandonei a ideia de escutaros outros recados e fiquei sórepetindo o de Theo, vezes semconta, absorvendo cada palavra.Pelo horário que tinha sidodeixado, sabia que ele devia terligado cerca de uma hora antes desair para o convés e ver Rob serjogado ao mar. Antes de morrerpara salvá-lo. Não sabia muitobem como se salvava um recadopara sempre, mas precisavadescobrir.

– Eu também amo você –sussurrei.

E qualquer vestígio de raivaque ainda restasse dentro de mimpor ele ter me obrigado a descer

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do veleiro naquele dia sedissipou no ar.

Durante o café da manhã,Celia me avisou que iria sair parafazer umas compras de últimahora antes da viagem.

– Você já resolveu para ondevai? Sabe que está mais do queconvidada a ficar aqui enquantoeu estiver fora. Ou então a vircomigo. Tenho certeza de queconseguiria arrumar um voo de

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última hora para Pisa.– Obrigada, é muita

gentileza sua, mas acho melhor euir para casa – falei, com medo deestar me tornando um fardo paraela.

– Como preferir. É só avisar.Depois que ela saiu, subi ao

primeiro andar e decidi que jáestava forte o suficiente para daruma ligada para Ceci e Estrela.Digitei primeiro o número deCeci, já que era ela quemorganizava tudo para as duas, mascomo a ligação caiu na caixapostal liguei para Estrela.

– Ally?– Oi. Tudo bem?

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– Comigo, tudo. Mas, maisimportante: e com você?

– Tudo bem também. Estavapensando em fazer uma visitaamanhã.

– Bom, eu vou estar sozinha.A Ceci vai sair para fotografar ausina de energia de Battersea.Quer usá-la como inspiração paraum dos trabalhos do curso deartes antes de transformarem-naem algum novo empreendimento.

– Posso passar para vervocê, então?

– Seria ótimo.– Então tá. A que horas é

melhor?– Estou aqui o dia todo. Por

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que não vem almoçar?– Está bem. Apareço lá pela

uma. Até amanhã.Depois de desligar, fiquei

sentada na cama e me dei contade que o almoço do dia seguinteseria a primeira vez que eupassaria mais do que algunsminutos com minha irmã caçulasem que Ceci também estivessepresente.

Pensando que seria bomchecar meus e-mails, tirei olaptop da mochila, coloquei emcima da penteadeira e o liguei natomada. Havia mais mensagens depêsames e os habituais spams,inclusive um de uma menina

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supostamente chamada “Tamara”me oferecendo companhia agoraque as noites estavam ficandomais curtas. Então vi outro nomeque não reconheci na hora:Magdalena Jensen. Demoreialguns instantes para lembrar queera a tradutora que estavatrabalhando para mim no livro dabiblioteca de Pa Salt, e agradecia Deus por não ter apertado“deletar”.

De:[email protected]

Para: [email protected]: Grieg, Solveig og Jeg /

Grieg, Solveig e eu

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20 de agosto de 2007

Cara Srta. D’Aplièse,Estou gostando muito de

traduzir Grieg, Solveig og Jeg. É umaleitura fascinante, e uma história queeu nunca tinha ouvido aqui naNoruega. Pensei que a senhora fosseter interesse em começar a ler o texto,então anexei as páginas que já fiz, atéa 200. Devo entregar o resto nospróximos dez dias.

Atenciosamente,Magdalena

Abri o anexo que continha atradução e li a primeira página.Depois a segunda. Na terceira, játinha mudado o laptop de lugar e

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o ligado na tomada ao lado dacama, para poder ficar em umaposição confortável enquantocontinuava a leitura...

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Anna

Telemark, NoruegaAgosto de 1875

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Anna Tomasdatter Landvik paroupara esperar Rosa, a vaca maisvelha do rebanho, descer oíngreme declive. Como sempre,Rosa fora deixada para trás pelasoutras, que tinham ido embora embusca de pastos mais frescos.

– Cante para ela, Anna, e elavai vir – dizia-lhe sempre seupai. – Vai vir até você.

Anna cantou umas poucasnotas de “Per Spelmann”, a

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canção preferida de Rosa, e amelodia fluiu de seus pulmões eecoou feito um sino pelo vale.Sabendo que Rosa levaria algumtempo para chegar até onde elaestava, sentou-se na grama ásperae posicionou o corpo esguio emsua postura de reflexão predileta,com os joelhos erguidos até oqueixo e os braços em volta daspernas. Inspirou o ar ainda mornodo início da noite e admirou avista enquanto cantarolava nomesmo ritmo do zumbido dosinsetos na campina. Do outro ladodo vale, o sol começava a afundarna direção das montanhas,fazendo a água do lago lá

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embaixo cintilar como ouro rosaderretido. Logo desapareceriapor completo e a noite cairiadepressa.

Nas últimas duas semanas, anoite vinha começandoperceptivelmente mais cedoenquanto ela contava as vacas quedesciam da encosta da montanha.Depois de meses com luz atéquase a meia-noite, Anna sabiaque hoje, quando voltasse para ochalé, sua mãe já teria acendidoas lamparinas a óleo e que o pai eo irmão mais novo teriam idoajudá-la a fechar a leiteria deverão e transportar os animaisnovamente até o fundo do vale,

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em preparação para o inverno.Esse acontecimento, queanunciava o fim do verãonórdico, era o advento daquiloque, para Anna, pareciam mesesintermináveis de uma escuridãoquase perpétua. O verde vivo daencosta da montanha logo estariacoberto por uma grossa camadabranca de neve, e ela e a mãedeixariam o chalé de madeiraonde passavam os meses maisquentes e voltariam para afazenda da família, no limite dopequeno vilarejo de Heddal.

Enquanto Rosa avançava nasua direção, parando de vez emquando para fuçar algum capim,

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Anna cantou mais algumasestrofes da canção a fim deincentivá-la. Seu pai, Anders, nãoachava que Rosa fosse ver outroverão. Ninguém parecia saberexatamente quantos anos a vacatinha, mas ela com certeza não eramuito mais jovem do que Anna,que tinha 18. Pensar que ela nãoestaria mais ali paracumprimentá-la com o quegostava de interpretar como umaexpressão agradecida nos suavesolhos cor de âmbar deixou osolhos da menina marejados delágrimas e a lembrança doslongos e escuros meses queestavam por vir fez as gotas

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transbordarem e escorrerem porsuas bochechas.

Pelo menos, pensou,enquanto as enxugava semcuidado, quando elas voltassempara a casa da fazenda em Heddalpoderia ver Gerdy e Viva, seugato e sua cadela. Não havia nadade que Anna gostasse mais do quese enrodilhar em frente aofogareiro quentinho comendo umdoce chamado gomme no pãoenquanto Gerdy ronronava no seucolo e Viva esperava para lamberas migalhas. Mas ela sabia que amãe não a deixaria passar oinverno inteiro sentada, sonhando.

– Você um dia vai ter sua

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própria casa para cuidar, Kjære, enão estarei lá para alimentar vocêe seu marido! – dizia-lhe semprea mãe, Berit.

Fosse para bater manteiga,cerzir roupas, dar comida àsgalinhas ou estender a massa dolefse, o pão ázimo que seu paidevorava às dezenas, Anna poucose interessava pelos afazeresdomésticos, e com certeza nemsequer pensava em alimentar ummarido imaginário ainda. Pormais que tentasse – e, para sertotalmente sincera consigomesma, sabia que não tentava osuficiente –, o resultado de suasinvestidas culinárias era muitas

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vezes intragável ou beiravam odesastre.

– Você prepara o gomme háanos, mas o gosto não melhorounada – comentara sua mãe nasemana anterior, pousando sobrea mesa da cozinha uma tigela deaçúcar e uma jarra de leite fresco.– Já está mais do que na hora deaprender a fazer direito.

Por mais que Anna seesforçasse, porém, seu gommesempre acabava talhando equeimando no fundo.

– Traidora – sussurrava elapara Viva, quando até mesmo aeternamente faminta cadela defazenda torcia o nariz para seu

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doce.Embora tivesse largado a

escola quatro anos antes, Annaainda sentia falta da terceirasemana de cada mês, quandoFrøken Jacobsen, a professoraque se revezava entre as aldeiasdo condado de Telemark, chegavacom matérias novas para ensinaraos alunos. Preferia isso milvezes às rígidas aulas do pastorErslev, que os obrigava a recitartrechos da Bíblia de cor e ostestava na frente da turma toda.Anna detestava isso, e sempresentia as bochechas ficandovermelhas ao ver os olhos detodos os colegas cravados nela

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quando se confundia com algumapalavra desconhecida.

Fru Erslev, a mulher dopastor, era bem mais gentil e tinhamais paciência com Anna quandoela estava aprendendo os hinospara o coral da igreja.Ultimamente, ela muitas vezesficava incumbida do solo. Cantarera bem mais fácil do que ler,pensava Anna. Quando cantava,simplesmente fechava os olhos,abria a boca, e um som queparecia agradar a todos saía lá dedentro.

Às vezes, ela sonhava em seapresentar diante de umacongregação em uma grande

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igreja em Christiania. O únicomomento em que sentia ter algumvalor era quando estava cantando.Na realidade, porém, como suamãe sempre lhe lembrava, essetalento pouco lhe adiantava, a nãoser para chamar as vacas paracasa e ninar os filhos que um diativesse. Todas as meninas docoral que tinham a mesma idadede Anna já estavam noivas,casadas ou sofrendo asconsequências do que aconteciadepois do casamento, que pelovisto era ficar enjoada e gorda, eapós algum tempo parir um bebêde rosto vermelho e berreirosempre aberto e ter que parar de

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cantar.No casamento de seu irmão

mais velho, Nils, ela haviasuportado os cutucões e indiretasdos parentes em relação às suasfuturas núpcias, mas, comonenhum pretendente tinha seapresentado até então, naqueleinverno Anna seria a única a ficarpara trás com as gammel Frøken,como seu irmão mais novo Knutchamava as solteiras mais velhasda cidade.

– Se Deus quiser, você vaiachar um marido capaz de ignorara comida no prato e, em vezdisso, ficar olhando para essesseus belos olhos azuis –

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provocava sempre seu pai.Anna sabia que a dúvida que

atormentava todos os parentes erase Lars Trulssen, que muitasvezes havia comido seus pratosqueimados, seria esse corajosorapaz. Ele e o pai doentemoravam na fazenda vizinha à dafamília de Anna, em Heddal. Seusdois irmãos haviam transformadoLars, filho único e órfão de mãedesde os 6 anos, em um terceiroirmão não oficial, e ele volta emeia era visto à noite em volta damesa de jantar da famíliaLandvik. Ela se lembrava decomo todos haviam brincadojuntos nos dias de nevasca dos

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longos invernos. Seus irmãos,brutos e barulhentos, gostavam deenterrar uns aos outros na neve,onde os cabelos lourosarruivados típicos dos Landvik osdestacavam na paisagem branca.Lars, que era bem mais delicado,para grande consternação dosoutros meninos, sempre entravaem casa para ler um livro.

Como era o mais velho, Nilstradicionalmente teria ficado nacasa dos Landvik com sua novaesposa depois do casamento. Noentanto, a morte recente dossogros fizera sua mulher herdaruma fazenda em uma aldeia apoucas horas de Heddal, e Nils

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havia se mudado para administrara propriedade. Coubera a Knutpassar todo o tempo disponívelna fazenda dos Landvik, ajudandoo pai.

Assim, Anna muitas vezes sepegava sentada sozinha com Lars,que ainda fazia visitas regulares.Às vezes ele lhe contava sobre olivro que estava lendo, e ela seesforçava para escutar sua vozbaixa desfiar histórias fascinantessobre outros mundos, quepareciam bem mais interessantesdo que Heddal.

– Acabei de ler Peer Gynt –disse-lhe ele certa noite. – Quemme mandou o livro foi meu tio de

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Christiania, e acho que você iriagostar. Para mim, é a melhor queIbsen escreveu até hoje.

Anna baixou os olhos, semquerer admitir que não fazia ideiade quem fosse Ibsen, mas Larsnão a julgou e lhe contou tudosobre o maior dramaturgonorueguês vivo, aparentementenativo de Skien, cidade bempróxima de Heddal, e que estavatornando a literatura e a culturanorueguesas conhecidas mundoafora. Lars afirmou ter lido tudoque Ibsen já havia escrito. ParaAnna, na verdade, Lars pareciater lido a maioria dos livros quequalquer um tivesse escrito, e ele

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chegara até a lhe confidenciarseus sonhos de um dia se tornarescritor.

– Só que aqui não éprovável que isso aconteça –dissera-lhe ele, encarando-anervoso com seus olhos azuis. –A Noruega é pequena demais, emuitos de nós não têm instrução.Mas ouvi dizer que nos EstadosUnidos quem trabalha duro osuficiente pode ser qualquer coisaque quiser...

Anna sabia que Lars tinhaaté aprendido sozinho a ler eescrever inglês com o objetivo dese preparar para esseacontecimento. Escrevia poemas

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nesse idioma e dizia que embreve os mandaria para um editor.Sempre que ele começava a falarsobre os Estados Unidos, Annasentia uma pontada de dor, porquesabia que o rapaz jamais teriadinheiro para tal coisa. Como seupai ficara aleijado por causa daartrite e vivia com as mãosimobilizadas em punhossemicerrados, Lars agoraadministrava sozinho a fazenda econtinuava morando até hoje nasede malconservada.

Quando o rapaz não apareciapara jantar, o pai de Anna muitasvezes lamentava como as terrasda família Trulssen tinham

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passado anos sem os devidoscuidados, com porcos soltoschafurdando no solo até torná-lopobre e infértil.

– Com toda a chuva quetivemos nos últimos tempos,aquilo lá virou quase um charco –comentava Anders. – Mas aquelerapaz vive no mundo dos livros,não no mundo real dos campos efazendas.

Em uma noite do invernoanterior, quando Anna estavatentando decifrar a letra de umnovo hino que Fru Erslev tinhalhe dado para aprender, Larserguera os olhos do livro queestava lendo e a ficara

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observando do outro lado damesa da cozinha.

– Quer ajuda? – ofereceu.Corando ao se dar conta de

que vinha pronunciando asmesmas palavras repetidamentena tentativa de acertar, Annapensou se queria que o rapazchegasse mais perto, pois elesempre fedia a porcos. Acabouassentindo, e ele foi se sentar aoseu lado. Juntos, os doisrepassaram cada palavra até elase sentir capaz de ler o hinointeiro, de cabo a rabo, semnenhuma pausa.

– Obrigada por me ajudar –agradeceu.

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– Foi um prazer – retrucouele, corando. – Anna, se vocêquiser, posso ajudá-la a melhorarsua leitura e sua escrita. Contantoque você prometa cantar paramim de vez em quando.

Como sabia que sua leitura esua escrita tinham sofrido com anegligência de quatro anos desdeque havia largado a escola, Annaconcordou. E depois disso, emmuitas noites do inverno anterior,os dois tinham se sentado à mesada cozinha, com as cabeças bemjuntas, e Anna havia deixado obordado totalmente de lado, paragrande contrariedade da mãe. Empouco tempo, tinham passado de

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hinos aos livros que Lars traziade casa, envoltos em papelencerado para proteger aspreciosas páginas da neve e dachuva incessantes. Quandoterminavam de estudar, os doisfechavam os livros e Annacantava para ele.

Embora seus paisinicialmente tenham ficadopreocupados que ela estivesse setornando excessivamente apegadaaos livros, gostavam de ouvir afilha ler para eles à noite.

– Eu teria fugido dessesogros bem mais depressa –anunciou-lhes ela depois de lerAs três princesas de Whiteland,

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certa noite, junto ao fogo.– Mas um dos ogros tinha

seis cabeças – contrapôs Knut.– Seis cabeças só servem

para deixar você mais lento –respondeu ela com um sorriso.

Anna também treinavacaligrafia, e Lars tinha deixadoescapar uma risadinha ao vercomo ela segurava o lápis, seusdedos esbranquiçados pela forçaque ela fazia.

– O lápis não vai fugir –disse ele, ajustando sua mão ecolocando cada dedocuidadosamente na posiçãocorreta.

Certa noite, ele pôs sobre os

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ombros o casaco de pele de loboque usava para se proteger do friointenso e abriu a porta. Quandofez isso, flocos de neve dotamanho de borboletas entraramna casa. Um deles pousou emcima do nariz de Anna, e Larsestendeu a mão para tirá-lo antesque derretesse. O contato daquelamão grande na sua pele foiáspero, e ele rapidamente tornoua enfiá-la no bolso do casaco.

– Boa noite – murmurou, esaiu para a escuridão invernal, osflocos de neve derretendo nochão quando a porta se fechouatrás dele.

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Anna se levantou quandoRosa enfim alcançou o local ondeela estava. Enquanto acariciavaas orelhas sedosas da vaca e emseguida beijava a estrela brancano centro de sua testa, não pôdedeixar de reparar nos pelosgrisalhos em volta da boca maciae rosada do animal.

– Por favor, esteja aqui noverão que vem – murmurousuavemente para o bicho.

Após se certificar de queRosa avançava devagar na

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direção do resto do rebanho parair pastar tranquilamente o capimda encosta mais embaixo, Annapartiu rumo ao chalé. Enquantocaminhava, decidiu que nãoestava pronta para a mudança;tudo que desejava era voltaràquele lugar todos os verões eficar sentada nos campos junto aRosa. Sua família podia achá-laingênua, mas Anna sabiaexatamente o que estavamplanejando para ela. E lembrava-se muito bem do jeito estranhocomo Lars havia se comportadoao se despedir dela no início doverão.

Ele tinha lhe dado para ler o

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poema Peer Gynt, de Ibsen, esegurado uma de suas mãosenquanto ela mantinha o livro emfrente ao corpo. Anna congelou.Aquele toque significava um novotipo de intimidade, muitodiferente do relacionamento entreirmãos que ela sempre pensaraque os dois tivessem. Quandoseus olhos se moveram para orosto do rapaz, ela viu umaexpressão diferente em seus olhosazuis, e de repente Lars lhepareceu um estranho. Nessa noite,foi para a cama estremecendo aopensar na expressão daqueleolhar, pois sabia exatamente oque significava.

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Pelo visto, seus pais jásabiam das intenções de Lars.

– Nós podemos comprar asterras dos Trulssens como dote deAnna – ela entreouviu o pai dizerà mãe certa noite, bem tarde.

– Com certeza podemosencontrar alguém de uma famíliamelhor para Anna – retrucouBerit em voz baixa. – OsHaakonssens ainda têm um filhosolteiro lá em Bø.

– Eu gostaria que elamorasse aqui perto – respondeuAnders, firme. – Comprar asterras dos Trulssens renderia zeropor uns três anos, até o solo serecuperar, mas se isso

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acontecesse nossa produçãoagrícola dobraria. Eu acho queLars é o melhor que podemosesperar, levando em conta as...desvantagens de Anna.

O comentário deixou Annamagoada, e ela foi ficando cadavez mais ressentida à medida queos pais começaram a conversarabertamente sobre possíveisplanos de casamento para ela eLars. Anna imaginava se elesalgum dia lhe fariam a simplespergunta: por acaso ela queria secasar com Lars? Só que ninguémperguntou, então Anna tampoucodisse que, ainda que gostasse dorapaz, com certeza não estava

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convencida de que pudesse vir aamá-lo.

Embora houvesse imaginadovez ou outra como seria beijar umhomem, não tinha a menorconvicção de que isso seria algoque a agradaria. Quanto àquelaoutra coisa desconhecida, o atoque ela sabia que tinha queocorrer para gerar filhos, bem,isso só lhe restava imaginar. Devez em quando, à noite, ela ouviaestranhos rangidos e gemidosvindos do quarto do pais, masquando perguntou a Knut sobre oassunto, o irmão só fez dar umarisadinha furtiva e respondeu queera assim que todos eles tinham

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vindo ao mundo. Se fosseparecido com o jeito como otouro era levado até a vaca... Osimples fato de pensar nisso jáprovocava uma careta em Anna,que se lembrava de como oanimal, aos mugidos, tinha queser incentivado a montar na fêmeaque havia conquistado, e de comoo ajudante de fazenda ajudava apôr a “coisa” lá dentro de modoque a vaca desse cria algunsmeses depois.

Se pelo menos Anna pudesseperguntar à mãe se com oshumanos acontecia algoparecido... Mas ela nunca tiveracoragem para tal.

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Para piorar as coisas, aqueleera o verão em que ela, commuito esforço, havia lido PeerGynt, e mesmo agora, depois derefletir longamente sobre ahistória, não conseguia entenderpor que a pobre camponesaprotagonista do livro – chamadaSolveig – jogara a vida inteirafora esperando por um homemhorrível e promíscuo como Peer.E então, quando ele de fatovoltou, o tinha aceitado de volta epousado sobre o próprio joelhoaquela cabeça mentirosa etraiçoeira.

– Eu a teria usado como bolapara Viva brincar – resmungou

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ela ao chegar perto de casa. E aúnica coisa que ela haviadecidido categoricamente naqueleverão era que nunca, jamais secasaria com um homem que nãoamasse.

Chegando ao fim docaminho, viu o sólido chalé demadeira mais à frente, intocadohavia muitas gerações. O telhadode sapê se destacava contra afolhagem mais escura dasconíferas da floresta em volta,como um brilhante e saudávelquadrado verde. Anna pegou umpouco d’água no barril que ficavaao lado da porta e lavou as mãospara tirar o cheiro de vaca antes

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de entrar no alegre cômodo quefazia as vezes de sala e cozinhaonde, conforme ela previa, aslamparinas a óleo já estavamacesas e emitiam uma luz forte.

O cômodo tinha uma mesagrande coberta por uma toalhaquadriculada, uma cômoda depinho esculpido, um velhofogareiro a lenha e uma grandelareira aberta, na qual ela e a mãeesquentavam o panelão de ferrocheio de mingau para o café damanhã e o jantar, e a carne e oslegumes para a refeição do meio-dia. Mais para o fundo ficavam osquartos: o dos pais, o de Knut, e ominúsculo quartinho no qual ela

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dormia.Anna pegou uma das

lamparinas sobre a mesa,atravessou o piso gasto de tábuascorridas e abriu a porta do quartocom um empurrão. O espaço maldava para ela passar, pois acabeceira da cama quaseencostava na porta. Depois depousar a lamparina sobre ocriado-mudo, ela tirou o gorro, eseus cabelos cascatearam atéabaixo dos ombros, uma jubaencaracolada ruiva digna de umquadro de Ticiano.

Após pegar o espelho gasto,Anna se sentou na cama eexaminou o próprio rosto,

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limpando uma mancha de sujeitada testa para ficar apresentávelantes do jantar. Passou algunssegundos estudando seu reflexona superfície rachada. Não seconsiderava particularmentebonita. O nariz lhe pareciapequeno demais em comparaçãocom os grandes olhos azuis e oslábios cheios e curvos. A únicacoisa boa em relação ao invernoque se aproximava, pensou, eraque as sardas que no verãosalpicavam generosamente o ossodo nariz e as bochechasdiminuiriam e hibernariam juntocom ela até a primavera seguinte.

Com um suspiro, ela pousou

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o espelho, espremeu-se para sairpela porta e verificou o relógiona parede da cozinha. Eram seteda noite. Ela ficou surpresa pornão encontrar ninguém em casa,principalmente porque sabia queseu pai e Knut eram aguardados.

– Olá? – chamou, masninguém respondeu. Anna saiupara o crepúsculo que caíadepressa e deu a volta até osfundos do chalé, onde havia umasólida mesa de pinho posicionadadireto sobre a terra batida. Parasua surpresa, viu os pais e Knutsentados na companhia de umdesconhecido, cujo rosto estavailuminado pela claridade da

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lamparina a óleo.– Por onde você andou,

menina? – indagou sua mãe,levantando-se da cadeira.

– Fui ver se as vacas tinhamdescido da montanha, como vocêpediu.

– Faz horas que você saiu –repreendeu Berit.

– Tive que ir atrás de Rosa,que ficara sozinha quilômetrospara trás das outras.

– Bom, pelo menos agoravocê voltou. – Berit pareciaaliviada. – Este cavalheiro veioaqui com seu pai e seu irmão paraconhecê-la.

Anna olhou de relance para

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o cavalheiro em questão e seperguntou por que cargas d’águaele faria uma coisa dessas. Emtoda a sua vida, ninguém nuncatinha ido até lá “para conhecê-la”. Ao examiná-lo mais de perto,viu que ele não era um homem docampo. Estava usando um paletóescuro de alfaiataria, com largaslapelas, uma gravata de seda nopescoço e uma calça de flanelaque, embora salpicada de lama nabarra, era do tipo usado porhomens elegantes da cidade.Tinha um bigode grande curvadopara cima nas duas pontas, bemparecido com os chifres no altoda cabeça de um bode, e pelas

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rugas do rosto Anna calculou quetivesse 50 e poucos anos.Enquanto o estudava, pôde verque ele também a estavaavaliando. O cavalheiro então lhesorriu, e foi um sorriso cheio deaprovação.

– Venha, Anna, venhaconhecer Herr Bayer. – O paiacenou para ela chegar maisperto, ao mesmo tempo que erguiaa grande jarra sobre a mesa paraencher a caneca do visitante decerveja caseira.

Anna caminhou em direçãoao homem com passos hesitantes;na mesma hora, ele se levantou eestendeu a mão. Ela estendeu a

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sua de volta, e em vez de apertá-la ele a segurou com suas duasmãos.

– Frøken Landvik, é umprivilégio conhecê-la.

– É mesmo? – estranhou ela,espantada com o entusiasmo dasaudação.

– Anna, não seja mal-educada! – ralhou a mãe.

– Não, imaginem –respondeu o cavalheiro. – Tenhocerteza de que Anna não teve aintenção de ser rude. Está sósurpresa por me ver. Não é tododia que sua filha chega em casa,uma fazenda isolada no flanco damontanha, e encontra um

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desconhecido à sua espera. Anna,por favor, sente-se. Vou explicarpor que estou aqui.

Seus pais e Knut aobservaram com um ar deexpectativa quando ela se sentou.

– Em primeiro lugar, permitaque eu me apresente. Meu nome éFranz Bayer e sou professor dehistória norueguesa naUniversidade de Christiania. Soutambém pianista e professor demúsica. Eu e alguns amigos quecompartilham de meus interessespassamos a maioria dos verõesem Telemark pesquisando acultura nacional que vocês sabemtão bem preservar nesta região, e

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à procura de talentos musicaispara representar essa cultura nacapital de Christiania. Quandocheguei ao vilarejo de Heddal, fizcomo sempre faço, e fui primeiroà igreja. Lá encontrei a mulher dopastor, Fru Erslev. Ela me disseque cuida do coral da igreja, equando lhe perguntei se haviaalguma voz excepcional no grupo,ela me falou da senhorita.Naturalmente, imaginei quedevesse morar por perto. Elaentão me disse que a senhoritapassava os verões aqui namontanha, a quase um dia deviagem a cavalo e por carroça,mas que por acaso o seu pai

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talvez pudesse me dar umacarona, o que de fato aconteceu. –Herr Bayer fez uma mesura paraAnders. – Minha cara senhorita,confesso ter sentido certareticência quando Fru Erslev medisse onde ficava a sua casa. Masela me convenceu que a viagemvaleria a pena. Segundo ela, asenhorita tem a voz de um anjo.Portanto, cá estou. – Ele abriu osbraços e deu um largo sorriso. –E os seus caros pais se mostrarammais do que hospitaleirosenquanto esperávamos vocêvoltar.

Enquanto Anna se esforçavapara assimilar as palavras de

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Herr Bayer, reparou que sua bocaestava escancarada de surpresa efechou rapidamente os lábios.Não queria que um homem dacidade, sofisticado como ele, atomasse por uma camponesatonta.

– Fico honrada que tenhafeito essa viagem só para me ver– disse ela, fazendo a mesuramais graciosa de que foi capaz.

– Bem, se a regente do seucoral estiver certa... Seus paistambém acham que a senhoritatem talento... nesse caso a honra étoda minha – respondeu HerrBayer, galante. – E é claro que,agora que a senhorita está aqui,

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muito me encanta afirmar que tema oportunidade de provar queestão todos certos. Gostaria muitode ouvi-la cantar para mim, Anna.

– É claro que ela vai cantar– disse Anders quando a filhaficou parada, calada e hesitante. –Anna?

– Mas Herr Bayer, eu sóconheço canções folclóricas ehinos religiosos.

– Qualquer um dos dois vaibastar, posso lhe garantir –incentivou ele.

– Cante “Per Spelmann” –sugeriu Berit.

– Para começar, serve –concordou Herr Bayer com um

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meneio de cabeça.– Mas eu até hoje só cantei

para vacas.– Então imagine que eu sou

sua vaca preferida, e que está mechamando de volta para casa –retrucou o cavalheiro com umbrilho bem-humorado nos olhos.

– Está bem, senhor. Voufazer o melhor que puder.

Anna fechou os olhos etentou se imaginar de volta àmontanha chamando Rosa, comotinha feito mais cedo naquelamesma noite. Inspirou fundo ecomeçou a cantar. As palavras lhevieram à mente sem pensar, e elacantou a história do músico pobre

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que trocava sua única vaca parater seu violino de volta. Quando aúltima nota cristalina se dissipouno ar da noite, ela abriu os olhos.

Olhou para Herr Bayer comum ar hesitante, à espera de umareação verbal. Um silêncio pairoupor alguns instantes enquanto elea estudava com atenção.

– E agora um hino, quemsabe? A senhorita conhece “HerreGud, dit dyre Navn og Æere”? –indagou ele por fim.

Anna assentiu e novamenteabriu a boca para cantar. Dessavez, quando ela terminou, HerrBayer sacou um lenço grande esecou os olhos.

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– Minha jovem – falou, coma voz rouca de emoção. – Foisimplesmente sublime. E valeucada hora da dor nas costas deque padecerei esta noite porcausa da viagem até aqui.

– Mas hoje o senhor ficaconosco – interveio Berit. – Podedormir no quarto de Knut, e nossofilho dorme na cozinha.

– Minha cara senhora, fico-lhe muitíssimo grato. Como temosmuito o que conversar, vouaceitar sua oferta. Perdoe apresunção, mas será que haveriacomo a senhora oferecer umpouco de pão a este viajantecansado? Não como nada desde o

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desjejum.– Por favor, me perdoe –

disse Berit, horrorizada com ofato de, em seu entusiasmo, teresquecido por completo dacomida. – É claro. Anna e euvamos preparar algo agoramesmo.

– Enquanto isso, HerrLandvik e eu conversaremossobre como a voz de Anna podeser apresentada a um públicomais amplo na Noruega.

Com os olhos arregalados,Anna seguiu a mãe até a cozinha,obediente.

– O que ele deve estarpensando de nós? Que não somos

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nem um pouco hospitaleiros, outão pobres que não temos sequercomida na mesa para umconvidado! – ralhou Berit consigomesma enquanto preparava umatravessa com pão, manteiga efatias de carne de porco curada. –Ele vai voltar para Christiania econtar a todos os amigos que ashistórias que eles escutaramsobre nossos modos poucocivilizados são verdade.

– Mor, Herr Bayer pareceum cavalheiro gentil, e tenhocerteza de que não fará nadadisso. Se estiver tudoencaminhado por aqui, precisobuscar lenha para o fogo.

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– Bem, vá logo. Vocêprecisa pôr a mesa.

– Sim, Mor – respondeuAnna, e saiu de casa levando umgrande cesto de vime debaixo dobraço. Após enchê-lo com lenha,ficou alguns instantes paradaolhando para as luzes piscantesque brilhavam intermitentes naencosta da montanha na direçãodo lago, indicando a presençaesporádica de outras habitaçõeshumanas. Seu coração ainda batiaforte com a surpresa do que haviaacabado de acontecer.

Não tinha uma ideia muitoclara do que aquilo significavapara ela, embora tivesse sim

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ouvido histórias sobre outroscantores e músicos de talentovindos de diversas aldeias docondado de Telemark e levadospara a cidade por professorescomo Herr Bayer. Tentou pensar:se ele realmente lhe convidassepara ir com ele, será que iriaquerer? Como sua experiênciafora da leiteria se limitava aHeddal ou à ocasional visita aSkien, nem sequer conseguiucomeçar a imaginar o que umamudança dessas poderiaenvolver.

Ao ouvir a mãe chamar seunome, virou-se e andou de voltaaté o chalé.

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Na manhã seguinte, nospoucos e sonolentos segundosentre o sono e a vigília, Anna seremexeu na cama. Sabia que algoincrível tinha acontecido navéspera. Lembrando-se por fimdo quê, levantou-se e iniciou openoso processo de vestir acalçola, a camisa de baixo, ablusa creme, a saia preta e oavental bordado colorido queeram seu traje do dia a dia. Apóscolocar na cabeça o gorro dealgodão e guardar os cabelos lá

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dentro, calçou as botas.Na noite anterior, depois de

comerem, ela tinha cantado maisduas canções e um hino antes de amãe mandá-la para a cama. Atéentão, a conversa não havia sidosobre Anna, mas sobre o tempomais quente do que o normal e aprevisão de colheita de seu paipara o ano seguinte. Apesardisso, ela ouviu as vozes baixasdos pais e de Herr Bayer pelasfinas divisórias de madeira, eentendeu que era o seu futuro queos três discutiam. Emdeterminado momento, atreveu-seaté a abrir uma frestinha da portapara poder bisbilhotar.

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– É claro que me preocupocom o fato de, se Anna nos deixare for para a cidade, minha mulherter que dar conta das tarefas dacasa sozinha – ouviu o pai dizer.

– Ela pode até não ternenhum talento natural para acozinha e a limpeza, mas é umatrabalhadora esforçada e tambémcuida dos animais – acrescentouBerit.

– Bem, tenho certeza de quepodemos chegar a um acordo –respondeu Herr Bayer em tomtranquilizador. – Estou preparadopara recompensá-los pela perdado trabalho de Anna.

Quando uma quantia foi

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mencionada, Anna prendeu arespiração, sem acreditar. Incapazde ouvir qualquer outra coisa,fechou a porta da maneira maissilenciosa que conseguiu.

– Quer dizer que vou sercomprada e vendida como umavaca no mercado! – murmurou,furiosa consigo mesma eindignada que o dinheiro tivessealgum papel na decisão de seuspais.

Apesar disso, sentiu tambémum estremecimento de animação.Só muito tempo depois é que osono a dominou.

De manhã, Anna ficousentada sem dizer nada diante de

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um prato de mingau enquanto afamília falava sobre Herr Bayer,que ainda dormia para serecuperar da viagem desgastante.Pareceu-lhe que o entusiasmo davéspera tinha diminuído e queagora eles tinham começado aquestionar a sensatez de permitirque a única filha mulher fossepara a cidade com umdesconhecido.

– Tudo que temos é apalavra dele – disse Knut, soandoamargurado por ter tido que cedera própria cama ao forasteiro. –Como saber que Anna estarásegura com ele?

– Bem, se Fru Erslev o

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mandou vir aqui com a suaaprovação, ele pelo menos deveser um homem respeitável etemente a Deus – comentou Beritenquanto preparava uma tigela demingau mais generosa para avisita, com uma colherada degeleia de lingonberry por cima.

– Acho que seria melhor eufalar com o pastor e a mulher delena semana que vem, quandovoltarmos para nossa casa emHeddal – disse Anders, e Beritmeneou a cabeça para concordar.

– E depois ele precisa nosdar tempo para pensar, e vir nosvisitar de novo para conversar –arrematou ela.

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Anna não se atreveu a dizernada; tinha certeza de que o queestava em jogo era o seu futuro, enão sabia para que lado desejavaque a balança pendesse.Escapuliu antes de a mãe poderlhe atribuir mais alguma tarefa,pois queria passar o dia com asvacas e ter paz e tranquilidadepara pensar. Cantarolandoconsigo mesma enquantocaminhava, perguntou-se por queHerr Bayer estava tão interessadonela quando com certeza deveriahaver vários cantores melhoresem Christiania. Restavam-lheapenas poucos dias nasmontanhas antes de descer para

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passar o inverno em Heddal, e elade repente foi dominada pelaconsciência de que talvez nãovoltasse ali nem uma vez sequerno verão seguinte. Abraçou ebeijou Rosa, fechou os olhos, evoltou a cantar para espantar aslágrimas.

Uma semana depois, devolta à casa de Heddal, Andersfoi conversar com o pastor Ersleve a mulher, que o tranquilizaram

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quanto ao caráter e às referênciasdo professor. Pelo visto, HerrBayer já tinha apadrinhado outrasmeninas, transformando-as emcantoras profissionais. Umadelas, contou Fru Ersleventusiasmada, tinha chegado acantar no coro do Teatro deChristiania.

Pouco depois, quando HerrBayer foi visitá-los, Berit seesfalfou na cozinha e preparou omelhor pernil de porco que tinhapara a refeição do meio-dia.Depois de comerem, Anna foicumprir suas tarefas habituais dealimentar as galinhas e encher oscochos com água. Parou várias

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vezes junto à janela da cozinha,louca para ouvir o que diziam ládentro, mas não conseguiu ouvirnada. Por fim, Knut foi buscá-la.

Ao tirar o casaco, Anna viuque os pais estavam sentadosdescontraídos na companhia deHerr Bayer, tomando a cervejacaseira de Anders. Quando sesentou à mesa com Knut, ocavalheiro a cumprimentou comum sorriso jovial.

– Então, Anna, seus paisconcordaram que você vá passarum ano morando comigo emChristiania. Além de seuprofessor, serei também seumentor, e prometi a eles agir

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fielmente in loco parentis. O queme diz?

Anna o encarou semresponder; como não sabia o quesignificava nem “mentor” nem “inloco parentis”, não quis soarignorante.

– O que Herr Bayer querdizer é que você vai morar comele no apartamento dele emChristiania, e que ele vai lheensinar a cantar direito,apresentá-la a pessoas influentese garantir que você receba todosos cuidados como se fosse suaprópria filha – explicou Berit,pousando a mão no joelho deAnna em um gesto reconfortante.

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Ao ver a expressão atônitano rosto da moça, Herr Bayer seapressou em tentar tranquilizá-laainda mais.

– Como eu disse aos seuspais, as acomodações serãonaturalmente mais do queapropriadas. Minha governanta,Frøken Olsdatter, também morano meu apartamento, e estarásempre disponível paraacompanhá-la e prover as suasnecessidades. Também mostrei aseus pais cartas de apresentaçãoda minha universidade e dacomunidade musical deChristiania. De modo que não hánada a temer, minha cara jovem,

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posso lhe garantir.– Entendo. – Anna se

concentrou na caneca de café quesua mãe tinha lhe servido, etomou vários goles.

– Esse plano a agradaria,Anna? – indagou Herr Bayer.

– Eu... eu acho que sim.– Herr Bayer também está

disposto a cobrir todas as suasdespesas – incentivou Anders. –É uma oportunidade maravilhosa,Anna. Ele acredita que você temum enorme talento.

– Acredito mesmo –confirmou Herr Bayer. – Asenhorita tem uma das vozes maispuras que já escutei. E também

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receberá instrução, não sómusical. Vai aprender outraslínguas e providenciareiinstrutores para melhorar sualeitura e sua escrita...

– Me perdoe, Herr Bayer,mas já sou proficiente em ambas– interveio Anna, sem conseguirse conter.

– Então isso vai ajudar esignifica que podemos começar atreinar sua voz mais depressa doque eu imaginava. Mas, Anna, suaresposta é sim?

A maior vontade da jovemera perguntar por quê: por queele queria pagar seu pais paragastar seu tempo cuidando tanto

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dela quanto de sua voz, e aindapor cima hospedando-a nopróprio apartamento? No entanto,como ninguém mais pareceuquestionar isso, sentiu quetampouco lhe coubesse fazê-lo.

– Mas Christiania fica muitolonge, e um ano é muito tempo... –A voz de Anna se extinguiuquando ela se deu conta daenormidade do que estavam lhepropondo.

Tudo que ela conhecia, tudoque havia conhecido até entãonão existiria mais. Ela era umamenina simples de uma fazendaem Heddal, e ainda que houvesseconsiderado sua vida e seu futuro

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sem graça, o salto que estavamlhe pedindo que desse apósapenas uns poucos segundos dereflexão de repente lhe pareceuexcessivo.

– Bem...Quatro pares de olhos se

cravaram nela.– Eu...– Sim? – indagaram seus

pais e Herr Bayer em uníssono.– Quando eu for embora, por

favor me prometam que, se Rosamorrer, vocês não vão comê-la.

E imediatamente após dizeressas palavras, Anna Landvikcaiu em prantos.

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14

Após a partida de Herr Bayer, olar dos Landvik se transformouem um formigueiro de atividade.Berit começou a costurar umamala na qual Anna pudesse levarpara Christiania seus poucospertences. Suas duas melhoressaias e blusas, e também asroupas de baixo, foram lavadas eremendadas com todo o cuidadopois, como dizia Berit, nenhumafilha sua iria se apresentar como

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uma reles camponesa diantedaquela gente da cidade de narizempinado. Fru Erslev lhe deu depresente um novo livro de precescom as páginas rijas ebranquinhas, recomendando-lheque rezasse todas as noites e nãose deixasse seduzir peloscomportamentos “pagãos” dacidade. O combinado era que opastor Erslev iria buscá-la emDrammen e acompanhá-la de trematé Christiania, uma vez que tinhauma reunião eclesiástica à qualprecisava comparecer.

Anna, por sua vez, constatouque mal tinha um segundo livrepara sentar e refletir sobre sua

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decisão. Sempre que sentiadúvidas se insinuarem, fazia opossível para afastá-las. Sua mãelhe dissera que Lars iria visitá-lano dia seguinte, e ela sentiu ocoração bater dolorosamentedentro do peito ao recordar asconversas sussurradas dos paissobre o casamento dos dois.Pareceu-lhe que, o que quer que ofuturo lhe reservasse, fosse ali emHeddal ou em Christiania, eramas outras pessoas que estavamtomando as decisões no seu lugar.

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– Lars chegou – avisou Beritna manhã seguinte, como se aprópria Anna não estivesse comos ouvidos apurados, ansiosapara ouvir o barulho das botas dorapaz se livrando da lama dachuva de setembro. – Vou abrir.Por que não o recebe na saleta?

Anna assentiu; sabia que asaleta era o cômodo “sério” dacasa. Era lá que ficava o bancode encosto alto, a única peça demobília estofada, bem como umacristaleira contendo um misto depratos e pequenos enfeites quesua mãe considerava bons o

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suficiente para expor. Era látambém que haviam sido veladosos caixões de três de seus avósapós deixarem este mundo.Enquanto percorria o estreitocorredor até a saleta, Annapensou que, desde que se entendiapor gente, era muito raro aquelecômodo ter abrigado alguém quede fato respirasse. E quando elaabriu a porta, uma lufada de arrançoso e parado emergiu lá dedentro.

A conversa que ela estavaprestes a ter era provavelmente oque tinha lhe valido ocuparaquele ambiente sóbrio, e elaficou parada se perguntando

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exatamente como deveria estarposicionada quando Larsentrasse. Ao ouvir seus passospesados no corredor, moveu-sedepressa e se acomodou nobanco, cujas almofadas eramquase tão duras quanto as tábuasde pinho do assento que assustentava.

Alguém bateu na porta, eAnna sentiu uma súbita vontadede rir. Ninguém nunca tinha lhepedido permissão para entrar emalgum cômodo que não fosse oseu quarto de dormir.

– Pois não? – respondeu.A porta se abriu e o rosto

redondo de Berit apareceu.

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– Lars chegou.Anna o observou entrar na

saleta. O rapaz havia feito umesforço para escovar os fartoscabelos louros, e estava usandosua melhor camisa creme e umacalça preta que em geral só punhapara ir à igreja, além de umcolete que ela nunca tinha visto,um colete azul-escuro que na suaopinião combinava bem com osolhos dele. Pensou que Lars eramesmo bastante bonito, mas,afinal, pensava o mesmo emrelação a Knut, seu próprioirmão. E certamente não gostariade se casar com ele.

Os dois não se viam desde

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que Lars havia lhe dado oexemplar de Peer Gynt, e elaengoliu em seco, nervosa, ao selembrar de como ele tinhasegurado sua mão. Levantou-separa cumprimentá-lo.

– Olá, Lars.– Aceita um café, Lars? –

indagou Berit da porta.– N-não, obrigado, Fru

Landvik.– Muito bem – disse a mãe

de Anna após uma pausa. – Voudeixá-los a sós para conversarem.

– Quer se sentar? –perguntou Anna a Lars depois deBerit sair.

– Sim – respondeu ele, e se

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sentou.Anna se acomodou

desconfortavelmente na borda dobanco, torcendo as mãos no colo.

– Anna... – Lars limpou agarganta. – Você sabe por queestou aqui?

– Porque você vem aquisempre? – arriscou ela, e elerespondeu com uma risadinhasuave, o que dissipou um pouco atensão.

– É, acho que venho mesmo.Como foi seu verão?

– Como todos os outrosverões antes dele, ou seja,bastante bem.

– Mas com certeza este

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verão foi especial para você,não? – insistiu ele.

– Por causa de Herr Bayer,você quer dizer? O homem deChristiania?

– Sim. Fru Erslev temcontado para todo mundo. Elaestá muito orgulhosa de você... eeu também – acrescentou ele. –Acho que você deve ser a pessoamais famosa de todo o condadode Telemark. Tirando Herr Ibsen,claro. Você vai?

– Bem, Far e Mor achamque é uma oportunidademaravilhosa para mim. Segundoeles, é uma honra ter um homemcomo Herr Bayer disposto a me

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ajudar.– E eles têm razão. Mas eu

gostaria de saber se você quer ir.Anna refletiu a respeito.– Acho que tenho de ir –

respondeu. – Seria uma grosseirarecusar, você não concorda?Principalmente ele tendo viajadoum dia inteiro para subir amontanha e me ouvir cantar.

– É, acho que seria mesmo.– Lars olhou para trás dela emdireção à parede feita compesadas toras de pinheiro, eencarou o retrato do LagoSkisjøen pendurado nela.

Houve um longo silêncio queAnna não soube se deveria

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quebrar ou não. Por fim, Larstornou a voltar sua atenção paraela.

– Anna.– Sim, Lars?Ele inspirou fundo, e ela

reparou que teve que agarrar obraço do móvel para impedir quesua mão tremesse.

– Antes de você ir emborapara o verão, eu conversei comseu pai sobre a possibilidade depedir a sua mão em... emcasamento. Combinamos que eulhe venderia as terras da minhafamília e que nós as cultivaríamosjuntos. Você sabia dessas coisas?

– Entreouvi meus pais

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conversando a respeito –confessou ela.

– Antes de Herr Bayerchegar, qual era a sua opinião emrelação a esse plano?

– De Far comprar suasterras?

– Não. – Lars se permitiu umsorriso de ironia. – De se casarcomigo.

– Bem, para ser sincera, eunão achava que você quisesse secasar comigo. Você nunca falouno assunto.

Lars olhou para ela,espantado.

– Anna, com certeza vocêdevia ter alguma ideia dos meus

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sentimentos em relação a você,não? Passei a maior parte doúltimo inverno vindo aqui todasas noites ajudá-la com sua escritae leitura.

– Mas Lars, você semprevem aqui, desde que eu soupequena. Você... você é como umirmão para mim.

Um lampejo de dor cruzou osemblante do rapaz.

– A verdade é que eu amovocê, Anna.

Ela o encarou, pasma.Imaginara que ele considerassequalquer união uma simplesquestão de conveniência,sobretudo uma vez que ela não

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chegava a ser nenhuma beldade,sem falar em suas habilidadesdomésticas limitadas. Afinal,pelo que já tinha visto em suacurta vida, a maioria doscasamentos parecia se basearnessa premissa. Mas agora Larsestava dizendo que a amava... oque era completamente diferente.

– É muita gentileza sua,Lars. Me amar, quero dizer.

– Não se trata de“gentileza”, Anna, trata-se de... –Ele se interrompeu; pareciaperdido, confuso.

No longo silêncio que seseguiu, Anna pensou em comoseus jantares seriam silenciosos

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caso os dois viessem a se casar.Lars decerto se concentraria nacomida, o que realmente não seriauma coisa boa.

– Eu quero saber, Anna, seHerr Bayer não tivesse lhepedido para ir com ele paraChristiania, se você teria aceitadoum pedido de casamento.

Ao pensar em tudo que elehavia feito para ajudá-la noinverno anterior e no quantogostava dele, ela soube que sóhavia uma resposta possível.

– Eu teria dito sim.– Obrigado – disse ele, com

uma expressão de alívio evidente.– Seu pai e eu concordamos que,

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considerando as circunstâncias,os contratos para a compra dasterras da minha família serãoelaborados sem demora. Eu entãoaguardarei um ano enquanto vocêestiver em Christiania. Quandovocê voltar, pedirei sua mãooficialmente.

Ao ouvir isso, Annacomeçou a entrar em pânico. Larshavia entendido mal. Casohouvesse lhe perguntado se ela oamava como ele dizia amá-la, elateria respondido que não.

– Anna, você concorda?O silêncio reinou na saleta

enquanto Anna tentava organizarseus pensamentos.

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– Espero que consigaaprender a me amar como eu aamo – disse ele baixinho. – Etalvez um dia possamos viajarpara os Estados Unidos juntos ecomeçar uma nova vida lá. Istoaqui é para você, para selar nossocompromisso informal um com ooutro. Acho que é mais útil doque um anel, pelo menos porenquanto. – Ele levou a mão aobolso do colete e pegou uma finae comprida caixa de madeira, quelhe entregou.

– Eu... obrigada.Anna correu os dedos pela

madeira encerada e abriu a caixa.Aninhada lá dentro estava a mais

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linda pena que já vira, e elaentendeu que aquilo devia tercustado uma fortuna. O corpo erafeito de um pinho claro,elegantemente recurvado para seencaixar com perfeição em suamão, e a ponta terminava em umbico delicado. Ela segurou a penado jeito exato que Lars havia lheensinado. Ainda que não oamasse nem quisesse se casarcom ele, o presente tocou seucoração e deixou seus olhosmarejados de lágrimas.

– Lars, isto é a coisa maislinda que eu já tive na vida.

– Vou esperá-la, Anna –disse ele. – E talvez você possa

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usar a pena para me escrevercartas contando sobre sua novavida em Christiania.

– Claro.– E concorda que noivemos

formalmente no ano que vem,quando voltar de Christiania?

Sentindo toda a força doamor dele, e com os olhospregados em sua linda pena, Annasentiu que só podia dizer umacoisa.

– Sim.Lars abriu um largo sorriso.– Então estou contente.

Agora vamos anunciar aos seuspais que chegamos a um acordo. –Ele se levantou e pegou a mão

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dela. Então curvou-se e depositouum beijo ali. – Minha Anna.Vamos torcer para Deus sergeneroso com nós dois.

Dois dias mais tarde,qualquer preocupação com Lars ecom o que aconteceria dali a umano foi varrida da mente de Annaquando ela se levantou cedo paraembarcar na longa viagem atéChristiania. Quase passando malde nervosismo, ela engoliu com

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dificuldade as panquecasespeciais que a mãe havia lhepreparado para o café. QuandoAnders anunciou que estava nahora de saírem, levantou-se, esuas pernas pareciam feitas dequeijo de cabra. Ela olhou pelaúltima vez para a cozinhaaconchegante e sentiu um impulsosúbito e desesperado de desfazera mala e cancelar tudo.

– Está tudo bem, Kjære –falou Berit, acariciando os longoscachos da filha para acalmá-laquando as duas se abraçaram. –Antes de você perceber, já estarávoltando para nos visitar. Só nãose esqueça de fazer suas preces

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todas as noites, ir à igreja aosdomingos e escovar os cabelosdireito.

– Mor, chega de tantasrecomendações, senão ela nuncavai partir – disse Knut, seco,abraçando a irmã. – E não seesqueça de se divertir bastante –sussurrou em seu ouvido antes deenxugar as lágrimas dela com ospolegares.

Anders a conduziu em suacarroça puxada a cavalo atéDrammen, que ficava a quase umdia de viagem e onde ela pegariao trem para a cidade com o pastorErslev. Pai e filha passaram anoite em uma modesta hospedaria

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que tinha também uma estrebariapara o cavalo, de modo quepuderam acordar cedo e chegar àestação com tempo de sobra parao trem.

O pastor os aguardava naplataforma repleta de viajantes.Quando o trem finalmente chegouresfolegando, Anna se inquietoucom as sibilantes volutas devapor e o guincho dos freios; ospassageiros acorreram paraembarcar. Seu pai a ajudou com amala pesada, e os dois seguiram opastor em direção ao trem.

– Far, estou com muitomedo – sussurrou ela.

– Minha Anna, se você

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estiver infeliz é só voltar paracasa – respondeu ele, delicado,estendendo a mão para acariciarseu rosto. – Agora vamosacomodá-la a bordo.

Eles subiram os degraus dotrem e avançaram pelo vagão atéencontrar lugares para os doisviajantes. Depois de Anderssuspender a mala até a grade demetal acima da cabeça de Anna, ocondutor apitou e seu pai seinclinou depressa para lhe dar umúltimo beijo.

– Não se esqueça deescrever sempre para Lars, assimtodos poderemos saber comoestão as coisas e nos lembrar da

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honra que lhe foi concedida.Mostre àquela gente da cidadeque seus conterrâneos ruraissabem se comportar.

– Sim, Far. Eu prometo.– Boa menina. Nos vemos no

Natal. Que o Senhor a abençoe eguarde. Até breve.

– Fique descansado, vouentregá-la direitinho a HerrBayer – disse o pastor Erslev,apertando a mão de Anders.

Anna fez o possível para nãochorar quando seu pai saltou dotrem e caminhou junto ao vagãopara lhe acenar pela janela. Maso trem avançou com um tranco, eo rosto dele logo desapareceu em

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meio às nuvens de vapor.Enquanto o pastor Erslev

abria seu livro de orações, ela sedistraiu observando os outrospassageiros à sua volta no vagão,e de repente sentiu que destoava,vestida com seus trajestradicionais. O resto das pessoas,todas com roupas elegantes dacidade, a fizeram se sentirexatamente como a camponesaque era. Ela pôs a mão no bolsoda saia e pegou a carta que Larstinha lhe dado na véspera, quandoeles se despediram. Ele a fizeraprometer lê-la apenas quandoestivesse a caminho. Exagerandocada movimento só para mostrar

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aos outros ocupantes do vagãoque, apesar de ser uma moça docampo, ela sabia ler, Annarompeu o lacre da carta.

As palavras à sua frente,escritas na caligrafia certinha deLars, foram um desafio para ela,mas Anna perseverou, obstinada.

Stalsberg VåningshusetTindevegen

Heddal

18 de setembro de1875

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Kjære Anna,

Queria lhe dizer queestou orgulhoso de você.Aproveite cadaoportunidade que tiver paraaperfeiçoar sua voz e seuconhecimento do mundo queexiste fora de Heddal. Nãotenha medo, e lembre-se deque, por baixo das roupaselegantes e dos modosdiferentes das pessoas quevai conhecer, elas nãopassam de seres humanoscomo você e eu.

Enquanto isso, vou

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esperá-la aqui, ansiandopelo dia do seu retorno. Porfavor, escreva-me paradizer que chegou bem emChristiania. Ficaremosfascinados ao ler todos osdetalhes sobre sua novavida lá.

Por enquanto, tenha acerteza de que sou seuamoroso e sempre fiel,

Lars.

Anna dobrou a carta comcuidado e tornou a guardá-la nobolso. Custava-lhe equacionar apresença física de Lars, sempre

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tão canhestro e calado, com aeloquência fluida das palavrasescritas naquela carta. Enquanto otrem resfolegava rumo aChristiania e ela observava opastor Erslev cochilar no assentoà sua frente, com uma gotinha deumidade a oscilar perigosamenteda ponta do nariz sem nuncachegar a cair, Anna reprimiu aonda de pânico que sentia todavez que pensava em seu futurocasamento. Mas um ano era muitotempo, muita coisa podiaacontecer. As pessoas podiam seratingidas por raios ou então pegarum forte resfriado e morrer. Elapoderia morrer, pensou, ao sentir

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o trem se inclinar de repente paraa direita. E com esse pensamentoAnna fechou os olhos e tentoudescansar um pouco.

– Bom dia, pastor Erslev! Eminha cara Frøken Landvik,permita-me lhe dar as boas-vindas a Christiania. Já quevamos viver tão próximos, possochamá-la de Anna? – indagouHerr Bayer enquanto pegava suamala e a ajudava a descer do

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trem.– Sim, senhor. Claro –

respondeu Anna, tímida.– Que tal a viagem, pastor

Erslev? – perguntou Herr Bayerao idoso sacerdote que mancavapela plataforma repleta de gente.

– Muito cômoda.Agradecido. Agora meu deverestá cumprido, e já vejo o pastorEriksonn à minha espera – disseele, acenando para um homembaixo e calvo trajando vestesidênticas às suas. – Então vou medespedir, Anna.

– Até logo, pastor Erslev.Anna ficou olhando o último

vínculo com tudo que ela

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conhecia desaparecer pelosportões da estação e seembrenhar em uma ruamovimentada na qual váriascarruagens puxadas a cavaloaguardavam.

– Venha, nós também vamosalugar uma dessas para chegarlogo em casa. Em geral, eu vou debonde, mas temo que talvez sejademais para você, depois de umaviagem tão longa.

Após dar instruções aocondutor, Herr Bayer ajudouAnna a subir. Quando ela sesentou no banco, estofado comuma fazenda vermelha macia ebem mais confortável do que o

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assento especial da casa de suafamília, sentiu-se empolgada porestar viajando com tanto luxo.

– É um trajeto curto até meuapartamento – comentou HerrBayer. – E minha governanta nospreparou um jantar. Você deveestar com fome depois da viagem.

Anna desejou secretamenteque o trajeto de carruagemdurasse muito tempo. Empurroude lado as pequenas cortinas debrocado e espiou pela janela,assombrada, enquanto elesatravessavam o centro da cidade.Em vez das trilhas estreitas quese entrecruzavam na cidade deSkien, as vias ali eram largas,

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margeadas por árvores e muitomovimentadas. Passaram por umbonde puxado a cavalo repleto depassageiros bem vestidos: oshomens com as cabeçasencimadas por cartolas e asmulheres ostentandoextravagantes chapéus enfeitadoscom flores e fitas. Anna tentou seimaginar usando algo assim eprecisou conter uma risadinha.

– Há muito o que conversar,claro – continuou Herr Bayer. –Mas temos tempo de sobra até...

– Até o quê, senhor?– Ah, até você estar pronta

para se apresentar a um públicomais amplo, minha cara jovem.

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Pronto, chegamos.Ele abriu a janela e gritou

para o condutor encostar acarruagem. Ajudou Anna a descere em seguida pegou sua mala. Elaergueu os olhos para a altaconstrução de pedra, cujos váriosandares de janelas reluzentespareciam se estender até o céu.

– Infelizmente, ainda nãomandamos instalar uma daquelasnovidades chamadas elevadores,então teremos que subir de escada– disse ele. Os dois entraram pelaimponente porta dupla e pararamum instante no hall de entrada,com piso de mármore e que faziaeco. – Quando chego ao

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apartamento, pelo menos tenho asensação de ter feito jus ao jantar!– comentou Herr Bayer,começando a galgar a escadariacurva com seu corrimão de latãoreluzente.

Anna contou apenas trêslances curtos de escada: era bemmais fácil de subir do que umaencosta de montanha debaixo dachuva. Herr Bayer a guiou por umcorredor largo e destrancou umaporta.

– Frøken Olsdatter,voltamos, e Anna está aqui! –chamou ele, conduzindo-a poroutro corredor até uma sala deestar espaçosa, com paredes

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revestidas de papel vermelho-rubi e as maiores janelas de vidroque a moça já vira.

– Onde essa mulher foiparar? – reclamou Herr Bayer. –Me dê licença um instantinho,minha cara Anna, enquanto vouencontrá-la. Sente-se, por favor, efique à vontade.

Tensa demais para ficarparada, Anna aproveitou aoportunidade para examinar ocômodo. Ao lado de uma dasjanelas ficava um piano de cauda,e debaixo dela uma imensaescrivaninha de mognoabarrotada de partituras. O centroda sala era dominado por uma

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versão maior e muito maisgrandiosa do banco com encostoalto de seus pais. Em frente a estehavia duas poltronas elegantesforradas com o mesmo panolistrado de rosa e marrom, e entreas duas uma mesa baixa feita deuma bela madeira escura, quesustentava uma grande pilha delivros e uma coleção de caixas derapé. As paredes eram enfeitadascom quadros a óleo de paisagensrurais não muito diferentes dasvistas ao redor de sua casa emHeddal. Havia também várioscertificados e cartasemoldurados. Um deles atraiu seuolhar, e ela caminhou na sua

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direção para examiná-lo mais deperto.

Det kongelige FrederiksUniversitet tildeler

Prof. Dr. Franz Bjørn Bayeræresprofessorat i historie

16 DE JULHO DE 1847

Abaixo das palavras, umselo vermelho e uma assinatura.Anna se perguntou quantos anosde estudos teriam sidonecessários para seu mentorconquistar aquilo.

– Minha nossa, já está

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ficando escuro aqui, e malpassam das cinco! – comentouHerr Bayer, tornando a entrar nasala acompanhado por umamulher alta e magra que Annaavaliou ter uma idade próxima dade sua mãe.

A mulher usava um vestidode lã escura com gola alta e umasaia comprida e rodada. Apesardo corte elegante, a roupa erasimples e sem adornos,excetuando-se o molho de chavespendurado em uma correntinhafina em volta da cintura. Seuscabelos castanhos-claros estavampresos em um coque bem-feito nanuca.

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– Anna, esta é FrøkenOlsdatter, minha governanta.

– Prazer em conhecê-la,Frøken Olsdatter – disse Annacom uma mesura, como semprefora ensinada a fazer parademonstrar respeito aos maisvelhos.

– O prazer é todo meu, Anna– respondeu a mulher com ummeio sorriso nos olhos castanhoscalorosos, observando a jovem sereerguer. – Estou aqui para servi-la e cuidar de você – enfatizou. –Então não hesite em me avisar seestiver precisando de algumacoisa ou se algo não estiver acontento.

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– Eu... – Anna ficou confusa.Aquela senhora de vestidoelegante não podia ser umaserviçal, podia? – Obrigada.

– Pode acender aslamparinas, Frøken Olsdatter? –pediu Herr Bayer à governanta. –Está com frio, Anna? Não deixede me dizer se estiver, eacenderemos também o braseiro.

Anna levou um ou doisminutos para responder; estavafascinada observando FrøkenOlsdatter usar um pedaço decorda para baixar o lustrependurado no teto, em seguidagirar uma maçaneta de latão nocentro antes de segurar junto

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àquele um papel encerado aceso.Delicadas chamas ganharam vidanos braços rebuscados do lustre,e encheram o recinto com uma luzdourada suave antes de ele seriçado outra vez para seu lugar láem cima. Anna então olhou para obraseiro ao qual Herr Bayerhavia se referido, feito de algumtipo de cerâmica em tom creme. Alarga chaminé subia até o teto altoe forrado por uma delicada tramade madeira, o parapeito esculpidoera debruado com folha de ouro.Em comparação com o feioutensílio de ferro preto de seuspais, aquilo não era um braseiro,pensou Anna: era uma obra de

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arte.– Obrigada, Herr Bayer, mas

não estou com o menor frio.– Frøken Olsdatter, por

favor, pegue a capa de Anna eleve-a para o quarto dela juntocom a mala – pediu Herr Bayer.

Anna desamarrou a fita emvolta do pescoço e a governantatirou a capa de seus ombros.

– A cidade grande deve lheparecer um tanto excessiva –comentou ela baixinho, dobrandoa capa sobre o braço. – Comcerteza foi assim comigo, quandocheguei de Ålesund.

Bastaram essas poucaspalavras para Anna entender que

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Frøken Olsdatter também tinhasido uma moça do campo – quecompreendia a sua situação.

– Então, minha cara jovem,vamos nos sentar e tomar um chá– disse Herr Bayer – Assim queFrøken Olsdatter tiver tempo deprepará-lo.

– Pois não, Herr Bayer –assentiu a governanta, pegando amala de Anna e se retirando.

O professor indicou umacadeira para Anna se sentar e seacomodou à sua frente, no bancode encosto alto.

– Temos muito o queconversar. E como o melhormomento é sempre agora, vou

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começar a lhe falar sobre suanova vida aqui em Christiania.Você me disse que sabe ler eescrever bem, e isso vai nospoupar um tempo enorme.Também sabe ler partituras?

– Não – confessou Anna.Ela observou Herr Bayer

puxar na sua direção um cadernocom capa de couro e empunharuma pena laqueada que fazia opresente de Lars parecer um toscopedaço de madeira. Elemergulhou a pena em um tinteirosobre a mesa baixa e começou aescrever.

– E imagino que não tenhaconhecimento de outros idiomas?

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– Não, não tenho.Ele fez outra anotação no

caderno.– Você já foi a algum

concerto? Estou falando de umespetáculo musical, em um teatroou sala de concerto.

– Não senhor, nunca. Só naigreja.

– Então precisamos repararisso o quanto antes. Sabe o que éópera?

– Acho que sim. É quando aspessoas no palco cantam ahistória, em vez de falar.

– Muito bem. E em relaçãoaos números?

– Sei contar até cem –

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respondeu Anna, com orgulho.Herr Bayer reprimiu um

sorriso.– E isso é tudo de que você

vai precisar na música, Anna. Umcantor só precisa saber contar ostempos. Você toca alguminstrumento?

– Meu pai tem uma rabecahardanger, e aprendi a tocar obásico.

– Muito bem, parece-meentão que você é uma senhoritamuito bem formada – disse ele emtom satisfeito bem na hora em quea governanta entrava com umabandeja. – Agora vamos tomarnosso chá e, depois disso, se

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Frøken Olsdatter puder fazer essagentileza, ela vai lhe mostrar seuquarto. Então jantaremos juntos àssete na sala de jantar.

A atenção de Anna foiatraída pelo formato da estranhacafeteira da qual a governantaserviu o que lhe pareceu um cafébem fraco.

– É chá. Darjeeling –explicou Herr Bayer.

Sem querer parecerignorante, Anna o imitou e levouaos lábios a delicada xícara deporcelana. O gosto era agradável,mas um tanto neutro emcomparação com o café forte quesua mãe fazia em casa.

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– No seu quarto, vocêtambém vai encontrar algumasroupas simples que pedi queFrøken Olsdatter lhe arranjasse.Naturalmente, tive que adivinharseu tamanho, e agora posso verque é ainda mais pequenina doque me lembrava, então as roupastalvez precisem de ajustes –acrescentou Herr Bayer. – Comovocê talvez já tenha reparado, otraje tradicional norueguêsraramente é usado em Christiania,a não ser em festividades.

– Tenho certeza de quequalquer coisa que FrøkenOlsdatter tenha costurado paramim estará ótimo, senhor – disse

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Anna, educadamente.– Minha cara jovem, admito

que estou muito impressionadocom a sua compostura até aqui.Depois de ter estado nacompanhia de outras jovenscantoras da zona rural, entendoque isso tudo representa umagrande mudança para você.Infelizmente, muitas delas voltamcorrendo para casa feitocamundongos para o ninho. Mastenho a sensação de que você nãofará o mesmo. Pois bem, Anna,Frøken Olsdatter agora vai levá-la até seu quarto para que possase acomodar, enquanto eu resolvoum pouco da minha infindável

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papelada da universidade.Tornaremos a nos encontrar àssete para o jantar.

– Como quiser, senhor.Anna se levantou e viu que a

governanta já a esperava junto àporta. Fez uma mesura para HerrBayer, saiu da sala e seguiuFrøken Olsdatter pelo corredoraté a mulher parar diante de umaporta e a abrir.

– Este aqui vai ser o seuquarto, Anna. Espero que o acheconfortável. As saias e blusas quefiz para você estão penduradas noarmário. Experimente-as maistarde para vermos se precisam deajustes.

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– Obrigada – disse Annaolhando para a imensa cama comuma colcha bordada, duas vezesmaior do que a cama de seus paisem casa. Viu uma camisola delinho nova já separada ao pé dacama.

– Tirei algumas das suascoisas da mala, e mais tarde vouajudá-la com o restante. Tem águana moringa da cabeceira se tiversede, e o banheiro fica no final docorredor.

“Banheiro” não era umapalavra com a qual Annaestivesse acostumada, e elaencarou Frøken Olsdatter com umar de incerteza.

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– O cômodo onde ficam oreservado e a banheira. Afalecida esposa de Herr Bayerera americana, e insistia nessesconfortos modernos. – Agovernanta arqueou de leve assobrancelhas, mas Anna nãosoube dizer se era em aprovaçãoou o contrário. – Nos vemos nasala de jantar às sete – disse ela,e se retirou sem demora.

Anna foi até o guarda-roupa,abriu a porta e deixou escapar umsuspiro de assombro ao ver suasroupas novas. Havia quatroelegantes blusas de algodãofechadas no pescoço porpequeninos botões de pérola, e

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duas saias de lã. O maisempolgante de tudo, porém, eraque havia também um rebuscadovestido formal feito de um tecidoverde lustroso e brilhante que, elaimaginou, devia ser seda. Annafechou o armário com um arrepiode prazer, então seguiu asinstruções de Frøken Olsdatter edesceu o corredor até o banheiro.

Dentre todas as coisas quetinha visto nesse dia, aquilo comque deparou ao abrir a porta foi amais milagrosa de todas. Em umdos cantos havia um grande bancode madeira, equipado com umassento esmaltado com um buracono meio e um anel suspenso em

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uma correntinha logo acima.Quando ela o puxou, temerosa, aágua jorrou automaticamente, eAnna entendeu que aquilo era umalatrina dentro de casa. Haviatambém uma banheira funda ebrilhante no meio do chão deladrilhos, que fazia a tina usadaocasionalmente por sua famíliaem Heddal parecer algo em quesó uma cabra poderia serbanhada.

Maravilhada com o fato deaquelas coisas serem possíveis,Anna voltou para o quarto. Orelógio lhe informou que eladispunha de pouco mais de meiahora antes do horário marcado

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para o jantar com Herr Bayer. Aoir até o armário escolher uma dasroupas novas para aquelaocasião, percebeu que FrøkenOlsdatter tinha disposto papel decarta e a sua própria pena sobre apequena mesa encerada abaixo dajanela. Prometeu a si mesmaescrever para Lars e os pais naprimeira oportunidade, contando-lhes tudo o que já tinha visto.Então abraçou a tarefa de setornar apresentável para suaprimeira noite em Christiania.

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15

Apartamento 4Portão de São Olavo,

10Christiania

24 de setembro de1875

Kjære Lars, Mor, Far eKnut,

Por favor me perdoemos erros de ortografia e

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gramática, mas espero queestejam vendo como minhaletra melhorou! Faz agoracinco dias que chegueiaqui, e sinto que devocompartilhar meu assombrocom a vida na cidade.

A primeira coisa –espero que não consideremimpróprio eu mencionarisso – é que a casa éequipada com um reservadointerno com umacorrentinha para puxardepois e mandar tudoembora! Há também umabanheira, enchida com águaquente para mim duas vezes

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por semana! Estou commedo de Frøken Olsdatter, agovernanta daqui, e HerrBayer pensarem que tenhoalguma doença que meobriga a passar horasdentro da banheira cheiad’água.

Há também iluminaçãoa gás e um braseiro na salaque parece o altar-mor deuma igreja e irradia tantocalor que muitas vezestenho a sensação de quevou desmaiar. FrøkenOlsdatter organiza a rotinada casa, prepara e servenossa comida, e temos

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também uma empregadadiarista que vem todas asmanhãs limpar oapartamento e lavar epassar as roupas, entãodevo confessar que mallevanto um dedo emcomparação com minhastarefas em casa.

Moramos no terceiroandar em uma rua chamadaPortão de São Olavo, comuma vista muito bonita paraum parque onde osmoradores daqui vãocaminhar aos domingos.Pelo menos assim posso vero verde da minha janela, e

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algumas árvores que estãoperdendo as folhas depressacom a chegada do inverno,mas elas me fazem lembrarmuito de casa. (Aqui é raroencontrar mais do que umpequeno pedaço de terraque não seja todo ocupadopor ruas ou casas.)

Quanto a meusestudos, estou aprendendo atocar piano. Herr Bayer émuito paciente, mas eu meacho bem burra. Meusdedos pequenos nãoparecem conseguir seesticar pelas teclas do jeitoque ele gostaria.

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Mas é melhor eucontar no que consistem osmeus dias, assim vocês vãoentender melhor. Às oito damanhã, Frøken Olsdatterbate à minha porta e meacorda com uma bandeja decafé da manhã. Nessa hora,confesso que me sinto umaprincesa. Tomo chá, comcujo gosto estou meacostumando aos poucos, ecomo o pão brancofresquinho que, segundoHerr Bayer, é a última modana Inglaterra e na França.Junto vem um vidro degeleia de fruta. Depois do

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café, visto as roupas queFrøken Olsdatter costuroupara mim, muito modernasem comparação com as queuso em casa, e às nove meapresento na sala de estarpara começar minha aulade música com Herr Bayer.Durante mais ou menos umahora, ele me ensina as notasno piano, e depois dissoestudamos partituras.Preciso aprender como asnotas escritas no papelcorrespondem às teclas dopiano, e aos poucos, graçasà excelente didática deHerr Bayer, estou

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começando a entender.Depois da aula, Herr Bayersai para a universidadeonde leciona ou às vezes vaiencontrar amigos paraalmoçar.

Então vem a parte domeu dia de que mais gosto:a refeição do meio-dia. Umdia depois de eu chegar,Frøken Olsdatter me serviuo almoço sozinha na sala dejantar, onde há uma mesabem grande que faz eu mesentir ainda mais solitária.(O tampo, de tão encerado,brilha feito um espelho, econsigo ver meu reflexo

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nele.) Depois de comer,peguei meu prato e meucopo e os levei até acozinha. Frøken Olsdatterpareceu muito chocada edisse que tirar a mesa eratrabalho dela. Mas então,com o canto do olho,reparei em outra coisa quenunca tinha visto antes: umgrande fogão de ferro preto.Frøken Olsdatter memostrou como ela conseguecolocar panelas em cimadesse fogão e acenderqueimadores de gásembaixo delas parapreparar a comida, em vez

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de fazê-lo diretamente sobreo fogo. Apesar de ser muitodiferente da nossa cozinhana fazenda, isso me fezlembrar tanto de casa queimplorei a ela que, nos diasem que Herr Bayer nãofosse almoçar em casa, medeixasse comer ali com ela.E é assim que temos feitodesde então. Conversamoscomo duas amigas. Ela semostra muito gentil ecompreende o quanto estanova vida é estranha paramim. À tarde, espera-se queeu descanse no quarto poruma hora com um livro que

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possa “expandir minhamente”. No momento, estoulendo (ou tentando ler) umatradução para o norueguêsdas peças de umdramaturgo inglês chamadoWilliam Shakespeare. Tenhocerteza de que vocês jádevem ter ouvido falarnesse nome, mas ele morreufaz tempo, e a primeirapeça que li foi sobre umpríncipe escocês chamadoMacbeth, uma históriamuito triste. Parece quetodo mundo acabamorrendo!

Quando Herr Bayer

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volta da universidade, eusaio do quarto. Tomamoschá outra vez e ele me contasobre o seu dia. Na semanaque vem, quer me levar aoTeatro de Christiania.Vamos assistir a um baléapresentado por uns russosque, segundo ele meexplicou, é uma dançaexecutada ao som de músicasem que ninguém fale oucante (e na qual os homensnão usam calças deverdade, mas sim meias-calças, como se fossemmulheres!). Depois do chá,volto para o quarto, onde

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troco de roupa e ponho ovestido de noite que FrøkenOlsdatter fez para mim.Queria que vocês pudessemver; é lindo de morrer e nãose parece em nada comnenhuma roupa que eu játenha usado antes. Nojantar, tomamos um vinhotinto que Herr Bayer mandatrazer da França ecomemos muito peixe comum molho branco que elediz ser muito comum aquiem Christiania. Depois dojantar, Herr Bayer acendeum charuto, que é fumoenrolado em uma folha de

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tabaco seca, e toma umconhaque. Nessa hora, eume recolho ao meu quarto,em geral muito cansada, esempre encontro ao lado dacama um copo de leitequente.

No domingo, FrøkenOlsdatter foi comigo àmissa. Herr Bayer disse queiria também, no futuro, masque dessa vez estavaocupado. A igreja é dotamanho de uma catedral, ehavia centenas de fiéis.Como podem ver, minhasexperiências são muitodiferentes da vida que eu

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levava em Heddal. Nomomento, tenho um pouco asensação de estar vivendoum sonho, de que nada éreal, e a minha casa parecemuito, muito distante.

Pensei que Herr Bayertivesse me trazido paraChristiania para cantar. Averdade é tudo que fiz atéagora foi cantar uma coisachamada escala em umpiano, ou seja, repetir asnotas na ordem correta,ascendente, descendente,depois ascendente outravez, sem letra nenhuma.

Meu endereço está no

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cabeçalho, e eu ficariamuito grata se vocêspudessem me responder.Desculpem todas asmanchas de tinta. Esta é aprimeira e a mais longacarta que já escrevi, e metomou muitas horas. Estouusando a pena que você medeu, Lars, é claro, e acoloquei sobre aescrivaninha para poder vê-la o tempo todo.

Por favor, diga a Mor,Far e meus irmãos queestou com saudades, eespero que possa ler estacarta para eles. Não

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consigo escrever outra, jáque levei tanto tempo, e elestampouco são muito bons deleitura.

Espero que você estejabem e seus porcos também.

Anna

Anna releu a carta comdificuldade. Aquele devia ser o12o rascunho de uma série escritaao longo dos últimos cinco dias;os outros tinham sido começadose, em seguida, descartados. Elasabia ter escrito algumas palavrasque usara da forma que aspronunciava, e temia que

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estivessem incorretas. Apesardisso, pensou, Lars preferiria umacarta imperfeita a não recebercarta nenhuma. Ela estava loucapara contar à família sobre atransformação pela qual sua vidaestava passando. Após dobrar acarta com cuidado, levantou-se ecaptou seu reflexo no espelho.Observou o próprio rosto poralguns segundos.

– Será que eu ainda sou eu?– perguntou à imagem.

Como não recebeu resposta,encaminhou-se para o banheiro.

Mais tarde nessa mesmanoite, ao ir para a cama, Annaficou escutando as vozes e

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risadas que ecoavam pelocorredor. Herr Bayer estavarecebendo convidados, de modoque nessa noite Anna não haviajantado com ele na mesaencerada, mas sim sobre umabandeja levada por FrøkenOlsdatter, cujo nome de batismoela agora sabia ser Lise.

– Minha cara jovem, permitaque eu lhe explique – dissera-lheHerr Bayer mais cedo, apósanunciar que ela não estariapresente no jantar. – Você estáprogredindo muito bem e muitodepressa. Na verdade, maisdepressa do que qualquer outroaluno de música que eu já tive a

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honra de ensinar. Apesar disso,caso eu a apresentasse aos meusconvidados, eles com certeza lhepediriam que cantasse para eles,depois de tudo que eu lhesdissera sobre o seu potencial. Enós não podemos exibi-la antesde você estar completamenteformada, que é quando atiraremos do seu esconderijo paraas luzes da glória.

Muito embora Anna jáestivesse se acostumando àlinguagem elaborada usada porHerr Bayer, ficou pensando noque significava “completamenteformada”. Será que uma terceiramão brotaria do seu braço? Isso

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sem dúvida a ajudaria nas aulasde piano. Ou quem sabe elaganharia mais dedos do pé, o queajudaria com sua postura nadaadequada. Essa falha lhe haviasido assinalada naquele mesmodia por um diretor de teatro queestivera no apartamento durante atarde. Segundo ele, Herr Bayer ohavia contratado para ensinar aAnna algo chamado “presença depalco”, para quando ela seapresentasse em um teatro. Issoparecia consistir basicamente emmanter a cabeça erguida epressionar os dedos uns contra osoutros dentro das botas paragarantir que, uma vez atingida a

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posição desejada, ela não semexesse mais.

– Então você espera elesterminarem de aplaudir. Faz umapequena mesura, assim... – Ohomem havia demonstradoinclinando o queixo até o peitocom o braço esquerdo cruzado emfrente ao corpo até o ombrodireito. – ... para demonstrarapreço pelos aplausos. E começa.

Durante a hora seguinte, ohomem tinha lhe pedido queentrasse e saísse da sala etreinasse o mesmo movimento umnúmero exaustivo de vezes. Foiextremamente entediante e muitodesanimador, pois ainda que ela

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não soubesse cozinhar nemcosturar, pelo menos pensavasaber andar de modo apropriado.

Anna se virou de lado naimensa cama. Sentiu a maciez dotravesseiro de pluma sob o rostoe pensou se algum dia se tornariao que Herr Bayer queria que elafosse.

Como tinha dito a Lars nacarta, ela achava que havia sidolevada até lá por causa de seutalento para o canto. No entanto,desde que chegara, Herr Bayernão tinha lhe pedido para cantaruma canção sequer. Ela entendiaque ainda havia muitas coisas aaprender e que seria impossível

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encontrar um mentor maispaciente. No entanto às vezestinha a sensação de estarperdendo seu antigo eu, por maispouco instruído e caipira quefosse. Já se sentia isolada entredois mundos: uma garota quemenos de uma semana antes nuncatinha visto iluminação a gás nementrado em um banheiro, mas quejá se acostumara a ser servida poruma criada, bebia vinho tinto nojantar e comia peixe...

– Ai, meu Deus! – gemeu elaao pensar no peixe que nãoacabava mais.

Talvez Herr Bayer aconsiderasse burra a ponto de não

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perceber suas intenções, mas elahavia entendido rapidamente queele não a levara para Christianiaapenas para treinar sua voz, mastambém para transformá-la emuma dama que pudesse serapresentada como tal. Estava lheensinando truques, como faziamcom os animais da feira que àsvezes passava por Heddal. Elapensou naquela primeira noite emque Herr Bayer foi ao chalé desua família na montanha e passaramuito tempo tecendo elogios àcultura regional norueguesa.Então não conseguia entendermuito bem por que ele sentia tantanecessidade de mudá-la.

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– Eu não sou umexperimento – sussurrou para simesma com firmeza, entregando-se por fim ao sono.

Em uma gelada manhã deoutubro, Anna entrou como dehábito na sala de estar para a aulacom Herr Bayer.

– Minha cara Anna, dormiubem?

– Sim, muito bem, HerrBayer. Obrigada.

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– Ótimo, ótimo. Bem, tenhosatisfação em dizer que, hoje,sinto que você está pronta parapassar à etapa seguinte. Entãovamos começar a cantar, sim?

– Está bem, Herr Bayer –retrucou ela, culpada pelospensamentos negativos que tiverapoucas noites antes.

– Está se sentindo bem,Anna? Parece-me um poucopálida.

– Estou bem.– Ótimo. Então não vamos

perder mais tempo. Quero quecante para mim “Per Spelmann”como fez na primeira noite emque nos conhecemos. Irei

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acompanhá-la ao piano.Anna ainda estava tão

estupefata com aqueleacontecimento inesperado queficou parada encarando HerrBayer, sem dizer nada.

– Não está pronta?– Desculpe. Estou, sim.– Ótimo. Então cante.Pelos 45 minutos seguintes,

Anna repetiu incontáveis vezes acanção que conhecia desde oberço. Em vários momentos, HerrBayer lhe pediu para parar e lhedisse que usasse um pouco maisdo que chamava de vibrato emuma determinada nota, quesustentasse alguma pausa por

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mais tempo ou contasse ostempos... Ela se esforçou aomáximo para seguir suasinstruções mas, como tinhaaprendido a canção 14 anos antese a cantava da mesma formadesde então, foi muito difícil.

Às onze em ponto, acampainha tocou. Ela ouviu o somde vozes abafadas no corredor, eFrøken Olsdatter entrou na salaseguida por um cavalheiro de ardistinto e cabelos escuros, donode um nariz aquilino e cabelos járalos na testa. Herr Bayer selevantou do piano e foicumprimentá-lo.

– Herr Hennum, obrigado

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por ter vindo. Esta é Frøken AnnaLandvik, a moça sobre quem lhefalei.

O cavalheiro se virou paraela e fez uma mesura.

– Frøken Landvik. HerrBayer se derramou em elogios àsua voz.

– E agora você vai ouvi-la!– disse Herr Bayer voltando aopiano. – Anna, cante comonaquela primeira noite nasmontanhas.

Anna olhou para ele sementender. Se ele queria que elacantasse como antes, por quehavia passado uma hora tentandolhe ensinar a cantar diferente?

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Mas era tarde demais paraperguntar: seu professor já estavatocando os primeiros compassos,de modo que ela simplesmentecomeçou a cantar e soltou a voz.

Terminada a canção, olhoupara Herr Bayer com um ar deexpectativa, sem saber se haviacantado bem ou mais ou menos.Lembrara-se de partes do que eletinha lhe dito, mas não de tudo, etudo parecia se misturar em suacabeça.

– O que acha, Johan? –indagou Herr Bayer, levantando-se da banqueta.

– Anna é exatamente comovocê a descreveu. Ou seja,

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perfeita. É claro que está meiocrua, mas talvez seja assim quedeva ser.

– Não estava esperando queisso acontecesse tão cedo. Comofalei, faz menos de um mês queAnna chegou a Christiania, eacabei de começar a trabalhar avoz dela – respondeu Herr Bayer.

Ao ouvir os dois homensconversarem sobre ela e suashabilidades, Anna com certeza sesentiu “crua” como um pedaço decarne de porco prestes a serjogado na panela de sua mãe.

– Ainda não recebi apartitura definitiva, mas assimque a receber trarei para você e

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em seguida levarei Anna ao teatropara cantar para Herr Josephson.Agora preciso ir. FrøkenLandvik. – Johan Hennum lhe fezoutra mesura. – Foi um prazerouvir a senhorita cantar, e nãotenho dúvida de que eu e muitosoutros teremos novasoportunidades de ouvi-la numfuturo bem próximo. Bom diapara os dois.

Herr Hennum saiu pelaporta, sua capa esvoaçando atrásdele ao caminhar.

– Muito bem, Anna! – disseHerr Bayer, que veio em suadireção, segurou seu rosto com asduas mãos e a beijou em ambas as

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bochechas.– Por favor, o senhor pode

me dizer quem é esse homem?– Isso agora não importa.

Tudo que importa é que temosmuito trabalho pela frente paraprepará-la.

– Me preparar para quê?Mas Herr Bayer não a

estava escutando; olhava para orelógio.

– Tenho que dar umapalestra daqui a meia hora.Preciso sair agora. FrøkenOlsdatter, traga minha capaimediatamente! – gritou ele. Aopassar por Anna em direção àporta, tornou a sorrir. – Descanse

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agora, Anna, e quando eu voltarrecomeçamos a trabalhar.

Embora nas duas semanasseguintes Anna tenha tentadodescobrir quem era Herr Hennume qual era seu objetivo, HerrBayer não estava muito aberto aconversas, o que quase aenlouqueceu. O que ela nãoentendia era por que ele derepente quis que Anna cantassetodas as canções folclóricas que

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ela sabia, em vez de, comodissera aos seus pais, lhe ensinara cantar ópera. De que adiantaesse tipo de música aqui nacidade?, pensou ela, tristonha,andando até a janela um dia nahora do almoço, quando HerrBayer havia saído para umareunião. Acompanhou com o dedoo desenho das gotas de chuva dolado de fora da vidraça e desúbito sentiu vontade de estar láfora. No último mês, raramentehavia posto o pé na rua, a não serpara ir à igreja no domingo, eestava começando a se sentircomo um animal enjaulado.Talvez Herr Bayer apenas tivesse

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esquecido que ela fora criada epassara a vida inteira ao ar livre.Ansiava por um pouco de ar puro,pelos pastos abertos da fazendados pais, por espaço paracaminhar e correr em liberdade...

– Eu aqui não passo de umanimal a ser treinado – declarou àsala vazia logo antes de FrøkenOlsdatter entrar e avisar que oalmoço estava servido. Anna aseguiu até a cozinha.

– O que houve, Kjære? Vocêparece um pequeno arenque queacaba de ser fisgado em um anzol– comentou a governanta enquantoas duas se sentavam e Annacomeçava a tomar seu caldo de

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peixe.– Nada – respondeu a moça,

sem querer que a outraquestionasse o seu humor.

Ela apenas a acharia mimadae difícil. Afinal de contas, seulugar naquela casa era muitosuperior em termos de status econforto. Mesmo assim, continuoua sentir os olhos atentos einteligentes de Frøken Olsdatterpousados nela.

– Amanhã preciso ir à feirana praça comprar carne e algunslegumes. Gostaria de ir comigo,Anna?

– Ah, sim! Nada me deixariamais feliz – respondeu ela, tocada

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pelo fato de a outra mulher terdescoberto exatamente o quehavia de errado.

– Então a levarei comigo, equem sabe encontraremos tempopara dar um passeio no parqueantes. Herr Bayer estará nauniversidade amanhã entre nove emeio-dia, depois vai almoçarfora, de modo que teremos tempode sobra. Será um segredinho sónosso, está bem?

– Sim – assentiu Anna,aliviada. – Obrigada.

Depois disso, as idas à feirapassaram a ocorrer duas vezespor semana. Tirando os domingosem que ela ia à missa, esses eram

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os dias pelos quais Anna maisansiava.

No fim de novembro, Annase deu conta de que já fazia maisde dois meses que estava emChristiania. No calendárioimprovisado que fizera, estavacontando os dias até poder voltara Heddal para passar o Natal emcasa. Mas pelo menos havianevado em Christiania, o que atinha alegrado um pouco. Asmulheres que passeavam peloparque do outro lado da rua agorausavam casacos de pele echapéus, e protegiam as mãosdentro de regalos também depele, o que para Anna eram uma

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moda muito burra, pois se apessoa quisesse coçar o narizficaria com os dedos congelados.

No apartamento, pouca coisahavia mudado em sua rotinadiária, embora na semana anteriorHerr Bayer tivesse lhe dado umexemplar de Peer Gynt, de HerrIbsen, e lhe dito para ler.

– Ah, mas eu já li esse livro– respondera ela com prazer.

– Então melhor ainda. Issovai ajudá-la na segunda leitura.

Na primeira noite, ela haviaposto o livro de lado, pensandoque era um desperdício de tempofazer o que Herr Bayer lhe pediraquando já sabia o que acontecia

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no final. Na manhã seguinte,contudo, ele a arguiu sobredetalhes das primeiras cincopáginas do poema e, praticamenteincapaz de se lembrar dequalquer coisa, ela mentiu semconvicção e disse que na noiteanterior tivera uma forte dor decabeça e fora dormir cedo. Entãoreleu o livro e na verdade ficoucontente consigo mesma aoconstatar quanto suas habilidadesde leitura haviam melhoradodesde o verão. As palavras quenão conseguia decifrar agoraeram poucas, e se alguma delasconstituísse um problema HerrBayer tinha grande prazer em

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ajudá-la. Mas Anna não fazia amenor ideia do que aquele poemapoderia ter a ver com seu futuroali em Christiania.

– Minha kjære Anna, ontemà noite finalmente recebi apartitura que estava aguardandoHerr Hennum me mandar! Vamoscomeçar a trabalhar nela agoramesmo.

Embora não fizesse ideia dequal era a música, Anna pôde

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constatar o grande entusiasmo deseu mentor ao sentar-se nabanqueta do piano.

– E pensar que temos umacópia disto nas mãos! Venha,Anna, fique em pé ao meu lado,vou tocar para você.

Anna fez o que ele mandavae espiou a música com interesse.

– “Canção de Solveig” –murmurou, lendo o título damúsica no alto da página.

– Isso mesmo, Anna. E vocêvai ser a primeira a cantá-la! Oque me diz, hein?

Ela já havia aprendido que aessa pergunta, repetida muitasvezes por Herr Bayer, sempre

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deveria responder na afirmativa.– Que estou muito feliz.– Ótimo, ótimo. Esperava-se

que Herr Grieg em pessoa viessea Christiania ajudar a orquestra eos cantores com esta sua novacomposição, mas infelizmenteseus pais faleceram faz poucotempo e ele ainda está de luto.Por isso não se sente capaz defazer a viagem desde Bergen.

– Quem escreveu isto foiHerr Grieg? – indagou Anna comum arquejo.

– Sim, ele mesmo. HerrIbsen lhe pediu que escrevesse amúsica de acompanhamento parasua montagem de Peer Gynt nos

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palcos, que vai estrear no Teatrode Christiania em fevereiro.Minha cara jovem, tanto HerrHennum, aquele senhor que vocêconheceu algumas semanas atrás eque é o estimado maestro danossa orquestra, quanto eupensamos que quem deve cantar opapel de Solveig é você.

– Eu?– Sim, Anna, você.– Mas... eu nunca pisei num

palco na vida! Quanto mais opalco mais famoso da Noruega!

– E é justamente isso omelhor de tudo, minha caramenina. Herr Josephson, o diretordo teatro e dessa montagem, já

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escalou uma atriz de renome parao papel de Solveig. O problema,como Herr Hennum mencionourecentemente, é que ela pode atéser uma grande atriz, mas quandoabre a boca para cantar pareceum gato escaldado. Entãoprecisamos de uma voz pura, dealguém que fique na coxiacantando enquanto MadameHansson dubla as palavras destacanção e de uma outra. Entendeuagora, minha cara?

Anna tinha entendido, sim, enão pôde deixar de sentir umapontada de decepção ao pensarque não seria vista e que a atrizda voz de gato escaldado fingiria

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que o canto de Anna era seu.Apesar disso, o fato de o regentedo famoso Teatro de Christianiater sua voz em tão alta conta aponto de emprestá-la a MadameHansson era um enorme elogio. Eela não queria parecer ingrata.

– Essa oportunidade émesmo maravilhosa – prosseguiuHerr Bayer. – Nada foi definidoainda, claro. Precisamos quevocê se apresente para HerrJosephson, o diretor da peça,para ver se ele acha que a sua voztransmite o verdadeiro espírito deSolveig. A sua interpretação dascanções precisa ter tanta emoção,tanto sentimento, que ninguém na

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plateia ficará sem derramar umalágrima. Na verdade, HerrHennum me disse que a sua vozvai ser a última coisa que aplateia vai ouvir antes de o panocair. Herr Josephson concordouem nos receber na tarde de 23 dedezembro, logo antes de viajarpara o Natal. Nesse dia ele vaitomar sua decisão.

– Mas eu vou viajar paraHeddal no dia 21! – protestouAnna, sem conseguir se conter. –E se tiver que esperar aqui até atarde do dia 23, não podereichegar a tempo do Natal. Aviagem leva quase dois dias. Eu...Herr Josephson não pode nos

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encontrar outro dia?– Anna, você precisa

entender que Herr Josephson éum homem muito ocupado, e já éuma honra em si ele ter nosconcedido sequer um minuto doseu tempo. Entendo perfeitamenteque você não goste da ideia depassar as festas aqui comigo, masessa também talvez seja a melhoroportunidade que terá de mudar oseu futuro para sempre. Haverámuitos outros Natais com suafamília, mas só essa chance degarantir o papel de Solveig emuma peça na qual o dramaturgo eo compositor mais proeminentesda Noruega pela primeira vez

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juntaram suas habilidades! – Emum raro momento de frustração,Herr Bayer balançou a cabeça. –Anna, você precisa entender oque isso poderia significar para asua vida. E, se não conseguircompreender, então sugiro quevolte para casa agora mesmo e vácantar para suas vacas, e não parao público na noite de estreia noTeatro de Christiania, em umaapresentação que sem dúvida vaientrar para a história. Então, vaitentar cantar a música ou não?

Sentindo-se tão pequena eignorante quanto Herr Bayerqueria, Anna assentiu devagar.

– Sim, Herr Bayer. Claro.

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Nessa noite, porém, foidormir chorando. Mesmo queestivesse “fazendo história”,como Herr Bayer dissera, a ideiade não passar o Natal com afamília era demais para elasuportar.

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16

Christiania16 de janeiro de 1876

– Jens! Você ainda está vivo?! –Jens Halvorsen foi acordado deforma abrupta pela voz da mãeque vinha do outro lado da porta.– Dora me disse que você talveztivesse morrido durante o sono,porque passou a manhã inteirasem dar sinal de vida!

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Com um suspiro, Jens selevantou da cama e observou noespelho seu reflexo desgrenhadoe ainda vestido da cabeça aospés.

– Desço para o café daqui adez minutos – respondeu pelaporta fechada.

– Nós vamos almoçar agora,Jens. Você já perdeu o café!

– Já estou indo.Como fazia todas as manhãs,

Jens examinou com atenção acabeleira castanho-escuraondulada para ver se haviasurgido algum cabelo branco. Aos20 anos, sabia que isso não eraalgo com que devesse se

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preocupar. No entanto, como oscabelos de seu pai aparentementehaviam ficado brancos da noitepara o dia aos 25 anos, decertopor causa do choque de ter secasado com sua mãe nesse mesmoano, Jens acordava todas asmanhãs com medo.

Dez minutos depois, vestidocom roupas limpas, ele apareceuna sala de jantar conforme oprometido e beijou a mãeMargarete no rosto antes deocupar seu lugar à mesa. Dora, ajovem serviçal, começou a serviro almoço.

– Mil perdões, Mor. Tiveuma dor de cabeça terrível, e não

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consegui sair da cama hoje demanhã. Ainda estou meioenjoado.

Na mesma hora, a expressãoirritada de sua mãe se desfez,sendo substituída por uma depreocupação. Ela estendeu a mãopor sobre a mesa para tocar atesta do rapaz.

– Você está mesmo um poucoquente. Será que está com febre?Meu pobre menino, será queconsegue almoçar ou prefere queDora lhe sirva uma bandeja nacama?

– Tenho certeza de queconsigo almoçar, mas peço queme perdoe se não comer muito.

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Na verdade, Jens estavamorrendo de fome. Na noiteanterior, havia encontrado algunsamigos em um bar, e eles tinhamterminado a noite em um bordelperto do porto, o queproporcionara à noitada um finalaltamente satisfatório. Ele haviaexagerado no aquavit e tinhaapenas uma vaga lembrança dacarruagem que o trouxera paracasa e de como havia passadomal na sarjeta ali perto. E depoisdisso, por causa da neve geladaacumulada em uma grossa camadanos galhos, das muitas tentativasfracassadas de subir a árvore quedava na janela do seu quarto, que

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Dora sempre deixava aberta paraele nas vezes em que ficava foraaté tarde.

Portanto, raciocinou consigomesmo, sua história não eraexatamente mentira. Ele haviamesmo se sentido muito malnaquela manhã, e as tímidastentativas de Dora para acordá-lonão tinham conseguido tirá-lo dosono. Sabia que a empregada eraapaixonada por ele, e por isso eracúmplice em suas farsas sempreque ele lhe pedia.

– É uma pena você ter saídoontem à noite, Jens. Convideipara jantar meu bom amigo HerrHennum, o maestro da orquestra

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de Christiania – falou Margarete,interrompendo seus pensamentos.

Sua mãe era uma grandepatrocinadora das artes e usava o“dinheiro da cerveja” de seu pai,como os dois costumavam dizerquando estavam sozinhos, parafinanciar sua paixão.

– E a noite foi agradável?– Foi, sim. Como tenho

certeza de que já lhe contei, HerrGrieg escreveu uma linda trilhamusical para acompanhar omaravilhoso poema Peer Gynt deHerr Ibsen.

– Sim, Mor. Você me contou.– A estreia será em

fevereiro, mas infelizmente Herr

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Hennum me disse que a orquestraatual não está à altura dasexpectativas de Herr Grieg, nemdas dele, aliás. Parece que ascomposições musicais sãocomplexas e precisam ser tocadaspor uma orquestra segura eexperiente. Herr Hennum está àprocura de músicos de talentocapazes de tocar mais de uminstrumento. Falei com ele sobreseus dotes no piano, no violino ena flauta, e ele pediu que vocêfosse ao teatro tocar para ele.

Jens engoliu um pedaço dopeixe-gato trazido especialmentedo litoral oeste norueguês.

– Mor, no momento estou

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estudando química nauniversidade, de modo a mequalificar para assumir acervejaria da família. Você sabemuito bem que Far não medeixaria largar tudo para tocar emuma orquestra. Na realidade,ficaria furioso.

– Talvez, se fosse um fatoconsumado, ele cedesse – falouela baixinho.

– Está me pedindo paramentir? – Jens se sentiusubitamente enjoado como fingiraestar mais cedo.

– Estou dizendo que, quandovocê completar 21 anos, será umhomem e poderá fazer as próprias

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escolhas, independentemente doque os outros pensam. Naorquestra você receberia umsalário, ainda que não alto, quelhe daria alguma independênciafinanceira.

– Faltam sete meses para omeu aniversário, Mor. Porenquanto ainda sou dependente domeu pai e lhe devo obediência.

– Jens, por favor. HerrHennum vai estar no teatroamanhã à uma e meia da tardepara ouvi-lo tocar. Eu lheimploro, pelo menos encontre-secom ele. Nunca se sabe o quepode acontecer.

– Não estou me sentindo

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bem – disse o rapaz, levantando-se de forma abrupta. – Meperdoe, Mor, mas vou para oquarto me deitar.

Margarete observou o filhoatravessar a sala, abrir a porta ebatê-la atrás de si. Levou osdedos à cabeça e sentiu astêmporas latejarem. Entendia oque havia provocado a saída deJens e deu um suspiro, culpada.

Desde que o filho era bempequeno, ela o sentava em seucolo e lhe ensinava as notas dopiano. Uma de suas maisagradáveis e duradouraslembranças da infância dele eraver seus dedos gordinhos voarem

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por cima das teclas de marfim.Seu maior desejo era que o filhoúnico herdasse o talento musicalque ela própria tinha, mas cujopotencial pleno jamais haviaatingido devido ao casamentocom o pai de Jens.

Jonas Halvorsen, seumarido, não era uma almaartística; tudo que lhe interessavaera saber quantos kroner havia nolivro-caixa da CervejariaHalvorsen. Desde o início docasamento, ele desencorajava apaixão da esposa pela música, e omesmo valia, com mais ênfaseainda, para o filho. Ainda assim,enquanto Jonas estava no

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trabalho, Margarete insistira emdesenvolver o talento do menino,e aos 6 anos Jens já tocava semesforço algumas sonatasdesafiadoras para qualquer alunocom três vezes a sua idade.

Quando Jens tinha 10 anos,contrariando o marido, elaorganizara um recital em casa econvidara a nata da cena musicalde Christiania. Todos que haviamescutado o menino tocar ficaramencantados e fizeram grandesprevisões para o seu futuro.

– Quando ele tiver idade,precisa ir para o Conservatóriode Leipzig expandir seuconhecimento e suas habilidades,

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pois você sabe que asoportunidades aqui emChristiania são limitadas –comentara Johan Hennum, naépoca recém-empossado regenteda orquestra da cidade. – Com aformação certa, ele tem umgrande potencial.

Margarete havia repetidoisso para o marido, querespondera com uma risadinhacruel.

– Minha cara esposa,entendo quanto você anseia paraque seu filho se torne um músicofamoso, mas, como você bemsabe, Jens vai entrar para aempresa da família quando

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completar 21 anos. Meusantepassados e eu não gastamos150 anos construindo nossonegócio para ele ser vendido emmeu leito de morte a algum dosmeus concorrentes. Se Jens quiserbrincar com seus instrumentosenquanto for jovem, é claro quenão vejo problema algum. Mas amúsica não é carreira para umfilho meu.

Margarete, porém, não sedeu por vencida. Ao longo dosanos seguintes, continuouensinando Jens a tocar, não sópiano, mas também violino eflauta, sabendo que, para integraruma orquestra, um músico

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precisava dominar mais de uminstrumento. Ensinara-lhe tambémalemão e italiano, dois idiomasque, conforme acreditava, oajudariam a lidar com obras paraorquestra e óperas maiscomplexas.

O pai de Jens continuara aignorar obstinadamente os lindossons que saíam da sala de músicae ecoavam pela casa. O únicomomento em que Margareteconseguia forçá-lo a escutar ofilho era quando Jens tocava arabeca hardanger. Às vezes elaincentivava o rapaz a tocar para opai depois do jantar, e via osemblante de Jonas, depois de

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várias taças de bom vinhofrancês, relaxar com um sorrisosonhador enquanto elecantarolava uma conhecidacanção folclórica junto com oinstrumento.

No entanto, apesar daindiferença do marido em relaçãoao talento de Jens e suainsistência de que essa jamaispoderia ser a carreira do filho,Margarete continuava acreditandoque seria possível encontrar umasaída quando Jens ficasse maisvelho. Mas então o menininho quehavia se dedicado com tantoafinco às aulas de músicacomeçou a crescer, e Jonas

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assumiu a sua criação. Em vezdas duas horas diárias de música,Jens passou a acompanhar o paina cervejaria para supervisionara produção ou a contabilidade.

A situação havia secristalizado três anos antes,quando Jonas insistira para ofilho estudar química nauniversidade, o que, segundo ele,o qualificaria para trabalhar nacervejaria, muito emboraMargarete houvesse implorado dejoelhos ao marido que deixasseJens ir estudar no Conservatóriode Leipzig.

– Ele não tem paixão algumapela química ou pelos negócios, e

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tem muito talento para a música!– insistira ela.

Jonas a havia encarado comfrieza.

– Eu fiz sua vontade atéagora, mas Jens não é maiscriança e precisa entender quaissão as suas responsabilidades.Ele vai ser a quinta geração dosHalvorsens a administrar nossacervejaria. Se você achou que assuas aspirações musicais paranosso filho um dia dariam emalguma coisa, estava iludida. Osemestre na universidade começaem outubro. Assunto encerrado.

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– Por favor, Mor, não chore– dissera Jens à mãe arrasadalogo após escutar a notícia. – Eununca esperei algo diferentedisso.

Justo como Margarete tinhaprevisto, ao ser forçado asubstituir a música por um temapara o qual não tinha a menoraptidão ou interesse, Jens vinhase dedicando bem pouco àuniversidade. Mais perigosoainda era que sua animaçãonatural e seu temperamento

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destemido haviam começado adesviá-lo do bom caminho.

Como tinha o sono leve eacordava com o menor barulho,Margarete sabia que o filhomuitas vezes só chegava em casade madrugada. Jens tinha umgrande círculo de amigos, todosatraídos por sua joie de vivre epor seu charme natural. Ela viaque o filho era muito generoso,tanto que muitas vezes aprocurava no meio do mêsdizendo ter gastado a mesadainteira do pai em presentes ouempréstimos para este ou aqueleamigo, perguntando-lhe se elapoderia dar um jeito de lhe

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arrumar algum dinheiro.Margarete muitas vezes

sentia em seu hálito um cheirorançoso de álcool, e haviaconsiderado a possibilidade deque o excesso de bebida tambémtivesse seu papel no esvaziamentode seus bolsos. Desconfiava,ainda, que aquelas aventurasnoturnas do filho envolvessemmulheres. Na semana anteriormesmo, tinha visto uma manchade batom em seu colarinho. Masisso pelo menos ela podiaentender: como bem sabia, todosos homens jovens, e até mesmo osmais velhos, tinham suasnecessidades. Era apenas a

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natureza masculina.Na sua cabeça, o problema

era bem simples: diante daperspectiva de um futuro que nãodesejava e sem a música quetanto amava, Jens estavainsatisfeito e recorria à bebida eàs mulheres para afogar asmágoas. Margarete se levantou damesa rezando para que o filhofosse encontrar Herr Hennum nodia seguinte. Em sua opinião, issoera a única coisa que poderiasalvá-lo.

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Enquanto isso, deitado emsua cama no andar de cima, Jenspensava praticamente a mesmacoisa que a mãe. Percebera faziatempo que sua carreira na músicajamais seria uma realidade. Dalia alguns meses, sairia dauniversidade e assumiria seuposto na cervejaria do pai.

Pensar isso o deixavaapavorado.

Não sabia ao certo de qualdos dois sentia mais pena: se dopai, escravo de sua contabancária e das intermináveismaquinações de sua bem-

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sucedida cervejaria, ou se damãe, que havia proporcionado àunião uma estirpe das mais bem-vindas, mas sofria de ansiedade eestava insatisfeita com a vida.Jens podia ver com clareza queaquele casamento não passava deum acordo firmado com oobjetivo de um ganho mútuo. Oproblema era que ele, como únicodescendente, acabava sempresendo usado como peão nessejogo de xadrez emocional. Játinha aprendido há muito tempoque não podia vencer. Eultimamente não ligava muitopara isso.

Nesse dia, porém, sua mãe

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tinha razão. Ele era quase maiorde idade. E se fosse mesmopossível reinventar o sonho peloqual tanto havia se esforçadoquando menino?

Quando ouviu a mãe sairdepois do almoço, Jens desceusem fazer barulho e, num impulso,entrou na sala de música onde elaaté hoje dava aulas a alunosocasionais.

Sentou-se na banqueta diantedo lindo piano de cauda, seucorpo adotando automaticamentea postura correta. Ergueu o tampode madeira lisa e deixou os dedosdeslizarem pelas teclas. Ocorreu-lhe que devia fazer mais de dois

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anos que não tocava. Começoucom a sonata Pathétique, deBeethoven, que sempre fora umade suas preferidas, e se lembroudos ensinamentos pacientes damãe e da facilidade com que ahavia aprendido.

– Você precisa tocar com ocorpo inteiro – dissera-lhe elacerta vez. – O corpo, o coração ea alma: essas são as marcas deum músico de verdade.

Jens foi tocando e perdeu anoção do tempo. À medida que amúsica enchia a sala, esqueceu asdificuldades das aulas de químicaque tanto detestava e o futuro quetemia, e se permitiu desaparecer

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na música gloriosa, como faziaantigamente.

Quando a última notareverberou pela sala, percebeuque a simples alegria de tocar lhetrouxera lágrimas aos olhos.Então tomou a decisão deencontrar Herr Hennum no diaseguinte.

À uma e meia da tarde dodia seguinte, Jens sentou-se emoutra banqueta, no fosso de

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orquestra vazio do Teatro deChristiania.

– Então, Herr Halvorsen. Aúltima vez em que o ouvi tocarfaz dez anos. Sua mãe me disseque desde então o senhor setornou um músico excepcional –disse Johan Hennum, o admiradomaestro.

– Minha mãe é um poucoparcial, senhor.

– Ela também disse que osenhor nunca estudou em umconservatório de música.

– Infelizmente, não. Passeios últimos dois anos e meioestudando química nauniversidade. – Jens já podia

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sentir que o regente achava queestava perdendo tempo. Decertoaceitara recebê-lo como um favora Margarete, em troca de suasgenerosas contribuições para asartes. – Mas devo acrescentar queminha mãe me deu aulas pormuitos anos. Como o senhor sabe,ela é uma professora muitorespeitada.

– De fato. Mas diga-me, dosquatro instrumentos que sua mãeme disse que o senhor sabe tocar,qual considera o seu principal?

– Com certeza meu preferidoé o piano, mas sinto-me capaz detocar de modo igualmentehonrado violino, flauta e rabeca

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hardanger.– Não há piano na

composição de Herr Grieg paraPeer Gynt, mas estamosprocurando um segundo violinistae um outro flautista. Tome. –Hennum lhe entregou algumaspartituras. – Veja se consegueentender a parte da flauta, e daquia pouco eu volto para ouvi-lotocar. – O maestro lhe acenoucom a cabeça e desapareceu poruma porta debaixo do palco.

Jens passou os olhos pelapartitura: “Prelúdio ao Ato IV:Amanhecer”. Tirando a flauta deseu estojo, ele a montou. O friono teatro era quase tão intenso

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quanto a temperatura abaixo dezero do lado de fora, então Jensesfregou os dedos dormentes comvigor para tentar fazer o sanguecircular. Ele levou o instrumentoaos lábios e ensaiou as primeirasseis notas...

– Muito bem, HerrHalvorsen. Vamos ver como sesaiu? – disse Johan Hennumvoltando de modo brusco cincominutos depois, ao reaparecer nofosso da orquestra.

Jens sentiu que precisavaimpressionar aquele homem, semostrar à altura da tarefa quetinha diante de si. Agradecendo aDeus por ser bom em leitura à

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primeira vista – o que sempre lhepermitira convencer a mãe de quehavia ensaiado mais do que narealidade havia – começou atocar. Em poucos segundos, ficoutotalmente imerso naquela músicaenvolvente, diferente de tudo quejá tinha escutado. Ao terminar,baixou a flauta dos lábios e olhoupara Hennum.

– Nada mau para umaprimeira tentativa. Nada maumesmo. Agora pegue isto aqui –disse ele, entregando-lhe outrapartitura. – É a parte do primeiroviolino. Veja o que conseguefazer com ela.

Jens tirou o violino do

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estojo e o afinou. Então passoualguns minutos estudando amúsica e ensaiando as notasbaixinho antes de começar.

– Muito bem, HerrHalvorsen. Sua mãe não estavaerrada ao descrever o seu talento.E admito que estou surpreso. Osenhor com certeza tem umaexcelente leitura à primeira vista,o que será essencial nas próximassemanas, enquanto eu estiverreunindo os membros um tantodíspares da orquestra. Não tereitempo para cuidar de cada umindividualmente. E vou logoavisando: tocar em uma orquestraé muito diferente de ser solista. O

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senhor levará tempo para seacostumar, e devo lhe avisar quenão vou tolerar nenhum desleixodos meus músicos. Em geral seriareticente em contratar um novato,mas a necessidade exige.Gostaria que o senhor começassedaqui a uma semana. O que mediz?

Jens só fez encará-lo, pasmocom o fato de aquele homem pelovisto estar lhe oferecendo umaposição. Tinha certeza absolutade que a sua falta de experiênciaprovocaria uma respostanegativa. Mas, pensando bem,todos sabiam que os membros daorquestra de Christiania

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constituíam uma misturaheterogênea, pois a cidade nãotinha uma escola de música deverdade e eram poucos ostalentos disponíveis. Segundo suamãe, um menino de 10 anos jáhavia tocado na orquestra.

– Acho que seria uma honrafazer parte da sua orquestra emuma estreia tão importante –pegou-se respondendo.

– Nesse caso, estou feliz portê-lo comigo, Herr Halvorsen. Osenhor tem as características deum grande músico. Mas aremuneração é bem modesta, oque não creio que será umproblema para o senhor. Os

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ensaios nas próximas semanasserão longos e difíceis. Alémdisso, como talvez já tenhapercebido, as instalações aquinão são nada confortáveis. Sugiroque use roupas quentes.

– Sim, senhor. Usarei.– O senhor mencionou que

está atualmente cursando auniversidade. Suponho que estejadisposto a colocar seu empregona orquestra na frente das aulas.

– Estou – respondeu Jens,sabendo muito bem o que o paidiria em relação a isso, masdecidindo que, já que fora suamãe quem o pusera naquelasituação para começo de

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conversa, cabia a ela resolverqualquer objeção que surgisse emcasa.

Aquele era o seu caminhorumo à liberdade, e ele o estavaagarrando.

– Queira por favor dizer àsua mãe que estou grato por elatê-lo mandado aqui.

– Sim, senhor. Direi.– Os ensaios começam na

semana que vem, então. Nosvemos na segunda de manhã bemcedo, às nove. E agora precisosair à cata de um fagotistadecente, que nem por um decretoestou conseguindo encontrar nestefim de mundo que é a nossa

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cidade. Tenha um bom dia, HerrHalvorsen. O senhor sabe ondefica a saída.

Jens observou o maestrodeixar o fosso da orquestra;estava atordoado com a súbitareviravolta que sua vida acabarade dar. Virou-se e olhou para amelancólica plateia. Já foraàquela sala muitas vezes com amãe, assistir a concertos eóperas, mas ali, sentado nabanqueta do piano, sentiu derepente uma pressão imensa. Nosúltimos tempos, sabia queestivera empurrando com abarriga, vivendo apenas um diaapós o outro, com medo do dia da

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formatura e de seu futuro nacervejaria.

Pouco antes, porém, quandoestava tocando a lindacomposição nova de Herr Grieg,sentira uma centelha do antigoentusiasmo. Quando era maisjovem, costumava ficar deitadona cama pensando em melodias,para executá-las ao piano namanhã seguinte. Embora nunca ashouvesse escrito, o que realmenteo inspirava era compor aspróprias músicas.

Agora, à pouca luz do fossoda orquestra, levou os dedosgelados às teclas do piano decauda e tentou recordar as

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melodias que compusera quandomenino. Uma delas, em especial,tinha estrutura semelhante à damais recente composição deGrieg e lembrava as cançõesfolclóricas do passado. Jenscomeçou a tocá-la de cabeça parao teatro vazio.

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17

Stalsberg VåningshusetTindevegen

Heddal

14 de fevereiro de 1876

Kjære Anna,Obrigado pela sua

última carta. Como sempre,além de informativas, suasdescrições da vida emChristiania são muito

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divertidas. Elas sempre mefazem sorrir. Saiba que asua caligrafia e ortografiaestão cada vez melhores.Aqui em Heddal tudo segueigual, como sempre foi. ONatal foi o de sempre, sóque pior por você não estaraqui para celebrá-loconosco. Como sabe, esse éo período mais frio e maisescuro do ano, e não são sóos animais que hibernam,nós humanos também. Aneve durou mais e foi maisabundante do que o normal,e eu descobri uma goteirano telhado da sede de nossa

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fazenda que vai me obrigara substituir a relva dacobertura antes de a nevederreter com a primavera,ou teremos um lago dentrode casa no qual poderemosaté patinar. Segundo meupai, o telhado não é trocadodesde que ele nasceu, entãopelo menos nos prestou umbom serviço. Knut prometeume ajudar na primavera, eestou grato por isso.

Falando nisso, eleandou cortejando uma moçade um vilarejo perto deSkien. Ela se chama Sigride é doce e bonita, ainda que

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um pouco calada. A boanotícia é que os seus paisgostaram dela. Os sinos deum casamento vão soar naigreja de Heddal nesteverão. Rezo para que vocêpossa voltar para assistir àcerimônia.

É difícil acreditar quevocê vai participar daestreia nos palcos do meupoema preferido de Ibsen,com música compostaespecialmente por HerrGrieg em pessoa. Já viuHerr Ibsen no teatro? Comcerteza ele vai aparecerpara verificar se a peça

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está a seu contento, emboraeu ache que more na Itáliaatualmente. Você talvez nãotenha tempo de escrever denovo antes da noite deestreia, já que faltam só dezdias, e imagino que estejamuito ocupada com osensaios. Então desejo muitoboa sorte a você e à sualinda voz.

Com admiração, seuLars

P.S. Mando também umde meus poemas, que jáenviei junto com algunsoutros para um editorchamado Scribner, em Nova

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York, nos Estados Unidos.Eu o traduzi de volta para onorueguês para você.

Anna leu o poema, intitulado“Ode a uma bétula prateada”.Como não fazia ideia do quefosse uma “ode”, correu os olhospelas estrofes depressa, semconseguir reconhecer muitas daspalavras rebuscadas, em seguidapousou a carta junto ao prato paracontinuar o desjejum. Desejavater uma vida empolgante comoLars imaginava. Até agora, sótinha ido ao Teatro de Christianiaduas vezes: a primeira logo antes

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do Natal, para se apresentar aHerr Josephson, quando ficaracombinado que ela de fatocantaria a parte de Solveig, e asegunda na semana anterior,quando os atores haviam feito oprimeiro ensaio no palco paraAnna poder assistir das coxias eentender a peça.

Sofrendo as consequênciasda avaliação equivocada de queum lugar importante como umteatro fosse ter calefação, Annahavia passado o dia sentada emum banquinho, fustigada peloforte vento das coxias, e quasemorrera de tanto frio. Os atoressó conseguiram interpretar os

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primeiros três atos antes de umacrise irromper. Henrik Klausen,que fazia o papel de Peer,tropeçou no pedaço de tecido azuldebaixo do qual dez menininhosajoelhados se moviam para dar aimpressão de que seu personagematravessava um mar revolto.Sofreu uma grave torção notornozelo e, como sem oprotagonista não havia peça, osensaios foram suspensos.

Depois disso, Anna pegouuma gripe feia e passou quatrodias na cama, enquanto HerrBayer cacarejava feito uma velhagalinha cuidando dos pintinhos,preocupado com sua voz rouca.

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– E só uma semana antes daestreia! – grunhiu ele. –Realmente, essa gripe nãopoderia ter vindo em pior hora.Minha jovem, você precisa tomaro máximo de mel que conseguir.Vamos torcer para isso conseguirreparar as suas cordas vocais atempo.

Mais cedo nesse dia, depoisda dose obrigatória de mel – detanto tomar mel, sua sensação erade que iria criar asas e seu corpose cobrir de listras amarelas epretas –, Anna havia se arriscadoa cantar algumas escalas, e HerrBayer parecera aliviado.

– Sua voz está voltando,

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graças a Deus. Madame ThoraHansson, a atriz que vaiinterpretar Solveig, chegará daquia pouco para vocês duas poderemensaiar juntas os momentos emque ela vai dublar a sua voz. Éuma grande honra ela ter aceitadovir até aqui por você estarindisposta. Como sabe, ela é umadas atrizes mais famosas daNoruega e tem a reputação de sera preferida de Herr Ibsen –acrescentou Herr Bayer.

Às dez e meia, ThoraHansson fez uma irrupção deefeito no apartamento com sualinda capa de veludo debruada depele. Em meio a uma nuvem de

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forte perfume francês, entrou nasala onde Anna a esperava,nervosa.

– Kjære, perdão por nãochegar perto, mas mesmo queHerr Bayer diga que não háperigo, não posso me dar ao luxode pegar uma gripe.

– É claro, Madame Hansson– disse Anna, fazendo-lhe umamesura.

– Pelo menos hoje de manhãnão vou usar a voz – emendou elasorrindo. – Pois quem vaiproduzir o som celestial é você.Vou apenas abrir e fechar a bocae representar visualmente aslindas canções de Herr Grieg.

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– Sim, Madame.Enquanto Herr Bayer

entrava e começava a se agitarpara acomodar Madame Hansson,Anna observou a atriz. No teatro,só a vira de longe e imaginaraque ela fosse mais velha. Noentanto, de perto, pôde ver queMadame Hansson na realidadeera jovem, talvez apenas unspoucos anos mais velha do queela própria. Era lindíssima, donade traços delicados e de uma fartacabeleira castanho-escura. Annaprecisou se esforçar paraacreditar que, mesmo vestida comtrajes típicos, aquela sofisticadajovem conseguiria convencer

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alguém de ser uma camponesa dasmontanhas.

Uma camponesa igual a ela...– Certo, vamos começar?

Poco a poco, Anna – recomendouHerr Bayer. – Não queremosforçar sua voz que ainda está serecuperando. Então, se estiverpronta, Madame Hansson,começaremos com a “Canção deSolveig”, depois passaremos à“Canção do berço”.

As duas passaram o resto damanhã ensaiando o que no fundoera um dueto, embora uma dascantoras ficasse muda. Em váriosmomentos, Anna pôde sentir afrustração da atriz quando ela

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abria a boca na hora errada e avoz de Anna entrava no temposeguinte. Madame Hanssonsugeriu que ela saísse da sala,para Herr Bayer poder avaliarmelhor se a plateia realmenteacreditaria que era ela cantando.Em pé na corrente de ar docorredor, com a cabeça latejandoe a garganta agora outra vezirritada de tanto cantar, Annacomeçou a odiar aquelas canções.Precisava respeitar rigorosamentea mesma duração das notas epausas para a outra saber omomento exato de abrir e fechar aboca. Parte do que lhe agradavano canto era interpretar uma

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canção de modo diferente a cadavez para a plateia, fosse estacomposta de pessoas ou apenasde vacas. Algo que, pensandobem, parecia bem melhor do quecantar para uma porta, comoestava fazendo agora.

Depois de algum tempo,Herr Bayer bateu uma palma.

– Acho que conseguimos.Muito bem, Madame Hansson.Anna, por favor, entre.

Anna entrou e MadameHansson se virou para ela,sorrindo:

– Acho que vai funcionarmuito bem. Só me prometa cantarde modo idêntico todas as noites,

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sim, querida?– Claro, Madame Hansson.– Anna, você está meio

pálida. Acho que o esforço destamanhã a deixou cansada. Vouavisar a Frøken Olsdatter quevocê vai descansar um pouco, eela lhe servirá o almoço noquarto e lhe dará mais mel paramelhorar sua voz.

– Sim, Herr Bayer – disseAnna, obediente.

– Obrigada, Anna. Semdúvida nos veremos no teatro nospróximos dias – disse MadameHansson, lhe abrindo um sorrisoencantador, e Anna fez outramesura antes de se recolher ao

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quarto.

Apartamento 4Portão de São Olavo,

10Christiania

23 de fevereiro de 1876

Kjære Lars, Mor, Far eKnut,

Escrevo às pressas,pois hoje é o dia do ensaiogeral e amanhã é a estreiade Peer Gynt. Queria tanto

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que vocês pudessem estaraqui para essa ocasião...mas entendo que o custotorna essa visita impossível.

Estou animada, mastambém um pouco nervosa.Herr Bayer me mostrou quetodos os jornais estãocheios de notícias sobreamanhã e que houve atéboatos de que o rei e arainha virão para assistirdo camarote real.(Pessoalmente, duvido: elesmoram na Suécia, e atépara a família real seriauma longa viagem só paraassistir a uma peça, mas

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essa é a fofoca que andacorrendo por aqui.) Dentrodo teatro, a atmosfera estátensa. Herr Josephson, odiretor, acha que vai ser umdesastre, pois ainda nãoconseguimos passar a peçainteira sem ter que parardurante horas para resolveralgum problema técnico. EHerr Hennum, o maestro, dequem gosto muito e queantes sempre me pareceucalmo, não para de gritarcom a orquestra porque osmúsicos não contam ostempos.

Vocês acreditam que

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até agora não cantei a“Canção do berço” noteatro porque ainda nãoconseguimos chegar aofinal da peça? HerrHennum me garantiu queisso vai acontecer hoje semfalta.

Enquanto isso, passomeu tempo com as criançascontratadas pararepresentar pequenospapéis, como o de ogros ecoisas assim. Na primeiravez em que me mandarampara o camarim deles,fiquei ofendida, pois asoutras integrantes do coro

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estão em outro. Talvez elesnão tenham percebidoquantos anos eu tenho. Masagora estou feliz, porque ascrianças me fazem rir eficamos jogando cartaspara passar o tempo.

Vou ter que parar deescrever agora, pois precisoir para o teatro. Mas devolhe informar, e sei que vocêficará muito triste com isso,Lars, que Herr Ibsen aindanão apareceu.

Envio meu amor deChristiania para todosvocês.

Anna

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Ao sair do apartamento acaminho do teatro, ela depositoua carta na salva de prata do hall.

O ensaio geral já duravaquase quatro horas e, assim comoo restante da orquestra, Jensestava cansado, com frio eirritado. A tensão no fosso vinhaaumentando nos últimos dias. Emmais de uma ocasião, Herr

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Hennum havia levantado a vozcom ele dizendo-lhe para prestaratenção, o que o rapazconsiderava injusto, uma vez queSimen, o idoso spalla que ficavasentado ao seu lado, pareciacochilar o tempo todo. Elecalculava que devesse ser o únicointegrante da orquestra commenos de 50 anos. Apesar disso,os músicos eram simpáticos, esua camaradagem bem-humoradao agradava.

Até então, ele conseguirachegar na hora todos os dias,ainda que às vezes com uma belaressaca. Como esse tambémparecia ser o caso do resto dos

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músicos, sentia que se encaixavaà perfeição. Havia também asadoráveis senhoras do coro paraadmirar no palco durante uma dasintermináveis pausas que HerrJosephson fazia para posicionaros atores a seu contento.

Depois de lhe ofereceremaquele lugar na orquestra, odeleite desmesurado de sua mãequase o fizera chorar.

– Mas o que vamos dizerpara Far? – perguntara ele. –Você sabe que terei que faltar àsaulas na universidade para ir aosensaios.

– Acho que por enquanto émelhor ele não saber sobre essa

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sua repentina... mudança de rumo.Vamos deixá-lo acreditar quecontinua frequentando auniversidade. Ele não vai repararem nada a curto prazo, tenhocerteza.

Em outras palavras, deduziraJens, sua mãe estava com medodemais para contar ao seu pai.

Isso já quase não tinhaimportância, pensou, afinando oviolino, pois se a suadeterminação de não entrar para acervejaria antes era firme, agoraera implacável. Apesar daslongas horas de trabalho, do frioe dos comentários muitas vezesácidos de Herr Hennum, tinha

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certeza de ter reencontrado aalegria que a música lheproporcionava na infância. Asmúsicas de Herr Grieg tinhammuitos trechos inspiradores, daanimada “No salão do rei damontanha” à “Dança de Anitra”,durante a qual bastava-lhe fecharos olhos enquanto tocava as notasno violino para invocarmentalmente o exotismo doMarrocos.

No entanto, seu trechopreferido continuava sendo o“Amanhecer” do início do Ato IV,que constitui o fundo musical dotrecho da peça em que Peeracorda na África de manhã cedo,

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de ressaca, ciente de que perdeutudo. Então começa a pensar naNoruega, seu país natal, e no sol anascer por trás dos fiordesnoruegueses. Jens nunca secansava de tocar esse trecho.

Agora, ele e o outroflautista, que devia ter três vezesa sua idade, estavam serevezando para tocar ascomoventes notas dos quatroprimeiros compassos. QuandoHennum apareceu no fosso ebateu com a batuta para chamarsua atenção, Jens se deu conta deque ele queria tocá-los na noitede estreia mais do que qualqueroutra coisa que jamais quisera na

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vida.– Então vamos começar o

Ato IV – anunciou o maestro; apausa entre os atos já durava umahora. – Bjarte Frafjord, o senhorhoje vai tocar a primeira flauta.Cinco minutos, por favor –acrescentou, afastando-se paraconfabular com o diretor HerrJosephson antes de começarem.

Jens foi tomado por umaonda de decepção. Se Bjartetocaria a primeira flauta noensaio geral, havia grandeschances de Hennum querer queele também a tocasse na estreiado dia seguinte.

Alguns minutos depois,

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Henrik Klausen, que interpretavao papel-título de Peer Gynt,chegou para assumir sua posição,debruçado na borda do fosso daorquestra, onde fingiria vomitarem cima dos músicos enquantoseu personagem se recuperava daressaca que supostamente oafligia.

– Como vocês estão hoje,rapazes? – perguntou ele aosmúsicos lá embaixo, simpático.

Murmúrios generalizadosecoaram quando Hennumreapareceu e pegou a batuta.

– Herr Josephson meprometeu que podemos passar oAto IV com um mínimo de

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interrupção para podemosfinalmente chegar ao ato V. Todosprontos?

Hennum ergueu a batuta e osom da flauta de Bjarte se ergueudo fosso. Ele não é tão bomquanto eu, não mesmo, pensouJens, emburrado, enquantoprendia o violino com o queixo ese preparava para tocar.

Uma hora depois, apesar deum probleminha sem importânciaque parecia ter sido resolvidodepressa, eles estavam quase nofim do Ato IV. Jens ergueu osolhos para Madame Hansson, quefazia o papel de Solveig. Mesmocom o figurino de camponesa,

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podia ver que ela era muitoatraente, e torceu para ter umaoportunidade de conhecê-la nafesta após o espetáculo, na noiteseguinte.

Tornou a se concentrar àspressas quando Herr Hennumergueu a batuta e os violinistasatacaram os primeiros compassosplangentes da “Canção deSolveig”. Jens ouviu MadameHansson começar a cantar. Suavoz era tão pura, tão perfeita einspiradora, que ele se pegoutransportado mentalmente para acabana de montanha que abrigavaSolveig e sua tristeza. Não faziaideia de que ela soubesse cantar

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daquele jeito. Era uma das vozesmais gloriosas que já escutara.Parecia-lhe simbolizar o ar puro,a juventude, mas também a dor deesperanças e sonhos desfeitos...

De tão fascinado, recebeuum olhar duro de Hennum aoentrar um tempo atrasado. Quandoeles finalmente chegaram ao finalda peça e as tristíssimas notas da“Canção do berço” reverberarampelo teatro – cantada por Solveigquando Peer, retornado e contrito,descansa a cabeça cansada sobreo seu colo –, Jens sentiu oscabelos da nuca se arrepiaremcom a perfeição da execução deMadame Hansson. Minutos

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depois, quando a cortina baixou,ouviram-se aplausos espontâneosde vários funcionários do teatroque tinham parado para assistir eescutar.

– Você ouviu isso? – indagouJens a Simen, que já estavaguardando seu violino, prontopara sair depressa do fosso eatravessar a rua até o CaféEngebret antes que a cozinhafechasse. – Não sabia queMadame Hansson tinha uma voztão linda.

– Que Deus o abençoe, Jens!O que acabamos de escutar é defato uma linda voz, como vocêdiz, mas ela não pertence a

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Madame Hansson. Não reparouque ela estava dublando? Essamulher não canta uma nota sequer,então eles tiveram que trazer avoz de outra para dar essaimpressão. Estou certo de queHerr Josephson vai ficar felizcom o fato de sua ilusão ter dadocerto.

Simen deu uma risadinha ealguns tapinhas no seu ombro,então se virou para ir embora.

– Quem é ela? – gritou Jenspara as costas do colega que seafastava e desaparecia abaixo dopalco.

– Acho que é justamenteessa a ideia – respondeu Simen

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por cima do ombro. – Ela é umavoz fantasma. Ninguém faz ideiade quem seja.

A dona da voz que tantohavia emocionado Jens Halvorsenagora estava em uma carruagemsendo conduzida de volta aoapartamento de Herr Bayer, ondemorava. Sentindo que chamavaatenção com o traje típiconorueguês que ele lhe disserapara usar nas suas

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“apresentações” de modo a ficarparecida com as outrasintegrantes do coro, ficoualiviada por fazer o trajetosozinha. Tivera outro dia longo eexaustivo, e ficou grata quandoFrøken Olsdatter lhe abriu aporta e pegou sua capa.

– Você deve estar muitocansada, Kjære Anna. Mas diga-me, como acha que se saiu? –indagou a governanta enquantoconduzia a moça delicadamenteem direção ao quarto.

– Não sei dizer, não mesmo.Quando o pano caiu, fiz comoHerr Bayer me orientou: saí pelaporta dos atores e entrei direto na

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carruagem. E aqui estou –arrematou ela, com um suspiro,enquanto deixava FrøkenOlsdatter ajudá-la a se despir e ase deitar na cama.

– Herr Bayer disse queamanhã você pode dormir atémais tarde. Quer que você e suavoz estejam bem descansadaspara a noite de estreia. Seu leitequente com mel está aqui nacabeceira.

– Obrigada – disse Anna,agradecida, pegando o copo.

– Boa noite, Anna.– Boa noite, Frøken

Olsdatter, e obrigada.

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Johan Hennum apareceu nofosso e chamou a atenção daorquestra batendo uma palma.

– Todos prontos?O regente olhou para a

orquestra com um ar carinhoso, eJens refletiu sobre quão diferentea atmosfera do teatro estava emcomparação com a mesma hora navéspera. Não apenas estavamtodos em trajes de gala no lugarda habitual coleção heterogêneade roupas do dia a dia, mas aplateia da noite de estreia já

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havia entrado e ocupado seuslugares em meio a um zum-zum deexpectativa. Ao despir suas peles,as mulheres revelaram umaprofusão de vestidosesplendorosos enfeitados porjoias suntuosas que cintilavam àluz suave do rebuscado lustrependurado no meio do teto.

– Cavalheiros, hoje à noitenós temos a honra de ocuparnosso lugar na história –continuou Hennum. – Muitoembora Herr Grieg não tenhapodido comparecer, pretendemosenchê-lo de orgulho e dar à suamaravilhosa música a execuçãoque ela merece. Tenho certeza de

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que um dia todos vocês hão decontar aos seus netos queparticiparam desseacontecimento. E HerrHalvorsen, hoje o senhor vaitocar a primeira flauta no“Amanhecer”. Muito bem, setodos estiverem prontos...

O maestro subiu no plintopara indicar à plateia que oespetáculo estava prestes acomeçar. Fez-se um súbitosilêncio, como se todos no teatroestivessem prendendo arespiração. Nesse instante, Jensenviou ao céus uma prece degratidão porque seu maisfervoroso desejo tinha sido

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atendido.

Ninguém nos bastidoresdurante o espetáculo sabia aocerto o que a plateia estavaachando. Anna, acompanhada porRude, um dos meninos queatuavam nas cenas de multidão,foi lentamente até as coxias cantarsua primeira música.

– Dava para ouvir umalfinete cair no chão lá fora,Frøken Anna. Eu estava

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escondido nas coxias olhando aplateia e acho que as pessoasestão gostando – disse Rude.

Anna assumiu seu lugar nalateral do palco, oculta pelospainéis do cenário, mas em umponto no qual ainda pudesse verMadame Hansson. Subitamente sepegou congelada de medo. Aindaque ninguém fosse capaz de vê-lae que o seu nome só constasse noprograma em meio à longa listade integrantes do “Coro”, elasabia que, em algum lugar lá fora,Herr Bayer estava escutando.Assim como todas as pessoasimportantes de Christiania.

Sentiu a mãozinha de Rude

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apertar a sua.– Não se preocupe, Frøken

Anna. Todos nós achamos que asenhorita canta lindamente.

Ele então a deixou sozinha, eAnna ficou observando MadameHansson com os ouvidos atentospara sua deixa. Quando aorquestra tocou os primeiroscompassos da “Canção deSolveig”, ela inspirou fundo.Então, pensando em Rosa e na suafamília lá em Heddal, soltou avoz.

Quarenta minutos depois,quando o pano caiu pela últimavez, Anna estava novamente empé nas coxias; acabara de cantar a

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“Canção do berço”. Enquanto oresto do elenco se reunia no palcopara os agradecimentos, a plateiacontinuou em silêncio, pasma.Ninguém havia pedido a Annapara ir lá para agradecer, demodo que ela permaneceu ondeestava. Então, quando a cortinatornou a subir e revelou o elencoreunido, quase ficou surda com ossúbitos e estrondosos aplausos.As pessoas bateram com os pésno chão e gritaram pedindo bis.

– Cante de novo a “Cançãode Solveig”, Madame Hansson! –ela ouviu alguém gritar, pedidoque a atriz graciosamente recusoucom um aceno elegante da mão.

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Por fim, depois de HerrJosephson subir ao palco e sedesculpar em nome de Ibsen eGrieg pela ausência deles e dosúltimos agradecimentos, o panobaixou de vez e o elenco foisaindo em fila indiana do palco.Todos ignoraram Anna ao passar,tomados de adrenalina,conversando animados sobre oque parecia ter sido um sucessoretumbante após tantas semanasde trabalho.

Anna voltou ao camarimpara pegar sua capa e deu boa-noite às crianças, cujas mãesorgulhosas ajudavam a despir osfigurinos. Herr Bayer tinha dito

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que a carruagem a estariaesperando lá fora e que eladeveria sair assim que a peçaterminasse. Quando estavadescendo o corredor em direção àsaída, esbarrou em HerrJosephson, que saía do camarimde Madame Hansson.

– Anna, você cantoulindamente. Duvido que alguémno teatro tenha ficado com osolhos secos. Meus parabéns.

– Obrigado, Herr Josephson.– Volte direitinho para casa

– acrescentou ele com um meneiode cabeça e uma leve mesuraantes de lhe virar as costas parabater na porta do camarim de

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Henrik Klausen.Anna caminhou até a porta

dos atores e, relutante, saiu doteatro.

– Mas então, quem é a moçaque canta a “Canção de Solveig”?– indagou Jens, vasculhando amultidão reunida no saguão. – Elaestá aqui?

– Não saberia dizer; eununca a vi – comentou ovioloncelista Isaac, já bem

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alcoolizado. – Ela tem a voz deum anjo, mas pelo que sabemospode muito bem ter o rosto deuma megera.

Decidido a descobrir, Jensencurralou o regente.

– Parabéns, meu rapaz –disse Hennum com um tapinha noombro, obviamente eufórico apóso sucesso da noite. – Fico felizque a minha fé em você não tenhasido mal depositada. Com umpouco de treino e experiência,você pode ir longe.

– Obrigado, maestro. Masdiga-me, por favor, quem é amisteriosa moça que cantou tãolindamente as palavras de

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Solveig hoje? Ela está aqui?– Anna? Ela é a nossa

Solveig das montanhas em carne eosso. Mas duvido que tenhaficado para a festa. Ela é a pupilae a protegida de Franz Bayer; émuito jovem, e não estáacostumada à cidade. Ele amantém em rédea curta, então meupalpite é que a sua Cinderelatenha voltado correndo para casaantes de o relógio bater a meia-noite.

– Que pena. Queria lhe dizerquanto a voz dela me emocionou.Além disso, sou grandeadmirador de Madame Hansson –continuou Jens, aproveitando a

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oportunidade. – Será que o senhorpoderia me apresentar a ela paraeu poder elogiá-la pela atuaçãode hoje?

– Claro – respondeu HerrHennum. – Tenho certeza de queela ficará encantada em conhecê-lo. Venha comigo.

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18

Na manhã seguinte, a“Cinderela” estava sentada diantede Herr Bayer na sala de estar.Os dois tomavam café enquantoele lia a crítica do espetáculo davéspera no Dagbladet, recitando-lhe em voz alta os trechos que elapoderia apreciar.

– “Madame Hansson semostrou um deleite como asofrida e jovem camponesaSolveig, e sua voz pura e

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melodiosa soou extremamenteagradável aos ouvidos.”

– Pronto. – Ele ergueu osolhos para Anna. – O que achadisso, hein?

Se fosse o nome dela escritono jornal naquela manhã, pensouAnna, e a sua voz cujas virtudesestivessem sendo louvadas, elacom certeza teria tido muito o quepensar a respeito. Não sendo esseo caso, porém, não pensavagrande coisa.

– Fico feliz que tenhamgostado da peça e da minha voz –conseguiu dizer.

– Naturalmente, o que oscríticos consideraram inspirador

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em particular foi a trilha musicalde Herr Grieg. A interpretaçãoque ele fez do maravilhoso poemade Herr Ibsen foi simplesmentesublime. Assim sendo, Anna,como hoje não haverá espetáculo,você terá um merecido descanso.Deveria estar muito orgulhosa desi mesma, minha cara jovem. Seucanto não poderia ter sido maislindo. Infelizmente, para mim hojenão é dia de descanso, e precisosair para a universidade. – Ele selevantou e foi até a porta. – Hojeà noite, quando eu voltar, vamoscomemorar o seu sucesso nojantar. Tenha um bom dia.

Depois que Herr Bayer saiu,

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Anna terminou seu café já morno.Sentia-se desanimada, tomada poruma estranha irritação. Era comose tudo o que havia acontecidonos últimos meses tivesseconduzido à noite anterior, eagora, passado o momento, nadahouvesse mudado. Ela não sabiaao certo o que esperava quemudasse, mas não podia evitar asensação de que algo deveria termudado.

Será que Herr Bayer sabiada necessidade de uma cantora“fantasma” quando fora encontrá-la nas montanhas no verãoanterior? Seria esse o motivo queo fizera trazê-la para a cidade?

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Sabia muito bem que todos noteatro queriam que ela fosseinvisível para que sua vozpudesse ser atribuída a MadameHansson.

Pegou um dos jornais ecutucou com o dedo o trecho quemencionava a voz “pura” da atriz.

– Essa voz é minha! –exclamou. – Minha...

Talvez devido à pressãoacumulada que fora liberada nanoite anterior, como uma rolhasacada de uma garrafa dochampanhe francês de HerrBayer, ela se jogou no sofá ecomeçou a chorar.

– O que houve, Anna Kjære?

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Ela ergueu o rosto molhadode lágrimas e viu que FrøkenOlsdatter havia entrado na salasem se anunciar.

– Nada – murmurou, secandoos olhos depressa.

– Talvez você esteja exausta,sobrecarregada por causa deontem à noite. E ainda não ficoude todo boa do resfriado.

– Não, não... Estou muitobem, obrigada – disse Anna,firme.

– Com saudades da família,talvez?

– Sim, estou mesmo. E do arpuro do campo. Eu... eu acho quequero voltar para Heddal –

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sussurrou ela.– Pronto, querida, pronto. Eu

entendo. É sempre a mesma coisacom quem vem do campo para acidade. E a vida que você leva ésolitária.

– Você sente saudades da suafamília? – perguntou-lhe Anna.

– Não mais, porque meacostumei, mas no começo eramuito infeliz. Minha primeirapatroa era uma mulher mesquinha,que tratava a mim e as outrasempregadas pior do que seuscachorros. Fugi duas vezes, masme encontraram e levaram devolta. Então conheci Herr Bayerquando ele foi jantar na casa dela.

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Talvez ele tenha percebido aminha infelicidade, ou talvezprecisasse mesmo de umagovernanta, mas seja qual for omotivo, ele me ofereceu umemprego nessa mesma noite.Minha patroa não criou caso.Acho que ficou feliz em se verlivre de mim. Então Herr Bayerme trouxe para cá. Apesar de todasua excentricidade, Anna, estejacerta de que ele é um homem bome generoso.

– Eu sei – falou Anna,sentindo culpa por estar com penade si mesma sabendo que a vidade Frøken Olsdatter fora tão maisdifícil do que a sua.

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– Se isso a deixa maistranquila, já vi diversasprotegidas de Herr Bayerentrarem pela porta desta casadesde que vim trabalhar aqui.Mas nunca o vi tão animadoquanto está com o seu talento.Ontem à noite, ele me disse queestá todo mundo encantado com oseu canto.

– Mas quase ninguém sabeque sou eu – murmurou Anna.

– Ainda não, mas vocêprecisa acreditar que um diasaberão. Você é muito jovem,Kjære, e tem sorte de ter feitoparte de uma produção tão bem-sucedida. As pessoas mais

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importantes de Christianiaouviram você cantar. Tenhapaciência e confie no Senhor paraguiar seu destino. Agora estouatrasada para a feira. Quer vircomigo pegar um pouco de ar?

– Sim, adoraria – respondeuAnna, pondo-se de pé. – Eobrigada por ser tão gentil.

A pouco mais de trêsquilômetros dali, Jens Halvorsen,também muito contrariado,

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andava de um lado para o outrode seu quarto ao som das vozesacaloradas que vinham da salaíntima no andar de baixo. A farsaque ele e a mãe haviam encenadopara o pai nas últimas semanastivera um fim abrupto durante ocafé da manhã, quando o pai leraa elogiosa crítica à montagem dePeer Gynt publicada no jornal. Ocrítico tivera a gentileza demencionar que “O ‘Amanhecer’,no início do Ato IV, é na minhaopinião um dos melhoresmomentos da trilha musical deHerr Grieg, e os encantadores ememoráveis compassos deabertura foram tocados de modo

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sublime na flauta por JensHalvorsen”.

A expressão de seu paificara parecendo uma chaleira decobre esquecida sobre o fogão.

– Por que só estou sabendodisso agora?! – explodira ele.

– Porque eu achei que nãoera importante você saber –respondera Margarete, e Jenssabia que ela estava sepreparando para uma horríveldiscussão.

– Não era importante? Eu,um pai que acredita que o filhoestá estudando na universidade,descubro por um jornal que eleestá fazendo um bico na orquestra

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de Christiania! É um ultraje, issosim!

– Ele faltou a poucas aulas,Jonas, eu juro.

– Então por favor meexplique por que o eminentecrítico continua seu textodescrevendo como “Herr JohanHennum, regente da orquestra deChristiania, passou muitos mesesreunindo e em seguida ensaiandoseus músicos para fazer justiça aocomplexo arranjo para orquestrade Herr Grieg.” Quer mesmo queeu acredite que o nosso filho, quechega a ter seu nome citado nessemesmo jornal, aprendeu a tocar aparte dele de repente, da noite

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para o dia? Pelo amor de Deus! –Jonas balançou a cabeça comveemência. – Vocês dois devemachar que eu sou um camponêsimbecil. Seria melhor pararem deme tratar dessa maneira.

Margarete então se viroupara Jens.

– Sei que você precisaestudar. Sugiro que vá fazer isso.

– Sim, Mor. – Com um mistode culpa por deixar a mãe sozinhadiante da ira do pai e alívio pornão ter que enfrentá-la, Jensmeneou a cabeça para os dois efez o que lhe mandavam.

Agora, andando de um ladopara o outro do quarto, ainda

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podia ouvir o pai esbravejandocom a mãe, e concluiu que talvezaquele incidente do jornal narealidade fosse oportuno: seu paiteria descoberto em algummomento suas atividadesextracurriculares. Parte deleficava triste pelo pai nãoconseguir comemorar o fato deele ter sido objeto de tantoselogios, mas Jens compreendia.Os músicos em Christiania nãotinham status social nenhum, e suarenda era limitada. Não havianada que seu pai pudesse admirarna escolha de sua carreira. Muitomenos na perspectiva de ele nãoocupar o lugar que lhe era de

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direito no comando da CervejariaHalvorsen.

Além do mais, Jens estavafeliz demais para deixar o paidesanimá-lo. Havia encontradoseu futuro na orquestra efinalmente se sentia realizado. Acamaradagem dos colegas, seubom-humor e seu talentoconsumado para a bebedeira aose reunirem no Café Engebrettodas as noites após o espetáculoeram um mundo no qual Jens sesentia totalmente à vontade. Semfalar na atitude perceptivelmentedescontraída das jovens doelenco...

Na noite anterior, Herr

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Hennum tinha feito o que elepedira e lhe apresentado MadameHansson. Quando ascomemorações da estreia estavamno fim, ele reparou que ela estavade olho nele, e então se ofereceupara acompanhá-la no caminhoaté seu apartamento. Fora uminterlúdio de fato agradável:Thora era ao mesmo tempoexperiente e ávida, e Jens só saírada cama dela depois de o diagelado raiar. No dia seguinte teriaque ser hábil para resolver asituação com Hilde Omvik, a belamoça do coro com quem andarasaindo. Não seria nada bomMadame Hansson ouvir fofocas

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sobre seu comportamento noteatro. E, afinal de contas, Hildeestava de casamento marcadopara dali a uma semana...

Alguém bateu à sua porta eele foi abrir.

– Jens, eu fiz tudo que pude,mas seu pai quer falar com você.Agora. – Margarete estava pálida,os traços do rosto tensos.

– Obrigado, Mor.– Conversaremos mais

depois que ele sair para acervejaria.

Ela lhe deu alguns tapinhasno ombro e Jens desceu até otérreo, onde Dora lhe disse que opai o estava esperando na sala de

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estar.O rapaz suspirou, pois sabia

que qualquer coisa séria queacontecesse na casa dosHalvorsens sempre ocorria nasala de estar. O cômodo era frio eaustero como seu pai. Ele abriu aporta e entrou. Como sempre, alareira não estava acesa, e umaluz branca e forte refletida naneve acumulada lá fora entravapelas grandes janelas.

Jonas estava de pé junto auma das janelas e se virou quandoJens entrou.

– Sente-se – disse,apontando para uma cadeira.

Jens obedeceu, tentando

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moldar o próprio rosto para queexprimisse uma mistura adequadade arrependimento e desafio.

– Em primeiro lugar, querolhe dizer que não o culpo –começou Jonas, sentando-se emfrente ao filho em uma grandepoltrona de couro de encosto comabas. – A culpa é toda da sua mãepor ter incentivado essa ideiaridícula. Mas, Jens, em julhovocê completa 21 anos e comoadulto precisa tomar as própriasdecisões. Precisa decidir nãomais se submeter ao domínio dasua mãe.

– Sim, senhor.– A situação continua como

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sempre foi – continuou Jonas. –Após concluir seus estudos nesseverão, você vai se juntar a mimna cervejaria. Trabalharemosjuntos, e um dia a empresa serásua. Você será a quinta geração deHalvorsens a administrar onegócio iniciado por meutataravô. Sua mãe insiste que osseus estudos não foramprejudicados pelas suasapresentações com a orquestra,mas pessoalmente eu duvido. Oque tem a me dizer, rapaz?

– Minha mãe está certa.Faltei a muito poucas aulas –mentiu Jens sem qualquerdificuldade.

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– Muito embora seja esse omeu desejo, sei que não serianada bom para a reputação danossa família eu tirá-lo agora daorquestra, depois de você ter secomprometido com Herr Hennum.Assim sendo, parece-me se tratarde um fato consumado. Sua mãe eeu concordamos que você tempermissão para seguir até o fimda temporada de Peer Gynt, nomês que vem. Enquanto isso,espero que aceite sem questionarqual será o seu futuro.

– Sim, senhor. – Jensobservou Jonas fazer uma pausa eestalar os dedos, hábito que oirritava além da conta.

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– Então estamoscombinados. Depois que essanovidade passar, estou lheavisando, será a última vez quevou tolerar um comportamentoassim. A menos que você desejeseguir carreira como músicoprofissional... Nesse caso nãoterei outra escolha senão deixá-losem um øre e expulsá-lo destacasa de imediato. Os homens dafamília Halvorsen nãotrabalharam durante 150 anospara ver nosso único herdeirojogar seu legado no lixo tocandorabeca.

Jens estava decidido a nãodar ao pai a satisfação de ver o

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choque estampado em seu rosto.– Sim, senhor. Entendo.– Então vou indo para a

cervejaria. Já estou mais de umahora atrasado e preciso sempredar o exemplo a meusfuncionários, assim como vocêdeverá fazer quando viertrabalhar comigo. Tenha um bomdia, Jens.

Com um meneio de cabeçapara o filho, Jonas se retirou,deixando o rapaz sozinho pararefletir sobre seu futuro.Sentindo-se incapaz de encarar amãe – ou na verdade quem querque fosse –, ele pegou seussapatos de neve no hall de

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entrada, vestiu o casaco de peles,pôs o chapéu e as luvas e saiupara se acalmar um pouco.

Apartamento 4Portão de São Olavo,

10Christiania

10 de março de 1876

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Kjære Lars, Mor, Far eKnut,

Obrigada pela últimacarta e por dizer que minhaortografia melhorou. Nãoacho que seja o caso, masestou me esforçandobastante. Agora faz duassemanas que Peer Gyntestreou no Teatro deChristiania (embora eu nãotenha posto os pés nopalco). Herr Bayer me disseque a cidade inteira estáfalando disso e que a“casa”, como todo mundose refere ao teatro, está comlotação esgotada para toda

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a temporada. Agora estãofalando em fazerapresentações extras,tamanha a procura.

A vida aqui seguecomo de hábito, a não serpelo fato de Herr Bayerestar me ensinando algumasárias italianas que tenhoachado muito difíceis. Umavez por semana, um cantorde ópera profissionalchamado Günther vem medar aulas. Ele é alemão, epor causa do sotaque édifícil entender umapalavra do que diz. Além domais, ele fede a roupa não

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lavada e vive cheirandorapé, que muitas vezes lheescorre do nariz e acabaformando uma poça emcima de seu lábio superior.Ele é muito velho e magro, esinto muita pena dele.

Quando a temporadade Peer Gynt acabar, nãosei muito bem o que farei dediferente do que faço aquitodos os dias, ou seja,aprender a cantar melhor,ficar em casa e comerpeixe. A temporada deteatro começa depois daPáscoa, e há boatos de quePeer Gynt será encenado

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mais uma vez no futuro.Vocês gostarão de saberque, segundo dizem, HerrIbsen virá da Itália paraassistir ao espetáculo.Avisarei se isso acontecer.

Por favor, agradeça aMor pelas novas camisas debaixo que ela tricotou paramim. Têm sido úteis nestelongo inverno. Estouansiosa para o tempoesquentar, e espero podervoltar logo para casa.

Anna

Com um suspiro, Anna

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dobrou a carta e a lacrou.Imaginava que a família estivesseansiosa por ouvir fofocas doteatro, mas não tinha nenhumapara contar. Como passava osdias enfurnada no apartamento eera levada embora às pressas doteatro à noite, seu estoque denovidades estava se esgotando.

Foi até a janela, ergueu osolhos para o céu e viu que, apesarde serem quatro da tarde, aindaestava claro. A primavera enfimestava chegando. Em seguidaviria o verão... Anna encostou atesta na vidraça fria que aseparava do ar puro. Aperspectiva de passar os meses

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de calor trancafiada naqueleapartamento, e não nas montanhascom Rosa, era quaseinsuportável.

Rude chegou ao fosso daorquestra bem na hora marcadapara sua missão de todas asnoites.

– Olá, Rude. Como vaivocê? – perguntou-lhe Jens.

– Vou bem, senhor. Temalgum bilhete ou recado para eu

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entregar?– Tenho, sim. Tome aqui. –

Ele se abaixou para podersussurrar no ouvido do menino. –Entregue isto a Madame Hansson.– Então depositou uma moeda euma carta na mãozinha ansiosa.

– Obrigado, senhor. Vouentregar.

– Muito bem – disse Jensenquanto o menino começava a seafastar. – Ah, a propósito, quemera aquela jovem com quem vivocê saindo pela porta dos atoresontem à noite? Você estánamorando? – indagou ele,provocando o menino.

– Ela pode ser da mesma

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altura que eu, mas tem 18 anos,senhor. Como eu tenho 12, é velhademais para mim – respondeuRude, sério. – Aquela era AnnaLandvik. Ela está na peça.

– É mesmo? Não areconheci, mas afinal estavaescuro, e só pude ver de relanceos seus longos cabelos ruivos.

– Quer dizer, ela trabalha naprodução, mas o senhor não a viuno palco. – Dando uma olhadaexcessivamente dramática emvolta, Rude gesticulou para Jensse aproximar de modo a podersussurrar no seu ouvido. – Ela é avoz de Solveig.

– Ah, entendo. – Jens

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assentiu com seriedade fingida.O fato de a voz de Madame

Hansson na verdade não ser suatinha se tornado o segredo menosbem guardado daquele teatro.Mas todos eles precisavammanter as aparências para o restodo mundo.

– Uma moça muito bonita,não é, senhor?

– Os cabelos com certezasão bonitos. Foi só o queconsegui ver; ela estava decostas.

– Pessoalmente, sinto penade Frøken Landvik. Ninguémpode saber que é ela quem cantatão bem. Chegaram a colocá-la

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conosco no camarim das crianças.Bem... – disse Rude na hora emque o sinal tocou indicando quefaltavam cinco minutos para oespetáculo. – Vou entregar istoaqui direitinho para o senhor.

Jens depositou outra moedana mão do menino.

– Atrase um pouco FrøkenLandvik hoje à noite para mimjunto à saída dos atores, para eupoder ver direito nossamisteriosa cantora.

– Acho que consigo fazerisso, senhor – concordou Rude, eentão saiu correndo feito um ratode rua, muito satisfeito com opagamento da noite.

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– De novo à caça, Peer? –Simen, o primeiro violino, nãoera tão surdo quanto parecia eevidentemente havia escutadopartes da conversa.

O fato de as estripulias deJens com as integrantes femininasdo elenco se parecerem muitocom as do herói da peça tinha setornado uma piada na orquestra.

– Nada disso – murmurou orapaz ao mesmo tempo queHennum aparecia no fosso. Oapelido, no começo, eradivertido, mas agora estava setornando muito cansativo. – Vocêsabe que sou devotado a MadameHansson.

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– Então talvez eu tenhaexagerado no vinho do Porto, mastenho certeza de ter visto vocêsair do Engebret ontem à noite debraços dados com Jorid Skrovset.

– Com certeza foi o Porto.Jens pegou a flauta, e

Hennum indicou que já podiamcomeçar.

Nessa noite, depois doespetáculo, Jens passou pelaporta dos atores e ficou paradoali por perto, esperando Rudeaparecer com a misteriosa moça.Em geral teria ido para oEngebret enquanto aguardavaThora entreter seus admiradoresno camarim e se trocar. Ela

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embarcava em sua carruagemsozinha, em seguida o pegavaalguns metros adiante na rua, poisnão desejava que ninguém osvisse juntos.

Jens sabia o que a levava anão deixar que ele aacompanhasse pela cidade: seureles status de músico. Estavacomeçando a se sentir umaprostituta ordinária, que satisfaziaa uma necessidade física mas nãoera boa o bastante para ser vistaem público. O que era um tantoridículo, uma vez que elepertencia a uma das famílias maisrespeitadas de Christiania e era oatual herdeiro do império

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cervejeiro dos Halvorsens. Thoravivia lhe contando como haviajantado com todos os figurões daEuropa, como Ibsen a adorava e achamava de sua musa. Até agora,Jens tinha suportado essecomportamento porque, naintimidade do quarto, elacompensava bastante ahumilhação que ele era obrigadoa aguentar. Mas já havia atingidoseu limite.

Por fim, viu duas silhuetasemergirem da porta dos atores.As duas se demoraram uminstante no limiar e foramiluminadas pela lamparina a gásdo corredor mais atrás por um

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breve instante. Rude apontavaalguma coisa para a moça.Espiando discretamente por baixoda boina, Jens a encarou.

Era uma moça delicada,miúda. Tinha lindos olhos azuis,um nariz bem pequenino e lábiosrosados como botões de rosa emum rosto pequeno em formato decoração. Gloriosos cabelosruivos cascateavam em ondas aoredor dos ombros. Diante daquelavisão, Jens, que não era dado agrandes elegias, sentiu-sesubitamente à beira das lágrimas.Aquela moça era um sopro de arpuro da montanha e fazia asoutras mulheres parecerem

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bonecas de madeira artificiais epintadas.

Parado, como num transe,ouviu-a dizer um suave “boanoite” a Rude e logo em seguidapassar flutuando por ele antes desubir direto na carruagem que aaguardava.

– Conseguiu vê-la, senhor?Enquanto a carruagem de

Anna se afastava, os olhosargutos de Rude haviam detectadona hora Jens à espreita nassombras.

– Fiz o que pude, mas nãoconsegui fazê-la se demorar maistempo. Minha mãe está meesperando no camarim. Eu disse

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que tinha que dar um recado aoporteiro na entrada dos atores.

– Sim. Ela sempre vaiembora logo depois doespetáculo?

– Todas as noites, senhor.– Então preciso bolar um

plano para me encontrar com ela.– Desejo-lhe sorte com isso,

mas agora preciso mesmo ir. –Rude continuou ali parado, edepois de algum tempo o rapazlevou a mão ao bolso e lhe deumais uma moeda. – Obrigado.Boa noite, senhor.

Jens atravessou a rua até oCafé Engebret, sentou-se em umdos bancos do bar e pediu um

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aquavit com os olhos perdidos nonada.

– Está se sentindo mal, meurapaz? Parece-me um tantopálido. Mais uma dose? –perguntou-lhe Einar, que tocavapratos na orquestra, acomodando-se ao seu lado no bar.

Jens admirava Einar por suacapacidade singular de sair dofosso no meio da apresentação,contando os tempos, e atravessara rua até o Engebret. Lá tomavauma cerveja sem perder acontagem e voltava ao seu lugarna orquestra logo antes de ter quefazer soar seus pratos outra vez.A orquestra inteira vivia

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esperando o dia em que Einarperderia sua deixa, mas pelovisto, em dez anos, isso nuncatinha acontecido.

– Sim para as duas perguntas– disse Jens, inclinando o copoem direção aos lábios e tomandoo líquido todo de um gole só.

Após lhe servirem umsegundo aquavit, pensou seestaria mesmo sendo acometidopor alguma doença, pois a visãode Anna Landvik havia lhecausado uma estranhaperturbação. Resolveu que, pelomenos nessa noite, MadameHansson podia voltar para o seuapartamento sozinha.

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19

– Frøken Anna, tenho uma cartapara a senhorita.

Anna ergueu os olhos dobaralho que estava jogando eolhou para Rude, que lhe deu umsorriso atrevido antes de lhepassar discretamente um bilhetedobrado. Estavam no camarimdas crianças, rodeados pelocorre-corre dos preparativos paraa apresentação daquela noite.

Estava prestes a abrir a carta

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quando Rude lhe sibilou:– Aqui não. Disseram que a

senhorita deveria ler quandoestivesse sozinha.

– Quem lhe disse isso? –Anna não estava entendendo.

Rude fez uma caraapropriadamente misteriosa ebalançou a cabeça.

– Não cabe a mim dizer. Eusou só o mensageiro.

– Por que alguém meescreveria uma carta?

– Será preciso ler paradescobrir.

Anna franziu o cenho para omenino com a maior severidadede que foi capaz.

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– Diga-me – exigiu saber.– Não vou dizer.– Então não vou continuar a

jogar com você.– Não faz mal, tenho mesmo

que vestir meu figurino – disse omenino dando de ombros,levantando-se e saindo da mesa.

Parte de Anna quis rirdaquela encenação de Rude: eleera um macaquinho, sempre àespreita para levar algum recadoou dar uma ajudinha em troca deuma moeda ou de um chocolate.Na sua opinião, aquele menino,quando fosse mais velho, dariaum farsante dos bons, ou quemsabe um espião, pois era ele a

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origem de todas as fofocas doteatro. Ela logo se deu conta deque ele sabia exatamente quemhavia lhe enviado aquelamisteriosa missiva e decerto, ajulgar pelas digitais encardidasem torno do lacre partido, tinhalido o conteúdo. Guardou a cartano bolso da saia e decidiu ler emcasa, quando estivesse sozinha nacama. Então se levantou e foi sepreparar para o espetáculodaquela noite.

Teatro de Christiania15 de março de 1876

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Minha cara FrøkenLandvik,

Perdoe este recadoimpertinente e a maneirapela qual ele lhe foientregue, uma vez quenunca nos encontramospessoalmente. A verdade éque, desde a primeira vezem que a ouvi cantar nanoite do ensaio geral, fiqueienfeitiçado por sua voz. Edesde então a venhoescutando todas as noites,arrebatado. Quem sabepodemos nos encontrarmosna entrada dos artistas

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amanhã, antes de oespetáculo começar – àssete e quinze, digamos –para sermos formalmenteapresentados?

Imploro-lhe que venha.Com toda a

sinceridade,Um admirador

Ela releu a carta, em seguidaguardou-a na gaveta ao lado dacama. Pensou que devia ter sidoescrita por um homem, pois seriamuito esquisito uma mulherescrever algo assim. Ao apagar alamparina e se preparar para

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dormir, concluiu queprovavelmente seria algum senhorde idade parecido com HerrBayer... e suspirou diante dessaperspectiva nada empolgante.

– Vai encontrá-lo hoje ànoite? – indagou Rude, com umsemblante que era o retrato dainocência.

– Encontrar quem?– A senhorita sabe quem.– Não sei, não. Além do

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mais, como é que você sabe queeu fui convidada para encontraralguém, hein? – Anna saboreou aconsternação na expressão domenino ao perceber que havia seentregado sem querer. – Eu juroque nunca mais vou jogar uma sópartida de cartas com você, sejapor dinheiro ou por balas, se nãome disser o nome de quemescreveu aquela carta.

– Frøken Anna, eu nãoposso dizer. Me perdoe. – Rudebaixou a cabeça e a balançou. – Éa minha vida que está em jogo.Jurei ao remetente não dizer nada.

– Bem, se você não podedizer o nome dessa pessoa, talvez

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pelo menos possa responder aalgumas perguntas com “sim” ou“não”?

– Isso eu posso fazer –concordou ele.

– Foi um cavalheiro quemescreveu a carta?

– Sim.– E ele tem menos de 50

anos?– Sim.– Menos de 40?– Sim.– Menos de 30?– Frøken Anna, não tenho

como saber ao certo quantos anosele tem, mas acho que sim.

Bem, já era alguma coisa,

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pensou ela.– Ele é um frequentador

assíduo da plateia?– Não... bem, na realidade

sim, de certo modo. – Rude coçoua cabeça. – Pelo menos ele aouve cantar todas as noites.

– Quer dizer que ele fazparte da companhia?

– Sim, mas de um jeitodiferente.

– Rude, ele é músico?– Frøken Anna, estou me

sentindo acuado. – Ele deu umsuspiro exagerado deconsternação. – Não posso dizermais nada.

– Está bem. Eu entendo –

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disse Anna, satisfeita com o bem-sucedido interrogatório. Olhou derelance para um velho e nadaconfiável relógio pendurado naparede e perguntou a uma dasmães, que bordava quietinha emum canto, que horas eram.

– Acho que são quase sete,Frøken Landvik. Agorinha mesmoeu estava no corredor, e HerrJosephson já chegou. Ele ésempre muito pontual – arrematouela.

– Obrigada. – Anna tornou aolhar para o relógio na parede,aliviada que nessa noite estivessemais ou menos certo. Será quedeveria ir ao encontro? Afinal de

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contas, se o tal homem tinhamesmo menos de 30 anos, talvezquisesse encontrá-la por motivospouco apropriados, e não porqueadmirava sua voz.Involuntariamente, Annaenrubesceu. A simples ideia deque aquilo pudesse ser impróprio– e de que talvez se tratasse deum homem relativamente jovem –a deixava mais empolgada do quedeveria.

Conforme o relógio foicontando os segundos, ela nãoconseguiu se decidir. Às 19h13,resolveu ir. Às 19h14, mudou deideia...

E às 19h15 em ponto se viu

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descendo o corredor em direção àentrada dos artistas, masencontrou o lugar deserto.

Halbert, o porteiro, abriu ajanelinha de sua guarita eperguntou se ela estavaprecisando de alguma coisa. Annafez que não com a cabeça e sevirou para voltar ao camarim.Uma lufada de ar frio a atingiuquando a porta dos artistas seabriu atrás dela, e segundosdepois alguém pousou a mão comdelicadeza no seu ombro.

– Frøken Landvik?– Sim.– Perdão. Me atrasei.Ao se virar, Anna se pegou

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fitando os fundos olhos cor demel do dono daquela voz. Sentiuum frio no estômago, comoacontecia quando ela estavaprestes a cantar. EnquantoHalbert, sentado em sua guarita,olhava para eles como se fossemum par de idiotas, os dois ficaramapenas se encarando.

O rapaz diante de Annaparecia ter mais ou menos a suaidade e seu rosto era realmentebonito, encimado por umacabeleira castanha que seencaracolava acima da gola daroupa. Ele não era muito alto, masos ombros largos lhe davam umporte imponente e másculo. Anna

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sentiu de repente que todo o seuser – físico, mental e emocional –estava se esvaindo de dentro delapara dentro daquele outro serhumano desconhecido. Foi umasensação muito estranha, que a feztitubear de leve.

– Está se sentindo bem,Frøken Landvik? Parece até queviu um fantasma.

– Sim, estou perfeitamentebem, obrigada. Fiquei meio tonta,só isso.

O sinal tocou, dando aoelenco e à orquestra o costumeiroaviso de dez minutos antes de acortina se erguer.

– Por favor, não temos muito

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tempo – sussurrou ele entre osdentes ao ver Halbert, fascinado,espiá-los por cima dos óculos. –Vamos conversar reservadamentelá foram, onde pelo menos asenhorita poderá tomar um poucode ar.

Jens a envolveu com umbraço protetor, reparando emcomo a cabeça dela se encaixavacom perfeição no vão de seuombro, então abriu a porta dosartistas e a conduziu comdelicadeza até o lado de fora. Elaera tão minúscula, tão perfeita,tão feminina, que ele foi tomadona mesma hora por um instintoprotetor ao senti-la se apoiar nele

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por um curto instante, como sefosse a coisa mais natural domundo.

Parada ao lado dele nacalçada, com o braço ainda à suavolta, Anna inspirou algumasvezes o ar gelado da noite.

– Por que o senhor queriame ver? – indagou, ao mesmotempo que recuperava acompostura e percebia quanto eraimpróprio estar fisicamente tãopróxima de um homem. E de umdesconhecido, ainda por cima. Noentanto, para ser bem sincera, elenão parecia de forma alguma serum desconhecido...

– Para ser franco, não sei

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muito bem. No início foi a suavoz que me fascinou, mas depoispaguei Rude para que ele afizesse se demorar junto à entradados artistas e eu pudesse vê-lasem ser visto... Frøken Landvik,preciso ir andando, senão corro orisco de Herr Hennum mearrancar as tripas, mas quandoposso tornar a vê-la?

– Não sei.– Hoje à noite, depois do

espetáculo?– Não. Herr Bayer manda

uma carruagem ficar meesperando e vou embora do teatroassim que a peça termina.

– E durante o dia?

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– Não. – Ela levou uma dasmãos ao rosto e, apesar do frio danoite, sentiu as bochechas derepente muito quentes. – Nãoconsigo pensar. Além do mais...

– O quê?– Isso tudo é muito pouco

apropriado. Se Herr Bayersouber do nosso encontro, ele...

O sinal de cinco minutostocou.

– Encontre-me às seis horasaqui amanhã, eu lhe imploro –pediu Jens. – Diga a Herr Bayerque foi chamada mais cedo paraum ensaio.

– Eu, eu... vou ter que medespedir. – Anna virou-lhe as

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costas e começou a andarnovamente em direção à entradados artistas. Abriu a porta e fezque ia passar, mas quando a portaestava prestes a se fechar atrásdela ele viu seus dedospequeninos a segurarem pelaborda e tornarem a abri-la. –Posso pelo menos saber como osenhor se chama?

– Perdão. Meu nome é Jens.Jens Halvorsen.

Anna voltou para o camarimtomada por um transe e se sentoupara se recompor. Uma vezrecuperada, decidiu queprecisava descobrir tudo queconseguisse a respeito de Jens

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Halvorsen antes de secomprometer com novosencontros.

Nessa noite, durante a peça,perguntou a todos em quemconfiava – e mesmo àqueles emquem não confiava – o que cadaum sabia sobre o rapaz.

Até agora, havia descobertoque ele tocava violino e flauta naorquestra e que, para sua grandedecepção, tinha uma péssimareputação com as mulheres doteatro. Tanto que os integrantes daorquestra ao que parecia ohaviam apelidado de “Peer”, emuma referência à promiscuidadedo personagem. Uma das moças

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do coro confirmou que ele foravisto com Hilde Omvik e JoridSkrovset. E o pior de tudo:segundo os boatos, ele era oamante secreto de MadameHansson.

Quando Anna chegou à coxiapara cantar a “Canção do berço”,estava tão distraída que sedemorou mais do que de costumeem uma das notas, o que fezMadame Hansson fechar a bocadois tempos antes da hora. Não seatreveu a olhar para o fosso daorquestra lá embaixo, com medode dar com os olhos nele.

– Não vou pensar nele –disse a si mesma com

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determinação na hora de apagar alamparina a óleo da cabeceiranaquela noite. – Está claro queele é um homem horrível e semcoração – emendou, desejandoque as histórias sobre asperipécias do rapaz não ativessem deixado tão empolgada.– Além do mais, estou prometidaem casamento.

No dia seguinte, contudo,teve que reunir toda sua força devontade para não chamar acarruagem antes da hora e mentira Herr Bayer que tinha um ensaioextra. Quando chegou ao teatroem seu horário habitual, 18h45,viu que a calçada em frente à

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entrada dos artistas estava vazia.Repreendeu a si mesma comseveridade pela onda dedecepção que a tomou.

Ao entrar no camarim, foirecebida pela confusão habitualde mães ocupadas no canto comseus bordados e crianças queacorreram para ver se ela haviatrazido algum brinquedo novo.Somente uma das crianças semanteve à distância, e enquantoela abraçava as outras viu osolhos estranhamente tristonhos deRude por cima das cabeças dosoutros. Os primeiros a entrar nopalco foram chamados, e depoisde lhe lançar uma última olhadela

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de pesar, Rude deixou o camarime foi ocupar seu lugar no palcopara a abertura da peça. Nointervalo, encurralou-a.

– Meu amigo me disse que asenhorita faltou ao encontro hoje.Ele ficou muito triste. Mandou-lhe outra carta. – O menino lheestendeu um bilhete lacrado.

Anna o descartou com umaceno.

– Por favor, diga a ele quenão estou interessada.

– Por quê?– Não estou interessada e

pronto, Rude.– Mas, Frøken Anna, eu vi a

tristeza nos olhos dele hoje à

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noite quando a senhorita nãoapareceu – insistiu o garoto.

– Rude, você é um meninode grande talento, tanto como atorquanto para extrair moedas dosadultos. Mas existem coisas queainda não entende... – Anna abriua porta e saiu do camarim, masele foi atrás, obstinado.

– Como, por exemplo?– Coisas de adulto –

respondeu ela, impaciente,continuando a andar na direçãodas coxias. Não precisava cantarainda, mas queria fugir dointerrogatório incansável domenino.

– Mas eu sei sim sobre

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coisas de adulto, Frøken Anna.Entendo as fofocas que asenhorita deve ter escutado desdeque ficou sabendo quem era o seuadmirador.

– Então, se você sabe tudosobre ele, por que continuainsistindo que eu o encontre? –Ela deu meia-volta, obrigandoRude a estacar. – Ele tem umapéssima reputação! Além domais, eu já tenho alguém, e umdia... – Anna tornou a se virar erecomeçou a caminhar em direçãoàs coxias. – Um dia vou me casarcom ele.

– Nesse caso, fico muitofeliz pela senhorita, mas as

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intenções do cavalheiro emquestão em relação à sua pessoasão honradas, eu lhe juro.

– Ah, menino, me deixe empaz, pelo amor de Deus!

– Vou deixar, mas a senhoritadeveria se encontrar com ele,Frøken Anna. Negócios sãonegócios, sei que a senhoritaentende, mas o que acabei de lhedizer foi de graça. Tome, pelomenos fique com a carta dele.

Antes de ela conseguirprotestar mais, ele empurrou opedaço de papel para a mão deAnna e se afastou apressado pelocorredor. Ela ficou em pé atrás deum dos painéis do cenário, bem

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escondida, e se pôs a escutar aorquestra afinando seusinstrumentos para o segundo ato.Ao baixar os olhos para o fosso,viu Jens Halvorsen assumir seulugar e tirar a flauta do estojo.Enquanto ela espiava comcautela, ele olhou para cima, epor um breve instante seusolhares se cruzaram. A emoção naexpressão dele era de tamanhodesapontamento que ela ficouabalada. Tornou a se esconderdepressa atrás dos painéis evoltou para o camarim tomadapor um transe. No caminho,cruzou com Madame Hansson. Aconhecida nuvem de perfume

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francês invadiu o corredorquando a atriz passou, e esta malregistrou sua presença. Anna selembrou das fofocas que haviaescutado sobre o amante secretoda atriz e endureceu o coração.Jens Halvorsen não passava deum patife, um sedutor que semdúvida a levaria à ruína. Aoentrar no camarim, prometeujogar uma partida de cartas comas crianças no intervalo seguinte,pois sabia que precisava semanter ocupada.

Nessa noite, ao chegar noapartamento, foi direto para asala de estar vazia. Com grandeautocontrole, tirou a carta do

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bolso da saia e, sem abri-la,atirou-a nas chamas do fogareiro.

Nas duas semanas seguintes,Rude continuou a lhe trazer umanova carta de Jens Halvorsentodos os dias, mas Annaqueimava todas elas assim quechegava em casa. Nessa noite, suadeterminação estava ainda maisfortalecida depois que ela e todasas outras pessoas presentes nocorredor dos camarins tinham

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ouvido ecoar um grito bem alto,acompanhado pelo barulho devidro se quebrando. Todo oelenco sabia que os ruídosvinham do camarim de MadameHansson.

– O que foi isso? –perguntou Anna a Rude.

– Não posso lhe contar –respondeu ele com teimosia,cruzando os braços.

– É claro que pode, você meconta tudo. Eu posso pagar –sugeriu ela.

– Nem por dinheiro eu lhecontaria. Isso só lhe daria aimpressão errada.

– De quê?

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Rude balançou a cabeça e seafastou. Mais tarde, quando asfofocas começaram a circularlivremente durante o espetáculo,uma das meninas do coro lhedisse que Madame Hansson tinhadescoberto que Jens Halvorsenfora visto quinze dias antes comJorid, outra integrante do coro.Como Anna já tinha escutado essahistória, não foi nenhumasurpresa, mas pelo visto MadameHansson era a única pessoa noteatro que ainda não sabia.

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Ao chegar para a primeiraapresentação da semana seguinte,Anna avistou um enorme buquê derosas vermelhas sobre a bancadada guarita junto à entrada dosartistas. Quando estava passandopelas flores a caminho docamarim, ouviu o porteiroHalbert chamar seu nome.

– Frøken Landvik?– Pois não?– Estas flores são para a

senhorita.– Para mim?– Sim, para a senhorita.

Leve-as, por favor, pois estão

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atravancando minha bancada.Corando até ficar da cor das

rosas, Anna se virou e andou atéo homem.

– Bem, Frøken Landvik,pelo visto a senhorita tem umadmirador. Quem poderia ser? –Com um ar de reprovação,Halbert arqueou uma dassobrancelhas enquanto Annarecolhia o imenso buquê, semconseguir encará-lo.

– Ora! – falou para si mesmaao percorrer o corredor e seencaminhar direto para as latrinasgeladas e malcheirosas usadaspelas mulheres do elenco. – Queatrevimento! Principalmente com

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Madame Hansson e JoridSkrovset aqui no teatro também.Ele está brincando comigo –murmurou com raiva antes debater à porta e se trancar ládentro. – Agora que MadameHansson descobriu como ele secomportou, ele acha que vaipoder virar a cabeça dacamponesa ingênua com umaspoucas flores.

Então leu o pequeno cartãopreso ao buquê.

Eu não sou como a senhoritaimagina. Imploro-lhe que me dê

uma chance.

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– Ah! – Anna picou o cartãoem pedacinhos diminutos e osjogou na latrina. As floresprovocariam um sem-fim deperguntas no camarim, e elaqueria se livrar de qualquerindício da sua procedência.

– Minha nossa, Anna! –exclamou uma das mães quandoela entrou no camarim. – Quelindas, não?

– De quem são? – indagououtra.

O recinto inteiro se calou àespera da sua resposta.

– Ora... – Anna fez umapausa e engoliu em seco. – DeLars, claro. Meu namorado lá de

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Heddal.Um coro de exclamações

ecoou pelo camarim.– Hoje é um dia especial?

Deve ser, para gastar tantodinheiro com essas flores –comentou uma terceira mãe.

– Hoje... hoje é meuaniversário – mentiu Anna, emdesespero.

A frase foi recebida por umcoro de “Seu aniversário?” e“Por que você não falou nada?”

Anna passou o resto da noitefingindo aceitar os parabéns,sendo abraçada e recebendopresentes improvisados de todomundo como prova de carinho, ao

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mesmo tempo que ignorava osorrisinho malicioso de Rude.

– Como você sabe, Anna, atemporada de Peer Gynt estáprestes a acabar. Em junho,organizarei um recital de verãoaqui no apartamento, ao qualconvidarei todas as pessoasimportantes de Christiania paravirem ouvir você cantar.Finalmente vamos pôr mãos àobra e começar a promover sua

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carreira. E o melhor de tudo é quea “voz fantasma” enfim vai poderse revelar!

– Entendo. Obrigada, HerrBayer.

– Anna. – Ele ficou emsilêncio por alguns instantesenquanto observava suaexpressão. – Você parecehesitante.

– Estou cansada, só isso.Mas fico muito grata pela suaatenção.

– Entendo que os últimosmeses tenham sido um poucodifíceis para você, Anna, masfique tranquila: muitosconhecidos meus do meio musical

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sabem, em sigilo, a quem de fatopertence a linda voz de Solveig.Agora vá descansar, você estámesmo bem pálida.

– Sim, Herr Bayer.Ao observar a moça sair da

sala, Franz Bayer entendeu suafrustração, mas o que mais elepoderia ter feito? O anonimato deAnna era parte do trato comLudvig Josephson e JohanHennum, mas agora estava quaseno fim e já servira a seupropósito. O fascínio porconhecer a dona da misteriosavoz que havia cantado Solveig demodo tão estupendo bastaria paratrazer ao recital todos os

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membros influentes dacomunidade musical deChristiania. Ele tinha grandesplanos para a jovem AnnaLandvik.

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20

Ao acordar em casa, umasemana depois de encerrada atemporada de Peer Gynt, Jensestava especialmentedesanimado. Embora Hennumhouvesse lhe prometido uma vagapermanente na orquestra para ascompanhias de ópera e balévisitantes que precisassem demúsicos, não haveria trabalhodurante um mês, até o início danova temporada. Para piorar, uma

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vez que assistira no máximo ameia dúzia de aulas desde oinício da peça, Jens estavatotalmente despreparado para asprovas finais da universidade.Não tinha dúvida de que seriareprovado.

Na semana anterior, antes dapenúltima apresentação, haviatomado coragem para mostrar aHerr Hennum as músicas quepassara horas compondo quandodeveria estar estudando. Depoisde ele as tocar, o maestro ashavia tachado de “derivativas”,mas boas para um principiante.

– Meu rapaz, permita-mefazer uma sugestão: vá estudar em

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uma escola de música. O senhortem talento para a composição,mas precisa aprender a “ouvir”como a música que compôs serátocada por cada instrumento. Porexemplo, esta peça aqui... –Hennum apontou para a partitura.– Ela abre com a orquestrainteira? Ou quem sabe... – Eletocou no piano os quatroprimeiros compassos, que mesmoaos ouvidos parciais de Jenssoaram como uma homenagem ao“Amanhecer” de Herr Grieg. –Talvez com uma flauta? – HerrHennum lhe deu um sorriso deironia, e Jens teve a elegância deenrubescer.

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– Entendo, maestro.– E depois, quando

chegamos ao segundo trecho, eleseria tocado por violinos? Ouquem sabe por um violoncelo ouuma viola? – Hennum lhedevolveu as partituras e deualguns tapinhas no ombro. – Meuconselho, se quiser mesmo seguiros passos de Herr Grieg e deseus eminentes amigoscompositores, é que o senhoraprenda a fazer a coisa direito,tanto na sua cabeça quanto nopapel.

– Mas não posso fazer issoaqui, pois não há ninguém emChristiania para me ensinar –

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disse o rapaz.– Não, de fato. Assim sendo,

terá que sair do país, comofizeram todos os nossos grandesmúsicos escandinavos. Talvezpossa ir para Leipzig, como HerrGrieg.

Jens foi emboraamaldiçoando a própriaingenuidade e sabendo que, casoseu pai cumprisse a ameaça denão lhe dar mais um tostão se eledecidisse seguir carreira namúsica, não teria como financiaros estudos em uma escola demúsica. Também começara aperceber que seu talento naturalpara a música o havia conduzido

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até ali, mas agora já não bastava.Se ele quisesse virar compositor,precisaria aprender as técnicascertas. E precisaria trabalhar.

Ao passar pela entrada dosartistas, repreendeu a si mesmopela generosa mesada que haviaesbanjado ao longo dos trêsúltimos anos. Se não tivessegastado tudo com mulheres ebebida, teria economias para ofuturo. Agora, pensou, infeliz,quase com certeza já era tardedemais. Ele tinha arruinado suaschances e não podia culparninguém, a não ser ele mesmo.

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Apesar da determinação denão voltar aos antigos hábitosquando Peer Gynt chegasse aofim, Jens estava com uma dor decabeça lancinante. Na noiteanterior, tomado pelo desespero,tinha ido afogar as mágoas noCafé Engebret com qualquermúsico conhecido seu queporventura estivesse lá.

O silêncio na casa lheinformou que a manhã estavaavançada e que seu pai já saírapara a cervejaria, enquanto sua

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mãe sem dúvida tinha ido tomarum café com alguma amiga. Jenstocou a sineta para chamar Dora;precisava de um café comurgência. Ficou esperando aempregada chegar, o que ocorreudepois de um longo intervalo.Quando ela bateu, mandou-aentrar, e Dora entrou emburrada epousou a bandeja sobre sua camacom um ruído desnecessário.

– Que horas são? –perguntou Jens.

– Onze e meia, senhor. Algomais?

Ele a encarou; sabia que elaestava emburrada por ele não terlhe dado muita atenção nos

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últimos tempos. Refletindo sedeveria fazer o esforço detranquilizá-la só para facilitar suavida em casa, tomou um gole decafé, pensou em Anna e decidiuque não podia fazer isso.

– Não, Dora. Obrigado.Esquivando o olhar do rosto

infeliz da moça, pegou o jornal nabandeja e fingiu ler até que elasaísse do quarto. Quando Dora seretirou, pousou o jornal e deu umprofundo suspiro. Sentia muitavergonha por ter se embriagadona noite anterior, mas estava tãodeprimido e sem rumo quequisera simplesmente esquecer. EAnna Landvik tampouco havia

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melhorado seu humor.– Qual é o problema com

você? – perguntara-lhe Simen navéspera. – Problemas commulheres, na certa.

– É a moça que cantavaSolveig. Não consigo parar depensar nela. Simen, eu acho queestou apaixonado pela primeiravez. Sério.

Ao ouvir tal coisa, Simenjogou a cabeça para trás e riu.

– Jens, será que você nãoconsegue ver a verdade?

– Não! Qual é a graça?– Ela é a única moça que lhe

disse não! É por isso que vocêacha que está “apaixonado” por

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ela! Sim, talvez esteja fascinadopor seu idílico e purocomportamento de camponesa,mas será que não consegue verque, na realidade, ela seriatotalmente inadequada para umrapaz culto da cidade como você?

– Não, você está enganado!Não faria diferença se ela fossearistocrata ou camponesa, eu aamaria do mesmo jeito. A vozdela é... o som mais lindo que eujá escutei na vida. E ela tambémtem o rosto de um anjo.

Simen baixou os olhos parao copo vazio do amigo.

– Isso é o aquavit que estádizendo. Confie em mim, amigo,

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você está só sofrendo por causada sua primeira experiência derejeição, não por amor.

Enquanto bebericava o cafémorno, Jens pensou se Simenteria razão. Mas a lembrança dorosto de Anna e de sua vozcelestial ainda assombrava seussonhos. E agora, com todos osoutros desafios que estavaobrigado a enfrentar, por Deus,melhor seria jamais ter posto osolhos em Anna Landvik. Quantomais a ouvido cantar...

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– O recital será no dia 15 dejunho, aniversário de Herr Grieg– informou Herr Bayer a Annaquando os dois se encontraram nasala de estar alguns dias maistarde, depois da últimaapresentação de Peer Gynt. – Voumandar a ele um convite para quevenha conhecer sua primeira“Solveig”, mas acho que ele estáno exterior. Organizaremos umprograma que inclua algumas dascanções folclóricas que elecompôs, além, é claro, das dePeer Gynt. Haverá também a“Ária de Violetta”, da Traviata, e

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depois um hino, quem sabe “Leid,Milde Ljos”. Assim todospoderão ouvir a sua maravilhosaextensão vocal.

– Ainda vou poder ir aHeddal para o casamento do meuirmão? – indagou Anna, pensandoque corria o risco de sufocar senão respirasse um pouco de arpuro do campo em breve.

– É claro, minha cara.Poderá partir para Heddal logoapós o recital e passar todo overão lá. Mas amanhã vamoscomeçar a trabalhar duro. Temosum mês para tornar você e suavoz perfeitas.

Para prepará-la para essa

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tarefa, Herr Bayer havia reunidoum grupo de professores queconsiderava adequado paraproporcionar uma orientaçãoexperiente para as canções queela iria cantar. Günther voltoupara se concentrar nas áriasoperísticas, um chefe do coral dacatedral apareceu com suas unhasroídas e seu crânio brilhante equase calvo para dividir com elasua experiência com hinos e opróprio Herr Bayer passava umahora por dia aperfeiçoando suatécnica vocal. Uma costureiraveio tirar medidas para lheconfeccionar um guarda-roupainteiro de lindos trajes dignos de

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uma jovem estrela em ascensão. Eo melhor de tudo: para deleite deAnna, Herr Bayer começou a tirá-la do apartamento para iremassistir a concertos e recitais.

Em uma dessas noites, antesde uma visita ao Teatro deChristiania para a noite de estreiade O barbeiro de Sevilha, deRossini, encenada por umacompanhia de ópera italiana emvisita à cidade, Anna entrou nasala de estar trajando um de seusbelíssimos vestidos de noitenovos, feito de seda azul-escura.

– Minha cara jovem, vocêhoje está definitivamente radiosa– comentou Herr Bayer,

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levantando-se e batendo palma aovê-la entrar. – Essa cor lhe caimuito bem. Agora permita-merealçar ainda mais sua aparência.

Ele lhe estendeu um escríniode couro dentro do qual havia umcolar de safira e dois brincos depingente do mesmo feitio. Aspedras reluzentes e multifacetadasestavam cravejadas em umafiligrana de ouro intrincada, obrade um ourives experiente. Annaficou olhando para as joias quasesem saber o que dizer.

– Herr Bayer...– Eram da minha esposa. Eu

gostaria que as usasse hoje ànoite. Posso ajudá-la a colocar o

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colar?Anna não teve como recusar:

ele já estava tirando o colar doescrínio. Pôde sentir o contatodos dedos de Herr Bayer nopescoço quando ele prendeu apeça.

– Caíram bem em você –declarou ele, satisfeito, chegandotão perto que ela sentiu seu hálitorançoso. – Agora vamos fazernossa aparição no teatro deChristiania.

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Ao longo do mês seguinte,Anna deu o melhor de si para seconcentrar nos estudos de músicae apreciar o tempo que passavaem Christiania. Escrevia paraLars regularmente e à noite faziasuas preces com fervor. Apesardisso, os pensamentos sobre JensHalvorsen, o Canalha – assim elao havia batizado, na esperança deensinar uma lição ao própriocoração traiçoeiro – continuavama pipocar em sua mente com apontualidade de um relógio. Seumaior desejo era poder conversarcom algum amigo sobre o que aatormentava. Devia haver algum

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remédio para impedir aquilo, nãoé?

– Querido Deus – falou comum suspiro certa noite, ao selevantar depois da oração. –Acho que estou muito, muitoadoentada.

À medida que o dia 15 dejunho se aproximava, pôde verque Herr Bayer estava tomadopor uma grande animação.

– Minha cara, contratei umviolinista e um violoncelista paraacompanhá-la – anunciou ele nodia do recital. – Eu estarei aopiano, claro. Os dois virãoensaiar conosco hoje de manhã. Eà tarde você vai descansar de

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modo a se preparar para suagrande noite.

Às onze da manhã, acampainha tocou, e Anna, queaguardava na sala de estar, ouviuFrøken Olsdatter abrir a porta ecumprimentar os músicos.Levantou-se quando eles entraramna sala acompanhados por HerrBayer.

– Permita-me lhe apresentarHerr Isaksen, violoncelista, eHerr Halvorsen, violinista –anunciou ele. – Ambos forammuito bem recomendados por meuamigo Herr Hennum.

Quando Jens Halvorsen, oCanalha, atravessou a sala para

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cumprimentá-la, Anna sentiu umanova onda de vertigem.

– Frøken Landvik, é umaverdadeira honra participar doseu recital hoje.

– Obrigada – conseguiuarticular Anna.

Pôde ver a diversão brilharnos olhos dele. Com o coraçãoainda a bater apressado dentro dopeito, ela, por sua vez, não estavaachando a menor graça nasituação.

– Vamos começar por Verdientão – sugeriu Herr Bayer. Osdois músicos se posicionaramjunto a ele no piano. – Anna, estáprestando atenção?

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– Sim, Herr Bayer.– Então comecemos.Anna soube que não estava

dando o melhor de si durante oensaio, e pôde sentir a irritaçãode Herr Bayer quando esqueceutudo o que havia aprendido echegou a ficar ofegante depoisdas notas em vibrato. Tudo culpade Jens Halvorsen, o Canalha,pensou, enfurecida.

– Por ora isso vai ter quebastar, cavalheiros. Vamos torcerpara estarmos todos mais emharmonia hoje à noite. Cheguempontualmente às seis e meia parao início do recital, às sete.

Jens e o colega menearam a

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cabeça com educação, em seguidafizeram uma breve mesura paraAnna. Quando estava de saída,Jens relanceou os olhos cor demel na sua direção para umúltimo e significativo olhar.

– Anna, o que houve comvocê? – quis saber Herr Bayer. –Com certeza não pode ser oacompanhamento que a estáatrapalhando. Você se acostumoua cantar com uma orquestracompleta durante a temporada dePeer Gynt.

– Perdão, Herr Bayer. Estoucom uma leve dor de cabeça.

– E acho que está tendotambém um acesso de nervosismo

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dos mais compreensíveis, minhacara jovem. – O semblante delese suavizou, e ele lhe deu unstapinhas no ombro. – Faça umarefeição leve na hora do almoço edepois descanse. Antes daapresentação de hoje, tomaremosuma pequena taça de vinho juntospara acalmar os nervos. Nãotenho dúvidas de que esta noiteserá um imenso sucesso e que apartir de amanhã você será aartista mais celebrada deChristiania.

Às cinco horas daquelatarde, Frøken Olsdatter apareceuno quarto de Anna com um copode água e o onipresente mel.

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– Enchi a banheira para vocêtomar um banho, querida.Enquanto isso, vou separar suasroupas para esta noite. HerrBayer gostaria que usasse ovestido azul-escuro e as safirasda esposa dele. Também sugeriuque você prendesse os cabelos.Quando voltar do banho eu aajudo a se vestir.

– Obrigada.Deitada na banheira, com o

rosto coberto por uma flanela,Anna tentou acalmar o coração,ainda disparado desde que elapousara os olhos em JensHalvorsen mais cedo. A simplesvisão do rapaz havia causado uma

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reação física extrema nos seusjoelhos, na sua garganta e no seucoração.

– Meu Deus, por favor, medê força e coragem hoje à noite –rezou enquanto se secava. – E meperdoe por desejar que ele tenhaum ataque do estômago mais oumenos agora e passe tão mal quenão possa vir tocar.

Após ser vestida e penteadapor Frøken Olsdatter, Annadesceu o corredor até a sala.Trinta cadeiras douradasestofadas com veludo vermelhohaviam sido dispostas em fileirassemicirculares viradas para opiano, em frente à janela curva do

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cômodo. Jens Halvorsen e ovioloncelista já conversavam comHerr Bayer, cujo rosto seiluminou ao ver a pupila.

– Minha cara jovem, vocêestá perfeita – disse ele em tomde aprovação, entregando-lheuma taça de vinho. – Agorabrindemos todos a esta noite antesde o burburinho começar.

Anna tomou um gole dabebida e sentiu os olhos de Jenspousarem por um breve instanteem seu decote; não soube se eleestava olhando as reluzentessafiras ou o pedaço de pelebranca nua abaixo delas, massentiu-se enrubescer.

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– A você, Anna – brindouHerr Bayer.

– Sim, a Frøken Landvik –emendou Jens, erguendo a taça emdireção à dela.

– Agora vá se sentar nacozinha com Frøken Olsdatter atéeu ir buscá-la.

– Sim, Herr Bayer.– Boa sorte, meu amor –

sussurrou Jens entre os dentesquando Anna passou por ele emdireção à porta para sair da sala.

Talvez tenha sido o vinho ouentão a empatia com a qual JensHalvorsen, o Canalha, aacompanhou no violino nessanoite, mas, quando a última nota

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ecoou no silêncio da sala, atémesmo Anna soube que tinhadado o melhor de si.

Após uma rodada deaplausos entusiasmados, osconvidados, entre eles JohanHennum, rodearam-na para lhedar os parabéns e sugerirapresentações públicas no Salãodos Franco-Maçons e nos SalõesComunitários. Em pé ao seu lado,Herr Bayer, radiante, olhava paraela com um ar de proprietário,enquanto Jens se mantinha umpouco distante. Quando oprofessor enfim se afastou, orapaz aproveitou a chance parafalar com ela.

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– Frøken Landvik, permita-me parabenizá-la também pelaapresentação de hoje.

– Obrigada, Herr Halvorsen.– E por favor, Anna, eu lhe

imploro – acrescentou ele, emvoz mais baixa. – Desde a últimavez que a vi, sou um homematormentado. Não consigo pararde pensar em você, de sonharcom você... não está vendo que odestino conspirou para nos uniroutra vez?

Ouvir seu nome de batismopronunciado por ele foi algo tãoíntimo que Anna cravou os olhosno vazio acima de seu ombro,sabendo que, se o encarasse,

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estaria perdida. Pois as suaspalavras eram um reflexo exatodo que ela própria sentia.

– Por favor, podemos nosencontrar? Em qualquer lugar, aqualquer hora... Eu...

Anna conseguiu sussurrar.– Herr Halvorsen, vou

voltar muito em breve a Heddalpara o casamento do meu irmão.

– Então permita que eu aveja quando retornar aChristiania. Anna, eu... – Nesseinstante, ao ver Herr Bayer seaproximar, Jens lhe fez umamesura formal. – Esta noite foium prazer, Frøken Landvik. – Eleergueu os olhos para os dela, e

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Anna viu ali uma breve centelhade desespero.

– Ela foi maravilhosa, não?– disse Herr Bayer, dando umtapinha no ombro do rapaz. – Assubidas suaves até as regiõesmédia e alta, o magníficovibrato... Foi a melhorapresentação dela que já ouvi!

– Frøken Landvik hojecantou lindamente, de fato. Agorapreciso ir andando. – Jens olhoupara Herr Bayer com um ar deexpectativa.

– Claro, claro. Com licença,minha cara Anna. Preciso acertaras contas com nosso jovemtocador de rabeca.

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Uma hora mais tarde, quandoenfim se recolheu ao quarto, Annaestava tonta e um pouco fraca.Não sabia se era por causa daeuforia da apresentação ou dasegunda taça de vinho quecometera a insensatez de aceitar,mas quando Frøken Olsdatter aajudou a se despir, Annaentendeu, bem lá no fundo, queera tudo por causa de JensHalvorsen. Embriagava-a pensarque ele continuava apaixonadopor ela. Assim como, admitiu,relutante, ela estava por ele...

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Stalsberg VåningshusetTindevegen

Heddal

30 de junho de 1876

Kjære Anna,Escrevo para lhe dar

uma notícia triste. Meu paifaleceu na terça-feirapassada. Felizmente, foiuma morte tranquila. E

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talvez tenha sido melhorassim, pois, como vocêsabe, ele vinha sofrendomuito com as dores. Ofuneral já terá acontecidoquando você receber estacarta, mas senti queprecisava lhe contar.

Seu pai me pediu paralhe dizer que a safra decevada parece promissora,e que seus piores temores semostraram infundados.Anna, quando você vierpara o casamento do seuirmão, teremos muito o queconversar sobre o futuro.Apesar da notícia triste,

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estou feliz porque em breveirei vê-la.

Até lá,Kjærlig hilsen,Lars

Depois de ler a carta, Annase recostou nos travesseiros coma sensação de que era uma pessoatão ruim quanto Jens Halvorsen, oCanalha. Desde que tornara a vê-lo no recital, praticamente nãotinha pensado em mais nada porum segundo que fosse. Nemquando Herr Bayer lhe contaraanimado sobre os outros recitaisque havia marcado para ela, Anna

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conseguiu se forçar a exibir aanimação esperada.

Na noite anterior, ele tinharequisitado sua presença na salade estar às onze da manhã.Devidamente vestida, ela desceuo corredor desconsolada. Aoentrar na sala, viu que seu mentorjá estava tomado por grandeanimação.

– Anna! Entre para ouviresta maravilhosa notícia. Hoje demanhã estive com Johan Hennume Ludvig Josephson. Talvez vocêlembre que Herr Hennum assistiuao seu recital, e ele me disse que,devido ao sucesso de Peer Gynt,eles querem incluir a peça na

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temporada de outono. Sugeriramque você repita o papel deSolveig.

Anna o encarou com ummisto de surpresa e consternação.

– O senhor quer dizer ficarna coxia de novo, cantando asmúsicas enquanto MadameHansson finge que a minha voz édela?

– Anna, por favor! Você achamesmo que eu seria capaz desugerir tal coisa? Não, minha carajovem, eles querem que vocêinterprete o papel completo.Madame Hansson não estádisponível no momento, e já quevocê acaba de ser revelada à

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comunidade musical deChristiania como a talentosa donada voz fantasma, eles queremmuito que interprete o papel. Paramelhorar ainda mais a situação,Herr Grieg anunciou quefinalmente virá a Christianiaassistir ao espetáculo. TantoJohan quanto Ludvig acham quesua interpretação das canções nãotem como melhorar. Assim sendo,querem que você faça um teste naterça-feira que vem paradecidirem se tem talentosuficiente como atriz. Você selembra de alguma das falas deSolveig na peça?

– Sim, Herr Bayer. Em

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muitas ocasiões eu as articuleisem emitir som nenhum junto comMadame Hansson – respondeuAnna.

Sentiu um leve formigamentode animação lhe subir pelaespinha. Será mesmo que elesiriam querê-la como estrela dapeça? E será que Jens HalvorsenAgora Não Tão Canalha Assimiria tocar na orquestra...?

– Excelente! Então hojevamos esquecer suas escalas e aária nova que eu havia planejadolhe ensinar, e eu lerei todos osoutros personagens de Peer Gyntenquanto você passa as falas deSolveig. – Ele pegou uma cópia

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da peça em cima da mesa e abriu.– Por favor, sente-se, se quiser.Como você sabe, a peça é longa,mas vamos fazer o melhor quepudermos. Está pronta? –indagou.

– Estou, sim, Herr Bayer –respondeu Anna, tentando selembrar o máximo possível dasfalas.

– Muito bem, muito bem! –disse Herr Bayer uma hora

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depois, olhando para ela com umar de admiração. – Parece-me quetemos aqui não só uma voz, mastambém um talento pararepresentar um personagem. – Elesegurou sua mão e a beijou. –Minha cara jovem, devo dizer quevocê não para de meimpressionar.

– Obrigada.– Anna, não tenha medo da

audição. Atue exatamente comofez hoje, e o papel será seu.Agora vamos almoçar.

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Na quinta-feira à tarde, àsduas em ponto, Anna encontrouHerr Josephson no palco doteatro, e os dois se sentaramjuntos para ler a peça. Nasprimeiras falas, ela detectou umleve tremor na própria voz, mas,à medida que foi lendo, ganhouconfiança. Leu de cabo a rabotanto a cena da primeira vez emque Solveig conhece Peer, em umcasamento, quanto a última,quando ele retorna depois deviajar pelo mundo e ela o perdoa.

– Excelente, FrøkenLandvik! – aprovou Herr

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Josephson quando ela lhe ergueuos olhos. – Realmente não sintoque preciso ouvir mais nada.Devo admitir que, quando HerrHennum me sugeriu essa ideia,não fui a favor, mas a senhorita sesaiu muitíssimo bem para umaprimeira leitura. Precisaremostrabalhar para melhorar aprojeção e a expressividade dasua voz, mas acho que já possoconcordar que a senhorita assumao papel de Solveig na próximatemporada.

– Anna! Que notíciamaravilhosa, não? – exclamouHerr Bayer, subindo ao palco; elehavia assistido e escutado

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atentamente a tudo da plateia.– Os ensaios começam em

agosto para a estreia emsetembro. A senhorita não templanos de ir para o campo nessaépoca, tem? – perguntou HerrJosephson a Anna.

– Fique descansado, Annaestará aqui – respondeu HerrBayer por ela. – Agora chegamosà questão do dinheiro. Temos quecombinar o cachê de FrøkenLandvik para representar umpapel tão proeminente.

Dez minutos mais tarde, osdois já estavam de novo a bordoda carruagem, e Herr Bayersugeriu que fossem ao Grand

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Hotel tomar o chá das cinco ecomemorar mais aquele triunfo deAnna.

– Além de todas as outrasvantagens, há também grandeschances de Herr Grieg aparecerno outono para vê-la atuar. Pensesó numa coisa dessas, minha carajovem! Se ele gostar de você,talvez haja chance de viajar parao exterior e se apresentar emoutros teatros ou salas deconcerto...

Anna deixou o pensamentovagar, e imaginou Jens Halvorsenno fosso da orquestra, com osolhos erguidos na sua direção,enquanto ela pronunciava as

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palavras de amor de Solveig.

– Vou então escrever para osseus pais contando a maravilhosanotícia, e pedindo a permissãodeles para Christiania e eupodermos gozar o prazer da suacompanhia por mais alguns mesesenquanto estiver atuando em PeerGynt. Você irá para casa em julhoassistir ao casamento do seuirmão e voltará para cá em agosto– disse Herr Bayer nessa noite

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durante o jantar. – Também meausentarei de Christiania, comocostumo fazer, e ficarei na casade veraneio da minha família emDrøbak com minha irmã e minhapobre mãe adoentada.

– Quer dizer que não tereitempo de ir às montanhas? – Annadetectou o tom petulante na voz,mas queria ver com os própriosolhos se Rosa ainda estava viva.

– Anna, haverá muitos outrosverões para cantar para as vacasna sua região natal, mas nuncamais haverá um verão depreparativos para interpretar aprotagonista em uma montagem dePeer Gynt no Teatro de

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Christiania. Eu também voltareiquando você começar os ensaios,claro.

– Tenho certeza de queFrøken Olsdatter pode cuidar demim se o senhor não conseguirvoltar. Não gostaria de lhe imporminhas necessidades – disseAnna com educação.

– Nem pense numa coisadessas, minha cara jovem. Nosúltimos tempos, pelo visto, assuas necessidades são as minhas.

Nessa noite, foi com alívioque Anna se recolheu ao quarto.Sabia que a efervescência naturalde Herr Bayer era uma qualidadepositiva e encantadora, mas

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conviver com ela dia após diadava um certo cansaço. Pelomenos Lars era calado, pensou,ao se ajoelhar para fazer suasorações, ciente de que em breve overia e forçando-se a recordarseus pontos fortes. Mas nemmesmo quando estava falandocom Jesus sobre Lars conseguiaparar de pensar em JensHalvorsen.

– Meu Deus, por favorperdoe este meu coração, poisacredito que me apaixonei pelohomem errado. Ajude-me a amarquem devo. E também... –acrescentou ela antes de selevantar, tentando pensar em algo

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que não fosse egoísta. – Será queRosa poderia ficar viva por maisum verão?

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21

Na semana seguinte, ao mesmotempo que Anna partia comdestino a Heddal, Jens carregavauma trouxa contendo seus bensmais preciosos para o centro deChristiania. Sentia-se vazio,exaurido pelo pesadelo dasúltimas horas.

Naquela manhã, durante ocafé na sala de jantar, mantivera apostura o mais ereta e orgulhosapossível, sem tocar nos pães e

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geleias dispostos à sua frente.Após inspirar fundo, disse em vozalta o que precisava.

– Far, eu dei o melhor demim para corresponder às suasexpectativas, mas meu futuro defato não está no ramo dafabricação de cerveja. Desejo metornar músico em tempo integrale, um dia, espero virarcompositor. Sinto muito, mas nãoposso mudar quem sou.

Jonas continuou a salgar osovos e comeu um bocado antes deresponder.

– Que assim, seja, então.Você tomou sua decisão. Comolhe disse na primeira vez em que

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falamos sobre isso, não lhe dareimais dinheiro nem lhe deixareinada no meu testamento. A partirdeste momento, você não é maismeu filho. Simplesmente nãosuporto ver o que está jogandofora e como está me traindo.Conforme o combinado, portanto,espero que hoje à noite, quandoeu voltar do escritório, você játenha saído de casa.

Embora Jens já estivesse sepreparando para a reação do pai,ainda assim teve um choque.Encarou o semblante horrorizadoda mãe, sentada do outro lado damesa.

– Mas Jonas, Kjære, faltam

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poucos dias para o aniversário de21 anos do seu filho, e como vocêsabe nós organizamos um jantarpara ele. Com certeza pode lhedar um desconto de alguns diaspara comemorar com os pais eamigos?

– Tendo em vista ascircunstâncias, não imagino quenenhum de nós vá conseguircomemorar. E, se você acha que otempo vai abrandar minhadeterminação, está redondamenteenganada. – Jonas dobrou o jornalduas vezes, como sempre fazia. –Agora tenho que sair para acervejaria. Tenham vocês dois umbom dia.

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A pior parte da coisa todafora ver a mãe cair em prantos nomesmo instante em que a porta dafrente se fechou atrás do pai. Jensa reconfortou da melhor maneiraque pôde.

– Eu decepcionei Far.Talvez devesse mudar de ideiae...

– Não, não... Você precisaseguir sua paixão. Meu maiordesejo era ter feito isso quandotinha a sua idade. Me perdoe,Kjære Jens, mas talvez euestivesse acalentando um sonhotolo. Sempre acreditei que,quando chegasse a hora, seu paimudaria de ideia.

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– Bem, eu não pensavaassim, de modo que estavapreparado. Então agora precisoacatar o desejo dele e sair decasa. Com licença, Mor, tenhoque arrumar minhas coisas.

– Talvez eu tenha errado aoincentivar você. – Margaretetorceu as mãos. – Ao contrariaros planos dele para sua vidaquando deveria ter aceitado queele iria vencer.

– Mas, Mor, ele não venceu.Estou agindo por livre eespontânea vontade. E tudo queposso lhe dizer é o quão grato lhesou por ter me dado o presente damúsica. Sem ela, meu futuro seria

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ainda mais infeliz.Uma hora depois, Jens

desceu até o hall de entrada dotérreo em posse de duas malasabarrotadas com todos ospertences que conseguiatransportar.

Sua mãe o encarou da portada sala de estar com o rostoinchado de lágrimas.

– Ah, meu filho – disse ela,pondo-se a chorar no seu ombro.– Quem sabe com o tempo seu paise arrependa do que fez hoje epermita que você volte para casa?

– Acho que nós doissabemos que ele não fará isso.

– Para onde você vai?

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– Tenho amigos na orquestrae tenho certeza de que algumdeles me dará um teto temporário.Estou mais preocupado com você,Mor. Sinto que não deveriadeixá-la sozinha com ele.

– Não se preocupe comigo,Kjære. Prometa-me apenas quevai escrever me dizendo ondeestá.

– Claro – assegurou-lhe ele.A mãe então pôs um pequeno

embrulho em suas mãos.– Eu vendi o colar e os

brincos de diamante que seu paime deu quando fiz 40 anos, sópara o caso de ele cumprir o queameaçou. O dinheiro está aí

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dentro. Também pus a aliança deouro da minha mãe, que vocêpoderá vender caso precise.

– Mor...– Shh. As joias eram minhas,

e se ele perguntar onde foramparar eu direi a verdade. Odinheiro é suficiente para pagarum ano de estudos e dehospedagem em Leipzig. Jens,jure-me que não vai desperdiçaresse dinheiro como fez tantasvezes no passado.

– Mor. – O rapaz se pegouengasgado de emoção. – Juro quenão vou fazer isso. – Então, antesde desmoronar por completo,tomou a mãe nos braços e lhe deu

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um carinhoso beijo de despedida.– Espero um dia me sentar

no Teatro de Christiania e vervocê regendo a música quecompôs – disse ela, com umsorriso triste.

– Prometo que assim será,Mor, e farei o que for precisopara cumprir essa promessa.

Ele então saiu de casa pelaúltima vez, atordoado, mastambém animado com a decisãotomada; percebeu que, apesar deter tranquilizado a mãe, naverdade não havia planejado paraonde iria se o pior de fatoacontecesse. Bem, o pior tinhaacontecido, e Jens foi direto para

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o Café Engebret, na esperança deencontrar algum músicoconhecido seu capaz de lheoferecer uma cama para dormirnaquela noite. Simen fez essagentileza, anotou seu endereço edisse que o encontraria em casamais tarde.

Após algumas cervejas paraaliviar a enormidade do ato queacabara de cometer, Jens sepegou andando em direção a umaparte da cidade na qual jamaishavia posto os pés. Com suasroupas boas de alfaiataria, sentiaque destoava dos outros. Osbraços estavam doloridos decarregar as duas pesadas malas, e

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ele foi andando o mais depressaque conseguiu, evitando cruzarolhares com qualquer passante.

Nunca havia se afastadotanto assim dos limites da cidade.Ao contrário do centro deChristiania, ali as casas demadeira pelo visto ainda nãotinham sido banidas por conta dorisco de incêndio. Quanto maisele andava, mais dilapidadas setornavam as construções. Por fim,ele parou em frente a uma velhacasa de estrutura de madeira everificou mais uma vez oendereço que Simen tinha lhedado no Engebret. Bateu à porta eouviu lá dentro um grunhido e o

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barulho de alguém cuspindo. Aporta se abriu e Simen apareceu,meio embriagado como de hábito,sorrindo para ele.

– Entre, meu rapaz, entre, eseja bem-vindo à minha humildemoradia. Não é grande coisa, masé um lar. – Dentro da casa, ocômodo da frente, abafado epequeno, recendia à comidapodre e ao tabaco que Simenfumava no cachimbo. Jensobservou que cada centímetro deespaço disponível estava tomadopor instrumentos musicais. Haviadois violoncelos, uma viola, umpiano, várias rabecas...

– Obrigado, Simen. Sou

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muito grato a você por mereceber.

Simen descartou oagradecimento com um aceno.

– Ora, não é nada. Qualquerrapaz que desiste de tudo poramor à música merece toda aajuda do mundo. Estou orgulhosode você, Jens, estou mesmo.Agora suba comigo, vamosacomodá-lo.

– É uma coleção e tanto quevocê tem aqui – comentou Jens,abrindo caminho com cuidadopela profusão de instrumentos esubindo um lance de estreitosdegraus de madeira.

– Simplesmente não consigo

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resistir a comprá-los. Um dessesvioloncelos tem quase cem anos –explicou o músico. A escadarangia enquanto Jens subia com asmalas.

Os dois chegaram a umquarto que continha algumascadeiras surradas e uma mesaempoeirada, coberta pelosdetritos da comida e bebida dealguns dias antes.

– Há um estrado em algumlugar que posso lhe oferecer paradormir. Não é aquilo com quevocê está acostumado, tenhocerteza, mas é melhor do quenada. E agora, meu amigo, que talum pouco de aquavit para

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comemorar sua independência? –Simen pegou uma garrafa da mesae um copo encardido, que cheiroue virou para despejar no chãoalgumas gotas remanescentes.

– Obrigado.Jens aceitou o copo sujo. Se

aquela seria sua nova vida,precisava abraçá-la de corpo ealma. Embriagou-se para valernessa noite e acordou com umaressaca terrível, os ossosdoloridos por ter dormido sobreo estrado duro. Deu-se conta,além disso, de que não haviaDora nenhuma para aparecer comum café para ajudá-lo a serecuperar. Lembrando-se em

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pânico do embrulho com dinheiroque a mãe havia lhe dado,estendeu a mão para o casaco etateou o bolso no qual o guardaraao sair de casa. Ao constatar quecontinuava ali, abriu-o, viu oanel, e observou que a quantia defato bastava para lhe pagar umano de estudos em Leipzig. Ouentão uma cama confortável emum hotel nas próximas noites...

Não. Jens se controlou.Havia prometido à mãe nãodecepcioná-la desperdiçandoaquele dinheiro.

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Anna embarcou no trem quea transportaria no primeiro trechoda viagem até em casa. Já estavaescuro quando chegou à estaçãode Drammen. Ao descer dovagão, viu o pai à sua espera naplataforma.

– Far! Ah, Far! Como estoufeliz em vê-lo. – E para grandesurpresa de Anders a filha lhe deuum abraço, demonstração públicade afeto que não lhe eracaracterística.

– Pronto, Anna, pronto.

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Tenho certeza de que você deveestar cansada depois da viagem.Venha, vamos para nossahospedaria. Hoje pode dormir oquanto quiser e amanhã iremospara Heddal.

Na manhã seguinte,revigorada pela noite de sono,Anna subiu na carroça e Andersdeu um tapa no cavalo para fazê-lo andar.

– Agora, à luz do dia, vocêpor algum motivo parecediferente. Acho que virou mulher,filha. Está linda.

– Por favor, Far, tenhocerteza de que linda eu não sou.

– Está todo mundo ansioso

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para vê-la chegar. Sua mãe estápreparando um jantar especialpara você hoje à noite, e Lars vaise juntar a nós. Recebemos acarta de Herr Bayer nos contandosobre o seu sucesso no Teatro deChristiania. Segundo ele, Solveigainda por cima é a protagonista.

– É, sim. Mas o senhor nãose importa se eu ficar mais umpouco em Christiania, Far?

– Nem seria justo reclamar,depois de tudo que Herr Bayerfez por você – respondeu Anders,calmo. – Ele disse que você vaificar famosa, que na cidade já nãose fala em outra coisa que não asua voz. Estamos orgulhosos.

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– Acho que ele estáexagerando, Far – falou Anna,corando.

– Duvido. Mas, Anna, vocêprecisa falar com Lars, é claro.Ele está infeliz com esse novoadiamento do noivado e docasamento, mas esperamos quegoste o suficiente de você paraentender.

Ao ouvir o nome de Lars,Anna sentiu o estômagoembrulhar. Decidida a não deixaraquilo estragar seu primeiro diaem casa, fez o possível paraempurrar aqueles pensamentospara o fundo da mente.

Quando eles saíram de

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Drammen para o campo aberto, odia estava muito ensolarado, e elafechou os olhos e percebeu quetudo que conseguia escutar eramos estalos dos cascos do pônei eos pássaros a cantar nas árvores.Inspirou o ar fresco e puro comoum animal enjaulado de repentesolto na natureza e decidiu quetalvez nunca mais voltasse paraChristiania.

Anders lhe contou que avaca Rosa havia sobrevivido amais um inverno, o que renovou afé de Anna de que suas precestinham sido atendidas. Seu paientão pôs-se a falar sobre ospreparativos para o casamento de

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Knut e o frenesi de bolos ecomida pelo qual sua mãe seencontrava atualmente tomada.

– Sigrid é uma moçaencantadora, e acho que dará umaboa esposa para Knut – comentouAnders. – O mais importante éque sua mãe também gosta dela,já que o feliz casal vai morardebaixo do nosso teto. Quandovocê e Lars se casarem, vão semudar para a fazenda dele, eestamos pensando em construiroutra sede no ano que vem.

No fim da tarde, quando eleschegaram à fazenda, todos vieramrecebê-la. Até mesmo Gerdy, avelha gata, saiu correndo o mais

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rápido que pôde sobre as trêspatas, e a cadela Viva veioanimadíssima atrás dela e pulouem cima de Anna de tanta alegria.

Sua mãe lhe deu um abraçodemorado.

– Passei o dia inteiroesperando para vê-la. Como foide viagem? Meu Deus, comovocê está magra! Seus cabelosestão compridos demais, eu diriaque precisam de um bom corte...

As duas entraram em casa eAnna ficou escutando a mãetagarelar sem parar. O cheiroreconfortante de fumaça do fogãoa lenha, do talco que Berit usavae de cachorro molhado invadiu as

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narinas de Anna quando elaentrou na cozinha.

– Ponha a mala de Anna noquarto dela – pediu Berit ao filhoenquanto punha a chaleira sobre ofogão para fazer um café. –Espero que não se incomode,Anna, mas nós a transferimospara o quarto de Knut. Lá nãohavia espaço para a cama decasal que ele e Sigrid vão dividirdepois de casados. Seu pai levouembora os beliches, e acho queficou aconchegante só com umacama de solteira. Você vaiconhecer sua nova irmã amanhã,quando ela vier jantar. Ah, Anna,tenho certeza de que vai adorá-la.

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Ela é muito gentil e costura comoninguém. Sabe também cozinhar,o que vai ser uma grande ajudapara mim, pois meu reumatismome atormentou durante todo oinverno.

Anna passou a hora seguinteescutando a mãe tecer elogios aSigrid. Um pouco irritada por tersido enxotada de seu quarto sem amenor cerimônia e sequer umpedido de licença, deu o melhorde si para não se sentir excluídadaquele aparente símbolo deperfeição doméstica. Depois debeber seu café, pediu permissãopara ir desfazer as malas antes dojantar.

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Ao entrar em seu novoquarto, viu que todas as suascoisas tinham sido empilhadasdentro das cestas que a mãenormalmente usava para levar asgalinhas ao mercado. Sentou-seno colchão duro do irmão e seperguntou o que teria acontecidocom sua antiga cama de menina.Concluiu que, do jeito que ascoisas pareciam estar naquelacasa, o pai devia ter cortado acama em pedaços e usado comolenha para o fogareiro.Totalmente contrariada, começoua desfazer a mala.

Desdobrou a capa dealmofada que havia passado

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horas bordando como presente decasamento para Knut e Sigriddesde que ficara sabendo donoivado. Noite após noite, aoespetar os dedos na agulha oupuxar os fios de algum pontoerrado, ela havia se desesperadocom sua falta de jeito. Estendeu acapa de almofada sobre a cama eobservou os buracos no tecidoque formava a base do bordado,nos lugares em que tivera quemudar de ponto. Mesmo queaquela almofada fosse condenadaao cesto do cachorro por suanova cunhada exemplar, Annapelo menos sabia que cada pontotinha sido bordado com amor.

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Com a cabeça erguida, saiudo quarto para se juntar à famíliaem seu jantar de “boas-vindas”.

Lars chegou bem na hora emque ela estava ajudando a mãe aservir a comida. Com umasopeira cheia de batatas na mão,Anna olhou de relance para ele aovê-lo entrar na cozinha ecumprimentar Knut e seus pais.Na mesma hora, para suairritação, não pôde evitarcompará-lo a Jens Halvorsen, oCanalha. Fisicamente, os dois nãopoderiam ser mais diferentes, eenquanto Jens era sempre o centrodas atenções, tudo que Larsqueria era manter a discrição.

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– Anna, pelo amor de Deus,largue essas batatas e venhacumprimentar Lars – repreendeu-a Berit.

Anna pousou as batatassobre a mesa, limpou as mãos noavental e andou na direção dorapaz.

– Olá, Anna – disse Larsbaixinho. – Como vai?

– Bem, obrigada.– A viagem foi boa?– Muito, obrigada. – Ela

pôde sentir o constrangimentodele aumentar à medida que aencarava, esforçando-se paraencontrar o que dizer em seguida.

– Você está com um

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aspecto... saudável – eleconseguiu dizer.

– É mesmo? – intrometeu-seBerit. – Pois eu acho que estámagra demais. É todo aquelepeixe que eles comem na cidade.Não tem quase gordura.

– Anna sempre foimagrinha... Deus a quis assim. –Lars lhe abriu um pequeno sorrisode apoio.

– Eu sinto muito pelo seupai.

– Fico grato pela suasensibilidade.

– Vamos nos sentar, Berit? Aviagem de ida e volta foi longa, eseu marido está com fome – falou

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Anders.Enquanto a família comia,

Anna respondeu às intermináveisperguntas sobre sua vida emChristiania. A conversa entãopassou para o casamento de Knute as providências relacionadas aoevento.

– Anna, você deve estarexausta da viagem – comentouLars.

– Estou cansada, sim –reconheceu ela.

– Então vá já para a cama –falou Berit. – Nos próximos diashaverá muito a fazer e temponenhum para dormir.

Anna se levantou.

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– Boa noite, então.Os olhos de Lars não

desgrudaram dela quando elaatravessou a cozinha em direçãoao quarto. Depois de já ter tiradometade das roupas, Anna derepente se lembrou de que na casados seus pais não havia banheiro.Tornou a se vestir e saiu para usara latrina. Enfim deitada, esforçou-se para encontrar algum conforto.O travesseiro de crina pareciauma pedra em comparação com amacia pluma de ganso na qualcostumava dormir no apartamentode Herr Bayer, a cama eraestreita e o colchão cheio decalombos. Ela refletiu sobre

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quantas coisas passara aconsiderar naturais sem perceber.Em Christiania, não precisavarealizar nenhuma tarefa domésticae tinha uma criada para fazer tudoo que pedia.

Anna, ralhou consigomesma, acho mesmo que vocêestá ficando mimada. E, comesse pensamento, pegou no sono.

A semana anterior aocasamento passou feito um

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borrão: foi preciso prepararcomida, limpar, buscar etransportar coisas; todos ficaramocupados com os preparativos deúltima hora.

Apesar de querer antipatizarcom a noiva do irmão por todasas tarefas domésticas que elasabia realizar tão bem, Annaconstatou que Sigrid eraexatamente como a mãe dissera.Com certeza não era nenhumabeldade, mas tinha umtemperamento calmo quecontrabalançava a histeria deBerit à medida que o grande diase aproximava. Sigrid, por suavez, admirava Anna por levar

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uma vida tão luxuosa emChristiania, tratava-a com muitorespeito e acatava suas opiniõesser dar um pio.

O irmão mais velho deAnna, Nils, chegou na véspera docasamento com a mulher e os doisfilhos. Fazia mais de um ano queela não os via, e ficou encantadaem conhecer melhor os sobrinhospequenos.

Em meio à alegria de ter afamília inteira reunida, uma coisaporém não lhe saía da cabeça:todos pareciam partir doprincípio de que, quando elavoltasse de Christiania após atemporada de Peer Gynt, iria se

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mudar para a casa de fazenda emruínas dos Trulssens como esposade Lars. E dividiria com ele nãoapenas o quarto, mas também acama.

Essa simples ideia faziaAnna se sentir mal e piorava suainsônia à noite.

Na manhã do casamento,Anna ajudou Sigrid a pôr ovestido. Este consistia em umavolumosa saia vermelha e umablusa de algodão branco cobertapor um bolero preto decoradocom pesadas peças de metaldourado. Ela examinou o lindobordado no avental de cor cremepreso à frente da saia.

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– Como são delicados ospontos das rosas. Eu jamaisconseguiria fazer uma coisadessas, Sigrid. Como você éprendada.

– Anna, você não tem tempopara essas coisas, com a vidamovimentada que leva na cidade.Eu gastei muitas noites de invernocosturando meu enxoval –retrucou Sigrid. – Além do mais,não sei cantar. Você vai cantar nobanquete de casamento hoje ànoite, não vai?

– Se você quiser, sim. Etalvez seja melhor dizermos queesse é meu presente de casamentopara você e Knut. Eu bordei uma

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coisa para você, mas ficou bemmalfeita – confessou ela.

– Não faz mal, irmã. Sei quefoi feito com amor, e isso é tudoque importa. Agora pode mepassar a coroa e me ajudar aprendê-la?

Anna tirou da caixa a pesadacoroa matrimonial folheada aouro. Fazia oitenta anos que aigreja a mantinha, e todas asnoivas do vilarejo haviam secasado com ela. Anna a pousousobre os cabelos louros deSigrid.

– Pronto. Agora você é umanoiva de verdade – falou,enquanto a outra se olhava no

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espelho.Berit espichou a cabeça pela

porta.– Está na hora, Kjære. E

permita-me dizer que você estámuito linda.

Sigrid pousou a mão sobre ade Anna.

– Obrigada pela ajuda, irmã.A próxima vai ser você, quandose casar com Lars.

Enquanto seguia Sigrid até acarroça que a aguardava cheia deflores frescas do campo, Annateve um calafrio involuntário aopensar em tal coisa.

Na igreja, ficou olhando oirmão em pé diante do altar com

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Sigrid e o pastor Erslev. Estranhopensar que Knut era agora umchefe de família e que em breveteria seus próprios filhos ruivos.Ela olhou de relance para Lars,que escutava com atenção e, paravariar, não estava olhando nasua direção.

Depois da cerimônia, maisde cem pessoas seguiram acarroça dos noivos até aresidência dos Landviks. Berithavia passado semanas rezando aDeus para fazer tempo bom, jáque não havia espaço para todomundo dentro de casa. Suaspreces tinham sido atendidas, e asmesas de madeira, dispostas na

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campina ao lado da casa logoforam cobertas de comida, grandeparte trazida pelos própriosconvidados. Pratos de carne deporco salgada e apimentada, detenra carne bovina grelhada noespeto, além, é claro, de arenque,garantiram que as barrigasficassem cheias e ajudaram aforrar o estômago para a cervejae o aquavit caseiros servidos àlarga durante os festejos.

Bem mais tarde, quando atarde começou a cair, lamparinasforam acesas e penduradas empostes de madeira para formaruma praça improvisada e asdanças começaram. Os músicos

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se puseram a tocar a animadamelodia do hallingkast e todosderam vivas e abriram uma rodano meio. Uma jovem entrou naroda, segurou um chapéu no altode uma vara à sua frente, ecomeçou a desafiar os homens atentarem chutá-lo. Os irmãos deAnna se cutucaram e foram osprimeiros da roda a dançar esaltar em volta da moça,incentivados pelos gritos dosconvidados.

Ofegante de tanto rir, Annase virou e viu Lars sentadosozinho diante de uma das mesas,com um ar taciturno.

– Anna, vai fazer o que

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prometeu e cantar para nós? –indagou Sigrid, surgindo ao seulado.

– Sim – emendou Knut, aosarquejos. – Você precisa cantar.

– Cante a “Canção deSolveig”! – gritou alguém namultidão.

Um coro de aprovação seseguiu a essa sugestão. Anna foiaté o centro da roda de dança, serecompôs e começou a cantar. Aofazê-lo, acabou sem quererpensando em Christiania e nojovem músico que, de tãofascinado com sua voz, não haviaparado de cortejá-la...

E voltaremos a nos

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encontrar, amor, e nunca vamosnos separar. E nunca vamos nosseparar...

Havia lágrimas em seusolhos quando a última nota seextinguiu. O público se manteveem silêncio, até que alguémcomeçou a aplaudir e o restantedos convidados fez o mesmo. Empouco tempo, a campina inteiraera só aplausos.

– Cante outra, Anna!– Sim! Uma das nossas

canções!Durante a meia hora

seguinte, acompanhada pelo paina rabeca, Anna não teve maistempo para se dedicar aos

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próprios sentimentos e percorreutodo o repertório de cançõesfolclóricas que aquelas pessoasconheciam de cor. Então chegou ahora de os noivos se retirarempara a noite. Ao som de muitasbrincadeiras e assobios bem-humorados, Knut e Sigriddesapareceram dentro de casa eos convidados começaram a sedispersar.

Enquanto ajudava a tirar amesa, Anna se sentiu exausta einquieta. Movia-se como umautômato, carregando pratos etravessas até o barril cheiod’água tirada do poço mais cedojustamente para esse fim.

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– Anna, você parececansada.

Ela sentiu a mão de alguémpousar de leve em seu ombro.Quando se virou, Lars estava depé atrás dela.

– Estou perfeitamente bem –falou, conseguindo dar um sorrisoamarelo.

– Gostou do casamento?– Sim, foi tudo lindo. Sigrid

e Knut vão ser muito felizesjuntos.

Quando ela se virou para seconcentrar de novo em sua tarefa,sentiu a mão dele escorregar deseu ombro. Com o canto do olho,pôde vê-lo com a cabeça baixa e

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as mãos nos bolsos.– Anna, senti saudade de

você – disse Lars, com uma voztão fraca que ela mal escutou. –Você... sentiu saudade de mim?

Ela gelou e o pratoensaboado escorregou por entreseus dedos.

– Claro. Senti saudades detodos aqui, mas ando muitoocupada em Christiania.

– Com todos os seus novosamigos, imagino eu – disse ele,friamente.

– Sim, como FrøkenOlsdatter e as crianças do teatro –respondeu ela depressa sem pararde lavar o prato, mas desejando

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em seu íntimo que ele fosseembora.

Lars permaneceu ali pormais alguns segundos, sem sabero que fazer, e ela sentiu o olhardele pousado nela.

– Foi um longo dia para todomundo – disse ele por fim. –Preciso ir andando... Mas,primeiro, Anna, preciso lheperguntar uma coisa, pois sei quevocê tem que voltar paraChristiania amanhã. E desejo queme responda com toda asinceridade. Para o bem de nósdois.

Anna pôde ouvir o tom deseriedade nas palavras dele.

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Sentiu o estômago embrulhar.– Claro, Lars.– Você... você ainda quer se

casar comigo? Considerando tudoque já mudou e ainda vai mudarna sua vida, eu juro queentenderei se não quiser.

– Eu... – Ela abaixou acabeça por cima dos pratos,fechou os olhos com força edesejou que aquele momentopassasse logo. – Acho que sim.

– Mas eu acho que você nãoquer. Anna, por favor, é melhorpara nós dois saber onde estamospisando. Só posso continuaraguardando você se houveresperança. Não posso evitar a

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sensação de que, desde o começo,você teve reservas em relação ànossa futura união.

– Mas e Mor e Far e asterras que você vendeu para eles?

Lars deu um suspiroprofundo.

– Anna, você acabou de medizer tudo o que eu precisavasaber. Agora vou embora, masescreverei para lhe dizer comodevemos organizar as coisas. Nãoprecisa dizer nada aos seus pais.Deixe que eu cuido de tudo. – Eleretirou uma das mãos de Anna dedentro do barril com água. Levou-a aos lábios e a beijou. – Adeus,Anna. Que Deus a abençoe.

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Ela o observou se afastarpara dentro da escuridão eentendeu que seu noivado comLars Trulssen parecia ter acabadoantes mesmo de começar.

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Ally

Agosto de 2007

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22

Já passava da hora do almoçoquando ergui a cabeça da tela dolaptop e o papel de paredelistrado se moveu feito um borrãoantes de entrar em foco outra vez.Apesar de eu não fazer a menorideia de como me encaixava emuma história que se passara maisde 130 anos antes, o que tinhalido até então me deixarafascinada. No Conservatório deGenebra, havia aprendido sobre a

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vida de muitos compositores eestudado suas obras-primas, masaquele livro recriava sua épocade modo bastante vívido. Alémdo mais, fiquei fascinada com ofato de Jens Halvorsen ter sido oflautista a tocar aqueles primeiroscompassos tão simbólicos naestreia de uma das minhas peçasmusicais preferidas.

Pensei então na carta que Pahavia me deixado e perguntei-mese ele só queria que eu lesse ahistória da gênese de Peer Gyntpara incentivar um renascimentodo meu amor pela música. Comose soubesse que eu talvez fosseprecisar disso...

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E, sim, tocar no funeral deTheo tinha mesmo mereconfortado. Até o tempo que eulevara para ensaiar a música tinhaconstituído algumas bem-vindashoras de trégua, sem pensar nele.Desde então, havia ocasiões emque eu pegava a minha flauta etocava por prazer. Ou, para sermais exata, para aliviar a dor.

A questão era saber se essaconexão era mais profunda e sealgum laço de sangue unia Anna,Jens e eu. Um laço esticado comoum frágil fio de seda ao longo de130 anos...

Será que Pa Salt teriaconhecido Jens ou Anna quando

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era bem mais jovem?, pensei.Como Pa tinha morrido com maisde 80, pensei que havia umapossibilidade, dependendo dequantos anos Jens e Annativessem vivido. Mas essesdados, para minha irritação, nãoestavam atualmente disponíveis.

Minhas ponderações foraminterrompidas pelo toqueestridente do telefone. Como eusabia que a secretária eletrônicade Celia era antiga e estavaquebrada – e que, portanto, otelefone ficaria tocando sem parar–, saí do quarto e desci correndoaté o hall para atender.

– Alô?

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– Ahn, oi. A Celia está?– No momento não –

respondi, reconhecendo a voz dehomem com sotaque americano. –Aqui é Ally. Quer deixar recado?

– Ah, oi, Ally. Aqui é Peter,pai do Theo. Como vai?

– Tudo bem – respondi noautomático. – Celia deve voltarhoje à noite lá pela hora do jantar.

– Infelizmente vai ser tardepara mim. Estava só ligando paraavisar que vou voltar para osEUA hoje à noite. Senti quedeveria falar com ela antes de ir.

– Bom, Peter, vou dizer quevocê ligou.

– Obrigado. – Fez-se um

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silêncio na linha. – Ally, vocêestá ocupada agora?

– Não, na verdade não.– Então podemos nos

encontrar antes de eu ir para oaeroporto? Estou hospedado nohotel Dorchester; e gostaria deconvidá-la para um chá da tarde.São só quinze minutos de táxi dacasa de Celia.

– Eu...– Por favor?– Está bem – concordei, com

relutância.– Às três no Promenade?

Tenho que ir para Heathrow àsquatro.

– Até lá então, Peter – falei.

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Ao colocar o fone nogancho, perguntei-me que diabode roupa havia trazido quepudesse usar para tomar chá noDorchester.

Uma hora depois, ao entrarno hotel, senti-me estranhamenteculpada, como se estivessetraindo Celia. Mas Pa Salt haviame ensinado a nunca julgarninguém com base em disse medisse. Além do mais, Peter erapai de Theo; eu precisava lhe daruma chance.

– Olá, senhorita – chamouele, acenando para mim de umadas mesas do opulento salãocheio de colunas de mármore

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situado logo depois do lobby.Levantou-se para mecumprimentar quando meaproximei e apertou minha mãode modo caloroso e firme. –Sente-se, por favor. Não tinhacerteza do que você iria querer,então, como temos pouco tempo,tomei a liberdade de pedir o chácompleto.

Com um gesto, ele indicou amesa baixa sobre a qual estavamdispostas travessas de porcelanacheias de sanduíches de pão demiga cortados com precisão e umporta-bolos de vários andaresrepleto de delicados docesfranceses e scones, além de

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pequenos potinhos de geleia ecreme.

– Há também litros de chá,claro. Nossa, os ingleses amammesmo esse negócio!

– Obrigada – falei, sem fomealguma, enquanto me acomodavano assento à sua frente. Umgarçom de luvas brancasimaculadas apareceu na mesmahora para me servir uma xícara dechá; enquanto isso, observei o paide Theo com mais atenção. Petertinha olhos escuros, uma peleclara quase sem marcas da idadepara um homem que devia passardos 60 e um corpo musculoso porbaixo do blazer azul-marinho

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casual, apesar da alfaiataria cara.Pelo marrom opaco de seuscabelos, percebi que ele ospintava, e na hora decidi queTheo não tinha nada a ver com opai quando este sorriu para mim.O formato enviesado de sua boca,porém, era tão parecido com o dofilho que cheguei a dar umarquejo.

– Então, Ally. Como estão ascoisas? – indagou Peter depoisque o garçom se afastou. – Estásegurando as pontas?

– Tem momentos bons emomentos ruins, eu acho. E você?

– Se quer mesmo saber averdade, Ally, não estou lidando

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nada bem com a situação. Paramim foi um baque imenso. Nãoparo de me lembrar de Theo bebêe de como ele era bonitinhoquando criança. Não é a ordemcerta das coisas um filho morrerantes do pai, sabe?

– Sei – concordei, com penadele e curiosa em relação àquelehomem descrito de modo tãonegativo por Celia e pelo próprioTheo.

Dava para ver que ele estavatentando se controlar, mas eupodia sentir sua dor, queirradiava dele como umapresença palpável.

– E como Celia está lidando

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com isso? – ele quis saber.– Do mesmo jeito que nós

dois... com muita dificuldade. Elatem sido incrivelmente generosacomigo.

– Talvez seja terapêutico teralguém de quem cuidar. Eugostaria de ter.

– Preciso lhe dizer umacoisa – afirmei, pegando umsanduíche de salmão defumado emordendo um pedacinho. – Celiame disse que teria convidadovocê para ir se sentar com ela nafrente da igreja se soubesse quevocê estava lá.

– É mesmo? – A expressãodele se animou um pouco. – Que

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coisa boa de saber, Ally. Talvezeu devesse ter avisado a ela queviria, mas imaginei quanto eladevia estar arrasada e não queriadeixá-la ainda mais abalada. Vocêjá deve ter entendido que eu nãosou exatamente uma prioridade nalista de cartões de Natal de Celia.

– Talvez ela ache difícilperdoar você por... você sabe...pelo que fez com ela.

– Bem, Ally, como eu lhedisse naquele dia depois dacerimônia, toda história temsempre um outro lado, mas nãovamos falar disso agora. E, sim, éverdade que grande parte daculpa é minha. Cá entre nós, eu

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ainda amo Celia. – Peter deu umsuspiro. – Amo tanto que chego asentir uma dor física. Sei que adecepcionei e fiz coisas ruins,mas nos casamos cedo, e emretrospecto eu acho que deveriater feito as minhas estripuliasantes, não durante o casamento.Celia... – Peter deu de ombros. –Bem, ela era uma verdadeira“dama” nesse departamento, se éque você me entende. Nós éramoscompletamente opostos. Enfim, eucom certeza aprendi minha lição.

– Sim – falei, sem querer mealongar nessa explicação. – Naverdade, eu acho que ela tambémainda ama você.

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– É mesmo? – Desconfiado,Peter arqueou uma dassobrancelhas. – Com certeza nãoera isso que eu esperava escutarde você.

– É, provavelmente não, masdá para ver nos olhos delaquando ela fala em você, mesmoquando está dizendo algonegativo. Seu filho uma vez medisse que a linha entre o amor e oódio era muito tênue.

– É a cara dele dizer isso...ele era um rapaz bem desse tipo,perceptivo e dono de uma grandeinteligência emocional. Queria tera mesma percepção da naturezahumana que ele tinha. – Peter deu

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um suspiro. – Com certeza não foide mim que ele puxou isso.

Percebi que eu decerto haviafalado mais do que deveria, mascomo já estava mergulhada até opescoço decidi que não custavanada ir até o fim.

– Sabe do que mais? Euacho que Theo teria adorado aideia de os pais se encontrarem equem sabe resolverem as mágoasdo passado. Se essa for a únicaconsequência boa dessa tragédiatoda, pelo menos terá sido algumacoisa.

Peter me encarou enquantoeu tomava um golinho do meuchá.

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– Acho que eu entendototalmente por que meu filho aamava tanto. Você é especial,Ally. No entanto, por mais quesuas intenções sejam boas, eu nãoacredito mais em milagres.

– Mas eu acredito. Acredito,sim – repeti. – Mesmo que Theo eeu só tenhamos tido poucassemanas juntos, ele mudou aminha vida. O fato de nós termosnos encontrado e nos encaixadotão bem é mesmo um milagre, eeu sei que, mesmo com toda ador, ele fez de mim uma pessoamelhor. – Foi a minha vez de ficarcom os olhos marejados, e Peterestendeu a mão por cima da mesa

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e afagou a minha.– Bom, Ally, eu com certeza

a admiro por tentar ver o ladopositivo em uma situaçãonegativa. Muito tempo atrás, eutambém era assim.

– Com certeza pode voltar aser como antes, não?

– Eu acho que perdi essacapacidade durante o divórcio.Mas, enfim, me fale sobre os seusplanos para o futuro. Meu filhodeixou alguma coisa para você?

– Deixou, sim. Na verdade,ele mudou o testamento logo antesda regata. Eu fiquei com oSunseeker e com um celeiro velhoem Anafi, perto daquela linda

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casa de vocês. Para ser sincera,apesar de ter amado muito Theo,não sei se consigo me ver indopara “Algum Lugar”, que é comochamávamos Anafi, brigar com asautoridades gregas para construira casa dos sonhos dele.

– Ele deixou para vocêaquela maluquice daqueleestábulo de cabras? – Peter jogoua cabeça para trás e riu. – Só paraficar registrado, eu me oferecivárias vezes para comprar umacasa para o Theo, mas ele semprerecusou terminantemente.

– Orgulho – falei, dando deombros.

– Ou burrice – rebateu Peter.

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– Meu filho era um esportista quecorria atrás da sua paixão. Eusabia que ele precisava de ajudafinanceira, mas nunca aceitava.Aposto que você também nãocomprou sua própria casa, Ally.Como qualquer jovem hoje emdia conseguiria fazer isso, mesmoganhando um salário razoável?

– Não comprei, não, masagora tenho o estábulo – falei,com um sorriso.

– Bom, em primeiro lugarquero lhe dizer que você é maisdo que bem-vinda na minha casaem Anafi sempre que quiser.Celia sabe que também pode usá-la a qualquer momento, mas se

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recusa a ir lá. Parece que tem aver com algo que eu disse a elaquando estivemos lá juntos,tempos atrás. Não me pergunte oque foi, porque não me lembro. Elhe digo mais, Ally: se algum diavocê precisar de ajuda com asautoridades gregas para construir,eu sou a pessoa certa paraintervir. Investi tanto dinheironaquela ilha que deveria sereleito prefeito! Você já tem aescritura?

– Ainda não, mas parece queassim que o testamento forvalidado eles vão me mandar.

– Bem, senhorita, qualquercoisa que precisar, saiba que

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estou às ordens. É o mínimo queposso fazer: cuidar da garota quemeu filho amava.

– Obrigada. – Passamosalgum tempo sentados emsilêncio, sentindo saudades deTheo.

– Mas, então, você ainda nãome disse quais são seus planospara o futuro – insistiu Peterdepois de algum tempo.

– É porque eu não tenhocerteza.

– Theo me contou que vocêera ótima velejadora e que estavaprestes a começar a treinar com aequipe olímpica da Suíça.

– Eu desisti. Não me peça

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para explicar, Peter, por favor,mas eu simplesmente não consigo.

– Não precisa explicar nada.E, perdoe-me a frase feita, masparece que você tem outro coelhona cartola. Ally, você tem talentopara a música. Fiquei muitocomovido quando tocou flauta nacerimônia.

– É muita gentileza sua dizerisso, Peter. Mas eu estava muitoenferrujada, muito mesmo. Fazanos que não toco direito.

– Bom, com certeza não foiassim que soou aos meus ouvidos.Se eu tivesse um dom como o seu,seria como um tesouro. É defamília?

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– Não tenho certeza. Podeser. Meu pai morreu faz poucassemanas...

– Ally! – Peter fez uma carahorrorizada. – Meu Deus! Comovocê suportou perder os doishomens da sua vida?

– Para ser sincera, não sei. –Engoli em seco e me senti invadirpor uma onda de emoção. Sentia-me bem, contanto que ninguém semostrasse compreensivo. –Enfim, o fato é que eu fui adotada,eu e minhas cinco irmãs. E oúltimo presente que meu paideixou foram algumas dicas sobreo meu passado. Pelo pouco quesei até agora, pode ser que a

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música esteja mesmo nos meusgenes.

– Entendi. – Ele me encaroucom os olhos escuros cheios deentendimento. – E você pretendeprocurar saber mais?

– Ainda não tenho certeza.Com certeza não era a minhaintenção quando Theo aindaestava vivo. Eu estava animadacom o futuro.

– É claro. Tem algoplanejado para as próximassemanas?

– Não, nada.– Bem, então esta é a sua

resposta: vá atrás das pistas querecebeu. Com certeza é o que eu

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faria. E acho que Theo iria quererisso. – Ele olhou para o relógio. –Agora infelizmente terei quedeixá-la, porque senão perco meuvoo. A conta está paga; por favor,fique e termine de comer sequiser. E vou repetir: se algumdia precisar de alguma coisa,Ally, é só avisar.

Ele se levantou e eu fiz omesmo. Então, espontaneamente,ele me tomou nos braços e me deuum abraço apertado.

– Queria que tivéssemosmais tempo para conversar, masmesmo assim estou feliz por terconhecido você. O dia de hoje foia única coisa positiva de tudo o

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que aconteceu, e agradeço a vocêpor isso. E lembre-se: um diaalguém me disse que a vida sónos dá aquilo que somos capazesde aguentar. E você é uma moçaincrível, de verdade. – Ele meentregou um cartão. – Dê notícias.

– Darei – prometi.Com um aceno triste, ele se

afastou depressa da mesa.Tornei a me sentar. Olhei

para a farta mesa posta à minhafrente e, sem muita vontade,peguei um scone; não conseguiasuportar a ideia de aquela comidaser desperdiçada. Tambémdesejava que tivéssemos tidomais tempo para conversar.

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Independentemente do que Celiahavia me contado sobre o ex-marido e do que ele pudesse terfeito, eu gostava de Peter. Apesarde toda a fortuna que lheatribuíam e de todo o seu maucomportamento, havia algo deintrinsecamente vulnerávelnaquele homem.

Quando cheguei em casa,encontrei Celia no quarto fazendoa mala.

– Teve uma tarde agradável?– perguntou ela.

– Tive sim, obrigada. Fuitomar chá da tarde com Peter. Eleligou hoje de manhã para falarcom você, mas você já tinha

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saído e ele acabou falandocomigo.

– Bom, fico surpresa que eletenha ligado. Em geral ele não dánotícias quando vem ao ReinoUnido.

– Em geral ele não perdeuum filho. Enfim, ele mandou umbeijo.

– Ótimo. Mas, Ally, comovocê sabe, amanhã vou sair bemcedinho – disse ela, com umaanimação exagerada. – Você podeficar aqui quanto quiser; bastaligar o alarme e jogar as chavesno buraco de correspondência daporta da frente quando resolver irembora. Tem certeza absoluta de

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que não quer vir comigo? AToscana é linda nesta época doano. E Cora não é apenas minhaamiga mais antiga, é tambémmadrinha do Theo.

– Muito obrigada mesmo porme convidar, mas acho que estána hora de eu arrumar a minhavida.

– Bom, não se esqueça deque ainda está muito recente. Fazvinte anos que me divorciei dePeter e ainda não pareço terarrumado a minha. – Ela deu deombros com tristeza. – Enfim,fique quanto quiser.

– Obrigada. Falando nisso,fiz umas compras na volta para

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casa, e hoje à noite queriacozinhar para agradecer. Não énada de mais, só uma massa, mascom sorte já vai preparando vocêpara a Itália.

– Quanta gentileza, Allyquerida. Vai ser ótimo.

Em nosso último jantarjuntas, fomos nos sentar navaranda. Eu estava sem fome, efiz o possível para comer algumasgarfadas; reparei que as rosas deCelia, inclinadas na ponta doscaules, estavam perdendo a cor eque as pétalas tinham as bordasmarrons e secas. Até mesmo o arestava com um perfume diferente:mais pesado, com um quê do

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cheiro de terra do outono que iriachegar. Enquanto comíamos,deixamo-nos levar cada qualpelos próprios pensamentos; nósduas entendíamos que estávamosprestes a perder nossa bolha deconforto mútuo e seríamosobrigadas a enfrentar o mundoreal outra vez.

– Eu só queria agradecer avocê por ter ficado aqui, Ally.Não sei mesmo o que teria feitosem você – falou Celia quandoestávamos levando os pratosvazios até a cozinha.

– Nem eu sem você –retruquei.

Ela começou a lavar a louça,

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e eu peguei um pano de prato parasecá-la.

– Também queria que vocêsoubesse que, sempre que vier aLondres, pode considerar estacasa sua.

– Obrigada.– E detesto falar nesse

assunto, mas quando eu voltar daItália vou pegar as cinzas doTheo. Temos que combinar umadata para ir a Lymington jogá-lasjuntas.

– Sim, claro – assenti,engolindo em seco.

– Vou sentir saudade, Ally.Sinto mesmo que você é a filhaque eu não tive. Mas agora é

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melhor eu ir me deitar – disse ela,abrupta. – Meu táxi vai chegar àsquatro e meia, e com certeza nãoespero que você esteja acordadapara dizer tchau. Então vou medespedir agora. Mas dê notícias,sim?

– É claro que vou dar.Dormi mal nessa noite e tive

os sonhos assombrados pelaspáginas em branco do meu futuroiminente. Até então, eu sempresoubera exatamente para ondeestava indo e o que estavafazendo. Aquela sensação devazio e letargia que me dominavaagora era novidade para mim.

– Talvez a depressão seja

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assim – murmurei na manhãseguinte ao me arrastar para forada cama e, um pouco enjoada, meforçar a tomar uma ducha.

Enquanto secava os cabeloscom uma toalha, digitei “JensHalvorsen” em um mecanismo debusca. Com irritação, constateique todas as ocorrências nasquais esse nome aparecia estavamem norueguês, então entrei no sitede uma livraria on-line e comeceia procurar livros em inglês oufrancês que pudessem mencioná-lo.

Até que encontrei.

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O aprendiz de GriegAutor: Thom Halvorsen

Data de lançamento da ediçãoamericana: 30 de agosto de 2007

Rolei a página até encontrara curta sinopse.

Thom Halvorsen, renomadoviolinista da OrquestraFilarmônica de Bergen,assina a biografia de seutataravô Jens Halvorsen. Olivro acompanha a vida deum talentoso compositor eintérprete que trabalhou em

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estreita colaboração comEdvard Grieg. Graças àajuda de fascinantesmemórias de família, temosuma nova visão de Griegpelos olhos de alguém que oconheceu intimamente.

Apesar de ver que o prazomínimo de entrega dos EstadosUnidos era de duas semanas,encomendei o livro na mesmahora. Então tive uma ideia. Pegueio cartão de Peter na carteira e lheescrevi um e-mail agradecendopelo chá. Em seguida expliqueique estava precisando de um

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livro que só era vendido nosEstados Unidos e perguntei se elepor acaso poderia comprá-lo paramim. Não me senti culpada aopedir isso; tinha certeza de queele dispunha de váriossubalternos à sua disposição paraencontrar o livro.

Então digitei Peer Gynt. Aopassar pelas diversas referências,topei com o Museu de Ibsen emOslo – ou Christiania, como Annae Jens a conheciam – e seucurador, Erik Edvardsen. Pelovisto, o homem era umespecialista em Ibsen de renomemundial, e quem sabe sedispusesse a me ajudar caso eu

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lhe escrevesse.Louca para continuar minha

pesquisa e ler o que restava datradução do livro, fechei o laptopcom relutância ao me dar conta deque precisava estar em Batterseapara almoçar com Estrela dali ameia hora.

Chamei um táxi em frente àcasa. Quando estávamosatravessando o Tâmisa por umaponte ornamentada e cor-de-rosa,percebi que estava meapaixonando um pouquinho porLondres. O lugar tinha umaelegância natural, quase esnobe,sem nenhum pingo da energiafrenética de Nova York ou da

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apatia de Genebra. Como tudo naInglaterra, a cidade pareciaconfiar plenamente em suaprópria história e singularidade.

O táxi parou diante de umprédio que obviamente já tinhasido um armazém. Bem namargem do rio, ele e os vizinhosdeviam ter proporcionado acessofácil para as barcaças deantigamente trazerem seuscarregamentos de chá, sedas eespeciarias. Paguei o taxista etoquei a campainha ao lado donúmero que Estrela tinha medado. A porta se abriu com umzumbido eletrônico, e a voz delame disse para pegar o elevador

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até o terceiro andar. Assim fiz, eencontrei minha irmã meesperando na porta.

– Oi, querida. Como vai? –perguntou ela quando nosabraçamos.

– Ah, vou indo – menti. Elame conduziu para dentro de umespaço imenso e todo branco,com janelas que iam do chão aoteto e tinham vista para o rio. –Uau! – exclamei, indo admirar avista. – Que lugar fantástico!

– Foi a Ceci quem escolheu– disse Estrela, dando de ombros.– Tem espaço para ela trabalhar ea luminosidade é boa.

Olhei em volta e reparei no

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espaço único e sem divisórias,nos móveis minimalistasespalhados pelo chão claro detábuas corridas e na esguiaescada em caracol que deviasubir para os quartos. Eu mesmanão teria escolhido aqueleapartamento, que não era nadaaconchegante, mas o lugar comcerteza causava impacto.

– Quer tomar alguma coisa?– perguntou Estrela. – Temosvários tipos de vinho, e cerveja,claro.

– O que você estivertomando – respondi, e a segui atéa área da cozinha, toda feita deaço inox ultramoderno e vidro

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fosco. Ela abriu a imensageladeira de porta dupla epareceu hesitar. – Vinho branco?– sugeri.

– É, boa ideia.Fiquei observando minha

irmã mais nova enquanto elapegava duas taças no armário eabria o vinho, e pensei outra vezcomo Estrela nunca pareciaexpressar uma opinião própria outomar uma decisão. Maia e eu játínhamos debatido à exaustão seceder à vontade alheia era umtraço natural da personalidade deEstrela ou consequência do papeldominante de Ceci norelacionamento das duas.

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– Que cheiro! – falei,apontando para uma panela queborbulhava sobre o cooktop detamanho industrial.

Pude ver também algoassando atrás da porta de vidrodo forno.

– Ally, você vai ser minhacobaia. Estou testando uma novareceita e está quase pronto.

– Ótimo. Cheers, comodizem aqui na Inglaterra.

– É, cheers.Demos cada uma um gole na

taça de vinho, mas eu pousei aminha sobre a bancada, pois poralgum motivo senti uma acidezassim que a bebida bateu no meu

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estômago. Enquanto observavaminha irmã mexer a panela,pensei em como ela pareciajovem, com aquela nuvem decabelos louro-platinados na alturados ombros e a franja compridaque muitas vezes lhe caía sobreos imensos olhos azuis,escondendo suas expressõescomo uma cortina protetora. Eradifícil lembrar que Estrela erauma mulher feita de 27 anos.

– Mas, conte, como está seadaptando a Londres? – pergunteia ela.

– Bem, eu acho. Gostodaqui.

– E como anda o curso de

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culinária?– Já terminei. Foi legal.– E você acha que poderia

seguir carreira na área degastronomia? – insisti, naesperança de conseguir umaresposta mais elaborada.

– Acho que não é a minha.– Sei. Tem alguma ideia do

que vai fazer agora?– Não muito.Então ficamos em silêncio,

como sempre acontecia nasconversas com Estrela. Depois dealgum tempo, ela acaboucontinuando:

– Mas e você, Ally? Comoestá, de verdade? Que horror isso

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que aconteceu, e logo depois damorte de Pa.

– Para ser sincera, não seimuito bem como estou. O queaconteceu mudou tudo. Meu futuroestava todo mapeado e agora, deuma hora para outra, desapareceu.Já disse ao técnico da equipe devela suíça que não vou participardas eliminatórias para aOlimpíada. Não conseguiriaenfrentar isso agora, de jeitonenhum. Várias pessoas medisseram que estou errada, e mesinto culpada por não ter forçaspara continuar, mas é que não meparece correto. O que você acha?

Estrela afastou a franja dos

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olhos e me encarou com um arcauteloso.

– Eu acho que você precisaagir exatamente como pensa. Sóque às vezes isso é bem difícil,né?

– É, sim. Não querodecepcionar ninguém.

– Exatamente. – Estrela deuum leve suspiro, olhou na direçãodas janelas que iam do chão aoteto, depois tornou a olhar para ofogão e começou a servir oconteúdo da panela em doispratos. – Vamos comer lá fora?

– Por que não?Prestei atenção no rio e na

varanda que margeava as janelas

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e me perguntei, de forma um tantomesquinha, quanto devia custar oaluguel daquele apartamento. Nãoera nem de longe a moradia típicade uma estudante de arte semdinheiro e sua irmã aparentementemeio perdida na vida.Obviamente Ceci conseguiraconvencer Georg Hoffman aliberar algum dinheiro na manhãem que ela e Estrela tinham idovisitá-lo em Genebra.

Levamos a comida para amesa lá fora, posicionada emfrente a várias plantas perfumadasque transbordavam de vasosgigantes junto ao parapeito.

– Que lindas. Que planta é

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essa? – apontei para um dosvasos, do qual despontava umaprofusão de flores alaranjadas,brancas e rosas.

– Sparaxis tricolor. Maisconhecida como “flor-arlequim”,mas não acho que ela estejagostando muito da brisa do rio.Na verdade, seu lugar é o cantoabrigado de um jardim ruralinglês.

– Foi você quem plantou? –perguntei, levando à boca umagarfada do macarrão aos frutos domar que Estrela havia servidocomo prato principal.

– Foi. Eu gosto de plantas.Sempre gostei. Costumava ajudar

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Pa Salt no jardim dele lá emAtlantis.

– É mesmo? Não sabia.Nossa, que delícia, Estrela –elogiei, apesar de não estar comfome. – Eu hoje estoudescobrindo vários talentosocultos seus. Na cozinha, seifazer no máximo o básico, e nãosou capaz de plantar nem agrião,quanto mais tudo isso aí. –Gesticulei para a abundância navaranda à nossa volta.

Fez-se um novo silênciocarregado, mas evitei preenchê-lo.

– Andei pensandoultimamente no verdadeiro

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significado de talento. Querodizer, será que as coisas quefazemos com facilidade são dons?– indagou Estrela, hesitante. – Porexemplo, você teve mesmo que seesforçar para tocar flauta dessejeito tão lindo?

– Não, acho que não. Pelomenos não no início. Mas depois,para melhorar, tive que praticardurante horas intermináveis. Nãoacho que o simples fato de tertalento para alguma coisacompense o trabalho árduo. Vejaos grandes compositores: nãobasta ouvir as melodias nacabeça; é preciso aprender aescrevê-las no papel e a

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orquestrar uma música. Isso exigeanos de prática e aperfeiçoamentodo ofício. Tenho certeza de quemilhões de nós têm habilidadenatural para alguma coisa, mas sóquem domina essa habilidade e sededica consegue alcançar seupotencial pleno.

Estrela assentiu devagar.– Já acabou? – indagou ela,

olhando para o prato que eu malhavia tocado.

– Já. Desculpe, Estrela.Estava ótimo, sério, mas eu nãoando com muito apetite.

Depois disso, conversamossobre nossas irmãs e o que elasandavam fazendo. Estrela me

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falou sobre Ceci e sobre como assuas instalações a vinhammantendo ocupada. Comenteisobre a mudança repentina deMaia para o Rio, e como eramaravilhoso ela ter encontradoenfim a felicidade.

– Isso tudo me alegrou deverdade. E foi ótimo encontrarvocê – afirmei, sorrindo.

– E você? Para onde achaque vai agora?

– Na verdade, talvez eu vá àNoruega investigar meu lugar denascimento indicado pelascoordenadas de Pa Salt.

Tenho certeza de que fiqueibem mais surpresa com o que

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falei do que a própria Estrela, jáque foi nessa hora que opensamento adentrou meu cérebropela primeira vez e começou afincar raízes.

– Que ótimo – disse ela. –Dou a maior força.

– Dá mesmo?– Por que não? As pistas de

Pa talvez mudem sua vida.Mudaram a de Maia. E... – Elafez uma pausa. – A minhatambém.

– Sério?– É.Fez-se um novo silêncio, e

eu soube que não adiantavapressionar Estrela por mais

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detalhes sobre aquela revelação.– Agora acho melhor eu ir

andando. Muito obrigada peloalmoço. – Levantei-me,subitamente cansada e precisandovoltar para o meu santuário. – Éfácil pegar um táxi daqui? –perguntei enquanto ela meacompanhava até a porta dafrente.

– É, sim. É só virar àesquerda e você vai chegar na ruaprincipal. Tchau, Ally – disse ela,esticando-se para me dar doisbeijinhos no rosto. – Avise se formesmo para a Noruega.

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De volta à casa silenciosade Celia, subi até meu quarto eabri o estojo da flauta. Fiqueiolhando fixamente para oinstrumento, como se ele pudesseresponder a todas as perguntasque não me saíam da cabeça. Amais insistente era para onde euiria agora. Sabia que quase comcerteza poderia ir me enterrar em“Algum Lugar”. Bastaria umtelefonema para Peter, e sua lindacasa em Anafi seria minha pelotempo que eu precisasse. Eu

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poderia passar o ano seguinte mededicando à reforma do preciosoestábulo de Theo; penseisubitamente no musical MammaMia, do Abba, e balancei acabeça com uma risadinha. Pormais atraente que pudesse parecero casulo de “Algum Lugar”, sabiaque aquilo lá não me faria seguirem frente. Apenas me faria viverno mundo de Theo e eu, ummundo que tinha existido, mas nãoexistia mais.

E será que Atlantis tambémme faria bem? Será que aindahavia algo para mim lá? Mas tudoque eu viesse a descobrir naNoruega também pertencia

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firmemente ao meu passado, e euera uma pessoa que olhava para ofuturo. Mas talvez, já que o“agora” estava em suspenso,precisasse reverter a ordem paraseguir adiante. Decidi que tinhauma difícil escolha: voltar paraAtlantis ou pegar um avião para aNoruega. Quem sabe alguns diasde contemplação pessoal em umpaís novo, longe de tudo e detodos, fossem me fazer bem.Ninguém lá conheceria a minhahistória, e investigar o passadopelo menos me proporcionariaalgo em que me concentrar.Mesmo que não desse em nada.

Comecei a pesquisar voos

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para Oslo e encontrei um que saíaà noite e no qual havia vaga. Dei-me conta de que precisava sair decasa quase naquela mesma horapara chegar a Heathrow a tempo.Enquanto tentava tomar umadecisão, deixei meu olhar seperder no vazio.

– Vamos lá, Ally – falei paramim mesma, áspera, como dedosuspenso acima do clique queconfirmaria a reserva. – O quevocê tem a perder?

Nada.Além do mais, eu estava

pronta para saber.

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23

Nesse início de noite de agosto,enquanto o avião voava rumo aonorte, repassei as informaçõesque tinha sobre o Museu Ibsen e oTeatro Nacional de Oslo. Resolvique na manhã seguinte visitaria osdois lugares para ver se alguémconseguia esclarecer melhor asinformações que havia obtido nolivro de Jens Halvorsen.

Ao desembarcar do avião noaeroporto de Oslo, senti uma

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leveza inesperada e algo quaseparecido com animação. Apóspassar pela alfândega, fui diretoaté o guichê de informações eperguntei à moça atrás do balcãose ela poderia me sugerir umhotel próximo ao Museu Ibsen.Ela mencionou o Grand Hotel,ligou para lá e me disse que elessó tinham disponibilidade para osquartos mais caros.

– Tudo bem – falei. – Euaceito o que tiverem. – A mulherme entregou um pedaço de papelque confirmava a reserva depoischamou um táxi para mim e deuinstruções para que eu saísse e oaguardasse.

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No caminho até o centro deOslo, a escuridão tornou difícileu me localizar ou ter qualquerimpressão da cidade. Quandochegamos à imponente entrada depedra toda iluminada do GrandHotel, fui imediatamenteconduzida para dentro e, uma vezconcluídas as formalidades,levada até meu quarto, quedescobri se chamar “Suíte Ibsen”.

– Está bom para a senhora?– perguntou-me o carregador, eminglês, entregando-me a chave.

Olhei em volta, e acoincidência me fez sorrir ao vera linda saleta, de cujo teto pendiaum lustre elegante, e cujas

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paredes de seda listrada estavamenfeitadas por várias fotografiasde Ibsen.

– Está maravilhoso, muitoobrigada.

Dei gorjeta ao carregador e,depois que ele saiu, percorri oquarto maravilhada, pensando quepoderia muito bem me mudardefinitivamente para lá. Tomeiuma ducha, saí do banheiro aosom dos sinos da igreja quebatiam a meia-noite e me sentigrata por estar ali. Enfiei-meentre os lençóis de linhoengomados e dormi um sonoprofundo.

Na manhã seguinte, acordei

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cedo e fui até a diminuta sacadaadmirar a cidade à luz de umnovo dia. Logo abaixo havia umapraça margeada de árvores ecercada por uma mistura delindas construções de pedraantigas e outras mais modernas.Ergui o olhar para mais longe eavistei um castelo cor-de-rosa noalto de uma colina.

Entrei novamente no quarto eme dei conta de que não tinhacomido nada desde a hora doalmoço da véspera. Pedi um caféda manhã e me sentei na cama deroupão, sentindo-me uma princesaque acaba de encontrar seupalácio. Estudei o mapa que a

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recepcionista havia me dado nanoite anterior e vi que o MuseuIbsen ficava a uma curta distânciaa pé do hotel.

Depois de comer, me vesti edesci no elevador provida do meumapa. Ao atravessar a praça emfrente ao hotel, senti de repente ocheiro muito conhecido de mar eme lembrei de que Oslo haviasido construída em um fiorde.Reparei também na grandequantidade de ruivas de peleclara que passou por mim. NaSuíça, quando eu era pequena,tinha sofrido bullying na escolapor causa da cor da minha pele,das sardas e dos cachos ruivos

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dourados. Na época isso tinha memagoado, como sempre acontece,e eu me lembrava de terperguntado a Ma se podia tingiros cabelos.

– Não, chérie. Seus cabelossão a sua maior glória. Um diatodas essas meninas malvadasvão ficar loucas de inveja deles –fora a resposta dela.

Bem, pensei, continuando aandar, aqui eu com certeza nãovou chamar atenção.

Parei em frente a umimponente edifício de tijolosclaros, com várias colunas depedra cinza na entrada.

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TEATRO NACIONAL

Li a inscrição gravada acimada elegante fachada e reparei,logo abaixo, nos nomes de Ibsen ede dois outros homens dos quaiseu jamais tinha ouvido falargravados em placas de pedra.Seria aquele o teatro onde haviasido a estreia de Peer Gynt?,pensei. Para minha decepção, acasa estava fechada, então seguiandando pela rua movimentadaaté chegar à porta da frente doMuseu Ibsen. Entrei e me vi numapequena livraria. Na parede àesquerda havia um quadro de

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avisos com as datas dosprincipais acontecimentos daestelar carreira de Ibsen. Meucoração bateu um pouco maisdepressa quando li a data: 24 defevereiro de 1876 – Estreia dePeer Gynt no Teatro deChristiania.

– God morgen! Kan eghjelpe deg? – indagou a moçaatrás do balcão.

– A senhora fala inglês? –foi minha primeira pergunta.

– Claro – respondeu ela comum sorriso. – Posso ajudar?

– Bem, pode, ou pelo menoseu espero que sim. – Tirei a xeroxda capa do livro de dentro da

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bolsa e a coloquei no balcão àsua frente. – Meu nome é AllyD’Aplièse e estou fazendo umapesquisa sobre um compositorchamado Jens Halvorsen e umacantora chamada Anna Landvik.Os dois participaram da estreiade Peer Gynt no Teatro deChristiania. Gostaria de saber sealguém aqui poderia me falar umpouco mais sobre eles.

– Eu não, sou só umaestudante universitária quetrabalha aqui no caixa –confessou ela. – Mas vou lá emcima ver se o diretor do museuestá. O nome dele é Erik.

– Obrigada.

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Quando ela desapareceu poruma porta atrás do balcão, deiuma passeada pela loja e pegueiuma tradução em inglês de PeerGynt. Eu deveria, no mínimo, lera peça, pensei.

– Sim, Erik está, e vaidescer daqui a pouco para falarcom a senhora – confirmou amoça ao voltar. Agradeci-lhe epaguei pelo livro.

Alguns minutos depois, umsenhor elegante de cabelosbrancos apareceu.

– Olá, senhorita D’Aplièse.Meu nome é Erik Edvardsen –disse ele, estendendo a mão parame cumprimentar. – Ingrid falou

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que a senhorita está interessadaem Jens Halvorsen e AnnaLandvik.

– Sim – confirmei,retribuindo o aperto de mão e emseguida lhe mostrando a xerox dacapa do livro.

Ele pegou o papel e oexaminou com um meneio decabeça.

– Acho que tenho umexemplar lá em cima nabiblioteca. Se quiser meacompanhar...

Ele me conduziu por umaporta que se abria para um hall deentrada austero. Comparado àdecoração moderna da livraria,

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foi como dar um passo emdireção ao passado. O diretorabriu a porta antiquada doelevador, fechou-a apósentrarmos e apertou um botão.Enquanto subíamos aos sacolejos,apontou para um andar específicopelo qual passamos.

– Esse foi o apartamento emque Ibsen passou os últimos onzeanos de sua vida. Nós nosconsideramos privilegiados porsermos seus administradores.Mas me diga... – continuou eleenquanto saíamos do elevadorpara um recinto arejado, com asparedes cobertas de livros dochão ao teto. – A senhorita é

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historiadora?– Meu Deus, não – respondi.

– Foi meu pai quem me deixouesse livro. Ele morreu fazalgumas semanas. Na verdade, eudeveria dizer que o livro é maisuma pista, porque ainda não seimuito bem o que tem a vercomigo. Mandei traduzir o textopara o inglês, e até agora só li aprimeira parte. Só o que sei porenquanto é que Jens Halvorsenera músico e tocou os primeiroscompassos do “Amanhecer” naestreia de Peer Gynt. E que Annaera a “cantora fantasma” dascanções de Solveig.

– Para ser sincero, não sei

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muito bem quanto posso ajudá-la,porque o meu tema obviamente éIbsen, não Grieg. O que asenhorita precisa mesmo é de umespecialista em Grieg, e a pessoaideal para ajudá-la é o curador doMuseu Grieg em Bergen. – Elecorreu os olhos pelas prateleiras.– Mas tem algo que posso lhemostrar. Ah, aqui está. – Ele tirouda estante um volume grande. –Isto aqui foi escrito por RudolfRasmussen, conhecido como“Rude”, uma das crianças queatuaram na montagem original dePeer Gynt.

– Sim! Eu li sobre ele nolivro. Ele servia de mensageiro e

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entregava recados para Jens eAnna quando eles se apaixonaramno teatro.

– É mesmo? – indagou Erik,folheando o livro. – Veja, fotos danoite da estreia, com o elencointeiro em seus trajes.

Ele me entregou o livro eencarei, incrédula, o rosto daspessoas sobre as quais acabarade ler. Ali estavam HenrikKlausen como Peer Gynt e ThoraHansson como Solveig. Tenteiimaginá-la como uma estrelaglamorosa, sem os trajes decamponesa da personagem.Outras fotos mostravam o elencoreunido, mas eu sabia que Anna

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não estaria em nenhuma delas.– Posso fazer cópias das

fotos se a senhorita quiser –sugeriu Erik. – Assim poderáestudá-las com calma.

– Seria maravilhoso,obrigada.

Enquanto ele andava até acopiadora situada em um canto dabiblioteca, meu olhar topou com aplanta de um antigo teatro.

– Eu hoje passei pelo TeatroNacional e fiquei imaginandocomo ele devia ser quando PeerGynt estreou – comentei, paraquebrar o silêncio.

– Na verdade, Peer Gyntnão estreou no Teatro Nacional. A

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estreia foi no Teatro deChristiania.

– Ah. Pensei que fosse omesmo teatro que só tivessemudado de nome.

– Infelizmente, o antigoTeatro de Christiania já não existehá muito tempo. Ficava emBankplassen, a uns quinzeminutos daqui. Hoje é um museu.

Fiquei encarando as costasdele, meu queixo caído deassombro.

– Por acaso está se referindoao Museu de ArteContemporânea?

– Sim. O Teatro deChristiania foi fechado em 1899,

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e todos os espetáculos musicais,transferidos para o recém-construído Teatro Nacional. Aqui– disse ele, entregando-me ascópias.

– Bem, com certeza já tomeiseu tempo o suficiente, masobrigada mesmo assim por mereceber.

– Antes de a senhorita irembora, deixe-me lhe dar o e-mail do curador do Museu Grieg.Diga a ele que fui eu quem amandei. Com certeza ele vaipoder ajudá-la bem mais do queeu.

– Garanto que o senhor meajudou muito, Herr Edvardsen –

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assegurei-lhe enquanto eleanotava o endereço e me passava.

– Até eu, claro, admito que afama da música composta porGrieg para Peer Gynt ultrapassouem muito a do poema em si –disse ele com um sorriso ao meacompanhar até o elevador. – Amúsica hoje é cultuada mundoafora. Até logo, senhoritaD’Aplièse. Adoraria saber seconseguiu solucionar o mistério.E estarei sempre aqui, se precisarde mais alguma ajuda.

– Obrigada.Saí do museu e voltei quase

saltitando para o Grand Hotel. Ascoordenadas da esfera armilar

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finalmente faziam sentido.Quando entrei no Grand Café, queocupava um dos cantos da frentedo hotel, espiei o mural de Ibsenna parede e tive certeza de que,de alguma forma, Jens e Annafaziam parte da minha história.

Durante o almoço, segui asugestão de Erik e mandei um e-mail para o curador do MuseuGrieg. Então, por curiosidade,peguei um táxi até o local doantigo Teatro de Christiania. OMuseu de Arte Contemporâneaficava diante de uma praça comum chafariz no centro. Embora eusoubesse que Ceci adorariaaquele lugar, arte moderna não

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era o meu forte, e decidi nãoentrar. Então avistei o CaféEngebret do outro lado da praça,fui até lá e empurrei a porta.

Olhei em volta e vi mesas ecadeiras de madeira rústica,iguaizinhas às que eu haviaimaginado após ler a descriçãode Jens no livro. Um cheirocaracterístico pairava no ar:álcool rançoso, poeira e um toquemuito leve de umidade. Fechei osolhos e imaginei Jens e seuscolegas da orquestra ali dentro,bem mais de um século antes,afogando as mágoas no aquavitdurante horas. Pedi um café nobalcão e tomei a bebida quente e

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amarga, frustrada por não poderler a continuação da históriaporque a tradutora ainda não tinhame enviado o resto.

Saí do Engebret, peguei meumapa e resolvi flanar lentamentede volta ao hotel imaginandoAnna e Jens caminhando poraquelas mesmas ruas. Era óbvioque a cidade havia crescidodesde a época deles, masenquanto algumas partes eramultramodernas, muitasconstruções antigas lindascontinuavam de pé. Ao pisar devolta no Grand Hotel, haviachegado a uma conclusão: Oslotinha um charme especial. Havia

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algo de reconfortante no carátercompacto da cidade, e eu mesentia em casa ali.

No quarto, chequei meus e-mails e vi que o curador doMuseu Grieg já tinha respondido:

Cara senhorita D’Aplièse,Sim, já ouvi falar em Jens e

Anna Halvorsen. Como talvez asenhorita já saiba, Edvard Grieg foiuma espécie de mentor para os dois.Estou aqui em Troldhaugen, bempertinho de Bergen, das nove às quatrodiariamente, e teria prazer emencontrá-la e ajudá-la em suapesquisa.

Atenciosamente,Erling Dahl Jr.

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Sem ter a menor ideia deonde ficava Bergen, procurei ummapa da Noruega no Google e vique era uma cidade na costanoroeste; estava claro que euprecisava ir de avião. Ainda nãotinha percebido quanto aquelepaís era grande. Ao norte deBergen ainda havia mais um bompedaço, que continuava até oÁrtico. Decidi reservar um voopara a manhã seguinte e mandeium e-mail para o Sr. Dahldizendo que chegaria à cidade aomeio-dia.

Acabara de passar das seis,e ainda estava claro lá fora.Imaginei os longos invernos em

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que o sol se punha logo depois doalmoço e a neve caía forte,cobrindo tudo que tocava. Refletisobre como minhas irmãs volta emeia comentavam que eu pareciaimune ao frio e vivia abrindojanelas para deixar o ar frescoentrar. Eu sempre pensara estaracostumada com as baixastemperaturas por causa da vela.Lembrei-me, no entanto, de comoMaia tinha o dom de pegar umaquantidade mínima de sol e ficarcom a pele bronzeada em questãode minutos, enquanto eu tinhatendência a ficar da cor de umabeterraba: talvez o invernofizesse parte da minha herança,

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assim como os climasensolarados faziam parte da dela.

Involuntariamente, comeceia pensar em Theo, como semprefazia ao cair da noite. Sabia queele teria adorado me acompanharnaquela viagem, e decertoanalisaria minha reação ao queacontecia a cada passo docaminho. Fui para a cama, quenessa noite me pareceu grandedemais para uma pessoa só, e meperguntei se haveria alguém nomeu futuro capaz de um diaocupar o lugar dele. Duvidavaque houvesse. Antes de me deixarlevar pelas emoções, programei odespertador para as sete, fechei

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os olhos e tentei dormir.

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24

Do avião, a Noruega vista decima era simplesmentedeslumbrante. Lá embaixo,florestas verde-escurasmargeavam profundos fiordesazuis e uma neve branquinhareluzente coroava o topo dasmontanhas sempre congeladas,mesmo no início de setembro.Depois de aterrissar no aeroportode Bergen, pulei dentro de umtáxi e disse ao motorista para me

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levar direto a Troldhaugen,outrora casa de Grieg eatualmente um museu. Vista darodovia de duas pistas, a zonarural era um borrão de árvoressem fim, mas depois de algumtempo saímos da estradaprincipal e subimos umaestradinha de terra.

O táxi parou diante de umaencantadora casa de madeiraamarelo-clara; paguei omotorista, saltei e pus a mochilano ombro. Fiquei alguns instantesparada observando o exterior dacasa: as grandes janelasretangulares com moldura pintadade verde, a sacada de treliça no

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primeiro andar. Em um dos cantoshavia uma torre e a bandeira daNoruega tremulava ao ventopendurada em um mastro alto.

Vi que a casa ficava no altode uma colina com vista para umlago e era cercada por encostascobertas de grama e coníferasaltas e majestosas. Maravilhadacom a beleza tranquila daquelelugar, entrei em um edifíciomoderno identificado como aentrada do museu e me apresenteià moça sentada atrás do balcão dalojinha de presentes. Pedi-lhepara avisar ao curador que euhavia chegado e baixei os olhospara a vitrine embutida no balcão.

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Senti o ar me escapar.– Mon Dieu! – murmurei, o

choque do que via à minha frenteme fazendo voltar à minha línguamaterna.

Ali, dentro da vitrine, estavauma fileira de sapinhos marronsidênticos ao que Pa Salt havia medeixado no envelope.

– O curador Erling já vaidescer – disse a moça, pondo otelefone no gancho.

– Obrigada. Posso lheperguntar uma coisa? Por quevocês vendem estes sapinhos aquina loja?

– São réplicas do sapinhoque Grieg carregava consigo o

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tempo todo, como amuleto de boasorte – explicou a moça. – Osapinho vivia no bolso dele,aonde quer que ele fosse, e elesempre lhe dava um beijo de boa-noite antes de dormir.

– Oi, senhorita D’Aplièse.Sou Erling Dahl. Fez uma boaviagem? – Um atraente senhor decabelos grisalhos havia aparecidoao meu lado.

– Ah, sim, obrigada – falei,tentando me recompor depois darevelação do sapo. – E, por favor,pode me chamar de Ally.

– Está bem, Ally. Por acasoestá com fome? Em vez de irmosnos sentar na minha sala apertada,

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poderíamos ir ao café aqui dolado, comprar um sanduíche econversar lá. Pode deixar suamochila com Else. – Ele indicoua moça atrás do balcão.

– Perfeito – falei,entregando-lhe a mochila com ummeneio de cabeça agradecidoantes de seguir o curador por umaporta.

O cômodo que adentramostinha as paredes feitas quaseinteiramente de vidro, o queproporcionava uma vista de tiraro fôlego do lago por entre asárvores. Olhei para aqueleespelho d’água reluzente,salpicado de ilhas repletas de

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pinheiros, que se afastava rumo àmargem oposta no horizonteenevoado.

– O Lago Nordås.Magnífico, não? – comentouErling. – Às vezes nosesquecemos da sorte que temospor trabalhar em um lugar comoeste.

– Incrível – falei baixinho,emocionada. – Vocês têm sortemesmo.

Depois de pedir dois cafés edois sanduíches abertos, Erlingme perguntou em que podiaajudar. Mais uma vez, peguei ascópias que tinha feito do livro dePa Salt e expliquei o que

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desejava saber.Ele examinou os papéis.– Nunca li esse livro, mas

conheço a história por alto.Recentemente ajudei ThomHalvorsen, tataraneto de Jens eAnna, com as pesquisas para umanova biografia.

– Pois é. Encomendei o livronos Estados Unidos. Quer dizerque o senhor conhece ThomHalvorsen pessoalmente?

– Claro. Ele mora a poucosminutos a pé daqui, e acomunidade musical de Bergen émuito pequena. Ele toca violinona Filarmônica e foi recentementepromovido a maestro-assistente.

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– Então seria possívelencontrá-lo? – perguntei. Nossossanduíches chegaram.

– Com certeza, mas eleagora está em turnê com aorquestra nos EUA. Eles voltamdaqui a alguns dias. Mas, então,em que pé da pesquisa você está?

– Não terminei de ler abiografia original, pois aindaestou esperando o resto datradução. Cheguei ao ponto emque Jens foi expulso da casa dospais e Anna Landvik recebeu aproposta de representar o papelde Solveig.

– Entendi. – Erling sorriupara mim e olhou para o relógio.

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– Infelizmente agora não estoucom tempo de lhe contar maisnada porque falta meia hora parao nosso concerto da hora doalmoço. Mas, de toda forma,talvez seja melhor você ler oresto do livro original de Jens, edepois disso podemos conversar.

– Onde é o concerto?– Na nossa sala construída

especialmente para isso, quechamamos de Troldsalen. Nosmeses de verão, recebemospianistas convidados para tocarmúsicas de Grieg. O espetáculode hoje é o Concerto para Pianoem Lá Menor.

– Sério? E o senhor se

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importaria se eu assistisse?– De forma alguma –

respondeu ele, levantando-se. –Por que não termina seusanduíche e vai para a sala deconcerto? Enquanto isso, vou mecertificar de que está tudo bemcom nosso pianista.

– Ótimo. Obrigada, Erling.Forcei-me a terminar o

sanduíche, então subi a encostadensamente arborizada da colinae fui seguindo as placas até oprédio bem aninhado entre ospinheiros. Lá dentro, desci osdegraus do auditório muitoíngreme e vi que dois terços doslugares já estavam ocupados. O

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palco pequeno, no centro do qualse destacava um magnífico pianoSteinway de cauda, era cercadopor outras imensas janelas devidro, criando um impressionantefundo de pinheiros com o lagomais atrás.

Pouco depois de eu meacomodar em uma das cadeiras,Erling apareceu no palcoacompanhado por um rapazfranzino, de cabelos escuros, cujaaparência fora do comumimpressionava, mesmo de longe.O curador se dirigiu à plateiaprimeiro em norueguês, depoisem inglês, por causa dos muitosturistas presentes.

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– Tenho a honra de lhesapresentar o pianista WillemCaspari, um jovem que já deixousua marca em apresentaçõesmundo afora, a mais recente delasno Proms do Royal Albert Halllondrino. Ficamos felizes por eleter aceitado honrar este nossocantinho com a sua presença.

A plateia aplaudiu. Willemdeu um meneio de cabeçaimpassível, sentou-se ao piano eaguardou o auditório silenciar.Quando ele começou a tocar osprimeiros compassos, fechei osolhos e deixei a música metransportar de volta aoConservatório de Genebra, onde

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assistia a concertos toda semana emuitas vezes eu mesma tocavaneles. Antigamente, a músicaclássica era uma verdadeirapaixão para mim, mas percebi,para minha vergonha, que deviafazer pelo menos dez anos que eunão assistia sequer ao maismodesto dos concertos. À medidaque ia escutando Willem tocar evia suas mãos habilidosasdançarem com leveza sobre asteclas, senti minha tensão sedissipar e prometi a mim mesmaque, dali em diante, iria remediaraquela situação.

Terminada a apresentação,Erling veio me procurar e me

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levou até o palco para meapresentar a Willem Caspari. Orosto do pianista tinha umaestrutura óssea angulosa edramática, e a pele branca muitoesticada sobre os malaressaltados emoldurava um par deolhos azul-turquesa e uma bocade lábios carnudos e muitovermelhos. Tudo nele eraimpecável, dos cabelos escurosbem penteados aos sapatos pretosencerados; ele me lembrava umvampiro atraente.

– Muito obrigada por essaapresentação – disse-lhe eu. – Foilinda de morrer.

– O prazer foi meu –

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retrucou ele, enxugando as mãosdiscretamente com um lençobranco feito neve antes de apertara minha. Ao fazê-lo, estudou meurosto com atenção. – Tenho quasecerteza de que já nosconhecemos, sabia?

– É? – falei, constrangidapor não o ter reconhecido.

– Sim. Eu estudei noConservatório de Genebra. Achoque você tinha acabado de entrarquando eu estava no último ano.Além de ser excelentefisionomista, lembro-me do seusobrenome, que na época mepareceu pouco usual. Você éflautista, não é?

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– Sou – respondi, surpresa.– Ou pelo menos era.

– É mesmo, Ally? Você nãome disse isso mais cedo –comentou Erling.

– Bom, já faz muito tempo.– Não toca mais? – indagou

Willem. Ele ajeitou as lapelas deforma meticulosa, no queobviamente era um ritualsubconsciente, mais do que umatentativa de impressionar.

– Na verdade, não.– Se bem me lembro, fui a

um recital seu uma vez. Vocêtocou “Sonata para Flauta ePiano”?

– Toquei, sim. Sua memória

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é mesmo incrível.– Para as coisas das quais

quero me lembrar, sim. Isso temum lado bom e um lado ruim, eulhe garanto.

– Que interessante, porque omúsico sobre o qual Ally estápesquisando também era flautista– interveio Erling.

– E sobre quem você estápesquisando, se é que possoperguntar? – quis saber Willem,com os olhos luminosos fixos emmim.

– Um compositor norueguêschamado Jens Halvorsen e amulher dele, Anna, que eracantora.

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– Acho que nunca ouvi falar.– Os dois eram muito

conhecidos aqui na Noruega,principalmente Anna – disseErling. – E agora, dependendodos seus planos, talvez vocêqueira dar uma olhada na casa deGrieg e quem sabe visitar acabana na montanha onde elecompunha?

– Sim, obrigada. Vou fazerisso.

– Você se importa se euacompanhá-la? – perguntouWillem, ainda a me observar coma cabeça inclinada para o lado. –Cheguei a Bergen ontem à noite etambém ainda não tive

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oportunidade de passear por aí.– De forma alguma, venha –

falei; concluí que seria melhorcaminhar ao lado dele do queficar ali parada sob aquele olharaparentemente desinteressado,mas muito focado.

– Então vou deixá-los àvontade – falou Erling depressa.– Passe na minha sala para sedespedir quando for embora. Eobrigado pela apresentaçãomemorável de hoje, Willem.

Willem e eu saímos da salade concerto com Erling e, emseguida, subimos os degraus entreas árvores na direção da casa.Entramos e fomos até a sala de

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estar com piso de tábua corrida,que tinha um velho Steinway decauda junto a uma das paredes. Orestante do cômodo estavadecorado com uma ecléticamistura de móveis rurais rústicose peças mais elegantes denogueira e mogno. Retratos equadros de paisagens competiampor atenção nas paredesrevestidas de pinho.

– Ainda tem um clima decasa de verdade – comentei comWillem.

– Tem mesmo – concordouele.

Espalhadas em porta-retratos por toda a sala havia

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fotos de Grieg e da mulher, Nina,e uma delas em especial, quemostrava os dois em pé junto aopiano, chamou minha atenção.Nina exibia um sorriso suave eGrieg uma expressão inescrutávelpor baixo das grossassobrancelhas e do bigode farto.

– Como os dois sãopequenos em comparação com opiano – comentei. – Parecem doisbonequinhos!

– Parece que eles malpassavam de um metro e meio. Esabia que Grieg sofria depneumotórax? Ele usava umaalmofadinha dentro do paletópara disfarçar o pulmão

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colapsado quando erafotografado, e é por isso que estásempre com a mão no peito,segurando a almofada no lugar.

– Que fascinante –murmurei. Seguimos passeandopela sala e examinando asdiversas vitrines.

– Mas me diga, por que vocêdesistiu da música? – perguntouWillem de repente, repetindo umpadrão de conversa que eu estavacomeçando a conseguiridentificar: era como se eletivesse feito um X numquadradinho que dizia “itemprocessado” antes de passar aotópico seguinte da lista.

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– Virei velejadoraprofissional.

– E trocou a flauta pela gaitade foles? – Ele riu baixinho daprópria piada. – Sente falta detocar?

– Para ser sincera, nosúltimos anos nem tive tempo paraisso. Dediquei toda a vida à vela.

– Já eu não consigo imaginarviver sem música – falou Willem,apontando para o piano de Grieg.– Esse instrumento é minhapaixão e minha dor, a força quemove a minha vida. Chego a terpesadelos em que fico com artritenos dedos. Sem minha música eunão tenho nada, entende?

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– Então talvez você tenhamais fé do que eu na própriahabilidade. Quando eu estava noConservatório, tinha a sensaçãode ter chegado a um patamar. Pormais que praticasse, não sentiaque estava progredindo.

– Eu me senti assim todos osdias durante anos, Ally. Acho queé da natureza da profissão.Preciso acreditar que estouprogredindo, sim, do contrário memataria. E agora? Vamos dar umaolhada na cabana onde o grandehomem compôs algumas de suasobras-primas?

A cabana ficava a uma curtadistância a pé da casa. Olhei

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pelas vidraças da porta da frentee vi um modesto piano de armárioencostado em uma das paredes,com uma cadeira de balanço aolado e uma escrivaninha bem emfrente à grande janela com vistapara o lago. E ali, em cima daescrivaninha, havia outro sapinhoidêntico ao meu. Decidi nãocompartilhar com Willem o queestava pensando.

– Que vista! – comentou elecom um suspiro. – Basta paraservir de inspiração a qualquerum.

– Mas aqui é muito isolado,você não acha?

– Eu não me importaria.

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Ficaria bastante feliz sozinho.Sou muito autossuficiente – disseele, dando de ombros.

– Eu também, mas mesmoassim acho que acabariaenlouquecendo. – Abri umsorriso. – Vamos voltar?

– Vamos. – Ele olhou para orelógio. – Uma jornalista vai meentrevistar no hotel às quatro datarde. A recepcionista daqui falouque chamaria um táxi para mim.Onde você está hospedada? Quemsabe posso lhe dar uma carona devolta até a cidade.

– Na verdade, ainda nãoreservei nenhum hotel – faleienquanto tornávamos a subir a

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encosta. – Tenho certeza de queconsigo achar um lugar pelocentro de informações turísticas.

– Você poderia ver se hávaga no meu hotel. É muito limpoe fica de frente para o portoantigo, com uma vista linda parao fiorde. – Tornamos a entrar naárea da recepção principal. –Estou muito impressionado comsua atitude despreocupada emrelação à hospedagem –acrescentou ele. – Quando estouviajando, preciso reservar comdias de antecedência e saberexatamente onde vou ficar, docontrário enlouqueço.

– Talvez sejam todos esses

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anos velejando que me deramuma atitude mais descontraída.Sou capaz de dormir em qualquerlugar.

– Eu não, talvez por ser maisobsessivo do que a maioria daspessoas. Minha mania deorganização enlouquece todomundo que me conhece.

Peguei minha mochila comElse, a moça do caixa, e fuiaguardar junto à entrada enquantoWillem providenciava o táxi.Enquanto o observavadiscretamente, notei que a suatensão interna se revelavafisicamente na postura: eleparecia um soldado, com todos os

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tendões retesados, abrindo efechando as mãos enquanto Elsefalava com a empresa de táxi.

Determinado, foi o adjetivoque me veio à mente.

O táxi chegou eembarcamos.

– Mas onde você moraquando não está velejando nemprocurando músicos e suasesposas mortos há séculos? –perguntou ele.

– Em Genebra, na casa daminha família.

– Quer dizer que não temuma casa permanente só sua?

– Não. Na verdade nuncaprecisei. Eu vivo viajando.

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– Essa é outra diferençaentre nós dois. Meu apartamentoem Zurique é o meu refúgio.Chego a ter que me forçar paranão pedir às pessoas que mevisitam que tirem os sapatos ouobrigá-las a limpar as mãos comlenços umedecidosantibacterianos.

Pensei no modo como elehavia limpado discretamente asmãos após tocar piano mais cedo.

– Sei que sou esquisito,então não precisa ficarconstrangida por achar isso –arrematou ele, bem-humorado.

– A maioria dos músicos queeu conheci é excêntrica. Minha

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tendência é pensar que isso fazparte do temperamento de umartista.

– Ou talvez de um “autista”,como diz meu terapeuta. Pode serque a diferença entre os dois sejamuito pequena. Minha mãe dizque eu preciso estar em umrelacionamento para dar um jeitoem mim, mas não consigoimaginar pessoa nenhuma capazde suportar minhasexcentricidades. Você temalguém?

– Eu... tinha, mas ele morreualgumas semanas atrás – revelei,olhando pela janela do carro.

– Eu sinto muito, Ally. Meus

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sentimentos.– Obrigada.– Não sei o que dizer.– Não se preocupe, ninguém

sabe – reconfortei-o.– Foi por isso que você veio

para a Noruega?– É, acho que foi.O táxi começou a percorrer

lentamente um dos lados do beloporto, margeado por construçõesde madeira pintadas em tonsalternados de branco, amarelo-claro, ocre e amarelo vivo, comos típicos telhados de tijolosvermelhos em formato de V.Todas essas cores de repenteficaram borradas diante dos meus

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olhos quando senti as lágrimasbrotando.

– Bem... – Após uma longapausa, Willem limpou a garganta.– Eu em geral não falo sobre isso,mas tenho uma experiência emprimeira mão do que você estápassando. Perdi a pessoa comquem era casado faz cinco anos,logo depois do Natal. Não é umarecordação boa.

– Então eu também sintomuito. – Afaguei seu punhocerrado, e dessa vez foi ele quemdesviou o olhar.

– No meu caso, foi umabênção e um alívio. No final, Jackjá estava muito, muito doente. E

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no seu caso, o que houve?– Um acidente no mar. Em

um minuto Theo estava lá, nominuto seguinte não estava mais.

– Para ser sincero, não seiqual das duas coisas é pior. Eutive tempo para aceitar o queaconteceu, mas mesmo assim fuiobrigado a ver alguém que euamava sofrer. Acho que ainda nãosuperei. Enfim, desculpe, nãoquero deixar você mais triste doque já deve estar.

– Não precisa se desculpar.De um jeito esquisito, éreconfortante saber que outros jápassaram pelo que estoupassando – respondi. O táxi

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encostou em frente a um prédioalto de tijolos.

– Este é o meu hotel. Por quenão entra e pergunta se tem algumquarto vago? Duvido que váconseguir coisa muito melhor.

– Certamente com uma vistamelhor seria impossível –concordei. Ao descer do táxi, vique o hotel Havnekontoret ficavaa poucos metros do final do caisno qual estava ancorada umalinda escuna antiga de mastroduplo. – Theo teria gostado –murmurei, feliz por poder dizerisso sabendo que Willementenderia na hora.

– Sim. Me dê aqui, deixe

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que eu carrego a mochila paravocê.

Pedi ao taxista para esperaralguns minutos e entrei no hotelatrás dele para perguntar narecepção se havia algumaacomodação disponível. Depoisde reservar um quarto, tornei asair e liberei o motorista.

– Bem, fico feliz que essaparte esteja resolvida. – Willemestava parado na recepção, tenso.– Parece que a minha jornalista jáchegou. Odeio jornalistas, masvamos lá. Nos vemos mais tarde.

– Claro – falei, e ele seafastou em direção a uma mulherque o aguardava no lobby.

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Depois de entregar o cartãode crédito à recepcionista e pegara senha da internet sem fio, entreino elevador e subi até o quarto,que ficava debaixo do telhado etinha uma vista esplendorosa parao porto. Como a noite já estavacaindo, troquei os jeans por calçade moletom e suéter de capuz eliguei o laptop. Enquantoaguardava a conexão, pensei emWillem e em como, apesar detoda a sua estranheza, haviagostado dele. Verifiquei meus e-mails e vi que havia outramensagem da tradutoraMagdalena Jensen.

De:

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[email protected]: [email protected]: Grieg, Solveig og jeg /

Grieg, Solveig e eu1o de setembro de 2007Cara Ally,Segue em anexo o resto da

tradução. Mandarei o original do livropara seu endereço em Genebra.Espero que goste da leitura. É umahistória interessante.

Um abraço,Magdalena

Cliquei em “abrir anexo” efiquei esperando impaciente queas páginas carregassem. Entãoretomei a leitura...

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Anna

Christiania, NoruegaAgosto de 1876

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25

– Anna, Kjære, que alegria tê-lade volta aqui conosco – disseFrøken Olsdatter ao recebê-la noapartamento e pegar sua capa. –Com Herr Bayer em Drøbak, avida aqui anda silenciosa demais.Como foi sua estadia no campo?

– Foi ótima, obrigada,apesar de curta demais –respondeu Anna, seguindo agovernanta até a sala.

– Aceita um chá?

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– Adoraria.– Então vou trazer.Quando Frøken Olsdatter

saiu da sala, Anna pensou emcomo estava contente por estar devolta a Christiania e poderaproveitar a gentil solicitude damulher mais velha. Mesmo que eutenha ficado mimada, não ligo,pensou, suspirando de alívio aopensar que iria dormir em umcolchão confortável e acordar namanhã seguinte com uma bandejade café da manhã. Sem falar napossibilidade de um banhoquente...

Frøken Olsdatterinterrompeu seus pensamentos ao

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retornar trazendo uma bandeja dechá.

– Bem, tenho uma notíciapara você – disse ela, servindo abebida em duas xícaras deporcelana e entregando uma delasa Anna. – Herr Bayer não vaipoder voltar para Christiania tãocedo. Sua pobre mãe está muitodoente, e ele não pode sair deperto dela. Acha que o fim estápróximo e naturalmente desejaestar ao seu lado. Sendo assim,você ficará sob os meus cuidadosaté ele voltar.

– Lamento que a queridamãe dele esteja tão doente – disseAnna, embora não lamentasse

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nem um pouco que a volta deHerr Bayer houvesse sido adiada.

– Como os ensaios sãodurante o dia, eu a acompanhareide bonde até o teatro na ida e navolta. Depois de terminar o seuchá, você tem que dar uma olhadaem seu novo guarda-roupa. Ostrajes de inverno que Herr Bayerencomendou na modistachegaram. Ficaram esplêndidos,esplêndidos mesmo. Chegoutambém uma carta para você, quedeixei no seu quarto.

Dez minutos depois, Annaabriu a porta do armário e oencontrou repleto de várioslindos trajes feitos à mão. Havia

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blusas de seda e musselina bemmacias, saias de lã da melhorqualidade e dois esplendorososvestidos de noite: um cor detopázio, o segundo rosa-cháescuro. Havia também doisespartilhos novos, várias calçolase meias finas como teias dearanha.

Pensar que Herr Bayer haviaencomendado para ela peças tãoíntimas lhe provocou um calafrio,mas ela relegou esse pensamentoao fundo da mente, imaginandoque decerto fora Frøken Olsdatterquem tinha providenciado afabricação daquelas peças. Sobreuma prateleira alta havia dois

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pares de sapatos de salto, umforrado com a mesma seda rosaescura do vestido e uma pequenafivela de prata em cima, e o outrocor de marfim com bordadosbrancos. Ela calçou os cor-de-rosa e viu uma caixa de chapéu,que pegou com todo o cuidado.Ao levantar a tampa, deu umarquejo. O chapéu combinavacom o vestido cor-de-rosa e tinhao arranjo mais complexo deplumas e fitas que já vira. Annarecordou o dia em quedesembarcara pela primeira vezna estação de trem de Christianiae quanto ficara maravilhada comos chapéus das senhoras. Aquele

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ali era mais lindo do quequalquer outro, concluiu aopousá-lo com cuidado sobre acabeça. Enquanto experimentavacaminhar pelo quarto com ossapatos e o chapéu novos, sentiu-se mais alta e de certa maneiramais velha, e pensou, semacreditar, no quanto haviamudado desde que chegara àcidade.

Então sentou-se, com ochapéu ainda na cabeça, e pegoua carta que Frøken Olsdatterhavia lhe deixado. Antes de abri-la com grande hesitação, viu queera de Lars e deu um suspiro,apreensiva com o conteúdo.

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Stalsberg VåningshusetTindevegen

Heddal

22 de julho de 1876

Minha caríssima Anna,Prometi lhe escrever

para explicar em detalhes abreve conversa que tivemosna noite do casamento doseu irmão.

Nos últimos meses, temficado óbvio para mim que

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a vida em Christianiaalterou suas expectativas evisões do futuro. Por favor,cara Anna, não se sintaculpada por isso. É muitonatural que essas coisastenham mudado. Você temum grande talento que estásendo moldado por pessoasimportantes, capazes deincentivá-la e de revelá-laao mundo.

Mesmo que seus paisacreditem que poucomudou, sei que muita coisaestá diferente. Estrelarcomo Solveig no Teatro deChristiania neste outono é

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uma oportunidade fadada amodificar a sua vida aindamais. Por mais que sejadifícil, preciso aceitar quecasar-se comigo talvez nãolhe agrade como antes. Se éque algum dia agradou, oque duvido muito.

Entendo que suaretidão moral e seu bomcoração jamais lhe teriampermitido expor seusverdadeiros sentimentos.Além de me magoar, vocênão teria querido correr orisco de decepcionar seuspais. Portanto, comoconversamos, direi a eles

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que decidi que não possomais esperar por você. Seupai já comprou minhasterras, e esse arranjofinanceiro me convém.Assim como você não édada aos afazeresdomésticos, eu não souagricultor, e agora que meupai morreu pouca coisa meprende aqui.

E pelo visto existe umaalternativa.

Anna, preciso lhecontar que tive notícias deScribner, o editor de NovaYork para quem lhe conteique havia mandado meus

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poemas. Eles querempublicá-los e me ofereceramum pequeno adiantamento.Como você sabe, meu sonhosempre foi ir para osEstados Unidos. Com odinheiro que seu pai mepagou pelas terras, tenho osuficiente para comprar apassagem. Você podeimaginar quanto essaperspectiva me deixaanimado. Ter meus poemaspublicados naquele país éuma honra imensa. Meumaior desejo teria sidofazer de você minha esposae levá-la comigo, para

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juntos podermos construiruma nova vida por lá. Masesta não é uma boa horapara você. E Anna, para sersincero, mesmo que fosse,entendo que você não tenhaconseguido me amar comoeu a amei.

Não guardo mágoa devocê e lhe desejo tudo debom. De um jeito estranho,o Senhor deu a nós doisliberdade para seguirnossos caminhos, ainda queeles não possam seencontrar. Apesar do fato deque não vamos mais sermarido e mulher, espero

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poder continuar seu amigo.Zarparei para os

Estados Unidos daqui a seissemanas.

Lars

Anna pousou a carta na camaa seu lado e ficou sentada, muitoocupada com seus pensamentos,sentindo-se ao mesmo tempocomovida e perturbada.

Estados Unidos...Repreendeu-se por ter acreditadoque esse fosse um sonhoinalcançável de Lars e por não terlevado o rapaz a sério. Agora aliestava ele, com os poemas

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prestes a serem publicados emsolo americano e a possibilidadede, um dia, seguir os passos dopróprio Herr Ibsen.

Pela primeira vez, parou dever Lars como uma vítima, comoum triste cão a ser afagado. Avenda de suas terras a Anders,como ele mesmo havia escrito emsuas cartas, fora sua chance detambém fugir de Heddal e ir atrásde seu sonho, assim como ela.

Essa parte, pelo menos, erareconfortante.

Será que ela teria ido paraos Estados Unidos com Lars casoele a houvesse convidado?

– Não.

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A resposta saiu de sua bocasem querer. Ela se deitou decostas na cama, e o chapéu deseda novo escorregou para afrente e lhe cobriu os olhos.

Apartamento 4Portão de São Olavo,

10Christiania

4 de agosto de 1876

Caro Lars,Obrigada pela sua

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carta. Estou muito feliz coma sua sorte. Espero que meescreva dos EstadosUnidos. E, por favor, aceiteminha gratidão por tudoque fez por mim. Sua ajudapara me ensinar a ler eescrever tornou possívelminha vida aqui emChristiania.

Mande todo meu amorpara Mor e Far. Espero queeles não gritem com vocêquando lhes disser que nãohaverá casamento, e émuita generosidade suaassumir a culpa.

Espero que você

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encontre uma esposa bemmelhor do que eu nosEstados Unidos. Tambémdesejo continuar sua amiga.

Espero que não enjoeno mar.

Anna

Quando ela pôs o lacre nacarta, o impacto do que Larshavia lhe contado a atingiu. Agoraque ele seria apenas seu amigo eestava de partida para os EstadosUnidos, percebeu que sentiria suafalta.

Será que eu deveria ter mecasado com ele?, pensou.

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Levantou-se e foi até a janelaespiar a rua lá embaixo. Ele eratão bom, tão gentil. Eprovavelmente vai fazer fortunalá, enquanto eu posso muito bemmorrer solteirona...

Mais tarde, ao subir ocorredor e pôr a carta sobre asalva de prata para que fossepostada, sentiu o último e tênuefio que a prendia à sua velha vidafinalmente se romper.

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Os ensaios de Peer Gyntcomeçaram três dias depois. Osoutros integrantes do elenco,muitos dos quais haviamparticipado da montagemoriginal, se mostraram gentis esolícitos com Anna, mas, seaprender uma canção e cantá-lanão lhe causava dificuldadealguma, ser atriz se revelou bemmais complicado do que elapensava. Às vezes ela ia até olugar certo no palco, masesquecia de dizer sua fala nocaminho; outras vezes selembrava de andar e de falar, masse esquecia de expressar aemoção adequada com o rosto.

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Herr Josephson, o diretor,demonstrou grande paciência,mas Anna teve a sensação de queaquilo era meio como ter queesfregar a barriga e dar tapinhasna própria cabeça ao mesmotempo que dançava polca.

Depois do quarto dia deensaios, perguntou-se,desanimada, se algum diaacertaria. Na saída do teatro, deuum gritinho de espanto ao sentir amão de alguém segurá-la pelobraço enquanto andava emdireção à entrada dos artistas.

– Ouvi dizer que estava devolta a Christiania, FrøkenLandvik. Como foi sua estadia no

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campo?Era Jens Halvorsen, o

Canalha. A proximidade fez ocoração de Anna bater mais fortee, embora ele tenha soltado seubraço, não retirou a mão. Elapôde sentir o calor daquele toqueatravés da manga da roupa eengoliu em seco. Virou-se paraele e ficou chocada ao constatar oquanto o rapaz havia mudado.Seus cabelos encaracolados antesbrilhantes pendiam sem vida emvolta do rosto, e as roupas de boaqualidade estavam amarrotadas esujas. Ele parecia não tomar umbom banho havia semanas, algoque seu olfato confirmou.

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– Eu... minha acompanhanteestá lá fora – sussurrou ela. – Porfavor, deixe-me em paz.

– Vou deixar, mas não antesde lhe dizer que fiqueidesesperado de saudade dasenhorita. Com certeza a estaaltura já lhe provei meu amor eminha lealdade, não? Por favor,eu lhe imploro, diga que aceita seencontrar comigo.

– Não, não aceito –respondeu Anna.

– Bem, nada me impede devir encontrá-la aqui no teatro, nãoé mesmo, Frøken Landvik? –falou ele bem alto enquanto elasaía apressada pela porta dos

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artistas e esta se fechava com umbaque alto.

Nas semanas seguintes, Jensesperou Anna sair do teatro todosos dias após os ensaios.

– Herr Halvorsen, isso estáficando mesmo muito irritante –sussurrava-lhe ela entre os dentesenquanto Halbert, o porteiro,assumia seu lugar na primeira filaassistindo àquela corte.

– Excelente! Nesse caso,talvez a senhorita ceda e pelomenos permita que eu a leve paratomar um chá.

– Minha acompanhanteficará encantada em ir conosco.Por favor, queira informá-la

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sobre o seu pedido – dizia-lhe elaao passar, tentando reprimir umsorriso.

Na realidade, aquelesencontros eram a parte do dia queAnna mais esperava, e ela haviacomeçado a relaxar um pouco,pois sabia que os dois estavamenvolvidos em um emocionantejogo de gato e rato. Como Larsnão estava mais “à sua espera” –sem falar no fato de ela terpassado o longo verão sonhandocom Jens –, apesar dos seusesforços, sua determinaçãocomeçou a fraquejar.

Na segunda-feira seguinte,após um fim de semana

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interminável trancada noapartamento, Frøken Olsdatteranunciou que precisava ir até ooutro lado da cidade resolver umassunto de Herr Bayer.Considerou Anna responsável osuficiente para voltar de bondesozinha. Ao sair do palco, a moçaentendeu que havia chegado ahora de se render.

Como sempre, Jens aaguardava no corredor perto daentrada dos artistas.

– Quando vai me dizer sim,Frøken Landvik? – indagou ele,cabisbaixo, quando ela passou. –Devo admitir que, apesar de euser resistente, sua rejeição aos

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poucos está minando minhadeterminação.

– Hoje? – disse ela,virando-se para ele com ummovimento abrupto.

– Eu... ora... está bem.Anna saboreou com

satisfação a surpresa do rapaz.– Vamos ao Café Engebret,

do outro lado da praça – disseele. – Fica a um minuto a pédaqui.

Anna já tinha ouvido falar noEngebret, e na sua opinião aqueleparecia um lugar de fato muitoempolgante.

– Mas e se alguém nos vir?As pessoas vão achar inadequado

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eu estar sem acompanhante.– Improvável – falou Jens

com uma risadinha. – O Engebreté frequentado em grande parte porboêmios e músicos bêbados, quesequer piscariam o olho se vocêtirasse a roupa toda e dançasseem cima da mesa! Ninguém vainem reparar em nós, prometo.Venha, Frøken Landvik, estamosperdendo tempo.

– Está bem, então. – Annafoi dominada por um arrepio deanimação.

Os dois saíram do teatro emsilêncio e atravessaram a praçaaté o café, onde Anna apontoupara uma mesa no canto mais

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escuro e tranquilo doestabelecimento. Jens pediu chá.

– Conte-me: como foi seuverão?

– Pelo visto, bem melhor doque o seu. O senhor... não estácom um aspecto nada bom.

– Ora, obrigado porformular a questão de modo tãocortês. – A franqueza de Anna ofez rir baixinho. – Não estoudoente, só ando pobreultimamente e muito necessitadode um bom banho e de uma trocade roupa. Segundo Simen, quetambém toca na orquestra, agoravirei um músico de verdade. Eletem sido muito bondoso comigo e

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me deu um teto quando fuiforçado a sair de casa.

– Meu Deus! Por quê?– Meu pai não aprovou

minhas aspirações musicais.Desejava que eu seguisse os seuspassos e administrasse a suacervejaria, como fizeram meusantepassados.

Anna o encarou com umaadmiração renovada. Comcerteza, pensou, devia ter sidonecessário grande força decaráter para abrir mão da famíliae dos confortos de um lar emnome da arte.

– Enfim, agora que atemporada no teatro está

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começando e que estou finalmenteganhando algum dinheiro, vou memudar para acomodações maisadequadas. Otto, o oboísta, medisse ontem que pode me alugarum quarto no apartamento dele.Sua mulher morreu faz pouco, ecomo ela era bastante rica, esperopoder viver em um ambiente maissadio. A casa dele fica a cincominutos a pé da sua, Anna.Seremos quase vizinhos. Asenhorita poderá ir tomar chácomigo lá.

– Fico feliz em saber que osenhor vai estar mais confortável– afirmou ela, tímida.

– E, enquanto eu me

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encontro na sarjeta, a sua estrelavai subindo veloz! Talvez asenhorita se torne a ricabenfeitora de que todo músicoprecisa – brincou ele. O cháchegou. – Veja só essas roupasfinas e esse chapéu elegante deParis. A senhorita ultimamente émesmo o retrato de uma jovemrica.

– Pode ser que a minhaestrela caia com a mesma rapidezcom a qual parece ter subido.Considero-me uma péssima atrize provavelmente perderei oemprego muito em breve –confessou Anna de repente, gratapor poder dizer isso a alguém.

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– E eu estou igualmentecerto de que isso não é verdade.Quando a orquestra se reuniuontem pela primeira vez, ouviHerr Josephson dizer a Hennumque a senhorita estava “evoluindobastante bem”.

– Herr Halvorsen, o senhornão está entendendo. Ficar diantede uma plateia e cantar nunca foiuma preocupação para mim, masdizer falas e interpretar umpersonagem é outra coisa. Achoque eu talvez esteja até com medodo palco – disse Anna, mexendodistraidamente na asa da xícara. –Não consigo nem imaginar comoterei coragem de aparecer em

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frente ao público na noite daestreia.

– Anna, você... possochamá-la de você? Sinto que jános conhecemos bem o suficientepara tanto.

– Acho que pode, sim. Pelomenos quando estivermos a sós.

– Obrigado. Bem,continuando o que eu estavadizendo, Anna, tenho certeza deque você estará tão linda e que oseu canto será tão encantador queninguém vai reparar no que vocêdisser.

– É muita gentileza sua...Jens, mas não estou nemconseguindo dormir à noite. Não

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quero decepcionar ninguém.– E tenho certeza de que isso

não vai acontecer. Agora me diga,como vai aquele pretendente lá nasua cidade?

– Está indo para os EstadosUnidos. Sem mim – respondeu elacom cautela, evitando encará-lo.– Não estamos maiscomprometidos.

– Que pena, mas confessoque saber isso faz de mim umhomem feliz. Você não me sai dacabeça desde o nosso últimoencontro. Foi a única coisa queme permitiu atravessar esse verãotão difícil. Percebi que estoucompletamente apaixonado por

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você.Anna o encarou por alguns

instantes antes de responder.– Como é possível uma

coisa dessas? Você mal meconhece. Nunca conversamos pormais de poucos minutos. Semdúvida aquilo que nos faz nosapaixonar por alguém é o caráter,não? E para isso é precisoconhecer bem a pessoa.

– Eu sei muito mais a seurespeito do que você pensa. Porexemplo, vejo que é modesta pelomodo como enrubesceu quando aplateia se levantou para aplaudi-la após seu triunfo no recital. Seique não tem pretensões quanto à

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sua aparência pelo modo comonão se pinta. Entendo também queé virtuosa, leal e dona de um fortesenso moral, o que dificultoubastante minha tarefa deconquistá-la. O que também meleva a acreditar que seja teimosafeito uma mula quando decidealguma coisa. Pois na minhaexperiência é coisa rara umamulher nem sequer dar uma lidarápida nas cartas de umpretendente antes de jogá-las aofogo... ainda que realmenteconsidere inadequada a sua corteinsistente.

Anna deu o melhor de sipara não demonstrar assombro

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com o poder de percepção dele.– Bem – falou, engolindo em

seco. – Há muitas coisas quevocê não sabe. Como porexemplo que minha mãe ficadesesperada com minha falta detalento para as atividadesdomésticas. Sou péssimacozinheira e também não seicosturar. Meu pai diz que só seicuidar de animais, não de gente.

– Nesse caso, viveremos deamor e compraremos um gato –respondeu Jens com um sorriso.

– Me perdoe, mas precisomesmo pegar meu bonde e voltarpara casa – disse Anna.Levantou-se, tirou algumas

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moedas da bolsa e as colocousobre a mesa. – Por favor, deixe-me pagar o chá. Até logo... Jens.

– Anna. – Na hora em queela se virou para partir, elesegurou sua mão. – Quandotornarei a vê-la?

– Como você bem sabe,estou no teatro todos os dias, dasdez às quatro.

– Então estarei lá amanhã àsquatro – disse ele às suas costas,observando-a seguir apressada nadireção da porta.

Depois que ela saiu, Jensbaixou os olhos para as moedasna mesa e viu que eramsuficientes para pagar o chá e lhe

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comprar uma tigela de sopa e umcopo de aquavit.

Uma vez na segurança dobonde, Anna fechou os olhos eabriu um sorriso sonhador. Estarsozinha com Jens Halvorsen tinhasido maravilhoso. Quer fosse anova situação dele ou apenas suaperseverança ao cortejá-la, elenão lhe parecia mais o homemorgulhoso e cheio de si que elaachava antes.

– Ah, Deus – rezou ela nessanoite. – Por favor me perdoe seeu disser que Jens Halvorsen, oCanalha, não é mais tão canalhaassim. Que ele foi testado emodificou seu comportamento.

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Como o Senhor sabe, eu fiz o quepude para não ceder à tentação,mas agora... – Anna mordeu olábio. – Agora eu acho que talvezceda. Amém.

Nos dias que antecederam aestreia, Anna e Jens seencontraram diariamente após osensaios. Preocupada com o quepudessem falar no teatro, elasugeriu que ele a aguardassedentro do Engebret. O fim da

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tarde era o horário mais tranquilono café, e aos poucos Annacomeçou a relaxar e a sepreocupar menos em manter asaparências. Um dia, quando Jensbuscou sua mão debaixo da mesa,ela deixou que ele a segurasse.Isso abriu um precedente, e osdois agora se sentavam quasetodos os dias com os dedosdiscretamente entrelaçados.Assim, ficava um pouco difícilservir o chá e o leite com apenasuma das mãos, mas cada segundovalia a pena.

Jens estava bem maisparecido com o que era antes.Havia se mudado para o

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apartamento de Otto e, como tinhalhe descrito com precisão dedetalhes, passado por umtratamento completo para selivrar dos piolhos. Noapartamento havia umaempregada que também lavaratodas as suas roupas, e Annaestava aliviada com o fato de eleagora ter um cheiro bem melhor.

Mais do que tudo, porém,era a lembrança do contato dapele dele com a sua – um toqueinocente se visto de fora, mas queprometia muito mais – queocupava os pensamentos de Annadia e noite. Ela finalmenteentendia como Solveig se sentia e

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por que havia sacrificado tantacoisa por seu Peer.

Muitas vezes os doisficavam sentados juntos sem dizernada, com o chá esquecido emcima da mesa, saboreando apenasa visão um do outro. EmboraAnna dissesse a si mesma paratomar cuidado, sabia que enfimtinha se rendido a ele... e queestava cada vez mais enredadaem seu feitiço.

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26

Três dias antes da estreia danova temporada de Peer Gynt noTeatro de Christiania, o árduoprocesso de reunir orquestra eelenco começou novamente.Dessa vez, Anna não dividia maiso camarim com Rude e as outrascrianças. Ocupava agora o antigocamarim de Madame Hansson,onde havia uma parede inteira deespelhos e uma espreguiçadeiraforrada de veludo para ela

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repousar caso ficasse cansada.– Muito bom isso, não,

Anna? – comentara Rude,passeando os olhos pelocamarim. – Eu diria que alguns denós subiram na vida nos últimosmeses. Você se importa se eu vieraqui de vez em quando lhe fazercompanhia? Ou agora éimportante demais para mim?

Anna segurou com as duasmãos as bochechas gorduchas domenino e deu uma risadinha.

– Eu posso não ter maistempo para nossas partidas decartas, mas você é bem-vindopara me visitar sempre quequiser.

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Na noite da estreia, ao entrarno camarim, ela encontrou orecinto abarrotado de flores ebilhetes de boa sorte. Havia atéuma carta assinada por seus paise Knut, que certamente fariareferência ao fim de seu noivadocom Lars. Ela a separou para lermais tarde. Enquanto amaquiadora Ingeborg pintava seurosto, Anna leu os outros cartõese as palavras generosas que aspessoas tinham escrito lheagradaram. Mas um recado emespecial, acompanhado por umarosa vermelha, fez seu corpoestremecer de emoção.

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Estarei lá hoje paravê-la subir à estratosfera. Esentirei cada batida do seucoração.

Cante, meu lindopassarinho. Cante!

J.

Ao ouvir o chamado para osatores que iriam aparecerprimeiro se posicionarem nopalco, Anna fez uma prece.

– Por favor, meu Deus, nãopermita que eu desgrace a mimmesma nem o nome da minhafamília hoje. Amém. – E se

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levantou para ir até as coxias.

Anna sabia que algunsmomentos dessa noite ficariamgravados para sempre em suamemória. Como o branco,terrível, que teve quando pisou nopalco no segundo ato.Desesperada, baixou os olhospara o fosso da orquestra e viuJens articulando as falas para elacom a boca sem emitir somnenhum. Torcia para ter se

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recuperado a tempo de a plateianão perceber, mas aquilo adeixara nervosa durante o restodo espetáculo. Foi só na hora da“Canção do berço”, bem no final,com a cabeça de Peer pousada emseus joelhos e os dois sozinhos nopalco, que ela voltou a ganharconfiança e soltou a voz e aemoção.

Depois de a última nota sedissipar, a cortina ainda subiumuitas vezes para osagradecimentos, e buquês deflores foram entregues a ela eMarie, a atriz que fazia o papelde Åse, mãe de Peer. Quando opano enfim caiu de vez, Anna saiu

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do palco e desatou a soluçar bemalto no ombro de Herr Josephson.

– Por favor, minha cara, nãochore – tranquilizou ele.

– Mas eu fui terrível hoje!Eu sei que fui!

– De forma alguma, Anna.Não entende que sua hesitaçãonatural na verdade aumentou avulnerabilidade de Solveig? E nofinal... bem, a plateia estavaenfeitiçada. Esse papel poderiater sido escrito para você, e tenhocerteza de que, se a tivessemassistido, Herr Ibsen e HerrGrieg teriam ficado satisfeitos.Você também cantou lindamente,como sempre. Agora vá... – Ele

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levou um dos dedos à bochechadela para enxugar uma lágrima. –Vá comemorar sua realização.

Quando Anna chegou aocamarim, encontrou-o abarrotadode admiradores, todos querendoestar presentes na coroação deuma nova princesa, prata da casa,e deu o melhor de si para dizer acoisa certa a cada um. Então HerrHennum apareceu e enxotou todomundo.

– Anna, foi uma alegriareger a orquestra hoje e ver suaestreia nos palcos. E não, suaatuação não foi perfeita, mas issoé algo que você vai poderaprender à medida que for

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ganhando confiança, o que vaiacontecer, prometo. Por favor,procure aproveitar a adulação detoda Christiania, pois você amereceu de verdade. HerrJosephson virá daqui a quinzeminutos acompanhá-la até a festada estreia, no foyer do teatro. –Ele então fez uma mesura e adeixou em paz.

Quando ela estava setrocando, uma batida curtaanunciou a chegada de Rude.

– Com licença, FrøkenAnna, mas me pediram para lheentregar um recado. – Com umsorriso atrevido, ele lhe passou opapel. – Se me permite dizer,

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você está muito linda hoje. E seráque poderia pedir à minha mãepara me deixar ir à festa? Elatalvez deixe se você pedir.

– Você sabe que eu nãoposso fazer isso, Rude, mas, jáque está aqui, pode ajudar afechar meu vestido?

Quando Anna entrou nofoyer com Herr Josephson, foirecebida por uma salva depalmas. Jens a observou de longepensando que nunca a haviaamado mais do que nessa noite, oque tinha lhe dito no bilhete quemandara Rude lhe entregar depoisda peça. Viu-a sorrir e conversarbanalidades, e pensou em como

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seu passarinho tinha voado longedesde a primeira vez em que ele aouvira cantar.

Então seu coração murchouquando ele viu uma figuraconhecida se aproximar dela, como imenso bigode curvo quaseeriçado de tanta alegria, enquantoas pessoas abriam caminho paradeixá-lo passar.

– Anna! Minha cara jovem,nem mesmo a doença de minhamãe pôde me impedir de estarpresente para assisti-la nestanoite de glória! Você foi soberba,Kjære, realmente soberba.

Jens reparou que osemblante de Anna murchou um

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pouco, e ela em seguida serecuperou e cumprimentou HerrBayer calorosamente. Nessa hora,foi embora, deprimido com o fatode, por causa da aparição domentor, não poder dizerpessoalmente a ela o quantoestava orgulhoso.

É claro que ele podia verque direção as coisas estavamtomando, ainda que Anna nãovisse, pensou, enquanto afogava ainfelicidade com um aquavit noEngebret. Ela podia ter se livradode seu pretendente do vilarejo,mas era óbvio para todos quehavia despertado a paixão deHerr Bayer. E seu mentor era

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capaz de lhe dar tudo que elapudesse querer. Alguns mesesantes, pensou Jens, ele poderiafazer o mesmo.

Pela primeira vez, cogitou seteria cometido um erro grave.

“Frøken Landvik pode nãotrazer para o papel de Solveig asegurança experiente de MadameHansson, mas compensa isso cominocência, juventude e umainterpretação magnífica das

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canções da personagem.”– E na edição matutina do

Dagbladet o crítico comentaoutra vez sobre sua beleza,juventude e...

Anna não estava maisescutando Herr Bayer. Sentia-sefeliz por ter conseguido passarpela noite de estreia, mas repetirtudo outra vez na noite seguinteera algo que sequer conseguiaimaginar.

– Infelizmente, Anna, sópoderei ficar em Christiania atéamanhã de manhã, pois precisopegar a balsa e voltar para juntoda minha mãe o quanto antes –disse Herr Bayer, fechando o

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jornal.– Como ela está?– Nem melhor, nem pior –

respondeu ele com um suspiro. –Minha mãe sempre teve umaenergia inabalável, e é só issoque a mantém viva agora. Não hánada que eu possa fazer a não serficar do seu lado à medida que ofim se aproxima. Mas chega desseassunto. Hoje à noite, Anna, euquero que tenhamos um jantarespecial, para você poder mecontar tudo que aconteceu desde aúltima vez em que a vi.

– Claro, seria um prazer,mas estou me sentindo um tantocansada. Se vamos jantar juntos à

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noite, posso descansar agora?– Mas é claro, minha cara

jovem. E parabéns novamente.Franz Bayer ficou olhando

Anna sair da sala, maravilhadocom o quanto ela havia mudadoem um ano e, na realidade, desdea última vez em que a vira. Amoça sempre fora um botão deflor prestes a se abrir, mas agorahavia desabrochado por completo– estava linda e, graças aos seusensinamentos, tinha adquiridoelegância e sofisticação.

Apesar de Anna ter acabadode alegar que estava exausta,parecia haver nela um novobrilho que ele não conseguia

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definir. Torceu para que nãotivesse nada a ver com aqueleviolinista com quem elaobviamente estava tão envolvidano recital do mês de junho. Nanoite anterior, Herr Josephsonhavia comentado em tom bastantemalicioso, por provocação, comoera bom ele, Franz, estar de voltaà cidade. O diretor mencionaraque sua protegida fora vista maisde uma vez tomando chá com o talsujeito no Engebret.

Até então, Herr Bayer vinhaaguardando o momento certo,pois não queria assustá-la.Depois das palavras de HerrJosephson, porém, achava que era

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melhor deixar claras as suasintenções.

– Como você estáencantadora hoje, minha carajovem!

Herr Bayer a elogiou ao vê-la entrar na sala de estar usando ovestido de noite cor de topázio.Por mais que as pessoas lhedissessem que ela era linda,sobretudo os homens, pensouAnna com amargura, se

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porventura viessem a vê-la sem opó facial mágico, suas sardasficariam outra vez em evidência,e decerto considerariam seuaspecto bem pouco atraente.

Para retribuir o elogiogalante de Herr Bayer, tudo emque conseguiu pensar foi admirarsua nova e alegre gravata deestampa paisley, torcendo paraque ele não detectasse a falta desinceridade em sua voz.

– Como estava sua famíliaquando a viu no verão? – indagouele.

– Minha família vai bem,obrigada. E o casamento foilindo.

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– Frøken Olsdatter me disseque infelizmente você e o seurapaz romperam o noivado.

– Sim. Lars sentiu que nãopodia mais esperar por mim.

– Isso a deixa infeliz, Anna?– Acho que será melhor

assim, para nós dois – respondeuela, diplomática, levando à bocauma garfada de peixe. Tudo querealmente queria fazer era irdormir cedo e sonhar com Jens.

Depois do café na sala deestar, Frøken Olsdatter trouxe umdecantador de conhaque para opatrão e, para consternação deAnna, um balde de gelo contendouma garrafa de champanhe. Era

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tarde demais para ela sequercogitar beber álcool, e seuprimeiro pensamento foi se HerrBayer estaria esperando outrosconvidados.

– Feche a porta quando sair– pediu ele a Frøken Olsdatter, ea governanta obedeceu.

– Anna, minha cara jovem,agora tenho algo para lhe dizer. –Herr Bayer pigarreou. – Vocêdeve ter percebido que meu afetopor você aumentou desde queveio morar aqui comigo. E esperoque valorize o esforço que fizpara guiar sua carreira.

– É claro que valorizo, HerrBayer. Não tenho como lhe

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agradecer à altura.– Vamos dispensar as

formalidades. Anna, por favor,me chame de Franz. Você agora jáme conhece bem o bastante...

Anna observou Herr Bayerse calar. Pela primeira vez desdeque o conhecia, ele pareceu nãosaber o que dizer. Depois dealgum tempo, acabou serecompondo e prosseguiu.

– Anna, se fiz tudo isso nãofoi só para incentivar o seutalento, mas também porque...porque descobri que estouapaixonado por você. Sendo umcavalheiro, naturalmente nãopodia dizer nada enquanto você

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estivesse prometida a outrohomem, mas agora que estádesimpedida, bem... Percebi aprofundidade do que sinto porvocê com mais clareza durante overão, quando ficamos separados.E sei também que preciso deixá-la aqui sozinha outra vez e voltarpara a cabeceira de minha mãesem saber por quanto tempoficarei ausente. Então acheimelhor expressar logo minhasintenções. – Ele fez uma pausa einspirou fundo. – Anna, você medaria a honra de se casar comigo?

Ela o encarou, muda, emchoque, sem conseguir impedirque o horror se estampasse no

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próprio rosto.Ele percebeu a expressão na

mesma hora e pigarreou outravez.

– Entendo que esse pedidoseja uma surpresa para você.Mas, Anna, será que não vê o quepoderíamos ser juntos? Eu lhe fuimuito útil na sua carreira atéagora, e aqui em Christiania vocêjá chegou ao topo. Mas a Noruegaé um país muito pequeno paracomportar o seu talento. Jáescrevi para diversos diretoresmusicais e comitês deprogramação na Dinamarca, naAlemanha e em Paris falandosobre o seu talento. E, sem

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dúvida, depois de ontem à noite,eles ouvirão falar de você poroutros meios. Se nos casássemos,eu poderia acompanhá-la pelaEuropa quando você seapresentasse nas grandes salas deconcerto. Poderia protegê-la,cuidar de você... esperei muitosanos para encontrar um talentocomo o seu. Além, é claro, devocê ter roubado meu coração –ele se apressou em acrescentar.

– Entendo. – Anna engoliuem seco; sabia que precisavaresponder.

– Você sente afeto por mim,não sente?

– Sinto, e também...

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gratidão.– Acho que formamos uma

boa parceria, tanto no palcoquanto fora dele. Afinal decontas, você mora há quase umano debaixo do meu teto econhece todos os meus maushábitos – disse ele, rindobaixinho. – E, espero, alguns dosbons também. Assim sendo, nossocasamento não seria uma mudançatão grande quanto pode parecer...muita coisa na nossa vidapermaneceria igual ao que é hoje.

Anna sentiu um calafrio;ocorreram-lhe vários aspectosnos quais Herr Bayer esperariaque sua vida fosse diferente.

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– Como está calada, minhacara Anna. Vejo que a surpreendi.Enquanto eu via isso como umaprogressão natural para nós dois,você talvez não tenha se atrevidoa pensar assim.

Nisso o senhor tem absolutarazão, pensou ela.

– Não – falou em voz alta.– Talvez o champanhe tenha

sido uma certa presunção daminha parte. Vejo agora quepreciso lhe dar um pouco detempo para pensar na minhaproposta. Você vai pensar, Anna?

– Claro, Herr Bayer... Franz.Seu pedido me deixa honrada –ela conseguiu balbuciar.

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– Ficarei fora por pelomenos duas semanas,provavelmente mais, e talvez issolhe dê oportunidade para pensarno assunto. Só posso torcer erezar para que sua resposta sejaafirmativa. Tê-la morando aquicomigo me fez perceber comoestou solitário desde a morte daminha esposa.

Nessa hora, ele pareceu tão,mas tão triste, que Anna quisreconfortá-lo, da mesma formaque teria feito com o próprio pai.Mas afastou esse pensamento e selevantou. Sentia que não restavamais nada a dizer.

– Pensarei com cuidado no

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que me propôs. Você terá aresposta quando voltar. Boanoite... Franz.

Teve que se segurar para nãosair correndo da sala, masapressou o passo assim que pisouno corredor. Chegando ao quarto,fechou a porta e passou a chave.Deixou-se cair na cama e seguroua cabeça entre as mãos, ainda semconseguir processar as palavrasque acabara de ouvir. Revirou amente tentando recordar algumcomportamento que pudesse terdado a entender a Herr Bayer,sem querer, que ela um diapoderia se casar com ele. Estavacerta de ter se comportado de

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forma adequada em todas asocasiões. Não se lembrava de terflertado com ele nem sequer umavez ou de ter “lhe espichado oolho”, como diziam as coristas dePeer Gynt.

No entanto, reconheceu, seuspais haviam concordado que elamorasse debaixo do seu teto edeixado que ele a alimentasse,vestisse e lhe desseoportunidades com as quais elajamais poderia ter sonhado. Semfalar no dinheiro que ele dera aoseu pai. Por que motivo ele nãodeveria supor, depois de tudo oque havia feito por ela, que arecompensa por seus esforços

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seria a união permanente dosdois?

– Ai, meu Deus, mal possosuportar pensar isso... – gemeuela.

As ramificações potenciaisdo pedido de Herr Bayer eramimensas. Caso dissesse não, Annasabia que seria impossívelcontinuar vivendo sob o seu teto.E, nesse caso, para onde ela iria?

Deu-se conta do quantodependia dele. E de quantasmoças, ou mesmo mulheres maisvelhas, como Frøken Olsdattertalvez, agarrariam a oportunidadede ser sua esposa. Herr Bayer eraum homem rico, culto e aceito nos

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mais altos escalões da sociedadede Christiania, além de sergeneroso e respeitoso – masdevia ter quase três vezes a suaidade.

E além do mais... Anna selembrou da promessa que tinhafeito a si mesma. Ela não amavaHerr Bayer. Amava JensHalvorsen.

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27

Na noite seguinte, após umespetáculo que lhe pareceu semgraça e pouco inspirado emcomparação com a estreia, elaencontrou Jens à sua espera dolado de fora da entrada dosartistas.

– O que está fazendo aqui? –sibilou. Vendo a carruagem que aaguardava, começou a andardepressa naquela direção. –Alguém pode nos ver.

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– Não tenha medo, Anna,não pretendo comprometer suareputação. Só queria lhe dizerpessoalmente como você foimaravilhosa na estreia. E tambémperguntar se está se sentindo bemhoje.

Ao ouvir isso, ela estacou ese virou para ele.

– Como assim?– Fiquei observando você

hoje e me pareceu que não estavano seu estado normal. Ninguémmais deve ter percebido, juro.Sua atuação foi excelente.

– Como você pôde saber oque eu estava sentindo? –perguntou Anna, sentindo

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lágrimas lhe subirem aos olhos dealívio pelo fato de ele, de algumaforma, saber.

Os dois chegaram àcarruagem e o condutor abriu aporta para ela subir.

– Então eu tinha razão –disse Jens. – Posso ajudar?

– Eu... eu não sei... Tenhoque ir para casa.

– Entendo, mas por favor,precisamos conversar... a sós –completou ele, baixando a vozpara o condutor não escutar. –Pelo menos fique com meuendereço. – Ele pôs um pedaçode papel na pequenina mão deAnna. – Otto, meu senhorio, vai à

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casa de um de seus alunosparticulares amanhã. Estareisozinho no apartamento entrequatro e cinco da tarde.

– Eu... terei que ver –murmurou ela.

Virando-lhe as costas,galgou os degraus da carruagem.O condutor fechou a porta, e Annaafundou no assento lá dentro. ViuJens acenar para ela e esticou opescoço para observá-lo pelajanela enquanto ele atravessava arua na direção do Engebret. Acarruagem partiu e ela se recostouno assento; o coração aos pulos.Sabia muito bem quanto erainadequado visitar um homem

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sozinho em seu apartamento, massabia também que precisava falarcom alguém sobre o que haviaacontecido com Herr Bayer nanoite anterior.

– Irei ao teatro hoje àsquatro da tarde – disse Anna aFrøken Olsdatter durante o caféna manhã seguinte. – HerrJosephson convocou um ensaio,pois está descontente com umacena no segundo ato.

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– Vai voltar para jantar?– Sim, espero que sim. Não

posso imaginar que vá levar maisde duas horas.

Talvez tenha sido suaimaginação, mas FrøkenOlsdatter lhe lançou o tipo deolhar que sua própria mãe terialhe lançado, sabendo que a filhaestava mentindo.

– Muito bem. Quer umacarruagem para buscá-la depois?

– Não. Ainda haverá bondes,então poderei voltar semproblema. – Ela se levantou e,com a maior calma de que foicapaz, afastou-se da mesa docafé.

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Mais tarde, ao sair doapartamento, não estava tão calmaassim.

Embarcou no bonde com ocoração batendo tão forte que seespantou que o senhor ao seu ladonão conseguisse escutá-lo. Saltouno ponto seguinte e caminhoudepressa em direção ao endereçoque Jens havia lhe dado. Tentoujustificar aquele ato iminentedizendo a si mesma que ele eraseu único amigo em Christiania ea única pessoa em quem ela podiaconfiar.

– Você veio – disse Jens,sorrindo, ao lhe abrir a porta doapartamento. – Por favor, entre.

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– Obrigada. – Anna entrou eo seguiu por um corredor atéchegar a uma sala espaçosa,mobiliada com elegância e nãomuito diferente da de Herr Bayer.

– Gostaria de um chá? Masvou logo avisando, terei queprepará-lo eu mesmo, pois aempregada foi embora às três.

– Não, obrigada. Tomei cháantes de vir e a viagem até aquifoi curta.

– Sente-se, por favor – disseele, apontando na direção de umacadeira.

– Obrigada. – Ela se sentou,grata pelo fato de a cadeira ficarperto do fogareiro, pois estava

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tremendo de frio e de ansiedade.Jens se sentou na sua frente. –Este apartamento parece bemconfortável.

– Se você tivesse visto ondeeu morava antes... – Jensbalançou a cabeça e deu umarisadinha. – Bem, digamos queestou feliz por ter encontradooutras acomodações. Mas nãovamos perder tempo comconversa fiada. O que houve,Anna? Você acha que consegueme contar?

– Ai, meu Deus! – Ela levouuma das mãos à testa. – É... écomplicado.

– Problemas em geral são

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complicados.– O problema é que Herr

Bayer pediu minha mão emcasamento.

– Entendo. – Jens meneou acabeça; por fora parecia calmo,mas estava com os punhoscerrados. – E qual foi suaresposta?

– Ele partiu para Drøbakontem de manhã; sua mãe está àbeira da morte e ele está com ela.Tenho que lhe dar uma respostaquando ele voltar.

– E quando ele volta?– Quando a mãe morrer,

imagino.– Responda com

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sinceridade: como se sentiuquando ele fez o pedido?

– Fiquei horrorizada. Eculpada também. Você precisaentender o quanto Herr Bayer foibom para mim. Ele me deu tantacoisa...

– Anna, foi o seu talento quelhe deu tudo o que tem agora.

– Sim, mas ele me deu aulase oportunidades que eu jamaisteria se ainda estivesse morandoem Heddal.

– Então vocês estão quites.– Não é assim que parece –

insistiu Anna. – E quando eudisser não, para onde irei?

– Então você quer dizer não?

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– Claro! Seria como mecasar com meu próprio avô! Eledeve ter bem mais de cinquentaanos. Mas terei que sair doapartamento e com certeza vouganhar um inimigo.

– Anna, eu tenho muitosinimigos – disse Jens com umsuspiro. – Muitos deles eu mesmofiz, reconheço. Mas Herr Bayertem menos poder em Christianiado que você e ele acreditam.

– Pode ser. Mas, Jens, paraonde eu iria?

Fez-se então um silêncio, eos dois ficaram pensando no queacabara de ser dito – e no que nãofora dito. O primeiro a falar foi

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Jens.– Anna, é muito difícil para

mim dizer qualquer coisa sobre oseu futuro. Antes do verão, eupoderia ter lhe oferecido tudo queHerr Bayer é capaz de oferecer, econcordo que você é mulher e asua vida tem muito maislimitações. Mas você precisalembrar que alcançou o sucessopor seus próprios méritos... Hojevocê é a maior estrela do céu deChristiania. Precisa menos deHerr Bayer do que imagina.

– Bem, só vou saber quantopreciso dele depois que tomarminha decisão, não é?

– Não. – O pragmatismo

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dela o fez sorrir. – Anna, vocêsabe o que eu sinto por você, masmesmo que meu coração desejelhe oferecer tudo, não faço ideiade qual será minha situaçãofinanceira no futuro. Mas vocêprecisa acreditar que eu seria ohomem mais infeliz de Christianiase você aceitasse se casar comHerr Bayer. E não só por causados meus motivos egoístas, maspor sua causa também, pois seique você não o ama.

Anna entendeu quanto aquilodevia ser terrível para Jens, quehavia lhe confessado seu amorlivremente, enquanto ela aindanão fizera o mesmo por ele.

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Aflita, levantou-se e começou ase arrumar para ir embora.

– Perdão, Jens, eu nãodeveria ter vindo. Isto étotalmente... – Ela buscou apalavra que Herr Bayer teriausado. – ... inadequado.

– Admito que é difícil paramim ouvir que outro homem lhedisse que a amava. Embora amaior parte de Christiania fosseaplaudir se você aceitasse opedido de casamento dele.

– Sim, estou certa que sim. –Ela lhe virou as costas ecaminhou em direção à porta. –Sinto muito mesmo, mas precisoir.

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Ela abriu a porta, mas sentiua mão dele agarrar a sua e puxá-la de volta para a sala.

– Por favor, sejam quaisforem as circunstâncias, nãovamos perder estes nossosprimeiros e preciosos instantessozinhos. – Ele deu um passomais para perto dela e seguroudelicadamente seu rosto com asduas mãos. – Anna, eu amo você.Nunca me canso de repetir isso.Eu amo você.

Pela primeira vez, ela defato acreditou. Os dois agoraestavam tão próximos que elapodia sentir o calor que o corpodele irradiava.

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– Talvez também sejaimportante para a sua decisãoadmitir para você mesma, e paramim, por que você veio até aqui– continuou Jens. – Admita, Anna:você me ama... me ama...

Antes de ela conseguir detê-lo, ele a beijou. E em uma fraçãode segundo Anna notou ospróprios lábios reagindo,inteiramente sem a sua permissão.Sabia o quanto aquilo estavaerrado, mas já era tarde demais,pois a sensação foi tão magníficae tão esperada que não havia umsó motivo para fazê-la acabar.

– Então, vai dizer? –implorou ele enquanto ela se

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preparava para sair.Anna se virou para ele.– Sim, Jens Halvorsen. Eu

amo você.

Uma hora depois, Anna usoua própria chave para abrir a portado apartamento de Herr Bayer.Como a atriz que vinhaaprendendo a ser, estavapreparada quando FrøkenOlsdatter a interceptou a caminhodo quarto.

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– Como foi o ensaio, Anna?– Correu bem, obrigada.– A que horas vai querer

jantar?– Será que eu posso jantar

no quarto, se não for muitoincômodo? A apresentação deontem e o ensaio de hoje medeixaram exausta.

– Claro. Quer que eu lheprepare um banho?

– Seria maravilhoso,obrigada – respondeu ela antes deentrar no quarto e fechar a porta,aliviada. Jogou-se na cama eabraçou o próprio corpo, emêxtase com a lembrança doslábios de Jens sobre os seus;

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então ela entendeu que, fosse qualfosse o resultado, teria querecusar o pedido de Herr Bayer.

Na noite seguinte, um boatocomeçou a circular pelo teatro.

– Ouvi dizer que ele vem.– Não, ele perdeu o trem de

Bergen.– Bem, ouviram Herr

Josephson conversando com HerrHennum, e a orquestra foichamada mais cedo hoje à tarde...

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Anna sabia que só havia umapessoa que poderia confirmar osboatos que circulavam. Mandouchamá-la. Alguns minutos depois,Rude entrou no camarim.

– Queria falar comigo,Frøken Anna?

– Sim. É verdade? O boatoque está correndo pelo teatrohoje...

– Sobre Herr Grieg virassistir ao espetáculo?

– Sim.– Bem. – Rude cruzou os

braços em volta do corpo magro.– Depende de quem você escutar.

Com um suspiro, Annadepositou uma moeda na mão

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dele, e o menino lhe abriu umlargo sorriso.

– Posso confirmar que HerrGrieg está sentado com HerrHennum e Herr Josephson noescritório do andar de cima.Quanto a ele assistir aoespetáculo, não sei dizer. Mas,como está aqui no teatro, éprovável que sim.

– Obrigada pela informação,Rude – disse Anna enquanto elecaminhava até a porta.

– De nada, Frøken Anna.Boa sorte hoje à noite.

Quando o elenco queapareceria primeiro no palco foichamado e os outros atores se

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posicionaram nas coxias, osestrondosos aplausos do outrolado da cortina confirmaram que,de fato, alguém muito importanteacabara de chegar. Por sorte,Anna teve pouco tempo parapensar nas consequências, pois aorquestra atacou o Prelúdio e oespetáculo começou.

Logo antes de ela fazer suaprimeira entrada, sentiu a mão dealguém puxar seu braço. Virou-see viu Rude ao seu lado. Abaixou-se, e ele pôs as mãos ao redor daboca e lhe sussurrou:

– Lembre-se, Frøken Anna,como minha mãe sempre diz: atéo Rei às vezes precisa mijar.

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A frase provocou em Annaum acesso de riso, cujos vestígiosainda estavam visíveis no seurosto quando ela pisou no palco.Com a amorosa presença de Jenslá embaixo no fosso da orquestra,ela relaxou e deu o melhor de si.Três horas depois, quando caiu opano, o teatro inteiro irrompeu emuma semi-histeria quando opróprio Grieg fez uma mesura emseu camarote. Em pé no palco,recebendo vários buquês deflores, Anna olhou para baixo esorriu para Jens.

– Eu amo você – articulouele, sem som.

Quando a cortina baixou, o

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elenco foi instruído a aguardar nopalco, e a orquestra subiu para sejuntar a ele. Anna cruzou olharescom Jens e ele lhe jogou umbeijo.

Por fim, um homem magro epouco mais alto do que ela foilevado até o palco por HerrJosephson. O elenco o aplaudiu,extático, e ao observá-lo Annapercebeu que Edvard Grieg erabem mais jovem do que ela haviaimaginado. Tinha cabelos lourosondulados penteados para trás eum bigode que competia com o deHerr Bayer. Para sua completasurpresa, ele veio direto na suadireção, fez-lhe uma mesura,

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segurou sua mão e depositou nelaum beijo.

– Frøken Landvik, sua voz étudo que eu poderia ter esperadoquando estava compondo oslamentos de Solveig.

Ele então se virou para falarcom Herr Klausen, o ator quemais uma vez interpretava Peer, etambém com os outros integrantesdo elenco.

– Sinto que devo pedirdesculpas a todos vocês, atores emúsicos, por não ter vindo antes aeste teatro. Houve algumas... –Ele fez uma pausa, e pareceuprecisar tirar forças de algumlugar antes de começar. –

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Circunstâncias que memantiveram afastado. Tudo queposso dizer é meu sinceroobrigado tanto a Herr Josephsonquanto a Herr Hennum por teremproduzido uma montagem da qualsinto orgulho de fazer parte.Permitam-me parabenizar aorquestra por ter transformadominhas humildes composições emalgo mágico, e os atores ecantores por terem dado vida aospersonagens. Obrigado a todos.

Enquanto elenco e músicoscomeçavam a deixar o palco, oolhar de Grieg recaiu sobre Annaoutra vez. Ele foi até ela, pegousua mão de novo, e então acenou

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para chamar Ludvig Josephson eJohan Hennum.

– Cavalheiros, agora que vio espetáculo, conversaremosamanhã sobre pequenasalterações, mas agradeço-lhes poressa montagem de tão boaqualidade em circunstâncias que,bem sei, foram limitadoras. HerrHennum, a orquestra estava bemmelhor do que eu poderia tersonhado. O senhor realizou ummilagre. Quanto a esta jovem... –Ele encarou Anna com osexpressivos olhos azuis. – Quema pôs no papel de Solveig é umgênio.

– Obrigado, Herr Grieg –

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falou Hennum. – Anna é de fatoum grande jovem talento.

Herr Grieg se inclinou maispara perto e sussurrou no ouvidodela.

– Precisamos conversarmelhor, minha cara, pois possoajudar a sua estrela a brilhar.

Então, com um sorriso, elesoltou sua mão e se virou parafalar com Herr Josephson. Aodescer do palco, Anna mais umavez ficou assombrada ao pensarno novo rumo que sua vida tinhatomado. Nessa noite, ocompositor mais famoso daNoruega havia elogiado seutalento em público no teatro.

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Enquanto ela tirava o figurino e amaquiagem, achou difícilacreditar que fosse a mesma moçado campo que, pouco mais de umano antes, cantava para as vacasem sua cidade natal.

Mas é claro que ela não eraa mesma.

– O que quer que eu sejaagora, sou e pronto – murmurouconsigo mesma enquanto o suavetlec-tlec dos cascos do cavaloque puxava a carruagem aembalava no caminho até oapartamento de Herr Bayer.

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Em uma rara ocasião,Hennum havia se juntado ao restoda orquestra no Engebret após oespetáculo da noite.

– Herr Grieg pede desculpaspor não ter vindo ao bar, mascomo vocês sabem ele ainda estáde luto pela morte dos pais.Apesar disso, me deu dinheirosuficiente para manter todosvocês animados por no mínimoum mês – declarou o maestro, efoi recebido por vivasentusiasmados.

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Todos os músicos estavamanimadíssimos, em parte porcausa das intermináveis rodadasde Porto e aquavit, mas tambémpor saber que a vida dura quetodos levavam com o baixosalário, com pouco ou nenhumreconhecimento por seu esforço,nessa noite fora alçada a outropatamar pelo agradecimentosincero e pelos elogios dopróprio compositor.

– Herr Halvorsen – chamouHennum com um aceno. – Venhaconversar comigo um instante.

Jens fez o que o regentepedia.

– Achei que talvez gostasse

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de saber que eu disse a HerrGrieg que o senhor era umcompositor iniciante e que euescutara algumas das suascomposições. Simen já me disseque o senhor passou o verãotrabalhando em outras.

– Acha que Herr Griegpoderia dar uma olhada no quecompus até agora?

– Não posso garantir, massei que ele é um forte defensordos talentos nativos noruegueses,de modo que é possível. Peço queme dê as músicas que tiver eapresentarei suas composições aele amanhã, quando ele vier mever.

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– Farei isso, maestro. Nãotenho como lhe agradecer.

– Também fiquei sabendopor Simen que o senhor tomouuma difícil decisão nesse verão.Um músico disposto a sacrificartudo pela arte merece qualquerauxílio que eu possa oferecer.Agora preciso ir andando. Boanoite, Herr Halvorsen.

Johan Hennum meneou acabeça e saiu do bar. Jens foiprocurar Simen e envolveu oamigo num abraço.

– O que houve? Esgotou asmulheres e agora está recorrendoaos homens? – indagou o amigo,assustado.

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– Talvez – brincou Jens. –Mas obrigado, Simen. Obrigadomesmo.

No dia seguinte, pela manhã,um portador foi ao apartamentoentregar uma carta em mãos aAnna.

– De quem você acha que é?– indagou Frøken Olsdatterenquanto a jovem examinava acaligrafia.

– Não faço ideia –

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respondeu ela.Então abriu e começou a ler.

Segundos depois, ergueu o rosto,assombrada.

– É do compositor HerrGrieg. Ele quer me visitar aqui noapartamento hoje à tarde.

– Meu bom Deus! – FrøkenOlsdatter olhou nervosa para aprataria que não havia sidopolida, em seguida para o relógiona parede. – A que horas elechega?

– Às quatro.– Que honra! Quem dera

Herr Bayer estivesse em casapara encontrá-lo. Você sabe comoele apoia a música de Herr

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Grieg. Com licença, Anna, mas,se vamos ter um convidado tãoilustre em casa, preciso ir mepreparar.

– Claro – falou Anna,enquanto a governanta se retiravaquase às carreiras.

Anna terminou de almoçar;um início de nervosismocomeçava a lhe contrair o ventre.Quando foi se trocar para vestiruma roupa mais apropriada paratomar chá com um compositorfamoso, encarou sua vastacoleção de figurinos. Descartouvárias blusas por serem mal-ajambradas demais, reveladorasdemais, elegantes demais ou

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simples demais, e acabouescolhendo o vestido rosa-chá.

A campainha tocou na horamarcada, e Frøken Olsdatterconduziu o convidado até a sala.Desde a hora do almoço, floreshaviam sido providenciadas ebolos assados às pressas; FrøkenOlsdatter receara de que eleviesse acompanhado, mas não:quando Anna se levantou paracumprimentá-lo, Edvard Griegestava sozinho.

– Frøken Landvik, minhacara, obrigado por arrumar tempopara me encontrar tão em cima dahora. – Ele estendeu a mão parapegar a dela e beijá-la.

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– Queira se sentar. Posso lheoferecer um chá ou um café? –gaguejou ela, desacostumada areceber convidados sozinha.

– Um copo d’água, talvez?Frøken Olsdatter assentiu de

leve com a cabeça e saiu da sala.– Infelizmente tenho pouco

tempo, pois preciso voltar paraBergen amanhã, e como asenhorita pode imaginar aindapreciso fazer muitas visitas aquiem Christiania. Mas queria vê-la.Frøken Landvik, a senhorita temuma voz esplêndida, embora eunão tenha a pretensão de ser aprimeira pessoa a lhe dizer isso.Na verdade, soube que Herr

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Bayer a tem guiado na suacarreira.

– Sim – confirmou ela.– E pelo que ouvi ontem à

noite ele fez um trabalhoexcelente. Mas as possibilidadesdele são... limitadas no que dizrespeito a dar ao seu potencialtodas as oportunidades quemerece. Eu tenho a sorte de poderapresentá-la pessoalmente adiretores musicais de toda aEuropa. Muito em breve viajareipara Copenhague e para aAlemanha, e posso mencionar seutalento para as pessoas queconheço por lá. Frøken Landvik,a senhorita precisa entender que,

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por mais que não desejemos isso,a Noruega hoje é apenas umpontinho no panorama culturaleuropeu. – Ele fez uma pausa esorriu ao ver o ar deincompreensão no rosto dela. – Oque estou tentando dizer, minhacara, é que desejo ajudá-la aampliar sua carreira para além doseu país de origem.

– É muita gentileza sua,senhor, além de uma grandehonra.

– Mas primeiro preciso lheperguntar: a senhorita temdisponibilidade para viajar? –perguntou ele ao mesmo tempoque Frøken Olsdatter entrava com

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uma jarra d’água e dois copos.– Quando a temporada de

Peer Gynt terminar, sim. Nãoterei mais compromissos naNoruega.

– Ótimo, ótimo – disse ele.A governanta saiu. – E não estánoiva nem comprometida comnenhum rapaz no momento?

– Não, senhor.– Posso imaginar que deva

ter muitos admiradores, pois,além de muito talentosa, asenhorita é linda. Sob muitosaspectos, lembra-me Nina, minhaquerida esposa. Ela também tem avoz melodiosa como a de umpássaro. Então lhe escreverei de

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Copenhague e verei o que podeser feito para apresentar sua vozexcepcional ao resto do mundo.Agora preciso ir andando.

Ele se levantou.– Obrigada por ter vindo –

agradeceu Anna.– Permita-me parabenizá-la

mais uma vez por sua atuação. Asenhorita me deixou inspirado.Voltaremos a nos encontrar,Frøken Landvik, tenho certeza.Até logo.

Ele beijou sua mão e entãoergueu o rosto e a fitou com umolhar que ela já havia aprendido areconhecer como indicativo deum interesse nela como mulher.

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– Até logo – respondeu ela,abaixando-se para uma mesuraenquanto ele se retirava.

– Como assim, foi emborade Christiania?

– Foi o que eu disse: eleteve que voltar para Bergen.

– Então tudo está perdido!Só Deus sabe quando ele vairetornar. – Jens se recostou emsua desconfortável cadeira nofosso da orquestra e ergueu os

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olhos para Herr Hennum com umar pesaroso.

– A boa notícia é queconsegui fazê-lo ouvir suascomposições antes de ir. E ele meentregou isto aqui para lhetransmitir. – Herr Hennumentregou a Jens um envelopeendereçado “A quem interessarpossa”.

O rapaz ficou olhando para opapel.

– O que é?– Uma carta de apresentação

para o Conservatório de Leipzig.De tanta alegria, Jens deu um

soco no ar. Aquela carta era o seupassaporte para o futuro.

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28

– Vou embora para Leipzigquando terminar a temporada dePeer Gynt. Por favor, Anna,venha comigo – implorou Jensquando estavam os dois sentadosna sala do apartamento de Otto,com os braços dele em volta deseu corpo delicado. – Recuso-mea deixá-la em Christiania à mercêde Herr Bayer. Depois que vocêrecusar o pedido dele, tenhodúvida de que ele vai continuar

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se comportando como umcavalheiro. – Ele a beijou de levena testa. – Vamos fazer como osjovens amantes das histórias efugir juntos. Você disse que eleestá guardando seus proventos.

– Sim, mas tenho certeza deque me dará o dinheiro se eupedir. – Anna mordeu o lábio ehesitou. – Jens, isso seria umagrave traição a Herr Bayer,depois de tudo que ele fez pormim. E o que eu iria fazer emLeipzig?

– Ora, Leipzig é o centro domundo musical da Europa!Poderia ser uma oportunidademaravilhosa para você. Herr

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Grieg mesmo já lhe disse oquanto Christiania é limitada eque o seu talento merece umpúblico maior – disse Jens,tentando convencê-la. – O editordas músicas dele mora lá, e elepróprio passa muito tempo nacidade. Nada impediria quevocês dois voltassem a seencontrar. Anna, por favor, penseno assunto. Acho que é a únicasolução para nós. No momentonão consigo pensar em nenhumaoutra.

Ela o encarou, aflita. Tinhalevado um ano para se acostumarà vida ali em Christiania. E senão conseguisse fazer o mesmo

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em outro lugar? Além do mais,agora que estava mais confiante,começara a adorar fazer o papelde Solveig e teria saudades deFrøken Olsdatter e de Rude...Quando tentava imaginar umavida em Christiania sem Jens, noentanto, sentia o coração seapertar dolorosamente.

– Sei que é pedir muito –disse ele, parecendo ler seuspensamentos. – E sim, vocêpoderia ficar aqui e se tornar asoprano mais famosa da Noruega.Ou então decidir mirar mais altoe viver uma vida de amor comigoe ter sucesso em uma escala muitomaior. Mas é claro que não será

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fácil, pois você não tem dinheiroe eu tenho muito pouco além doque minha mãe me deu para pagarpela hospedagem e pelos estudosem Leipzig. Nós viveríamospuramente de música, amor econfiança em nosso própriotalento – concluiu ele com umfloreio.

– Jens, mas o que eu diriaaos meus pais? Herr Bayer semdúvida vai contar a eles o que fiz.Eu vou desgraçar o nome danossa família. Não poderiasuportar que eles pensassem... –Ela não completou a frase e levouos dedos à testa. – Deixe-mepensar, preciso de tempo para

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pensar...– É claro que precisa –

concordou Jens. – Temos um mêsaté o fim da temporada de PeerGynt.

– E eu não poderia... nãopoderia ficar com você se nãonos casássemos – disse Anna,corando intensamente pelosimples fato de precisar dizer talcoisa. – Apodreceria no infernopor toda a eternidade e minhamãe preferiria morrer fervida naprópria panela do que encararuma vergonha dessas.

A fértil imaginação de Annafez Jens reprimir um sorriso.

– Frøken Anna, por acaso

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está tentando conseguir umterceiro pedido para somar à sualista de pretendentes? – perguntouele, segurando sua mão.

– É claro que não! Estou sódizendo que...

– Anna. – Ele beijou suamão diminuta. – Eu sei o quevocê está dizendo e compreendo.E lhe garanto, quer nós fôssemosfugir para Leipzig ou não, eu jápretendia pedi-la em casamento.

– É mesmo?– Sim. Se formos para

Leipzig, vamos nos casar emsegredo antes de ir, prometo. Eunão iria querer comprometer suamoral.

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– Obrigada. – Anna sentiuum tremendo alívio; pelo menos aproposta de Jens era séria. Seeles fossem mesmo “fugir”, e essaideia a fez conter um calafrio,pelo menos seriam marido emulher aos olhos de Deus.

– Diga-me, quando HerrBayer vai voltar, ávido por umaresposta? – indagou ele.

– Não faço a menor ideia... –Ela olhou para o relógio naparede. Ao ver que horas eram,levou a mão à boca depressa. –Mas sei que preciso sair agorapara o teatro. Tenho que estar láuma hora e meia antes de acortina subir para me maquiarem.

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– Claro. Mas, Anna, porfavor, você precisa entender que,mesmo que eu não estivesse indopara Leipzig, se você recusar opedido de Herr Bayer, tenho asensação de que ele não vaifacilitar nossa vida aqui emChristiania. Venha cá me dar umbeijo antes de ir. Nos vemos maistarde, no palco, mas prometa-meque vai me dar sua resposta embreve.

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Anna chegou ao apartamentoapós o espetáculo sentindo-secompletamente exausta. Seu únicodesejo era ir direto para a cama.

Frøken Olsdatter entrou paralhe trazer seu leite quente e ajudá-la a tirar o vestido. Encarou-acom um olhar inquisitivo.

– Como foi sua noite, Anna?– Boa, obrigada.– Bem, fico feliz por você,

Kjære. Preciso lhe dizer que nocomeço da noite recebi umtelegrama de Herr Bayer. A mãedele faleceu hoje mais cedo. Elee a irmã têm que ficar para oenterro, ele vai voltar paraChristiania na sexta.

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Só três dias, pensou Anna.– Sinto muito por essa

notícia.– Sim, mas talvez seja um

alívio que Fru Bayer esteja enfimlivre da dor.

– Estou ansiosa para verHerr Bayer quando ele voltar –mentiu Anna enquanto agovernanta se retirava.

Na cama, sentiu a barriga secontrair de nervosismo ao pensarna volta de seu mentor. Na manhãseguinte, ainda aflita, foi tomarcafé.

– Anna, Kjære, como vocêestá pálida... Não dormiu bem? –indagou Frøken Olsdatter.

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– Estou... preocupada comalgumas coisas.

– Talvez queira compartilharessas coisas comigo. Talvez eupossa ajudá-la.

– Não há nada que ninguémpossa fazer – disse ela,suspirando.

– Entendo. – FrøkenOlsdatter a observou comatenção, mas não insistiu mais. –Vai querer almoçar?

– Não, eu preciso... precisoir cedo para o teatro hoje.

– Muito bem então, Anna.Nos vemos no jantar.

Ao longo dos três diasseguintes, Frøken Olsdatter e a

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diarista foram tomadas por umfrenesi de faxina. Anna gastou seutempo treinando como explicariaa Herr Bayer que não podiaaceitar seu pedido de casamento.

A hora exata da chegadadele era incerta, mas às três emeia, sem conseguir suportarmais a tensão no apartamento,Anna vestiu seu gorro e disse àgovernanta que iria dar uma voltano parque. A mulher mais velhalhe lançou um daqueles seusolhares, misto de incredulidade efria aceitação, que recentementehaviam se tornado uma expressãofrequente.

Como sempre acontecia, o ar

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limpo e gelado estavarevigorante. Sentada em seubanco favorito, ela ficou olhandopara o fiorde e para a águaprateada cintilando à luz do diaque já se esvaía.

Estou onde estou, disse a simesma, e pouco posso fazerexceto agir com gratidão eelegância, como fui ensinada afazer.

Pensou nos pais, e umalágrima brotou em seu olho. Eleshaviam lhe escrito uma cartabreve, porém compreensiva,consolando-a por Lars terrompido o noivado e partido deforma abrupta para os Estados

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Unidos. Nesse momento, Annadesejou com todo seu coraçãoque Herr Bayer nunca a tivesseencontrado. Queria estar seguraem Heddal e casada com Lars.

– Herr Bayer vai chegar atempo para jantar com você –disse Frøken Olsdatter, que foiencontrá-la na porta quando elachegou em casa. – Enchi abanheira e separei seu vestido.

– Obrigada. – Anna passoupor ela e foi se preparar para oconfronto.

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– Anna, min elskede! –cumprimentou ele, comintimidade quando ela entrou nasala de jantar. Segurando a mãodela com sua mãozorra, depositouali um beijo; Anna sentiu assuíças lhe fazerem cócegas. –Venha, sente-se.

Enquanto jantavam, elenarrou o triste falecimento da mãee os detalhes do velório e doenterro. Anna acalentou a vagaesperança de que o pesar talvez otivesse feito esquecer o pedido.Quando os dois passaram à salade estar para tomar café e

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conhaque, porém, sentiu aatmosfera mudar.

– Então, minha cara jovem,você pensou na importantepergunta que lhe fiz logo antes deviajar?

Anna tomou um golinho decafé e aproveitou esses instantespara organizar os pensamentosantes de falar – ainda quehouvesse ensaiado as palavrasuma centena de vezes.

– Herr Bayer, seu pedido medeixa honrada e grata...

– Nesse caso, fico feliz! –anunciou ele com um largosorriso.

– Sim, mas eu pensei a

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respeito e sinto que devo recusar.Ela viu a expressão no rosto

dele se alterar e seus olhos seestreitarem.

– Posso perguntar por quê?– Porque sinto que eu não

seria aquilo que o senhornecessita em uma esposa.

– Que diabos isso querdizer?

– Que não tenho dotesdomésticos para administrar umacasa nem instrução suficiente parareceber seus convidados, nem...

– Anna. – A expressão deHerr Bayer se suavizou ao ouviros argumentos dela e Annaentendeu que, por estupidez,

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havia escolhido a abordagemerrada. – Essas coisas que vocêestá me dizendo são típicas doseu temperamento doce emodesto, mas você precisaentender que nada disso temimportância. O seu talento maisdo que compensa as qualidadesque lhe faltam, e sua juventude einocência são dois dos motivosque despertam meu carinho porvocê. Por favor, minha carajovem, não há por que serhumilde ou sentir que você nãotem valor. Afeiçoei-me muito avocê, muito mesmo. Quanto acozinhar... bem, é para isso quetenho Frøken Olsdatter!

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Um silêncio se fez e Annapenou para pensar em outrosmotivos.

– Herr Bayer...– Eu já lhe disse, Anna, por

favor me chame de Franz.– Franz, você pode dizer o

que for, mas ainda que o seupedido me deixe lisonjeada,entristece-me dizer que não possoaceitá-lo. E ponto final.

– Existe alguma outrapessoa?

O tom subitamente incisivoda pergunta provocou nela umcalafrio.

– Não, eu...– Anna, antes de você

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continuar, precisa saber que,embora eu tenha me ausentado deChristiania nas últimas semanas,tenho meus espiões. Se vocêestiver recusando meu pedido porcausa daquele cafajeste bonitoque toca violino na orquestra, eulhe aconselharia a não fazê-lo.Não só como um homem que aama e deseja lhe dar tudo comque você jamais sonhou, mascomo seu conselheiro e guia emum mundo que você ainda éingênua demais para entender.

Ela não disse nada, massabia que o choque era visível emsua expressão.

– Ah! – Herr Bayer deu um

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tapa nas coxas sólidas. – Então éisso. Parece que estoucompetindo pelo seu afeto comum patife da orquestra que nãotem um tostão e não vale nada. Eusabia – disse ele, jogando acabeça para trás e rindo. –Perdão, Anna, mas você hoje estáme mostrando a verdadeiraextensão da sua inocência.

– Me perdoe, mas, sim, nósestamos apaixonados! – O fato deHerr Bayer estar rindo dela,diminuindo os sentimentos queela e Jens compartilhavam,deixou Anna zangada. – E quer osenhor aprove ou não, é averdade – disse ela, levantando-

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se. – Nas atuais circunstâncias,acho que é melhor eu ir embora.Gostaria de lhe agradecer portudo que o senhor fez por mim epor tudo que me deu. E sintomuito se a minha recusa não lheagradou.

Quando ela começou a andardepressa em direção à porta, elea alcançou com dois passoslargos e a puxou de volta.

– Espere, Anna, não vamosnos separar assim. Por favor, eulhe imploro, sente-se paraconversarmos. Você sempreconfiou em mim, e eu gostaria delhe mostrar o quanto sua escolhaestá equivocada. Eu conheço esse

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homem; sei quem é ele e o feitiçoque lançou sobre você. Não aculpo, de forma alguma. Você émuito inocente e, sim, acreditaestar apaixonada. O fato deaceitar ou não o meu pedido éindiferente. Esse homem vaipartir seu coração e destruí-la,como já fez com muitas outrasmulheres.

– Não, o senhor não oconhece... – Desesperada, Annatorceu as mãos, e lágrimas defrustração começaram a escorrerpor sua face.

– Ora, ora, tente manter acalma. Você está ficandohistérica. Por favor, vamos nos

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sentar e conversar.Anna sentiu toda sua energia

se esvair e permitiu que ele aconduzisse de volta até umacadeira.

– Minha cara, você deveestar ciente dos relacionamentosanteriores que Herr Halvorsenteve com outras mulheres –começou Herr Bayer, brando.

– Estou, sim.– A corista Jorid Skrovset

teve uma desilusão amorosa tãogrande que se recusou a voltar aoteatro. E a própria MadameHansson ficou tão abalada depoisde ser usada por Herr Halvorsenque viajou para o exterior para se

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recuperar. É esse o motivo peloqual você agora está fazendo opapel dela no Teatro deChristiania.

– Herr Bayer, pelo que Jensme disse, tenho certeza de que...

– Perdão, Anna, mas vocênão sabe nada sobre esse homem– interrompeu ele. – Entendo quenão sou seu pai e tampouco,infelizmente, seu noivo, eportanto tenho pouca influêncianas suas decisões. No entanto,como tenho profundo carinho porvocê, vou lhe dizer agora queJens Halvorsen é problema nacerta. Ele vai arrasá-la, Anna,assim como arrasou todas as

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mulheres que tiveram o azar decair em sua armadilha. É umhomem fraco, e a fraqueza delesão as mulheres e os excessos. Eutemo por você, temo de verdade,e isso desde a primeira vez emque soube dessa... relação.

– Quando o senhor soube? –sussurrou Anna, sem conseguirencará-lo.

– Semanas atrás. E devo lheavisar que o teatro inteiro estásabendo. E, sim, foi essadescoberta que instigou meupedido, simplesmente porque euquero salvá-la e salvar seutalento de você mesma. Saibaque, se fugir com ele, em breve

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ele vai abandoná-la por outra. Eeu simplesmente não possosuportar a ideia de você jogartudo fora por causa de umCasanova egoísta, depois de todoo trabalho que fizemos juntos.

Anna permaneceu caladaenquanto Herr Bayer se serviaoutra vez.

– Como você não meresponde, vou lhe dizer o queacho que deveríamos fazer. Seestiver decidida a ficar com essehomem, como eu não poderiasuportar assistir ao desfechodramático inevitável, concordoque o melhor seria você sair doapartamento agora mesmo e

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depois ir para Leipzig com eleuma vez encerrada a temporadade Peer Gynt. – Ele viu aexpressão de espanto no rosto deAnna e prosseguiu. – Se decidirque é isso mesmo que vocêdeseja fazer, eu lhe darei odinheiro que ganhou no teatro enossos caminhos irão em direçõesopostas. Se, no entanto, asinceridade do que eu lhe dissesurtir algum efeito e você estiverdisposta a desistir de HerrHalvorsen para se casar comigodepois de eu observar um períodoadequado de luto por minha mãe,nesse caso, por favor, fique. Nãoé necessário ter pressa... tudo de

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que preciso é uma intenção. Porfavor, Anna, eu lhe imploro,pense com muito cuidado na suadecisão. Pois ela vai mudar suavida, para melhor ou para pior.

– Se o senhor sabia disso,por que não falou nada antes? –indagou ela com uma voz miúda.– Com certeza devia saber que eulhe diria não.

– Porque eu me culpo peloque aconteceu, só isso. Eu nãoestava em Christiania paraproteger você dele. Agora queestou de volta, posso lhe dizerque vou protegê-la, sim. Mas sócom uma condição: que você tireJens Halvorsen da sua vida agora

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mesmo. Se estivesse merejeitando por causa de outropretendente, talvez eu pudesseaceitar o fato com algumaelegância. Mas nesse caso nãoposso, pois sei que ele vaidestruí-la.

– Eu o amo – disse ela outravez; era uma frase inútil.

– Sei que você acha isso eentendo como vai ser difícil paravocê aceitar minha exigência.Mas um dia espero que veja queestou agindo para o seu bem.Agora acho que está na hora denós dois nos recolhermos. Asúltimas semanas foram muitoárduas para mim, e estou

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extremamente cansado. – Elesegurou a mão dela e a beijou. –Boa noite, Anna. Durma bem.

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29

Na noite seguinte, Anna sentiualívio ao chegar no teatro,reconfortada pelo fato de tudoestar como sempre estivera.Dividida entre a razão e ocoração, não pregara o olho nanoite anterior. Muito do que HerrBayer tinha dito era verdade,sobretudo para quem visse defora. Ela havia pensado asmesmas coisas em relação a Jens,de modo que não podia culpar

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ninguém por isso. E é claro quetodos lhe diriam para se casarcom Herr Bayer, não com ummúsico pé-rapado. Era a decisãomais sensata.

No entanto, nem mesmotodos esses pensamentosracionais bastavam parasolucionar seu dilema, pois paraonde quer que ela se voltasse aideia de perder Jens Halvorsenpara sempre era simplesmenteinsuportável.

Pelo menos iria vê-lo dali apoucos minutos, fitando-a comuma expressão de amor e apoio ládo fosso da orquestra, pensou elaao deixar o camarim e caminhar

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até o palco. Já tinha lhe escritoum bilhete dizendo que os doisprecisavam se encontrar depoisdo espetáculo e chamado Rudepara entregá-lo após o primeirointervalo. Quando a peçacomeçou, Anna tentou tranquilizaro coração disparado e se acalmar.Ao pisar no palco e dizer asprimeiras falas, olhoudiscretamente para baixo ebuscou o olhar dele.

Foi tomada pelo pânico aoperceber que Jens não estava lá.Um senhor idoso do tamanho deum elfo estava sentado na suacadeira.

No fim do primeiro ato,

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zonza de medo, ela saiu do palcoe, na mesma hora, chamou Rudeaté seu camarim.

– Olá, Frøken Anna. Comovai?

– Vou bem – mentiu ela. –Você sabe onde está HerrHalvorsen? Vi que ele não estátocando hoje.

– É mesmo? Bem, pelaprimeira vez você me disse algoque eu não sabia. Quer que eudescubra?

– Se puder.– Certo. Talvez leve algum

tempo, então nos vemos nopróximo intervalo.

Anna interpretou o segundo

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ato em desespero, tomada poruma verdadeira agonia e, quandoRude apareceu no camarimconforme combinado, pensou quefosse desmaiar de tensão com oque ele talvez fosse lhe dizer.

– A resposta é que ninguémsabe. Talvez ele esteja doente,Frøken Anna. Mas o fato é quenão está no teatro.

Ela fez o restante doespetáculo inteiramente aturdida.Assim que o elenco terminou deagradecer, vestiu-se às pressas,saiu do teatro, embarcou nacarruagem e disse ao condutorque a levasse até o apartamentode Jens. Quando chegaram na

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frente do prédio, saltou, pediu aocondutor por cima do ombro quea esperasse, entrou e subiu aescada correndo. Ofegante, bateucom força na porta até escutar oruído de passos se aproximando.

A porta se abriu e ela viuJens. Aliviada, desmoronou nosbraços dele.

– Graças a Deus, graças aDeus. Eu...

– Anna. – Ele a puxou paradentro e a conduziu até a sala comum dos braços em volta de seusombros trêmulos.

– Onde você estava? Penseique tivesse ido embora... eu...

– Anna, por favor, tente se

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acalmar. Deixe-me explicar. – Elea guiou até o divã e se sentou aoseu lado. – Cheguei ao teatrocomo sempre, mas Johan Hennumme disse que meus serviços naorquestra não eram maisnecessários. Eles tinhamencontrado outro flautista eviolinista para me substituir apartir de hoje. Perguntei-lhe seisso era temporário, e ele merespondeu que não. Pagou meusalário integral e me dispensou.Anna, eu juro, não faço a menorideia de por que fui demitido.

– Eu faço. Ai, meu bomDeus... – Anna segurou a cabeçaentre as mãos. – Dessa vez, Jens,

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o que aconteceu teve pouco a vercom seu comportamento e tudo aver com o meu. Ontem à noite eudisse a Herr Bayer que não podiame casar com ele. Ele então merevelou que sabia tudo sobre nósdois! Disse que eu só era bem-vinda a permanecer na sua casase rejeitasse você imediatamente.E que, caso não estivessedisposta a fazer isso, precisavasair do apartamento.

– Ah, Deus – arquejou Jens;tinha entendido tudo. – E logo emseguida me despedem daorquestra de Christiania. Ele deveter dito a Hennum e Josephsonque eu era má influência e que

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estava distraindo sua novaestrela.

– Perdão, Jens. Nãoacreditava que Herr Bayer fossecapaz de uma coisa dessas.

– Eu sim, e disse isso a você– resmungou Jens. – Bom, pelomenos agora eu sei o motivo daminha saída repentina.

– E o que você vai fazer?– Na verdade, estava

fazendo as malas.– Para ir para onde? –

perguntou Anna, horrorizada.– Para Leipzig, claro. De

uma forma ou de outra, é óbvioque aqui não existe futuro paramim. Decidi que era melhor partir

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o quanto antes.– Entendo. – Anna baixou os

olhos e se concentrou para nãochorar com essa notícia.

– Ia lhe escrever hoje à noitee deixar a carta na entrada dosartistas.

– Ia mesmo? Ou só estádizendo isso porque vim aqui e iasimplesmente sumir sem avisar?

– Anna, min Kjære, venhacá. – Jens a tomou nos braços elhe afagou as costas. – Sei que osúltimos dias têm sido muitodifíceis para você, mas eu mesmosó tive algumas horas desde queHennum me mandou embora. Éclaro que eu ia lhe dizer onde

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estava. Por que cargas d’água nãodiria? Fui eu quem lhe pedi queviesse comigo, lembra?

– Lembro, lembro... Temrazão. – Ela enxugou as lágrimas.– Estou muito nervosa. E muitozangada por você ter sido punidopor causa do que eu fiz.

– Bom, não fique. Você sabeque eu já tinha planejado irembora; só aconteceu um poucoantes do previsto. Herr Bayerficou muito zangado com você,meu amor?

– Não, de forma alguma. Eledisse que não queria que euestragasse minha vida ficandocom você e que, para o meu

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próprio bem, não desejava que eutornasse a vê-lo.

– E por isso eu fui expulsodo fosso sem a menor cerimônia,para impedi-la de me ver. O quevai fazer?

– Herr Bayer me deu um diapara pensar. Como ele se atreve ainterferir dessa forma na minhavida e na sua?!

– Estamos os dois muitoalterados – constatou Jens, e deuum suspiro. – Bom, eu vouembora amanhã... Faz só quinzedias que o semestre noConservatório começou, de modoque não terei perdido grandecoisa. E se você quiser pode me

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encontrar em Leipzig assim que atemporada de Peer Gynt terminar.

– Jens, depois do que elesfizeram com você, eu jamaispoderia colocar os pés naqueleteatro outra vez! – Elaestremeceu. – Vou com vocêagora mesmo.

Ele a encarou com surpresa.– Tem certeza de que é a

coisa mais sensata a fazer, Anna?Se for embora antes de a peçaterminar, você nunca mais poderátrabalhar no Teatro deChristiania. Seu nome ficará tãosujo quanto o meu.

– Nem eu iria querertrabalhar lá outra vez – retrucou

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ela, com os olhos acesos deindignação. – Recuso-me a deixaralguém se comportar como semandasse em mim, qualquer um,por mais importante ou rico queseja.

Sua expressão feroz fez Jensrir.

– Por baixo desse seuexterior doce existe um fogo etanto, não é?

– Fui criada para saberdistinguir o certo do errado, e seique o que fizeram com você émuito, muito errado.

– É, sim, meu amor, masinfelizmente há pouco quepossamos fazer em relação a isso.

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Sério, Anna, estou lhe fazendo umalerta: por mais zangada queesteja, pense bem sobre partircomigo amanhã. Eu detestaria sero motivo da ruína de sua carreira.E saiba de uma coisa... – Ele afez calar quando ela abriu a bocapara dizer alguma coisa. – Nãoestou dizendo isso por não quererque você vá. Estou sópreocupado, pois sei que vamosembarcar amanhã na balsa paraHamburgo e depois tomar o tremnoturno até Leipzig sem nem aomenos saber onde deitaremos acabeça ao chegar. Ou mesmo seeu serei aceito noConservatório...

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– É claro que eles vãoaceitar você, Jens. Você tem acarta de Herr Grieg.

– Tenho, e sim,provavelmente eles vão meaceitar, mas, enquanto eu souhomem e posso suportarprivações físicas, você é umajovem dama com determinadas...necessidades.

– Que nasceu em umafazenda e nunca tinha visto umbanheiro dentro de casa antes dechegar a Christiania – contrapôsela. – Eu sinto realmente quevocê está fazendo tudo que podepara me convencer a nãoacompanhá-lo.

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– Bem, quando chegarmoslá, não diga que eu não lhe avisei.Então... – Ele sorriu de repente. –Fiz o melhor que pude paraconvencê-la e você se recusou aaceitar minhas ressalvas. Minhaconsciência está limpa. Vamospartir amanhã bem cedo. Venhacá, Anna. Vamos nos abraçar enos fortalecer para a aventura naqual estamos prestes a embarcar.

Ele então lhe deu um beijo, etodas as preocupações que elativera quanto à reticência dele ouà própria decisão desapareceram.Seus lábios por fim se separaram,e quando Anna descansou acabeça no seu peito, ele lhe

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afagou os cabelos.– Há mais uma coisa sobre a

qual precisamos conversar, éclaro. Temos que nos apresentarcomo casados para todas aspessoas com quem cruzarmos naviagem e em Leipzig também,naturalmente. Da noite para o dia,você terá de se tornar FruHalvorsen aos olhos do mundo,pois nenhum senhorio nosalugaria um quarto se soubesseque ainda não somos casados.Como se sente em relação a isso?

– Sinto que devemos noscasar assim que chegarmos emLeipzig. Eu não poderia aceitarnenhuma... – Anna não completou

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a frase.– É claro que nos

casaremos. E não se preocupe,Anna: mesmo que tenhamos dedividir a mesma cama, por favoracredite que eu sempre vou mecomportar como um cavalheiro.Assim sendo, por enquanto... –Ele então saiu da sala e voltoudali a um minuto com umapequena caixinha de veludo. –Você precisa usar isto aqui. É aaliança de casamento da minhaavó. Minha mãe me deu quandosaí de casa e me disse paravender se precisasse de dinheiro.Quer que eu a ponha no seu dedo?

Anna encarou a fina aliança

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de ouro. Aquilo não era de modoalgum o “casamento” que haviaimaginado, mas ela entendeu que,por ora, precisava bastar.

– Eu a amo, Fru Halvorsen –disse ele, pondo a aliança nodedo dela com delicadeza. – Eprometo que em Leipzig faremosisso de verdade. Agora vocêprecisa ir embora e se prepararpara amanhã. Consegue chegaraqui às seis?

– Sim, estarei aqui –respondeu ela e foi até a porta dafrente. – De todo modo, duvidoque eu vá dormir muito esta noite.

– Anna, você tem algumdinheiro?

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– Não. – Ela mordeu o lábio.– Agora não tenho como pedirmeu salário a Herr Bayer. Nãoseria certo. Decepcionei-oterrivelmente, a ele e a muitasoutras pessoas.

– Então seremos pobrescomo mendigos até conseguirmosnos reerguer – disse ele, dando deombros.

– Sim. Boa noite, Jens –disse ela baixinho.

– Boa noite, meu amor.

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O apartamento estavasilencioso quando Anna chegouem casa. Quando estava subindoo corredor pé ante pé, viu o rostoansioso de Frøken Olsdatter seespichar pela porta do seu quarto.

– Fiquei preocupada, Anna –murmurou a governanta, vindo emsua direção. – Graças ao Senhor,Herr Bayer se recolheu cedo,reclamando de febre. Por ondevocê andou?

– Estava fora – respondeuAnna, girando a maçaneta paraentrar no quarto, sem a menorvontade de dar explicações aquem quer que fosse.

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– Vamos até a cozinha?Posso lhe preparar um leitequente.

– Eu... – Anna caiu em si.Aquela mulher tinha sido bondosacom ela, e seria errado ir emborasem lhe contar. – Obrigada –disse, enquanto se deixavaconduzir pelo corredor até acozinha.

Diante do copo de leite,Anna contou a história toda aFrøken Olsdatter. Ao terminar,sentiu-se aliviada por ter feitoisso.

– Bom, Kjære – comentou aoutra. – Você é mesmo umadestruidora de corações. Os

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cavalheiros parecem seacotovelar para cortejá-la. Querdizer que decidiu partir semdemora e acompanhar seuviolinista até Leipzig?

– Não tenho outra escolha.Herr Bayer disse que, se eu nãoestivesse disposta a desistir deJens agora mesmo, precisava sairdaqui. Depois do que ele pediupara Herr Hennum fazer comJens, não desejo ficar nem maisum minuto em Christiania.

– Anna, você não acha queHerr Bayer só está tentandoprotegê-la? Que no fundo ele quero melhor para você?

– Isso não é verdade! Só

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importa o que ele quer, não o queeu quero!

– E a sua carreira? Anna,por favor, você tem tanto talento.É um sacrifício muito grande,mesmo por amor.

– Mas é preciso que sejaassim... não posso ficar aqui emChristiania sem Jens – insistiuAnna. – E posso cantar emqualquer lugar do mundo. HerrGrieg mesmo disse que meajudaria se eu pedisse.

– E ele é um benfeitorinfluente – concordou FrøkenOlsdatter. – Mas como você vaifazer em relação a dinheiro?

– Herr Bayer falou que me

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daria os salários que ganhei noteatro. Mas eu decidi não lhepedir nada.

– É muito honrado da suaparte. Mas até mesmo as pessoasapaixonadas precisam comer e terum teto. – Frøken Olsdatter selevantou, foi até uma gaveta dacômoda e pegou uma lata. Tirouuma chave da corrente que traziana cintura e a abriu. Lá dentrohavia uma bolsa de moedas queela entregou a Anna. – Tome. Sãoas minhas economias. Não tenhoem que gastá-las no momento, e asua necessidade é maior do que aminha. Não posso vê-la sair destacasa rumo a um futuro incerto sem

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nada.– Ah, mas eu não posso

aceitar... – objetou Anna.– Pode e vai – retrucou ela.

– E um dia, quando você estivercantando na Ópera de Leipzig,pode me pagar com um convitepara ir assisti-la.

– Obrigada. É muita, muitabondade sua. – O gesto deixouAnna muito comovida. Elaestendeu a mão e segurou a dagovernanta. – A senhora devepensar que o que estou fazendo éerrado.

– Quem sou eu para julgar?Quer a sua decisão seja a melhorou não, você é uma moça

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corajosa, de fortes princípios. Eeu a admiro por isso. Talvez,quando estiver mais calma, possaescrever para Herr Bayer.

– Temo que ele fique muitobravo.

– Não, Anna, ele não vaificar bravo, só imensamentetriste. Você talvez o veja como umhomem velho, mas lembre-se:quando envelhecemos, nossoscorações continuam a funcionarcomo sempre funcionaram. Não oculpe por ter se apaixonado porvocê e querer mantê-la ao seulado para sempre. Agora, comovocê precisa acordar muito cedoamanhã, sugiro que vá para a

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cama e durma o máximo queconseguir.

– Farei isso.– Por favor, Anna, escreva-

me de Leipzig dizendo se chegoubem. Herr Bayer não é o úniconesta casa que sentirá sua falta.Lembre-se de que você temjuventude, talento e beleza. Nãodesperdice isso, sim?

– Farei o que puder para nãodesperdiçar. Obrigada por tudo.

– O que vai dizer aos seuspais? – indagou Frøken Olsdatterde repente.

– Não sei. – Anna suspirou.– Não sei mesmo. Adeus.

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Enquanto a balsa saía dofiorde resfolegando na direção deHamburgo, cuspindo fumaça evapor ruidosamente pelaschaminés, Anna, em pé sozinha noconvés, viu sua terra nataldesaparecer na bruma de outono epensou se algum dia tornaria avê-la.

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30

Vinte e quatro horas mais tarde,Anna e Jens por fim desceram dotrem na estação de Leipzig. O solacabara de nascer. Como Annaestava tão cansada que malconseguia ficar em pé, elecarregou tanto a própria malaquanto a dela. O trem que eleshaviam tomado de Hamburgopara Leipzig era noturno, masnenhum dos dois sentiu quedeveria gastar dinheiro com o

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conforto de um leito. Passaram anoite inteira sentados nos bancosduros de madeira, e Jens pegouno sono quase imediatamente; suacabeça caindo sobre o ombrodela. Conforme as horas iampassando, Anna tinha cada vezmais dificuldade de acreditar noque acabara de fazer.

Pelo menos a manhã estavaensolarada quando eles saíram daestação movimentada ecaminharam até o centro dacidade. Enquanto seus olhosabsorviam a beleza do lugar,Anna sentiu o coração se animarum pouco, por mais cansada queestivesse. As ruas calçadas e

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largas eram margeadas porprédios de pedra altos eimpressionantes, muitosdecorados com rebuscadosbeirais e relevos, com váriasfileiras de elegantes janelas quese abriam por dobradiças. Ospassantes falavam um idiomaentrecortado que, depois de ouvi-lo durante a longa viagem de tremdesde Hamburgo, Anna sabia sero alemão. Jens lhe garantira quefalava a língua com umacompetência razoável, mas ela sóconseguia entender uma ou outrapalavra que fosse parecida com onorueguês.

Por fim, chegaram à praça

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central do mercado. Ao lado dela,ficava a imponente prefeitura, queera de tijolos vermelhos e tinha afachada em arcos e colunas,encimada por uma torre derelógio alta com uma cúpula. Jáabarrotada de barracas, a praçaera um zum-zum de atividade.Jens parou diante de uma dasbarracas, sobre a qual um padeiroestava dispondo pães variadosrecém-saídos do forno. Ao sentiraquele cheiro delicioso, Anna sedeu conta do quanto estava comfome.

Mas Jens não havia paradopara comer.

– Entschuldigung Sie, bitte.

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Wissen Sie wo die Pension in derElsterstraße ist?

Anna não teve a menor ideiado que significou a resposta roucado padeiro.

– Ótimo. Não estamos longeda hospedaria que Herr Griegsugeriu – falou Jens.

Esta se revelou um prédiomodesto, com estrutura demadeira preenchida poralvenaria, situado em uma ruaestreita próxima à rua que Annaviu se chamar Elsterstraße. Aatmosfera ali sem dúvida era bemdiferente da dos muitos edifíciosgrandiosos pelos quais eleshaviam passado, pensou ela,

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cansada. O bairro tinha umaspecto meio decadente, mas elase forçou a recordar que aquiloera tudo que eles podiam pagar, eseguiu Jens quando ele subiu até aporta e bateu com força. Váriosminutos depois, uma mulherapareceu, amarrando às pressas ocinto do roupão para esconder acamisola, e Anna se deu conta deque não devia passar das sete damanhã.

– Um Himmels willen, waswollen Sie denn? – resmungou amulher.

Jens respondeu em alemão, etudo que Anna conseguiu entenderfoi “Herr Grieg”. À menção

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desse nome, o semblante damulher relaxou e ela os convidoupara entrar.

– Ela diz que está lotada,mas como foi Herr Grieg quemnos mandou, tem um quarto deempregada no sótão que podemosusar temporariamente – traduziuJens para Anna.

Os dois foram subindo porestreitos degraus de madeira querangiam sob seus pés. Por fim,chegaram ao último andar, e amulher abriu a porta de umquartinho minúsculo situado sob otelhado da casa. Os únicosmóveis eram uma cama baixa delatão e uma cômoda com uma

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bacia e uma jarra em cima. Pelomenos o lugar parecia limpo.

Seguiu-se um novo diálogoem alemão entre Jens e a mulher,com ele gesticulando em direçãoà cama, e ela assentiu e logo emseguida se retirou.

– Eu disse que por enquantovamos aceitar, até conseguirmosencontrar outras acomodações.Disse que a cama é estreitademais para nós dois, então elavai me arrumar um estrado demadeira. Dormirei no chão.

Ficaram os dois em péolhando para o quarto, calados eexaustos, até a mulher voltar como estrado. Jens lhe deu algumas

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moedas que tinha no bolso.– Nur Goldmark, keine

Kronen – disse ela, balançando acabeça.

– Aceite os Kronen porenquanto, e hoje mais tardetrocarei dinheiro – sugeriu Jens.

Com relutância, a alemãconcordou e embolsou as moedasenquanto dava mais instruções eapontava para debaixo da cama;então se retirou.

Anna sentou-se com cuidadona cama. Estava tonta de tantocansaço, mas o mais urgente eraque precisava ir ao banheiro.Enrubescendo, perguntou a Jensse a mulher tinha lhe dito onde

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ficava o reservado.– Aí, infelizmente. – Ele

apontou para debaixo da cama. –Vou esperar lá fora enquantovocê...

Anna sentiu o rosto ficarquente e assentiu; depois que elesaiu, fez o que estavadesesperada para fazer haviamuitas horas. Estremeceu aocobrir o conteúdo do penico como pano fino previsto para esse fime deixou Jens entrar outra vez.

– Melhor agora? – indagouele, sorrindo.

– Sim, obrigada – respondeuela, tensa.

– Ótimo. Agora sugiro que

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nós dois descansemos um pouco.Anna corou e olhou para o

outro lado enquanto Jens tirava asroupas até ficar apenas de ceroulae camisa de baixo de algodão.Usando o sobretudo para secobrir, ele deitou no estrado.

– Não se preocupe, prometonão espiar – falou, com umarisadinha. – Durma bem, Anna.Nós dois vamos nos sentir melhordepois de dormir. – Ele então lhesoprou um beijo e se virou para ooutro lado.

Anna desamarrou as fitas dacapa, tirou a pesada saia e ablusa, e ficou de camisa de baixoe calçola. Quando se enfiou

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debaixo do áspero cobertor de lãe pousou a cabeça no travesseiro,já podia escutar os roncos suavesde Jens vindos do estrado.

O que foi que eu fiz?,pensou. Herr Bayer tinha razãodesde o início. Ela era ingênua eteimosa, e não tinha parado paraconsiderar as consequências deseus atos. Agora não havia voltapossível, e ela fora acabar ali,naquele quarto horrível eclaustrofóbico, dormindo apoucos centímetros de um homemcom quem sequer era casada,tendo que realizar necessidadesíntimas sem qualquerprivacidade.

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– Ah, Senhor, perdoe-mepela dor que causei aos outros –sussurrou ela para o céu de ondesupunha que Ele a estivesseolhando naquele exato momento,preparando sua ida para oinferno. Por fim, mergulhou emum sono inquieto.

Quando Jens se mexeu, Annajá estava acordada e vestida,desesperada por um copo d’águae morta de fome.

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– Cama confortável? –indagou ele, espreguiçando-se ebocejando.

– Vou me acostumar.– Agora precisamos trocar

algumas moedas em marcosalemães e encontrar algo paracomer – disse ele enquanto sevestia e Anna olhava para o outrolado. – Mas primeiro será quevocê poderia se retirar, e eu aencontro lá fora depois de terfeito o que preciso?

Horrorizada ao pensar queele veria o que já havia nopenico, Anna obedeceu. Então,para seu horror ainda maior, Jenssaiu lá de dentro com o penico na

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mão.– Temos que perguntar à

dona da hospedaria o que fazercom os dejetos – disse ele,passando por ela e começando adescer a escada de madeira.

Anna foi atrás; estava comas bochechas em chamas. Podiaaté ter sido uma simples moça daroça antes de ir para Christiania,mas nunca havia deparado comnada tão anti-higiênico e nojentoquanto aquilo. Em Heddal, oreservado ficava do lado de forada casa e era bem básico, masmuito melhor. Percebeu que,depois de se acostumar aomoderno banheiro do apartamento

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de Herr Bayer, nunca tinhapensado em como os habitantesnormais da cidade se livravam daprópria sujeira.

Eles toparam com a dona dapensão no corredor, e Jens lheentregou o penico como se fosseuma terrina de ensopado. Elaassentiu e apontou para os fundosda casa, mas mesmo assim pegouo penico.

– Pronto. Agora vamoscomer – disse Jens, abrindo aporta.

Os dois caminharam umpouco pelas ruas cheias de genteaté encontrarem um Bierkeller emuma das laterais de uma pequena

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praça. Sentaram-se diante de umadas mesas. Jens pediu cervejas, eambos ergueram os olhos para oquadro no qual estava anotado agiz o sucinto cardápio. Anna nãoconseguiu ler nem uma palavrasequer.

Jens traduziu as opções paraela.

– Bem, tem bratwurst...salsicha. Ouvi dizer que é muitoboa, embora um pouco maisgrossa do que em nosso país –explicou. – Tem Knödel... não mepergunte o que é... E Speck, queimagino ser toucinho...

– Acho que vou comer amesma coisa que você for comer

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– disse Anna, cansada, enquanto acerveja lhe era servida junto comum cesto de pão preto. Emboraela preferisse água, pegou acaneca e bebeu, sedenta.

Espiou pelas janelasencardidas e viu a praçamovimentada lá fora. A maioriadas mulheres usava vestidospretos de feitio simples, comaventais brancos ou cinza queacentuavam a palidez de sua pelee seus traços germânicos afilados.Esperava ver mais roupasluxuosas em Leipzig, pois tinhamlhe dito que a cidade era uma dasmais importantes da Europa. Devez em quando, uma ou outra

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carruagem passava, e os cascosdos cavalos estalavam nocalçamento; ocasionalmente erapossível ver de relance umestiloso chapéu de penas,daqueles usados pelas mulheresmais ricas.

O almoço chegou, e Annalogo devorou as batatas e assalsichas. A cerveja lhe subiu àcabeça, e ela sorriu para Jenscom um ar amoroso.

– Como faço para pedirágua?

– É só dizer: Ein Wasser,bitte – respondeu ele. Suaatenção foi então atraída pelapequena orquestra de rua que

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tocava rabeca no meio da praça,com uma boina pousada no chão àsua frente para recolher dinheiro.Anna o observou se espreguiçarde prazer ao escutar a música.

– Que maravilha, não?Nosso destino está aqui, tenhocerteza. – Ele estendeu a mão porcima da mesa e segurou a dela. –Então, o que está achando denossa aventura até agora?

– Estou me sentindo suja,Jens. Quando voltarmos, vocêacha que é possível perguntar àdona da pensão se tem algumlugar onde possamos tomar banhoe lavar nossas roupas?

Jens a encarou com um olhar

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duro.– Ora vamos, Anna. Você me

disse que era uma moça docampo, acostumada àsdificuldades físicas. É só isso quetem a dizer sobre estar aqui emLeipzig?

Ela pensou com saudade emHeddal e na neve limpa derretidaque eles recolhiam do lado defora no inverno e derretiam sobreo fogo para se lavarem. E emcomo, no verão, podia-se tomarbanho nos riachos de água pura efresca.

– Perdão. Eu vou aguentar,tenho certeza.

Jens pegou a segunda caneca

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de cerveja e tomou um gole.– Eu deveria é agradecer a

Herr Bayer, pois ele me forçou afinalmente avançar em direção aomeu futuro.

– Que bom que você está tãofeliz por estar aqui, Jens.

– Estou, mesmo. Respire sóesse ar, Anna. Até o cheiro édiferente. E a cidade é cheia decriatividade e música. Veja amultidão reunida em volta dessesmúsicos! Por acaso já viu algoassim em Christiania? Aqui amúsica é celebrada, nãodesprezada como ocupação depobre. E agora eu poderei fazerparte dessa celebração. – Ele

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esvaziou a caneca de cerveja e,jogando algumas moedas sobre amesa, levantou-se. – Agora voupegar a carta de Herr Grieg e irdireto para o Conservatório. Issoé o começo de tudo com quesonhei.

De volta ao quarto napensão, Jens vasculhou a mala atéencontrar a preciosa carta. Deuum beijo em Anna e foi até aporta.

– Descanse, Anna. Maistarde a acordarei com vinho eboas notícias.

– E pode perguntar sealguém de lá talvez queira meouvir cantar...

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Mas a porta já havia sefechado atrás dele.

Anna afundou na cama.Entendia agora que aquela“aventura” tinha um significadointeiramente diferente para cadaum deles: Jens havia corrido nadireção de alguma coisa,enquanto ela havia fugido. Eagora, pensou, desanimada,mesmo que tivesse sido a escolhaerrada, não havia nada quepudesse fazer a respeito.

Jens voltou doConservatório algumas horasmais tarde, mais eufórico ainda.

– Quando cheguei lá e pedipara falar com o diretor, Dr.

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Schleinitz, o porteiro olhou paramim como se eu fosse um idiotade aldeia. Então lhe entreguei acarta, e depois de ler ele foidireto buscar o diretor em suasala! O Dr. Schleinitz me pediupara tocar violino, depois umadas minhas composições aopiano. E você não vai acreditar...– Nessa hora, Jens desferiu umsoco no ar. – Ele fez uma mesura!Isso mesmo, Anna, ele fez umamesura para mim! Falamos deHerr Grieg, e ele me disse queseria um prazer dar aulas paraqualquer um de seus protegidos.De modo que amanhã começomeus estudos no Conservatório de

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Leipzig.– Ah, Jens! Que maravilha! –

Anna deu o melhor de si paraparecer feliz.

– Também passei no alfaiatena volta e tive que lhe pagar odobro para me fazer umas roupasmais adequadas até amanhã demanhã. Não quero que ninguémpense que eu sou um bobalhãodos fiordes. Não é maravilhoso?– Aos risos, ele enlaçou Annapela cintura, suspendeu-a ecomeçou a girá-la. – E agora,antes de sairmos para comemorar,temos que nos mudar para nossosnovos aposentos.

– Você já encontrou um lugar

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para morarmos?– Sim. Não é nenhum

palácio, mas com certeza temalgumas vantagens em relação aisto aqui. Enquanto você arrumatudo, vou pagar a dona da pensãoem marcos de ouro como elapediu. Nos vemos lá embaixo.

– Eu... – Anna estava prestesa dizer que duvidava ser capaz decarregar as duas malas sozinha,mas Jens já tinha saído. Algunsminutos mais tarde, ofegante porcausa do esforço, ela o encontroucom a bagagem no hall de entradado térreo.

– Certo, vamos para nossanova casa – declarou Jens.

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Anna o seguiu até a rua, ecom surpresa o viu simplesmenteatravessá-la e entrar na casa emfrente.

– Vi a placa de “aluga-se”na janela quando voltei e resolvientrar para perguntar –acrescentou ele.

A casa era parecida comaquela da qual eles tinhamacabado de sair, mas o quartoficava no primeiro andar, e pelomenos era mais espaçoso earejado do que o sótão abafado.Uma grande cama de latãoocupava a maior parte do espaço,e o coração de Anna sesobressaltou quando ela percebeu

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que não havia espaço para umestrado no chão.

– Há também um reservadodo outro lado do corredor, o quetorna o quarto mais caro, maspelo menos você deve ficarcontente. Está feliz, Anna?

– Estou. – Ela meneou acabeça, estoica.

– Ótimo. – Jens entregoualgumas moedas a FrauSchneider, a dona da casa; Annapelo menos a achou maisamistosa do que a outra. – Aquihá o bastante para pagar aprimeira semana – disse ele,encarando-a com uma expressãoradiante e magnânima.

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– Kochen in der Zimmernist untersagt. Abendbrot umpunkt sieben Uhr. Essen Sie hierheute Abend?

– Ela está dizendo que nãose pode cozinhar no quarto, masque podemos jantar todos os diasàs sete no térreo – traduziu Jensem voz baixa para Anna. Virou-separa Frau Schneider. – Pareceuma excelente ideia. Quanto issosairia a mais?

Mais uma vez o dinheiro foida mão de Jens à da senhora, epor fim a porta se fechou atrásdeles.

– Então, Frau Halvorsen... –Jens sorriu. – Que tal nosso novo

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quarto de casal?– Eu...Jens viu o temor na

expressão dela ao olhar para acama.

– Anna, venha cá.Ela se aproximou, e ele a

abraçou com força.– Pronto, pronto. Já lhe

prometi que só vou tocá-laquando você me autorizar. Maspelo menos assim poderemos nosaquecer nas noites frias aqui deLeipzig.

– Jens, precisamos mesmonos casar o quanto antes – instouAnna. – Temos que achar umaigreja luterana que nos case...

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– E acharemos, mas nãovamos nos preocupar com issoagora – disse ele, puxando-a maispara perto e tentando beijar seupescoço.

– Jens, o que estamosfazendo é um pecado contra Deus!– exclamou ela, repelindo ascarícias.

– Claro, tem razão. – Elesuspirou junto à sua pele antes desoltá-la. – Agora eu acho que nósdois estamos precisando de umbanho, e depois vamos sair paracomer e beber. Combinado? –indagou, levantando seu queixopara poder encará-la.

– Sim – disse Anna,

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abrindo-lhe um sorriso.

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Nas duas semanas que seseguiram, Anna começou a seadaptar à nova rotina. Ou pelomenos a encontrar com que seocupar durante as longas esolitárias horas que Jens passavano Conservatório.

O inverno avançava. Pelamanhã, o quarto ficava gelado, demodo que ela muitas vezesvoltava para a cama depois deJens sair e se aninhava nos

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cobertores de lã quentinhosenquanto esperava o fogo decarvão que havia acendido napequena lareira gerar um poucode calor. Então fazia a toalete,vestia-se e saía pelas ruas deLeipzig para ir à feira comprarpão e frios fatiados para oalmoço.

Sua única refeição quenteera o jantar que Frau Schneiderlhes servia à noite. Na maioriadas vezes, consistia em algumtipo de embutido com batatas oubolinhos de massa encharcadosde um molho insosso. Anna sepegou ansiando pelos legumes everduras frescos e pela comida

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saudável da sua infância.Passava muitas horas

tentando escrever as cartas quesabia dever mandar para HerrBayer e para os pais. Com acaneta de Lars entre os dedos,pensava se o rapaz já teriazarpado para os Estados Unidos,conforme havia planejado. E, nosmomentos de maior desânimo,ponderava se, no fim das contas,deveria ter ido com ele.

Leipzig1o de outubro de 1876

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Caro Herr Bayer,O senhor já deve saber,

uma vez que não estou aí,que vim para Leipzig. HerrHalvorsen e eu estamoscasados. E felizes. Querolhe agradecer por tudo queo senhor me deu. Por favor,fique com meu salário doTeatro de Christiania parareembolsar parte do quegastou, e espero queconsiga vender os vestidosque deixei, pois eram demuito boa qualidade.

Herr Bayer, sintomuito não ter sido capaz deamá-lo.

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Um abraço,Anna Landvik

Então pegou outro papel ecomeçou uma segunda carta.

Kjære Mor e Far,Estou casada com Jens

Halvorsen e me mudei paraLeipzig. Meu marido estáestudando no Conservatóriode Música e eu cuido dacasa para nós. Estou feliz.Tenho saudades de vocês. Eda Noruega.

Anna

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Não deu nenhum endereço,assustada e culpada demais parareceber suas recriminações. Àtarde, ia passear no parque ouzanzar pelas ruas da cidade,muito embora sua capa não fossequente o bastante para o ventogelado. Fazia isso apenas parasentir que era parte dahumanidade. Os vestígios daherança musical de Leipzigpareciam estar por toda parte, dasvárias ruas batizadas com o nomede compositores famosos àsestátuas em sua homenagem, e atémesmo as casas onde um diatinham morado os própriosMendelssohn e Schumann.

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Seu local preferido paravisitar era o espetacular NeuesTheater, sede da Ópera deLeipzig, com sua imponentefachada de colunas e imensasjanelas em arco. Muitas vezes elase punha a admirá-lo pensando sepoderia ter esperanças de algumdia se apresentar em um lugarassim. Certa vez, chegou a tomarcoragem para bater na porta dosartistas e tentar se comunicar como porteiro. No entanto nemmesmo todos os seus gestosconseguiram transmitir ao homema informação de que ela estavaprocurando emprego comocantora.

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Desanimada, e cada vez comuma sensação mais forte de queali não era o seu lugar, ela haviaencontrado abrigo naThomaskirche, construção góticamuito grandiosa da qualdespontava uma linda torrebranca de campanário. Embora otemplo fosse muito maior do quea igrejinha de Heddal, o cheiro ea atmosfera a faziam pensar emsua cidade natal. No dia em queela finalmente tinha posto nocorreio as cartas para Herr Bayere os pais, fora se refugiar ali.Sentada em um dos bancos,abaixou a cabeça e rezou pedindoperdão, força e orientação.

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– Ó Senhor, perdoe asterríveis mentiras que as cartascontêm. Acho que a pior delas é...– Anna engoliu em seco. – Queestou feliz. Não estou. Nem umpouco. Mas sei que não mereçocompreensão nem perdão pornada do que fiz.

Foi então que Anna sentiuum toque delicado no ombro.

– Warum so traurig, meinKind?

Ela ergueu os olhos,espantada, e viu um pastor idosoa lhe sorrir.

– Kein Deutsch, nurNorwegisch – conseguiuresponder, como Jens havia lhe

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ensinado.– Ah! – fez o pastor. –

Conheço um pouco o idiomanorueguês.

Embora ela tenha seesforçado ao máximo paraconversar com o pastor, onorueguês dele era tão limitadoquanto o seu alemão, e elaentendeu que era Jens quem teriaque lhe falar sobre o casamento econvencê-lo da fé dos dois.

O ponto alto de seu dia era ojantar, quando ela escutava Jensfalar sobre o Conservatório: osoutros alunos de toda a Europa,as fileiras de pianos Blüthnerpara os exercícios e os

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maravilhosos professores, muitosdeles também músicos daOrquestra Gewandhaus deLeipzig. Nessa noite, o tema desuas loas era o violinoStradivarius que tivera permissãopara tocar.

– A diferença na qualidadedo som é como a de umagarçonete cantarolando emcomparação com uma sopranocantando uma ária – derramou-seele. – Que maravilha isso tudo!Não só posso tocar todos os dias,tanto o piano quanto meu violino,como as aulas de composiçãomusical, harmonia e análisemusical têm me ensinado muito.

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Em história da música, já estudeiobras de Chopin e Liszt das quaissequer tinha ouvido falar! Embreve estarei tocando o Scherzono 2 de Chopin em um concerto dealunos no auditório daGewandhaus.

– Que bom que você estáfeliz – comentou Anna, tentandoparecer entusiasmada. – Haveriaalguém a quem pudesse perguntarsobre alguma oportunidade paraeu cantar?

– Anna, sei que você viveme perguntando isso – respondeuJens entre uma garfada e outra decomida. – Mas eu já lhe disseque, se não aprender alemão, será

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difícil fazer qualquer coisa nestacidade.

– Mas com certeza devehaver alguém que possa ao menosme escutar? Eu conheço a letraem italiano da “Ária de Violetta”,e depois posso aprender a letraem alemão.

– Shh, meu amor. – Jensestendeu a mão e segurou a sua. –Vou tentar de novo perguntar poraí.

Depois do jantar, haviasempre a constrangedora rotinada hora de dormir. Ela vestia acamisola no reservado, emseguida se enfiava depressadebaixo das cobertas, onde Jens

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já estava deitado. Ele a tomavanos braços e ela relaxava contra oseu peito, sorvendo seu aromaalmiscarado. Ele então a beijava,e ela sentia o corpo reagir a eleassim como o dele reagia ao seu;ambos queriam mais... Mas elaentão se afastava, e ele dava umfundo suspiro.

– Não posso – sussurrou elacerta noite, no escuro. – Vocêsabe que temos que nos casarprimeiro.

– Eu sei, querida. É claroque vamos nos casar um dia, masantes disso nós certamentepodemos...

– Não, Jens! Eu... eu não

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consigo e pronto. Você sabe queachei uma igreja onde podemosnos casar em breve, mas vocêprecisa falar com o pastor paraprovidenciar tudo.

– Anna, eu não tenho tempolivre nenhum. Preciso dedicarminha atenção integralmente aosestudos. Além do mais, muitosalunos do Conservatório têmideias novas. Para alguns maisradicais, a Igreja só existe paracontrolar o povo. Eles preferemuma visão mais esclarecida,como a de Goethe na peçaFausto. A história aborda todosos aspectos do mundo espiritual emetafísico. Um amigo me

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emprestou um exemplar para ler,e neste fim de semana eu a levareiao Auerbachs Keller, o bar que opróprio Goethe frequentava eonde um mural o inspirou aescrever seu clássico.

Anna nunca tinha ouvidofalar em Goethe nem na sua obrapelo visto esclarecedora. Tudoque sabia era que precisava estarcasada aos olhos de Deus antesde poder se unir fisicamente aJens.

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O Natal chegou e Anna sedeu conta de que ela e Jens jáestavam em Leipzig havia trêsmeses. Queria assistir àChristmette, a missa da meia-noite na igreja, e o pastor Meyerchegara até a lhe dar um folhetocom hinos tradicionais alemães.Ela passara a cantarolar “StilleNacht” sozinha, animada com aperspectiva de tornar a cantardiante de um público. Mas Jensinsistira para que passassem avéspera de Natal na casa deFrederick, um de seus colegas noConservatório.

Com uma caneca de

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Glühwein quente na mão, Annaficou sentada em silêncio à mesaao lado de Jens, ouvindo oalemão gutural ser falado sementender quase nada. Jens, jáembriagado, não fez qualquertentativa de traduzir a conversapara ela. Outros convivastocaram instrumentos depois dojantar, mas Jens não sugeriusequer uma vez que ela cantasse.

Quando estavam voltandopara casa na noite gelada, Annaouviu os sinos baterem a meia-noite para anunciar o início dodia de Natal. O som das cançõesnatalinas lhes chegou aos ouvidosquando eles passaram pela igreja,

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e ela ergueu os olhos para Jens,que tinha o rosto vermelho porcausa do álcool e da alegria danoite. Enviando aos céus umaprece muda pela família quecomemorava sem ela em Heddal,Anna desejou com todo o coraçãopoder estar lá também.

Em janeiro e fevereiro, Annapensou que fosse enlouquecer detanto tédio. Sua rotina diária, queno início aparentara ser tolerável

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por ser uma novidade, agora lheparecia insuportavelmenteenfadonha. A neve havia chegado,e às vezes fazia tanto frio queseus dedos das mãos e dos pésficavam dormentes. Ela passava odia inteiro indo buscar baldes decarvão para o fogo, lavandoroupas na lavanderia gélida oufazendo pífias tentativas paradecifrar as palavras do Fausto,que Jens lhe dissera para estudarde modo a melhorar seu alemão.

– Como sou burra! –repreendeu a si mesma certatarde, fechando o livro com umestalo e irrompendo em um chorofrustrado, coisa que agora fazia

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com regularidade alarmante.Cada vez mais envolvido no

Conservatório e com os colegas,Jens chegava em casa comfrequência cheirando a cerveja ea tabaco após algum concerto.Anna fingia dormir quando osbraços dele se esticavam na suadireção e, hesitantes, acariciavamseu corpo por cima da camisola.Ela o ouvia praguejar entre osdentes com a sua falta de reação,e enquanto sentia o coraçãomartelar dentro do peito elerolava para o outro lado com umgrunhido e começava a roncar.Somente então ela conseguiasuspirar de alívio e adormecer

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também.Ultimamente, jantava quase

sempre sozinha, observando porbaixo dos cílios os outrosresidentes da pensão. Muitosmudavam toda semana, e Annacalculava que fossem mascates dealgum tipo. Havia, porém, umsenhor de idade que lhe pareciaser um residente permanente,como ela, e jantava sozinho todasas noites. Vivia com o narizenterrado em algum livro e sevestia de modo elegante eantiquado.

Esse cavalheiro se tornoupara ela um objeto de fascíniodurante as refeições; Anna

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passava horas se perguntandoqual seria sua história e por queele havia escolhido passar aliseus últimos anos. Às vezes,quando estavam só os doisjantando, ele meneava a cabeça edizia “Guten Abend” ao entrar e“Gute Nacht” ao sair. Annadecidiu que aquele senhor lhelembrava Herr Bayer, com suabasta cabeleira branca, seubigode farto e seu ar cortês.

– Se estou com saudades atéde Herr Bayer, devo estar muitoinfeliz mesmo – murmurou elaconsigo mesma certa noite ao sairda sala de jantar.

Algumas noites depois

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disso, o cavalheiro se levantou eatravessou a sala com o livro quesempre trazia na mão.

– Gute Nacht – falou,meneando a cabeça para ela ao seaproximar da porta para sair dasala. Então, parecendo mudar deideia, virou-se outra vez na suadireção. – Sprechen Sie Deutsch?

– Nein, Norwegisch.– A senhora é norueguesa? –

indagou ele, surpreso.– Sou – respondeu Anna,

encantada com o fato de ele terlhe respondido com fluência noseu idioma natal.

– Eu sou dinamarquês, masminha mãe era de Christiania. Ela

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me ensinou norueguês quando euera menino.

Após as longas semanas semconseguir se comunicar comninguém exceto Jens desde quechegara a Leipzig, Anna quis lhedar um abraço.

– Nesse caso, senhor, prazerem conhecê-lo.

Observou o cavalheiroparado junto à porta, pensativo,sem deixar de observá-la.

– A senhora disse que nãofala alemão?

– Só umas poucas palavras.– Então como consegue se

virar nesta cidade?– Para ser bem franca,

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senhor, eu não consigo.– Seu marido está

trabalhando aqui em Leipzig?– Não, ele estuda no

Conservatório.– Ah, um músico! Não é de

espantar que ele nunca jante coma senhora. Posso saber seu nome?

– Chamo-me AnnaHalvorsen.

– E eu, Stefan Hougaard. –Ele lhe fez uma curta mesura. – Éum prazer conhecê-la. Quer dizerentão que a senhora não trabalha,Fru Halvorsen?

– Não, senhor. Mas esperologo conseguir trabalho comocantora.

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– Bem, até lá quem sabe eupossa lhe ajudar na tarefa deestudar alemão? Ou pelo menoslhe ensinar melhor o básico –sugeriu ele. – Podemos nosencontrar aqui depois do café damanhã, se a senhora quiser, ondea dona da pensão pode nos ver otempo todo. Assim seu maridonão acharia que nada inadequadoestá acontecendo.

– É muita gentileza sua, e,sim, eu ficaria muito grata pelasua ajuda. Mas vou logoavisando: sou uma aluna vagarosae não tenho muito talento com aspalavras, nem mesmo no meupróprio idioma.

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– Bem, nesse caso nós sóprecisaremos trabalhar com maisafinco, não é? Amanhã de manhãàs dez, então?

– Sim, estarei aqui.Nessa noite, Anna foi dormir

bem mais contente, muito emboraJens estivesse novamente ausente,tendo lhe dito que estariaensaiando para um concerto. Osimples fato de poder conversarcom outra pessoa tinha sido umaalegria, e qualquer coisa que elapudesse fazer para trazer maisnovidade ao seu cotidiano eranecessariamente boa. Além domais, se conseguisse aprendernem que fosse um pouquinho de

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alemão, talvez tivesse uma chancede voltar a cantar em público...

Quando os primeiros botõesde flor começaram a despontarnas árvores, Anna passava asmanhãs no térreo da pensão,tentando ensinar seu teimosocérebro a decorar e repetir aspalavras que Herr Hougaard lheensinava. Após os primeiros dias,ele insistiu em acompanhá-la narua em seu trajeto diário até a

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feira. Ficava um pouco afastado,escutando com atenção enquantoela seguia suas instruções e davabom-dia ao vendedor, pedia asmercadorias, pagava e sedespedia. No início, essasmissões a deixavam nervosa, eela muitas vezes confundia asfrases que havia aprendido. Aospoucos, porém, foi ficando maisconfiante.

As incursões de Anna àcidade com Herr Hougaardcomeçaram a ficar mais longasnas semanas seguintes, à medidaque seu alemão melhorava, eculminaram com ela em umrestaurante pedindo o almoço

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para os dois – e insistindo empagar como prova deagradecimento.

Ainda pouco sabia sobre ocavalheiro, a não ser que suaesposa tinha morrido alguns anosantes, deixando-o viúvo. Elehavia trocado o campo pelacidade para poder aproveitartodos os benefícios da vidacultural de Leipzig sem ter quecuidar da própria casa.

– Do que mais preciso alémde barriga cheia, lençóis limpos,roupas sempre lavadas e de umestupendo concerto a poucosminutos a pé para instigar meussentidos? – indagara ele com um

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largo sorriso.Herr Hougaard havia ficado

surpreso como fato de Jens nãoconvidá-la para assistir aosmuitos concertos nos quais diziatocar. Segundo o rapaz, nãotinham dinheiro para tanto, maspelo que Herr Hougaard sabia,esses concertos muitas vezeseram gratuitos. Na realidade,Anna via cada vez menos o“marido”, e recentemente houveraocasiões em que ele nem sequervoltara para casa. Certa manhã,ao abrir a janela para deixarentrar o ar da primavera antes dedescer para sua aula diária, elapensou que, não fosse por Herr

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Hougaard, poderia muito bem terse jogado debaixo de um bondemeses antes.

Foi durante uma de suas idasao centro na hora do almoço queAnna ficou perplexa ao ver Jenssentado à janela do ThüringerHof, um dos melhoresrestaurantes da cidade. Era lá quea aristocracia de Leipzig sereunia, com suas roupas elegantese as carruagens enfileiradas dolado de fora, cujos cavalosaguardavam pacientes para levá-los até em casa após um suntuosoalmoço. Igualzinho à sua vida deantigamente em Christiania,pensou Anna, infeliz.

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Esforçou-se para tentar verpor entre as carruagens com quemJens estava almoçando. Pelovistoso chapéu escarlate cujapena se agitava quando a pessoafalava, tratava-se obviamente deuma mulher. Inclinando-se maispara perto, para grande diversãode Herr Hougaard, ela viu que amulher tinha cabelos escuros e oque sua mãe chamaria de perfilromano, ou seja, basicamente umnariz grande.

– Mas o que você tanto olha,Anna? – Herr Hougaard chegoupor trás dela. – Parece avendedora de fósforos do meupróprio conto de Hans Christian

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Andersen. Quer ir encostar onariz no vidro como ela fez? –perguntou ele, rindo.

– Não. – Anna desgrudou osolhos de Jens e da mulher quandoestes se aproximaram paraconversar. – Pensei que fosse umconhecido.

Nessa noite, ela se esforçoupara ficar acordada até Jenschegar, bem depois da meia-noite.Ultimamente, ele vinha tirando aroupa no reservado e entrando nacama no escuro, para nãoincomodá-la. Mas é claro queincomodava – todas as noites.

– O que está fazendo aindaacordada? – perguntou-lhe ele,

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evidentemente espantado ao ver alamparina a óleo ainda acesaquando entrou no quarto.

– Quis esperar vocêacordada. Quase não nos vemosmais.

– Eu sei – disse Jens com umsuspiro, desabando na cama aoseu lado; Anna notou que elehavia bebido outra vez. –Infelizmente, assim é a vida deum estudante de música dofamoso Conservatório de Leipzig.Mal tenho tempo para comerdurante o dia!

– Nem no almoço? – Aspalavras saíram de sua boca antesde ela as conseguir conter.

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Jens virou-se para ela.– Como assim?– Vi você almoçando na

cidade hoje.– É mesmo? Então por que

não entrou para mecumprimentar?

– Porque eu não estavavestida à altura. E você estavamuito entretido conversando comuma mulher.

– Ah, sim, a baronesa vonGottfried. Ela é uma grandebenfeitora do Conservatório e dosalunos. Na semana passada,assistiu a um concerto no qualquatro jovens compositorestiveram a oportunidade de

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executar uma de nossas peçascurtas. É aquela composição naqual venho trabalhando, lembra?

Não, ela não se lembrava,afinal Jens nunca estava em casapara lhe contar mais nada.

– Entendo. – Ela engoliu emseco, e sentiu uma onda deindignação crescer dentro de siao se perguntar por que não aconvidara se havia estreado umanova peça.

– A baronesa me convidoupara almoçar para conversarsobre possíveis planos de fazerminhas composições chegaremaos ouvidos de mais gente. Elatem muitos contatos em todas as

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grandes cidades da Europa. Paris,Florença, Copenhague... – Jensabriu um sorriso sonhador e levouas mãos atrás da cabeça. – Dápara imaginar uma coisa dessas,Anna? Minha música nas grandessalas de concerto do mundo? Issoensinaria uma lição a HerrHennum, não?

– Sim, e sem dúvidacausaria em você grande prazer.

– O que foi, Anna? –perguntou ele, reagindo à friezade sua voz. – Vamos, pode falar.Você tem algo a me dizer?

– Tenho, sim! – Ela nãoconseguiu mais conter a raiva. –Durante semanas e semanas eu

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mal o vejo, e agora você vem medizer que tem feito concertos aosquais eu, sua noiva, e aos olhosdo mundo inteiro sua esposa, nemsequer fui convidada. Volta paracasa depois da meia-noite quasetodas as noites e às vezes nemvolta! E eu aqui sentada,esperando você como umcachorro fiel, sem amigos, semnada para fazer a não sertrabalhos domésticos e semperspectiva de dar continuidade àminha própria carreira decantora! Então, para coroar tudoisso, eu o vejo em um dosmelhores restaurantes da cidade,almoçando com outra mulher.

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Pronto! É isso que eu tenho paradizer.

Depois que ficou claro queAnna havia concluído seurompante, Jens se levantou dacama.

– E agora, Anna, quem vailhe falar o que tenho para dizersou eu: você consegue imaginar oque é para mim me deitar todas asnoites na cama ao lado da mulherque amo, estar tão perto do seulindo corpo, mas não ter sequer apermissão de tocá-lo, a não serpara uma carícia ou um beijo?Sob certos aspectos, meu Deus,qualquer pequena concessão quevocê se digne a me fazer só faz

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aumentar minha frustração! Eufico aqui deitado, noite apósnoite, sonhando tanto em fazeramor com você que não consigodescansar. É melhor para mim epara minha sanidade eu não medeitar com você, não desejá-la,mas ao contrário, chegar em casao mais tarde e o mais embriagadopossível para poder sucumbir aoesquecimento. Sim! – Jens cruzouos braços em atitude desafiadora.– Esta.... esta vida que estamoslevando juntos não é nem umacoisa, nem outra. Você é minhamulher, mas não é. Vive retraída,emburrada... e dá a impressão deque o seu maior desejo seria

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voltar para casa. Anna, por favor,lembre que a decisão de vir paracá foi sua. Por que não vaiembora? É óbvio para todomundo que você não está feliz.Que eu a faço infeliz!

– Jens, você está sendoinjusto, muito injusto mesmo!Sabe tão bem quanto eu comoestou desesperada para me casarde modo a podermos ter uma vidadireita, juntos, como marido emulher. Mas toda vez que eu lhepeço para falar com o pastor vocêdiz que está cansado ou ocupadodemais! Como se atreve a meculpar por esta situação quandoeu não tenho a menor

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responsabilidade?– Não, quanto a essa parte

não tem mesmo, você está certa. –A expressão de Jens se suavizou.– Mas por que você acha que eunão quero falar com o pastorainda?

– Porque não quer se casarcomigo.

– Anna... – Ele deu umarisadinha exasperada. – Você bemsabe como estou desesperadopara ser seu marido de verdade.Mas não acho que se dê conta dequanto custa um evento desses.Você precisaria de um vestido, deajudantes, de um banquete decasamento... é isso que qualquer

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noiva merece. E é isso que euquero que você tenha. Massimplesmente não há dinheiropara uma festa assim. O quetemos mal dá para viver.

Toda a raiva de Anna seesvaiu quando ela enfimcompreendeu.

– Ah... Mas Jens, eu nãopreciso de nenhuma dessascoisas. Só quero me casar comvocê.

– Bem, se o que você diz éverdade, vamos nos casar agoramesmo. Infelizmente, não vai sernada como o casamento que vocêdeve ter imaginado quandocriança.

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– Eu sei. – Anna engoliu emseco ao pensar que nenhum deseus familiares estaria presente.Nem Mor, nem Far, nem Knut,nem Sigrid. O pastor Erslev nãocelebraria a cerimônia nem elausaria a coroa matrimonial dopovoado. – Mas não me importo.

Jens se recostou na cama e abeijou com carinho.

– Vamos falar com o pastor emarcar uma data.

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32

A cerimônia de casamento emThomaskirche foi breve, simplese reservada; Anna usou umvestido branco singelo que haviacomprado para a ocasião com odinheiro de Frøken Olsdatter eflores brancas nos cabelos. Opastor Meyer sorriu, afável, aopronunciar os votos que osligariam um ao outro pelo restode suas vidas.

“Ja, ich will”, disseram eles

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um de cada vez, e Jens pôs nodedo de Anna a aliança de ourosem ornamentos da avó; seu toquefoi cálido e seguro. Anna fechouos olhos quando ele lhe deu umcasto beijo na boca e, aliviada,sentiu o perdão de Deus nocoração.

O pequeno grupo que haviaassistido à cerimônia foi até umBierkeller onde os amigosmúsicos de Jens tocaram umamarcha nupcial improvisadaquando o casal entrou, e os outrosclientes ergueram as canecas decerveja para lhes dar osparabéns. Durante uma refeiçãomodesta, composta de uma sopa

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típica alemã servida emcasamentos, Anna sentiu o toquereconfortante da mão do maridoem seu joelho. Graças a HerrHougaard, pôde participar daspiadas e brindar com os amigosde Jens, e não se sentia mais umaforasteira em um mundo estranho.

Mais tarde nessa noite,quando eles subiram a escada atéo quarto, Jens pousou as pontasdos dedos na base de suas costas,fazendo seu corpo ser percorridopor calafrios de expectativa.

– Olhe só para você –murmurou ele com os olhosescuros de desejo ao fechar aporta atrás de si. – Tão

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pequenina, tão inocente, tãoperfeita... – Ele então estendeu osbraços para ela e a puxou para si,passando as mãos atrevidamentepor seu corpo. – Preciso possuirminha esposa – sussurrou em seuouvido, erguendo seu rosto parabeijá-la. – Não é de espantar queeu tenha buscado conforto emoutro lugar...

Ao ouvir isso, Anna seafastou.

– Como assim?– Nada, não foi nada... Eu só

quis dizer que desejo você.Antes que ela conseguisse

responder, ele já a estavabeijando e acariciando suas

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costas, suas coxas, seus seios... Emesmo contra a sua vontade,aquilo de repente lhe pareceumaravilhoso e natural, o fato deas roupas e todas as outrasbarreiras que os separavam seremenfim removidas para quepudessem se tornar um só. Jens acarregou até a cama, tirou asroupas e se deitou por cima dela.As mãos hesitantes de Annaexploraram a musculatura rija desuas costas. Quando ele apenetrou, ela estava pronta esabia que o seu corpo vinhaensaiando inconscientementeaquele momento desde a primeiravez em que pusera os olhos nele.

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A coisa toda foi estranhapara ela, mas quando ele suspiroue logo depois desabou notravesseiro ao seu lado,aninhando a cabeça dela no seuombro, todas as histórias dehorror que ela ouvira sobreaquele momento especial caíramno esquecimento. Pois agora eleera verdadeiramente seu, e ela,sua.

Nas semanas seguintes, Jens

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chegou em casa sempre a tempode jantar com Anna, ambosimpacientes para terminar decomer e se recolher ao quarto noprimeiro andar. Ficou óbvio paraela que o marido era experientenas artes do amor, e à medida queele foi se tornando menoshesitante e ela também relaxou,cada noite se transformou em umamaravilhosa aventura. A solidãodos últimos meses ficou para tráse Anna compreendeu totalmente adiferença entre amigos e amantes.Parecia-lhe que seus papéisanteriores haviam se invertido,pois agora ela ansiavaconstantemente por sentir o toque

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dele sobre si.– Por Deus, mulher –

comentou ele certa noite deitadoao seu lado, ofegante. – Estoucomeçando a desejar nunca terapresentado você a estabrincadeira. Você é mesmoinsaciável!

E era verdade. Pois aquelesinstantes eram a única parte deJens que lhe pertenciaintegralmente. Pela manhã,quando ele saía dos seus braços ese vestia antes de ir para oConservatório, Anna via suaexpressão mudar e sentia seuspensamentos irem para longedela. Havia adquirido o hábito de

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acompanhá-lo a pé até oConservatório, onde ele lhe davaum abraço, dizia que a amava eentão desaparecia pelas portasdaquele outro mundo que oconsumia.

Meu inimigo, pensava Annaàs vezes ao virar as costas pararefazer o caminho até em casa.

Herr Hougaard haviareparado na energia renovada deseu passo e em seu sorrisoespontâneo ao cumprimentá-loantes da lição matinal.

– A senhora parece maisfeliz agora, Frau Halvorsen, eisso me alegra – comentou ele.

Impulsionado por aquele

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otimismo recém-encontrado, oalemão de Anna melhorou a olhosvistos. Ela agora falava com umasegurança que lhe valia osaplausos do mestre. E ela tinha aimpressão de que cada palavranova conduzia a uma profusão deoutras.

Decidiu que não ficaria maisapenas sentada esperando Jenslhe encontrar um papel decantora. Então escreveu uma cartapara Herr Grieg contando sobre amudança para Leipzig e pedindoque ele lhe indicasse para umteste de canto com qualquerconhecido seu na cidade. Jenshavia perguntado no

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Conservatório o endereço de C.F.Peters, a editora das músicas deGrieg em Leipzig. Ela haviaencontrado o número 10 daTalstraße e entregado a carta emmãos a um rapaz que trabalhavana lojinha do térreo vendendopartituras. Depois disso, passou arezar todas as noites para HerrGrieg receber sua missiva eresponder.

Em um dia de junho, depois

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de ela conseguir manter umaconversa de quinze minutos emalemão sem cometer um únicoerro, Herr Hourgaard lhe fez umamesura.

– Impecável, FrauHalvorsen. Meus parabéns.

– Danke – respondeu Annacom uma risadinha.

– E também devo lhe dizerque em breve irei fazer umtratamento de águas medicinaisem Baden-Baden, como semprefaço no verão. A cidade ficaquente demais para mim, eultimamente ando me sentindoparticularmente cansado. Asenhora e Herr Halvorsen irão

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para a Noruega quando osemestre acabar?

– Se é esse o plano, ele comcerteza não me disse nada.

– Parto amanhã de manhã, demodo que tornarei a vê-la nooutono, se a sorte permitir.

– Sim, assim espero. – Annase levantou ao mesmo tempo queele, e desejou poder manifestarseu afeto e gratidão de modomenos formal do que o exigidopela boa educação. – Sou-lheverdadeiramente devedora,senhor.

– Fique descansada, FrauHalvorsen. Foi um prazer – disseele, retirando-se.

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Depois de Herr Hougaardviajar para Baden-Baden, Annatambém notou uma mudança emJens. Ele passou a não chegarmais em casa para jantar, equando chegava se mostravainquieto, como que pisando emovos. Quando ele fazia amor comela, Anna sentia uma distânciaque antes não existia.

– O que houve? – perguntoucerta noite. – Sei que tem algumacoisa errada.

– Nada – respondeu ele,ríspido, afastando-se do seuabraço e rolando para o outrolado. – Estou cansado, só isso.

– Jens, min eskelde, eu

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conheço você. Por favor, diga-mequal é o problema.

Ele passou algum tempo semse mexer, então rolou novamentede frente para ela.

– Está bem. Estou diante deum dilema e não sei o que fazer.

– Então, pelo amor dos céus,diga-me o que é. Talvez eu possaajudar.

– O problema é que vocênão vai gostar nem um pouco.

– Entendo. Nesse caso, émelhor mesmo me contar.

– Bem, lembra-se da mulhercom quem me viu almoçando?

– A baronesa. Como poderiaesquecer? – respondeu Anna,

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incomodada com a menção àquelapessoa.

– Ela me convidou para irpassar o verão em Paris, onde elae o marido têm um château pertodo palácio de Versalhes. Elapromove soirées musicais para anata do mundo artístico e querlançar minhas novas composiçõeslá. É uma oportunidademaravilhosa para o meu trabalhoser ouvido, claro. A baronesa vonGottfried conhece todo mundo e,como eu lhe disse, é uma grandebenfeitora de jovenscompositores. Ela me disse queaté Herr Grieg já tocou em umdos seus eventos.

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– Ora, nesse caso é claroque devemos ir. Não entendo porque isso deveria ser um dilemapara você.

Ao ouvir essas palavras,Jens soltou um grunhido.

– Anna, foi por isso que eunão lhe contei. O problema é queeu não posso levá-la comigo.

– Ah. E posso saber por quenão?

– Porque... – Jens suspirou.– A baronesa von Gottfried nãosabe sobre você. Eu nuncamencionei que sou casado. Parafalar a verdade, pensei que dizerisso pudesse prejudicar sua boavontade em relação a mim. Na

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época em que a conheci, as coisasentre você e eu estavam...difíceis, e nós vivíamos quasecomo irmãos ou amigos. Então éisso. Ela não sabe sobre a suaexistência.

– Então por que você nãoconta a ela que eu existo? – A vozde Anna saiu baixa, fria; elaestava digerindo o significadooculto do que o marido lhe dizia.

– Porque... porque tenhomedo. Sim, Anna, o seu Jens temeque, se a baronesa souber, nãoqueira mais que eu vá com ela aParis.

– Você quer que a baronesaacredite que está disponível para

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que possa ajudá-lo na suacarreira?

– Sim, Anna. Ah, Deus, queidiota eu sou...

– É mesmo. – Ela ficouolhando, impassível, enquanto elepunha o travesseiro sobre acabeça e se enterrava lá embaixocomo um menino travessorepreendido pela mãe.

– Perdão, Anna. Eu meodeio, de verdade. Mas pelomenos lhe contei todos os fatos.

– Por quanto tempo ela querque você vá?

– Só durante o verão –respondeu ele, saindo de baixo dotravesseiro. – Você precisa

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entender que estou fazendo tudoisso por nós, para impulsionarminha carreira e ganhar dinheirode modo que você possa se mudardeste quarto e um dia ter umacasa de verdade, como de fatomerece.

E para você poder provar afama que julga merecer, pensouela, dura.

– Então você tem que ir.– Sério? – Jens fez uma cara

desconfiada. – Por que cargasd’água você me deixaria ir?

– Porque você me colocouem uma posição insustentável, sópor isso. Se eu o proibir, vaipassar o verão inteiro aqui de

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cara amarrada me culpando porseu infortúnio. E, apesar de osoutros pensarem o contrário... –Anna inspirou fundo. – Eu confioem você.

– Confia mesmo? – Eleestava pasmo. – Então você émesmo uma deusa entre asmulheres!

– Jens, você é meu marido.De que adianta este casamento seeu não puder confiar em você? –retrucou ela, desanimada.

– Obrigado. Obrigado,minha querida esposa.

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Jens partiu alguns dias maistarde deixando com Annadinheiro suficiente para viverconfortavelmente durante assemanas seguintes, até ele voltar.A gratidão avassaladora que eledemonstrou por sua generosidadebastou para convencê-la de quehavia tomado a decisão certa.Todas as noites antes da partida,ela ficara deitada na cama juntocom ele vendo-o encará-la,maravilhado.

– Eu amo você, Anna, eu a

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adoro... – ele dizia e repetia. Eentão, na manhã da viagem, dera-lhe um abraço apertado, como senão conseguisse suportar aseparação.

– Prometa-me que vai meesperar, esposa querida, aconteçao que acontecer?

– É claro, Jens. Você é meumarido.

Anna atravessou o sufocanteverão de Leipzig com

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determinação. Com as janelasescancaradas para deixar entrarqualquer sopro de vento queconseguisse chegar à rua estreitaentre as casas, ela ficava deitadaà noite nua na cama, suando porcausa do calor. Terminou oFausto de Goethe e com esforçoleu todos os outros livros queconseguiu pegar emprestado nabiblioteca da cidade paramelhorar seu vocabulário emalemão. Também comprou tecidosna feira e levou sua costura parao parque, onde, sentada à sombrade uma árvore, confeccionoulaboriosamente um vestido defustão e uma capa mais quente

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para o inverno seguinte. Ao tiraras próprias medidas para asroupas novas, ficou incomodadacom o fato de, apesar de aindanão ter 20 anos, sua cintura jáestar aumentando, como pareciaacontecer com todas as mulheresdepois do casamento. Ia àThomaskirche dia sim, dia não,tanto em busca de socorroespiritual quanto físico, pois ointerior fresco da igreja era oúnico lugar no qual podia fugir docalor.

Escrevia com regularidadepara Jens no endereço que ele lhedeixara antes de ir para Paris,mas só recebeu de volta dois

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bilhetes curtos, dizendo que eleestava bem e ocupado,conhecendo muitos contatosimportantes da baronesa vonGottfried. Ele contou que suacomposição fora bem recebida norecital e que estava trabalhandoem algo novo durante o tempolivre.

O château estáinspirando o melhortrabalho que já fiz! Comonão se sentir criativo em umlugar tão lindo quanto este?

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À medida que o verão searrastava, interminável, Anna serecusou a sucumbir às minhocasque iam se instalando em suamente em relação à rica epoderosa benfeitora de Jens. Elelogo voltaria para casa, dizia elaa si mesma, firme, e os doispoderiam seguir juntos sua vidade casados.

Jens não chegara a lhe dizera data exata em que voltaria, mas,quando ela estava tomando caféda manhã certo dia, no início de

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setembro, sua senhoria, FrauSchneider, perguntou-lhediretamente se o marido voltariaa Leipzig naquele dia, a tempo deiniciar o novo semestre noConservatório, no dia seguinte.

– Tenho certeza de que sim –respondeu Anna, impávida,decidida a não deixartransparecer a surpresa.

Subiu na mesma hora até oprimeiro andar, onde penteou oscabelos e pôs o vestido novo.Encarou o próprio reflexo nopequeno espelho em cima dacômoda e pensou que estava combom aspecto. Não restava dúvidade que seu rosto estava mais

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rechonchudo desde que Jens sefora, e ela torceu para que omarido aprovasse; assim comosua família, ele havia brincadocom ela muitas vezes dizendo-lheque estava magra demais.

Passou o resto o dia sem sairdo quarto abafado, nervosa eanimada com a perspectiva de omarido voltar.

À medida que a tardecomeçou a cair, porém, suaanimação foi sumindo. Jens nãoiria perder o primeiro dia dosemestre em seu amadoConservatório, pensou. Mas,quando a meia-noite soou e ossinos das igrejas anunciaram um

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novo dia, Anna tirou o vestido ese deitou na cama de combinação.Sabia que não chegariam maistrens naquela noite na estação deLeipzig.

Três dias se passaram, e elaficou louca de preocupação. Foiao Conservatório e esperou osalunos saírem pelas portas,fumando e conversando.Reconheceu Frederick, o rapazcom quem eles haviam passado aúltima véspera de Natal, etimidamente o abordou.

– Sinto muito incomodá-lo,Herr Frederick – falou, pois nãose lembrava do sobrenome dele.– Viu Jens nas aulas esta semana?

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Frederick a encarou e levoualguns instantes para reconhecê-la. Então olhou para os amigos, eum diálogo mudo se deu entreeles.

– Não, Frau Halvorsen,infelizmente não vi. Alguém maiso viu? – indagou ele ao grupo emvolta. Os outros fizeram que nãocom a cabeça e desviaram oolhar, constrangidos.

– Estou preocupada quetenha acontecido alguma coisacom ele em Paris, pois já faz ummês que não tenho notícias e eledeveria ter voltado para o iníciodo semestre. – De tão aflita, Annafazia girar a aliança de casada no

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dedo. – Alguém mais aqui noConservatório poderia saber ondeele está?

– Posso perguntar aoprofessor de Herr Halvorsen seele sabe de alguma coisa. Masdevo ser sincero com a senhora,Frau Halvorsen: a impressão quetive foi que o plano dele era semudar para Paris. Ele me disseque só tinha dinheiro para pagarum ano de estudos aqui. Mas éclaro que a escola pode ter lheoferecido uma bolsa para ficar...Isso aconteceu? – indagou ele.

– Eu... – Anna sentiu tudogirar e cambaleou de leve.Frederick a segurou pelo braço

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para ampará-la.– Frau Halvorsen, é óbvio

que a senhora não está bem.– Não, não, estou ótima –

disse ela, afastando o braço damão dele e empinando o queixo,orgulhosa. – Danke, HerrFrederick. – Ela deu um meneiode agradecimento e se afastoucom a cabeça o mais erguidapossível.

– Ah, meu Deusinho querido,ah, meu Deus – foi murmurandoenquanto voltava para casa pelasruas movimentadas, aindaofegante e tonta.

Desabou na cama, pegou ocopo d’água na cabeceira e bebeu

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para aliviar a tontura e a sede.– Não pode ser verdade.

Não pode ser verdade. Se aintenção dele é ficar em Paris,por que não mandou me buscar? –As paredes nuas do quarto eramincapazes de lhe dar a resposta deque ela necessitava. – Ele nãoiria me abandonar, não, não fariaisso – convenceu-se. – Ele meama, eu sou sua esposa...

Após uma noite insonedurante a qual pensou que fosseenlouquecer com os pensamentosque se agitavam em sua mente,Anna desceu a escada trôpega eencontrou Frau Schneider em péno hall, lendo uma carta.

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– Bom dia, Frau Halvorsen.Acabei de receber uma notíciamuito triste. Parece que o seuamigo Herr Hougaard morreuduas semanas atrás de um ataquedo coração. Os parentes delequerem que eu arrume seuspertences, e mandarão umacarroça vir buscá-los.

Anna levou a mão à boca.– Ah, não. Por favor, não. –

E nesse instante tudo ficou preto.

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Quando ela acordou, viu queestava na saleta particular deFrau Schneider, deitada no sofá,com um pano molhado na testa.

– Pronto, pronto – disse amulher mais velha. – Sei como asenhora gostava dele. Deve sermesmo um choque muito grande,com o seu marido ainda ausente.E no seu estado.

Anna acompanhou o olhar deFrau Schneider até o próprioventre.

– Eu... Como assim, meu“estado”?

– Ora, sua gravidez, claro. Asenhora sabe para quando é obebê? É muito pequena, Frau

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Halvorsen, precisa tomar muitocuidado.

Anna sentiu tudo girar outravez e pensou que fosse vomitarsobre o sofá forrado de veludo daalemã.

– Por que não tenta beber umpouco d’água? – sugeriu asenhoria, dando um passo na suadireção com um copo estendido.

Anna bebeu enquanto elaseguia falando.

– Eu ia conversar com asenhora sobre o futuro quando oseu marido voltasse. Uma dasminhas regras aqui é: nada decrianças. O choro incomoda osoutros hóspedes.

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Se Anna pensava que ascoisas não poderiam piorar, issoparecia ter acabado de acontecer.

– Até ele voltar, porém,sinto que não é justo colocá-la narua. Então ficarei feliz em deixá-la permanecer aqui até onascimento – falou ela,magnânima.

– Danke – sussurrou Anna,sabendo que aquela brevedemonstração de empatia estavaencerrada e que a alemã desejavaseguir com seus afazeresmatinais. Levantou-se. – Já estoubem. Obrigada pela gentileza, esinto muito pelo incômodo quelhe causei. – Com um meneio de

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cabeça cortês para FrauSchneider, ela se retirou e voltoupara o quarto.

Passou o resto do diadeitada na cama, sem se mexer.Se ficasse parada, de olhosfechados, quem sabe as coisasterríveis que haviam acontecido –e tudo que ainda estavaacontecendo – desaparecessem.No entanto, se movesse ummúsculo sequer, isso significariaque ainda estava viva erespirando e que teria queenfrentar a realidade.

– Ó, Deus, por favor meajude – implorou ela.

Mais tarde, obrigada a se

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levantar para ir ao reservado,Anna despiu o vestido e ficou empé de calçola e camisa de baixo.Ergueu a peça de roupa que lhecobria o tronco, obrigou-se aolhar para baixo e reconheceuque sua barriga estava levementeinchada. Por que cargas d’águanunca havia relacionado a cinturamais grossa a uma gestação?

– Sua idiota cabeça devento! – lamentou-se. – Como nãopercebeu? Você não passa de umacamponesa ingênua e burra daroça, exatamente como HerrBayer falou! – Foi até umagaveta, pegou a caneta-tinteiro,sentou-se na cama e começou a

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escrever para o marido em Paris.

– Chegou uma carta para asenhora hoje de manhã – disseFrau Schneider, entregando acarta para Anna. A menina, poisera assim que a mulher via aquelahóspede diminuta, ergueu para elauns olhos vazios e encovados, epela primeira vez Frau Schneiderviu surgir neles um lampejo deesperança. – O carimbo é francês.Tenho certeza de que será do seu

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marido.– Danke.A dona da pensão aquiesceu

e se retirou da sala de jantar demodo a dar à menina um pouco deprivacidade para ler. Nas últimasduas semanas, fora apenas ofantasma de Anna que saíra doquarto para encarar comdesinteresse qualquer comida queela pusesse na sua frente, e elalevava o prato embora intocado.Enquanto se dirigia à lavanderiapara lavar a louça do café nobarril de madeira, FrauSchneider deu um suspiro. Játinha visto aquilo tudo antes.Embora sentisse alguma empatia

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por Anna, torcia para que oproblema fosse resolvido poraquela carta. Havia muito jáaprendera que a situação dosresidentes, por mais desesperadaque fosse, não podia ser de suaresponsabilidade.

Lá em cima, no quarto, Annaabriu a carta com dedos trêmulos.Tinha escrito para Jens semanasantes e mandado a carta para ochâteau contando sobre o bebê.Talvez aquilo finalmente fosse aresposta.

Paris13 de setembro de

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1877

Minha querida Anna,Perdoe-me ter

demorado tanto paraescrever, mas eu queriaestar instalado antes defazê-lo. Estou morando emum apartamento em Paris etendo aulas de composiçãocom o renomado professorde música Augustus Theron.Ele está me ajudando muitoa melhorar. A baronesa vonGottfried tem sido muitogenerosa como minhabenfeitora e tem me

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apresentado a qualquer umque possa ajudar. Chegou aorganizar uma soirée, emnovembro, para que eumostre meu trabalho àsociedade parisiense.

Como eu já lhe disse,não senti que fosseapropriado contar a elasobre nós, mas a verdade,Anna, é que eu não queriadeixá-la preocupadaquando viajei. O fato é quemeu dinheiro acabou e, senão fosse a generosidade dabaronesa, nós dois agoraestaríamos na sarjeta. Eulhe deixei tudo que tinha em

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Leipzig, e sei que você temas moedas que FrøkenOlsdatter lhe deu, de modoque rezo para que nãoesteja passandonecessidade.

Anna, entendo quevocê deve considerar minhapartida e o meu não retornocomo uma traição terríveldo nosso amor. Mas porfavor, acredite, eu AMOvocê. E o que fiz foi por nóse pelo nosso futuro. Quandominha música começar aser conhecida, poderei nossustentar de formaindependente, e irei buscá-

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la, meu amor. Juro isso pelaBíblia que você tanto preza.E pela nossa união.

Por favor, Anna, eu lheimploro, espere por mimcomo prometeu. E tenteentender que estou fazendoisso por nós dois. Podeparecer difícil, mas tenha féem mim e confiança de queé a melhor maneira.

Sinto saudades suas,meu amor. Muitas.

Amo você com todomeu coração.

Do seuJens

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Anna deixou a carta cair nochão e segurou a cabeça com asmãos para tentar organizar ospensamentos desordenados. Nãohavia qualquer menção ao bebê...Será que ele não tinha recebidosua carta? E por quanto tempomais ela precisaria esperá-lo?

Esse homem vai partir seucoração e destruí-la... Aspalavras de Herr Bayer ecoavamem sua mente, minando suadeterminação de confiar nomarido.

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De alguma forma, Annaconseguiu atravessar a duraspenas o mês seguinte. Sem amenor ideia de quando Jensvoltaria, foi vendo as moedas deFrøken Olsdatter minguarem edecidiu que precisava procuraralgum trabalho na cidade.

Passou uma semanapercorrendo as ruas de Leipzigindagando sobre vagas degarçonete ou lavadora de panelas,mas no instante em que qualquerpatrão em potencial via suabarriga já proeminente, todosbalançavam a cabeça e a

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mandavam embora.– Frau Schneider, a senhora

por acaso não precisa de algumaajuda na cozinha ou com a faxina?– perguntou ela certo dia à alemã.– Agora que Herr Hougaard sefoi e tenho que aguardar a voltado meu marido, estou entediada.Pensei que poderia me mostrarútil.

– O trabalho que fazemosaqui não é leve, mas se a senhorativer certeza – respondeu asenhoria, fitando-a com atenção.– Sim, eu bem que gostaria deuma ajuda.

Frau Schneider começoucolocando-a para trabalhar na

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cozinha preparando o desjejum;isso significava que Annaprecisava acordar às cinco e meiada manhã. Depois de lavar aspanelas, subia ao quarto doshóspedes e trocava a roupa decama quando necessário. Tinha astardes livres, mas às cincoprecisava voltar à cozinha paradescascar batatas e preparar ojantar. Considerando sua falta deaptidão natural para a cozinha,via certa ironia na situação. Erauma labuta árdua e sem fim, e seuventre pesava dolorosamentequando subia e descia as escadas,mas ela pelo menos ficava tãoexausta que dormia a noite

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inteira.– A que ponto cheguei? –

indagou certa noite a si mesmadeitada na cama, com pesar. – Amaior celebridade de Christianiaem poucos meses virou criada decozinha. – Em seguida rezou pelavolta do marido, como fazia todasas noites: – Querido Deus, porfavor não permita que a fé e oamor que sinto por meu maridoestejam errados e que todosaqueles que duvidaram deleestejam certos.

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Quando os ventos gelados denovembro começaram a soprar,Anna sentiu uma súbita dor nabarriga no meio da noite. Apóstatear para acender a lamparina aóleo ao lado da cama, levantou-separa aliviar o desconforto e, paraseu horror, viu que os lençóisestavam ensopados de sangue. Asdores faziam seu ventre secontrair a espasmos regulares, eela abafou os gritos de dor.Assustada demais para chamarajuda e desagradar a FrauSchneider, suportou sozinha aslongas horas do trabalho de parto

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e, quando o dia despontou, baixouos olhos e viu um minúsculo bebêdeitado entre suas pernas, imóvel.

Reparou em um pedaço depele preso ao umbigo da criança,que também parecia estar preso aela. Sem conseguir mais conter oterror que sentia, pôs-se a gritarcom toda a dor, todo o medo etoda a exaustão que a dominavam.Frau Schneider apareceu naporta, e bastou deitar os olhos nacarnificina sobre a cama para sairdo quarto correndo e ir chamar aparteira.

Anna foi despertada de umsono exausto e febril por mãossuaves que alisaram seus cabelos

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para atrás e puseram um panomolhado sobre sua testa.

– Pronto, Liebe, pronto. Voucortar o cordão e limpar você –murmurou a voz com gentileza.

– Ela está morrendo? – Avoz conhecida de Frau Schneiderpenetrou na consciência de Anna.– Eu sabia, ah, sabia que deveriater lhe pedido para ir embora nomesmo instante em que soube queela estava grávida. É nisso que dádeixar meu coração de manteigamandar na minha cabeça.

– Não, a jovem senhora vaificar bem, mas o bebê nasceumorto, que tristeza.

– Ora, que tragédia, mas

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infelizmente preciso ir cuidar davida. – Dito isso, Frau Schneidersaiu do quarto com um muxoxo dedesagrado.

Uma hora mais tarde, Annajá estava asseada e sentada sobrelençóis limpos. A parteira haviaenrolado seu bebê em um xale e oentregou a ela para que sedespedisse.

– Era uma menininha,querida. Tente não ficar abalada.Tenho certeza de que no futuro asenhora terá outros bebês.

Anna olhou para os traçosperfeitos da filha, cuja pele, noentanto, já exibia um tom azulado.Beijou a menina carinhosamente

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na testa minúscula, entorpecidademais até para chorar, e entãodeixou que a parteira a tirassedos seus braços.

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– Agora que a senhora estámais forte, desejo lhe falar –disse Frau Schneider, tirando abandeja do desjejum intacta docolo de Anna.

Uma semana havia sepassado, e a menina continuavana cama, fraca demais para andar.Frau Schneider decidiu que jábastava.

Anna assentiu com letargia;já sabia o que ela iria dizer. E

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pouco lhe importava se ela apusesse mesmo na rua. Já nãoligava para mais nada.

– Desde o início do outono asenhora não recebe cartas do seumarido.

– Não.– Ele disse quando iria

voltar?– Não. Só disse que voltaria.– E a senhora acreditou?– Por que ele iria mentir

para mim?Frau Scheider a encarou,

consternada com a suaingenuidade.

– A senhora tem dinheiropara me pagar o aluguel da

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semana passada?– Tenho.– E o da próxima? E o da

seguinte depois da próxima?– Ainda não olhei minha

lata, Frau Schneider. Vou olharagora. – Ela tateou debaixo docolchão e pegou a lata.

Frau Schneider não precisououvir que restavam poucasmoedas lá dentro. Observou amenina abrir a lata e viu umaexpressão de medo atravessarseus olhos azuis. Anna pegouduas moedas, entregou-as àsenhoria, em seguida fechou a latacom um estalo.

– Danke. E o pagamento da

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parteira? Pode me dar o dinheirodela também? Ela me deixou aconta antes de ir. E naturalmentehá também a questão do enterroda sua filha. O bebê ainda está nonecrotério da cidade, e a menosque a senhora queira que ela sejaenterrada em uma vala comum,precisa pagar o enterro e a covano cemitério.

– Quanto custa isso?– Não sei dizer. Mas acho

que na verdade é óbvio para nósduas que custa mais do que asenhora tem.

– Sim – concordou Anna,desalentada.

– Menina, eu não sou uma

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mulher má, mas também não sousanta. Afeiçoei-me a você, e seique é uma boa moça, temente aDeus, que está nesta situação porcausa de um homem. E não soudesprovida de coração a ponto dejogá-la na rua depois do que vocêsofreu. Mas nós duas precisamosser realistas em relação ao queestá acontecendo. Este quarto é omelhor que tenho a oferecer aoshóspedes, e a quantia que vocêganhou fazendo os trabalhosdomésticos mal dá para duasnoites do aluguel semanal. Issosem falar nas suas outrasdívidas...

Ela olhou para Anna à

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espera de uma reação, mas osolhos mortos da moça nãoexibiram sequer uma centelha debrilho. Então suspirou antes deprosseguir.

– Assim sendo, sugiro quevocê continue a me ajudar napensão trabalhando em tempointegral até seu marido voltar, seé que ele vai voltar, e em trocados seus serviços eu lhe darei oquarto de empregada na área deserviço, na parte dos fundos dacasa. Você comerá os restos dodesjejum e do jantar e, alémdisso, eu lhe emprestarei odinheiro necessário para pagar aparteira e dar à sua filha um

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enterro cristão decente. Então, oque me diz?

Anna foi incapaz deresponder qualquer coisa.Quaisquer pensamentos quepudesse ter tido não estavam aoseu alcance. Ela só se encontravafisicamente presente porque nãotinha escolha, de modo quemeneou a cabeça em ummovimento automático.

– Ótimo. Então estádecidido. Amanhã você levarásuas coisas para o quarto novo.Um cavalheiro deseja alugar estequarto por um mês.

Frau Schneider caminhouaté a porta e, quando sua mão

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grande e ágil segurou a maçaneta,ela se virou, com o cenhofranzido.

– Não vai dizer obrigada,menina? Muita gentesimplesmente jogaria você nasarjeta.

– Obrigada, Frau Schneider– entoou Anna, obediente.

A mulher murmurou algumacoisa, abriu a porta e saiu, e Annaentendeu que não haviademonstrado gratidão suficiente.Fechou os olhos para deixar arealidade longe. Era mais seguroficar em um lugar onde nada nemninguém pudesse alcançá-la.

Enquanto um vento gelado

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soprava no início de dezembro,Anna foi ao cemitério de Johannise se postou sozinha diante dotúmulo da filha.

Solveig Anna Halvorsen.O Deus no qual sempre

acreditara, o amor pelo qualhavia sacrificado tudo, e agorasua filhinha... tudo estavaperdido.

Nos três meses seguintes,Anna apenas existiu. Trabalhava

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do raiar do dia até o cair da noite,e Frau Schneider aproveitou aomáximo o arranjo financeirocombinado quando ela estavavulnerável. A alemã ficavadescansando em sua saletaprivativa e incumbia Anna de umnúmero cada vez maior detarefas. À noite, a moça sedeitava em seu estrado noquartinho fedendo à comidarançosa da área de serviço e aoesgoto do ralo estreito no quintal,tão exausta que dormia e nãosonhava com nada.

Não havia mais sonhos parasonhar.

Quando reuniu coragem para

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perguntar em quanto tempo suadívida seria saldada e elacomeçaria a receber algumsalário, Frau Schneiderrespondeu com um rosnado cheiode zanga.

– Sua menina ingrata! Eucuido de você pondo um tetosobre sua cabeça e comida namesa, e mesmo assim você pedemais!

Não, era Frau Schneiderquem estava pedindo mais,pensou Anna nessa noite.Ultimamente, cabia a ela fazertudo na pensão, e ela sabia quedeveria começar a tentarencontrar outro emprego que pelo

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menos lhe rendesse um salário,por menor que fosse. Ao tirar ovestido e examinar no espelho orosto encardido, viu que estavacom um aspecto pouco melhor doque o de uma criança de rua:quase morta de fome, vestida emandrajos e fedendo a sujeira.Seria quase impossível algumpatrão lhe oferecer um empregono estado em que ela seencontrava.

Pensou em escrever paraFrøken Olsdatter, ou mesmoimplorar a misericórdia dos pais.Quando indagou em uma loja depenhores quanto lhe pagariampela pena que Lars tinha lhe dado,

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soube que sequer cobriria o custode mandar uma carta pelo correiopara a Noruega.

Além do mais, o que lherestava de orgulho lhe dizia queela havia causado a si mesmatodo aquele infortúnio e que nãomerecia compaixão.

O Natal veio e se foi, e ogelo de janeiro foi sugandolentamente cada grama deesperança e confiança que Annaainda tivesse dentro de si. Suaspreces, que antes pediamsalvação, agora haviam setransformado em desejos denunca mais acordar.

– Deus não existe, é tudo

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mentira... tudo mentira –murmurava ela para si mesmaantes de sucumbir a um sonoexausto.

Certo início de noite, emmarço, estava na cozinha picandolegumes para o jantar doshóspedes quando Frau Schneiderentrou com um ar agitado.

– Anna, um cavalheiro estáaqui para falar com você.

Ela se virou para a mulhercom uma expressão de puroalívio no rosto.

– Não, não é seu marido.Levei-o até minha saleta. Tire oavental, lave o rosto e vá até láassim que estiver pronta.

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Com o coração pesado,Anna pensou se Herr Bayer teriavindo zombar dela. Poucoimportava se tivesse, pensou,subindo o corredor até a saleta deFrau Schneider. Bateu na porta,nervosa, e alguém lhe disse paraentrar.

– Frøken Landvik! Ou,melhor dizendo, Fru Halvorsen,que é como acredito que se devechamá-la agora. Como vai, meupequeno rouxinol?

– Eu... – Em choque, Annaencarou o cavalheiro,observando-o como se ele fosseum objeto em exibição no museude sua vida passada.

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– Vamos, menina, fale comHerr Grieg – repreendeu FrauSchneider. – Ela com certeza saberesponder quando quer –comentou, ácida.

– Sim, ela sempre foi umamoça decidida que sabia o quequeria. O temperamento de artistaé assim, madame – retrucouGrieg.

– Temperamento de artista?– Frau Schneider olhou paraAnna com desdém. – Achei queisso fosse coisa do maridoausente dela.

– O marido desta mulherpode até ser um bom músico, masessa jovem é o verdadeiro talento

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da família. Nunca a ouviu cantar,madame? Ela tem a voz maisesplêndida que eu já escutei,tirando a de minha querida esposaNina, claro.

Anna ficou escutando emsilêncio os dois falarem a seurespeito e saboreou a expressãode choque no rosto de FrauSchneider.

– Bem, é claro que, se eusoubesse, a teria trazido para estasaleta e a feito cantar para nossoshóspedes enquanto eu tocavapiano. Apesar de amadora, soumuito entusiasmada. – FrauSchneider apontou para o antigoinstrumento posicionado em um

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canto, que Anna não ouvira sertocado desde o dia em que lápisara.

– Tenho certeza de que estásubestimando suas capacidades,madame. – Edvard Grieg voltousua atenção para Anna. – Minhapobre menina – falou, passandoao norueguês para a alemã nãoentender. – Só recentementecheguei a Leipzig e recebi suacarta. Você parece quase morta defome. Perdoe-me; se eu soubessepelo que estava passando, teriavindo antes.

– Herr Grieg, por favor nãose preocupe comigo. Eu estoubem.

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– É óbvio que não está, eserá um prazer ajudá-la em tudoque eu puder. A senhora devealguma coisa a essa mulherhorrorosa?

– Acho que não, senhor. Fazseis meses que não recebosalário, e acho que minhasdívidas já devem ter sido pagashá muito tempo. Mas ela talvezpense diferente.

– Minha pobre menina,coitadinha – disse Grieg, tomandocuidado para manter o tom levediante da presença atenta de FrauSchneider. – Agora vou pedir umcopo d’água, que a senhora irábuscar para mim. Depois irá até

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seu quarto arrumar quaisquerpertences que possua. Traga-me ocopo d’água, em seguida peguesuas coisas e saia desta casa. Ireiencontrá-la no Bierkeller naesquina de Elsterstraße. Enquantoisso, cuidarei de nossa FrauSchneider.

– Eu estava comentando comAnna que estou com uma sedetremenda, que não consigoaliviar. Frau Halvorsen sugeriubuscar um pouco d’água para mim– pediu ele, em alemão.

Quando Frau Schneideraprovou com um meneio decabeça, Anna saiu da sala eatravessou depressa a área de

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serviço para ir fazer sua mala,como Herr Grieg havia lheinstruído. Encheu um copo comágua de uma jarra e o levou até asaleta. Deixou a mala do lado defora da porta e levou o copo ládentro.

– Obrigado, minha cara –disse Herr Grieg quando ela lheentregou o copo. – Agora tenhocerteza de que deve ter muitosafazeres. Irei lhe falar antes departir. – Virando-se para FrauSchneider, ele conseguiu dar umaleve piscadela para Anna, que seretirou apressada, pegou sua malae saiu da casa.

Atordoada por aquela

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reviravolta, aguardou vinteminutos em frente ao Bierkelleraté a conhecida silhueta de seusalvador descer a rua a passosrápidos na sua direção.

– Bem, Fru Halvorsen,espero que um dia o seu maridoausente me recompense por ternegociado a sua libertação!

– Ah, não... Ela o fez pagarpara me deixar ir embora?

– Não, foi bem pior do queisso. Ela insistiu para que eutocasse meu Concerto em LáMenor naquele instrumentohorroroso. Deveria usar aquelepiano como lenha para esquentaraquele corpo cheio de banha no

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inverno. – Grieg deu umarisadinha e pegou do chão a malade Anna. – Prometi visitá-la denovo para lhe fazer uma serenata,mas posso lhe garantir que nãovou cumprir essa obrigação.Agora vamos chamar umacarruagem na praça para noslevar até Talstraße, e no caminhoa senhora vai me contar tudo quesofreu nas mãos da malvada FrauSchneider. É como se a senhorafosse Aschenputtel e aquelamulher, sua madrasta má, que aexpulsou para a cozinha para sersua criada. Só faltam as duasirmãs feiosas!

Grieg deu a mão para Anna e

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a ajudou a subir na carruagem.Nessa hora, ela se sentiu de fatocomo uma princesa de conto defadas sendo resgatada pelopríncipe.

– Vamos para a casa de meugrande amigo, o editor de músicaMax Abraham – falou Grieg.

– Ele está me esperando?– Não, mas, minha cara

madame, quando ficar sabendosobre a sua terrível situação, teráimensa alegria em lhe dar umabrigo. Eu tenho direito a usar umconjunto de aposentos sempre queestou em Leipzig. A senhoraficará bastante confortável lá atéencontrar outro lugar para morar.

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Se preciso for, dormirei em cimado piano de cauda.

– Por favor, senhor, nãoquero lhe causar nenhumproblema ou desconforto.

– Posso lhe garantir que nãovai ser o caso, cara madame. Eusó estava brincado – disse elecom um sorriso bondoso. – Acasa de Max tem muitos quartosde hóspedes. Mas conte-me,como a senhora foi cair tanto dagrande altura a que havia chegadona última vez em que a vi?

– Senhor, eu...– Pensando bem, não me

conte! – Grieg ergueu a mão ecofiou o bigode. – Deixe-me

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adivinhar! As atenções de HerrBayer estavam se tornandoinsuportáveis. Talvez ele a tenhaaté pedido em casamento. Asenhora recusou, porque estavaapaixonada pelo seu belo, porémnada confiável tocador de rabecae futuro compositor. Ele disse queestava vindo estudar em Leipzig ea senhora decidiu se casar comele e acompanhá-lo. Acertei?

– Senhor, não zombe demim, por favor. – Anna abaixou acabeça. – É evidente que jáconhece a história. Cada palavrado que disse é verdadeira.

– Fru Halvorsen... possochamá-la de Anna?

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– Claro.– Herr Hennum me falou faz

pouco tempo do seu súbitodesaparecimento, embora eu nãoconhecesse os detalhes. E, peloque escutei em Christiania, eraóbvio que as intenções de HerrBayer iam além da sua carreira.Quer dizer que o seu maridotocador de rabeca continua emParis?

– Acho que sim. – Anna seperguntou como ele sabia.

– E hospedado noapartamento de uma ricabenfeitora chamada baronesa vonGottfried, imagino eu.

– Não sei onde ele se

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hospeda, senhor. Há meses nãotenho notícias. Não o consideromais meu marido.

– Minha cara Anna, comovocê sofreu – disse Grieg,estendendo uma das mãos parareconfortá-la. – Infelizmente, abaronesa é fervorosa na caça aostalentos musicais. E quanto maisjovens e atraentes, melhor.

– Perdoe-me, senhor, masnão tenho o menor interesse emsaber os detalhes.

– Não, claro que não. Queinsensibilidade a minha! Mas aboa notícia é que ela logo vai secansar dele e seguir seu caminho,e ele então voltará para o seu

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lado. – Ele relanceou os olhospara ela. – Eu sempre disse quevocê era o espírito da minhaSolveig. E, assim como ela, ficaesperando ele voltar para você.

– Não, senhor. – Aobservação dele fez os traços deAnna endurecerem. – Eu não souSolveig, e não vou esperar Jensvoltar para mim. Ele não é maismeu marido, nem eu sou suaesposa.

– Anna, chega desse assuntopor ora. Você agora está comigo eestá segura. Farei tudo que puderpara ajudá-la. – Ele fez umapausa enquanto a carruagemencostava em frente a uma linda e

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luxuosa casa branca de quatroandares, com fileiras de janelasaltas que se encerravam emgraciosos arcos. Anna reconheceua casa: era a sede da editoramusical, onde tanto tempo antesela havia deixado sua carta paraHerr Grieg. – Pelo bem dasaparências, é melhor que osoutros acreditem que você apenaspassou por maus bocadosenquanto esperava seu maridovoltar de Paris. Entende isso,Anna? – Os olhos azuispenetrantes de Grieg se cravaramnos dela por um instante, e apressão da mão dele em torno dasua aumentou.

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– Entendo, senhor.– Por favor, me chame de

Edvard. Pronto, chegamos – disseele, soltando a mão dela. – Vamosentrar e fazer com que nosanunciem.

Ainda tonta com osacontecimentos do dia, Anna foiconduzida por uma criada atéaposentos maravilhosamentearejados no sótão e pôde entãomergulhar em um merecidobanho. Após esfregar a sujeirados últimos meses, pôs umvestido de seda que havia surgidocomo por magia sobre a cama debaldaquino. Achou estranho, maso traje verde-esmeralda coube

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com perfeição no seu corpodiminuto.

Observou admirada a lindavista de Leipzig da ampla janela,e sua lembrança de serprisioneira na pequena pensãocomeçou a se dissipar à medidaque ela olhava para o luxo que acercava. Como fora instruída afazer, desceu a escada e pensou,maravilhada, que, se não fossepor Herr Grieg, a essa hora aindaestaria na cozinha encardida deFrau Schneider, descascandocenouras para o jantar.

A criada a conduziu até asala de jantar, e ela se sentoudiante de uma comprida mesa

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entre Edvard, como agora deviachamá-lo, e Herr Abraham, seuanfitrião. Quando este lhe deu asboas-vindas à sua casa, Anna viuum par de olhos bondososbrilhando por trás dos óculos bemredondos. Havia outros músicospresentes, além de muitas risadase boa comida. Embora estivessefaminta, não conseguiu comermuito; seu estômago havia sedesacostumado a digerir tantoalimento. Em vez de comer, ficousentada sem dizer nada,escutando, e beliscando comforça a pele do antebraço para tercerteza de que estava realmenteali.

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– Essa linda dama é acantora mais talentosa daNoruega – falou Grieg, erguendouma taça de champanhe na suadireção. – Olhem só para ela! É overdadeiro símbolo de Solveig.Ela já serviu de inspiração paraalgumas canções folclóricas queescrevi este ano.

Na mesma hora, os convivaspediram que ele tocasse as novasmúsicas e Anna as cantasse.

– Talvez mais tarde, amigos,se Anna não estiver demasiadocansada. Ela atravessou umperíodo muito difícil, prisioneirada mulher mais má de todaLeipzig!

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Enquanto Edvard narrava osacontecimentos que haviamculminado com o resgate de Annae os convidados arquejavam emtodos os momentos certos, elatentou não se sentir sufocadapelas difíceis lembranças do quetinha lhe acontecido.

– Pensei que minha musahouvesse desaparecido! Mas láestava ela, morando em Leipzig,bem debaixo do nosso nariz! –Ele concluiu com um floreio. – AAnna!

– A Anna!A mesa inteira ergueu as

taças de cristal e bebeu à suasaúde.

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Depois do jantar, Edvard achamou para perto do piano edispôs uma partitura na sua frente.

– E agora, Anna, emrecompensa pelo meu heroicoresgate, será que você conseguereunir forças para cantar? Acanção se chama “A primeiraprímula”, e até agora ninguém acantou, pois tinha que ser você.Venha... – disse ele, dando algunstapinhas na banqueta do piano. –Sente-se aqui do meu lado evamos ensaiar por algunsminutos.

– Senhor... Edvard –murmurou ela. – Faz muitosmeses que não canto.

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– Então sua voz descansou evai alçar voo feito um pássaro.Agora escute a música.

Anna escutou, e seu únicodesejo foi que os dois estivessemsozinhos para ela ao menos podercometer erros em particular, e nãodiante de uma plateia tão distinta.Quando Edvard anunciou que elesestavam prontos, os convivas seviraram ansiosos na sua direção.

– Anna, por favor, fique empé; assim você controla melhor arespiração. Consegue ver a letrapor cima do meu ombro?

– Sim, Edvard.– Então vamos começar.O corpo inteiro de Anna

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tremeu de nervosismo quando seusalvador tocou os primeirosacordes. Suas cordas vocaishaviam passado tanto tempo semuso que ela não fazia ideia do quesairia de sua boca quando aabrisse. De fato, as primeirasnotas saíram certas, mas semcontrole. No entanto, à medidaque a linda música começou a lhepreencher a alma, sua vozrecuperou a memória e aconfiança e alçou voo.

Quando eles terminaram acanção, Anna soube que tinhasido boa o bastante. Houve fortesaplausos e pedidos de bis.

– Perfeito, minha cara Anna,

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como eu sabia que seria. Max,você publicaria essa canção noseu catálogo?

– Claro, mas tambémdeveríamos organizar um recitalna Gewandhaus junto com asoutras canções folclóricas quevocê compôs se a angelical Annaaceitar cantá-las. É óbvio queforam escritas para a sua voz. –Max Abraham se curvou diante deAnna em uma pequena mesurarespeitosa.

– Então vamos organizarisso – disse Edvard sorrindo paraAnna, que deu o melhor de si paradisfarçar um bocejo.

– Minha cara, posso ver que

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está exausta. Tenho certeza de quetodos a perdoarão por se recolhercedo. Pelo que ouvimos dizer, osúltimos tempos foramextremamente difíceis para asenhora – disse Max, para grandealívio de Anna.

Edvard se levantou e beijoua mão dela.

– Boa noite, Anna.Ela subiu os três lances de

escada até seu quarto. Láencontrou a criada atiçando alareira. Uma camisola já estavadisposta sobre a grande cama decasal.

– Posso indagar a quempertencem essas roupas? Servem

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tão bem em mim...– São de Nina, mulher de

Edvard. Herr Grieg me disse quea senhora não tinha trazido nada,e que eu deveria lhe apresentarpeças do guarda-roupa de FrauGrieg – respondeu a criadaenquanto desabotoava o vestidode Anna e a ajudava a despi-lo.

– Obrigada – agradeceu ela,desacostumada a ter ajuda. –Pode me deixar sozinha agora.

– Boa noite, FrauHalvorsen.

Depois de a criada sair,Anna se despiu, vestiu a maciacamisola de popeline e se enfiouextasiada entre os lençóis limpos

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de linho.Pela primeira vez em muitos

meses, enviou aos céus uma preceagradecendo ao Deus que haviadescartado e pedindo perdão porter perdido a fé. Então fechou osolhos, exausta demais para pensarqualquer outra coisa, e caiu emum sono pesado.

A história do resgate deAnna por Grieg das garras damalvada Frau Schneider se

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tornou o assunto preferido de todaLeipzig e ganhou vários erequintados detalhes ao longo dassemanas que se seguiram. Àmedida que seu novo e poderosomentor a acompanhava peloscírculos musicais e sociais dacidade, todas as portas se abriampara eles. Os dois compareceramjuntos a lautos jantares nas maislindas casas da cidade, depoisdos quais pediam a Anna paracantar em troca do jantar, comoEdvard dizia. Em outras noites,ela participava de pequenassoirées musicais na companhia deoutros compositores e cantores.

Edvard sempre a

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apresentava como “o símbolo detudo que há de mais puro e maislindo no meu país natal” ou como“minha musa norueguesaperfeita”. Ao cantar suas cançõessobre vacas, flores, fiordes emontanhas, Anna pensava àsvezes se deveria simplesmente sevestir com a bandeira nacionalpara ele poder agitá-la na suafrente. Não que se importasse;sentia-se honrada com o interesseque ele lhe demonstrava. Emcomparação com a vida que tinhaantes em Leipzig, cada segundoera um milagre.

Durante esses poucos meses,ela conheceu muitos grandes

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compositores da época, e o maisemocionante desses encontros foicom Pyotr Tchaikovsky, cujamúsica romântica e arrebatadaela adorava. Todos esses músicosiam visitar Max Abraham na C.F.Peters, que havia se transformadoem uma das editoras de músicamais admiradas de toda a Europa.

A editora funcionava namesma casa, e Anna adoravadescer aos andares inferiorespara admirar os lindos volumesencadernados de partituras comsuas capas verdes características,maravilhada com as composiçõesde figuras ilustres como Bach eBeethoven. Também a fascinavam

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as prensas mecânicas do subsolo,que cuspiam páginas e maispáginas de partituras perfeitas auma velocidade inacreditável.

Aos poucos, graças à boacomida, ao descanso e,principalmente, ao carinhosocuidado que a casa inteira lhedispensava, Anna foi recuperandoa força e a confiança. A terríveltraição de Jens ainda a magoava elhe provocava uma raiva intensa,mas ela fazia o possível paraafastar da mente esse sentimento eo próprio Jens. Não era mais umacriança ingênua que acreditava noamor, mas sim uma mulher cujotalento podia lhe proporcionar

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tudo que ela quisesse.Como os pedidos de recitais

chegavam com regularidade, tantoda Alemanha quanto do exterior,Anna também assumiu as própriasfinanças; nunca mais na vidaqueria depender de homem algum.Na esperança de um dia podercomprar seu próprio apartamento,economizava cada centavo.Edvard a incentivava, dava-lheapoio, e mais do que isso: os doisforam ficando cada vez maispróximos.

Às vezes, de madrugada,Anna acordava com o somplangente do piano de cauda láembaixo, diante do qual ele tantas

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vezes se sentava para compor atétarde da noite.

Certa noite, no fim daprimavera, atormentada pelavisão recorrente da pobre filhamorta, jazendo sozinha na terrafria, ela desceu do quarto e foi sesentar no primeiro degrau, bemem frente à sala de estar, paraouvir a melodia melancólica queEdvard estava tocando. Seusolhos se encheram de lágrimas eela segurou a cabeça com as mãose chorou, deixando a dor da perdaescorrer junto com o pranto parafora de seu corpo.

– Minha cara menina, o quehouve? – Anna se sobressaltou ao

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sentir a mão de alguém no seuombro e viu os bondosos olhosazuis de Edvard a fitá-la.

– Perdão. Foi essa lindamúsica que tocou minha alma.

– Pois eu acho que foi maisdo que isso. Venha. – Ele a levoupara dentro da sala e fechou aporta. – Sente-se aqui ao meulado e use isto para secar osolhos. – Estendeu-lhe um grandelenço de seda.

Os cuidados de Edvardprovocaram uma nova enxurradade lágrimas que ela nada pôdefazer para conter. Depois dealgum tempo, constrangida,ergueu os olhos para ele.

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Sentindo que lhe devia umaexplicação, inspirou fundo e lhecontou sobre a perda do bebê.

– Minha querida menina,pobrezinha de você. Como talvezsaiba, eu também perdi um filho...Alexandra viveu até os 2 anos eera a coisa mais querida, maisadorável, mais preciosa da minhavida. Sua morte me partiu ocoração. Assim como você, perdia fé em Deus e na própria vida. Econfesso que isso teveconsequências no meu casamento.Nina ficou totalmenteinconsolável, e nos pareceu quaseimpossível reconfortar um aooutro.

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– Bem, pelo menos esse foium problema que eu não tive naépoca – comentou Anna, seca, eEdvard deu uma risadinha.

– Minha doce Anna, você setornou tão querida para mim.Admiro sua determinação e suacoragem mais do que sou capazde expressar. Ambos conhecemosum sofrimento genuíno, e talveztudo que eu possa lhe dizer sejaque precisamos buscar consolo nanossa música. E quem sabe... –Edvard a encarou, e estendeu amão para segurar a sua. – Quemsabe um no outro.

– Sim, Edvard – disse ela,entendendo exatamente o que ele

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estava querendo dizer. – Achoque podemos fazer isso.

Um ano depois, com a ajudade Edvard, Anna pôde sair dacasa de Talstraße e se mudar parasua própria e confortávelresidência em Sebastian-Bach-Straße, em um dos melhoresbairros de Leipzig. Só selocomovia de carruagem econseguia as melhores mesas nosrestaurantes mais exclusivos da

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cidade. À medida que sua famafoi aumentando na Alemanha,começou a viajar com ele paradar recitais em Berlim, Frankfurte muitas outras cidades. Além decantar as composições de Grieg,seu repertório agora incluía “Acanção do sino” da recém-estreada ópera Lakmé, e “Adeus,colinas e campos nativos”, de suaópera favorita de Tchaikovsky, Adonzela de Orléans.

Houve até uma ida aChristiania para um recital nomesmo teatro em que ela haviainiciado carreira. Ela escreveucom antecedência para os pais eFrøken Olsdatter, e mandou

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kroner suficientes para pagar aviagem e reservar um quarto paraeles no Grand Hotel, onde elaprópria ficaria hospedada.

Depois de tudo que haviaacontecido e do quanto se sentiamal por tê-los decepcionado,Anna esperou a resposta delescom grande ansiedade. Nãoprecisava ter se preocupado.Todos aceitaram o convite, e foium feliz reencontro. Durante umjantar de comemoração após orecital, Frøken Olsdatter lheinformou discretamente que HerrBayer havia falecido poucotempo antes. Ao ouvir a notícia,Anna expressou seus pêsames,

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mas então lhe implorou quevoltasse com ela para Leipzig ese tornasse sua governanta.

Felizmente, Lise aceitou oemprego. Anna sabia que, nasatuais circunstâncias, precisavade alguém em quem pudesseconfiar cegamente para trabalharpara ela dentro de sua casa.

No marido fujão, por suavez, Anna pensava o mínimopossível. Sabia que a baronesatinha sido vista em Leipzig eouvira fofocas de que ela estavapatrocinando outro jovemcompositor, mas fazia anos queninguém tinha notícia de Jens.Como Edvard havia comentado,

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ele tinha desaparecido feito umrato nos esgotos de Paris. Annarezou para que estivesse morto,pois, embora levasse uma vidapouco convencional, estava feliz.

Isso até Edvard chegar aLeipzig durante o inverno de1883 em resposta à carta urgenteque ela lhe enviara.

– Você entende o queprecisamos fazer, Kjære? Portodos nós?

– Entendo, sim – respondeuAnna, com os lábios contraídosde resignação.

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Ele só apareceu naprimavera de 1884. A criadaarranhou a porta da sala de estarpara avisar a Anna que havia umhomem esperando para falar comela.

– Eu lhe disse que fosse paraa entrada dos vendedores, masele se recusa a sair de onde estáantes de vê-la. A porta da frenteestá fechada, mas ele está sentadono degrau. – A criada apontoupara uma figura encolhida dooutro lado da grande janela. –

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Devo chamar a polícia, FrauHalvorsen? Está claro que ele éum mendigo ou um ladrão, quiçácoisa pior!

Anna se levantoupesadamente do banco em queestava descansando e andou até ajanela. Viu o homem sentado nodegrau da frente, segurando acabeça entre as mãos.

Sentiu um peso no coração epediu ao Senhor outra vez paralhe dar forças. Somente Ele sabiacomo ela conseguiria suportaraquilo, mas, na atual situação, nãolhe restava outra escolha.

– Por favor, mande-o entraragora mesmo. Parece que o meu

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marido voltou.

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Ally

Bergen, NoruegaSetembro de 2007

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Foi com o coração na boca queli sobre a volta de Jens para Annae virei apressada as páginasseguintes para descobrir o quehavia acontecido em seguida.Mas Jens tinha decidido pular oque deviam ter sido mesesextremamente difíceis e seconcentrar mais na mudança docasal de volta para Bergen, umano depois, para uma casachamada Froskehuset, perto da

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propriedade de Grieg,Troldhaugen. E também nasubsequente estreia de suaspróprias composições em Bergen.Fui para a Nota do Autor naúltima página:

Este livro é dedicado àminha maravilhosa esposa,Anna Landvik Halvorsen,que morreu tragicamente depneumonia no início desteano, aos 50 anos. Se ela nãotivesse se disposto a meperdoar e me aceitar devolta quando apareci em suaporta tantos anos depois de

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abandoná-la, eu teria mesmosido engolido pelas sarjetasde Paris. Em vez disso,graças ao seu perdão, nóstivemos uma vida feliz juntoa nosso precioso filho,Horst.

Anna, meu anjo, minhamusa... você me ensinou tudoque realmente importa navida.

Eu amo você e sinto suafalta.

Do seuJens.

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Perturbada e confusa, fecheio computador. Achava quaseimpossível acreditar que Anna,com seu temperamento forte eseus rígidos princípios morais –justamente as características quea haviam ajudado a sobreviver aoque Jens tinha feito a ela –pudesse ter perdoado o maridotão rápido e o aceitado de volta.

– Eu o teria chutado de casae me divorciado dele assim quepossível – falei para as paredesdo quarto de hotel, muito irritadapela conclusão da inacreditávelhistória de Anna.

Sabia que as coisas eramdiferentes naquela época, mas

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Jens Halvorsen, encarnação vivado próprio Peer Gynt, parecia terescapado sem qualquer tipo depunição.

Olhei para o relógio depulso e vi que já passava das dez;levantei-me para ir ao banheiro eferver água para uma xícara dechá.

Quando estava fechando aspesadas cortinas sobre as luzespiscantes do porto de Bergen,refleti seriamente, pensando seteria perdoado Theo se ele meabandonasse. Coisa que ele decerto modo tinha feito, aliás, damaneira mais terrível e definitivapossível. E, sim, eu sabia que

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também estava zangada e queainda precisava perdoar oUniverso. Ao contrário de Jens eAnna, minha história com Theohavia sido interrompida antesmesmo de começar, e não forapor culpa de nenhum dos dois.

Para não sucumbir aosentimentalismo, chequei meus e-mails e ataquei o cesto de frutas,já que estava cansada demaispara descer e o serviço de quartoterminava às nove. Vi que haviamensagens de Ma, Maia e uma deTiggy, dizendo que estavapensando em mim. Peter, pai deTheo, também tinha escrito,dizendo ter conseguido um

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exemplar do livro de ThomHalvorsen. Queria saber paraonde mandá-lo. Respondiperguntando se ele poderiamandá-lo por FedEx para oendereço do hotel e decidi ficarem Bergen até o livro chegar.

No dia seguinte, iriaprocurar a casa de Jens e Anna equem sabe fazer uma segundavisita a Erling, o simpáticocurador do Museu Grieg, parasaber mais sobre a sua história.Estava gostando daquela cidade,muito embora minha investigaçãoestivesse empacada.

De repente, o telefone aolado da minha cama tocou e me

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sobressaltei.– Alô?– Oi, sou eu, Willem

Caspari. Tudo bem com você?– Tudo, sim. Obrigada.– Que bom. Quer tomar café

comigo amanhã de manhã? Tenhouma ideia que gostaria de lheapresentar.

– Ahn... sim, está bem.– Excelente. Durma bem.A ligação foi encerrada

abruptamente e pus o fone nogancho, sentindo-me um poucoincomodada por ter concordadocom o pedido dele. Tenteientender por quê, e reconheci queera por culpa. Para ser sincera,

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uma pequena centelha de algodentro de mim me dizia que eu mesentia fisicamente atraída por ele.Mesmo que minha cabeça e meucoração proibissem isso, meucorpo estava desobedecendo àssuas ordens e agindo por contaprópria. No entanto aquilo nãoera nem de longe um “encontro”.E, mais importante ainda: peloque Willem tinha dito sobre amorte do parceiro – Jack –,estava claro que ele era gay.

Enquanto me preparava paradormir, permiti-me uma risadinha;pelo menos aquela era umapaixonite segura, que decertotinha muito mais a ver com o

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talento dele como pianista do quecom qualquer outra coisa. Eusabia que poderoso afrodisíacoisso podia ser e me perdoei porsucumbir.

– Então, o que acha? – Ospenetrantes olhos azul-turquesade Willem se cravaram nos meusdurante o café da manhã do diaseguinte.

– Quando vai ser o recital?– Sábado à noite. Mas você

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já tocou a música antes, e temos oresto da semana para ensaiar.

– Meu Deus, Willem, issofaz dez anos. Estou muitolisonjeada por você ter meconvidado, mas...

– “Sonata para Flauta ePiano” é uma peça linda, e nuncame esqueci de como você a tocounaquela noite no Conservatóriode Genebra. Por definição, o fatode me lembrar da sonata e devocê dez anos depois significaque foi uma apresentaçãoespetacular.

– Não sou nem de longe tãotalentosa ou bem-sucedida quantovocê – protestei. – Pesquisei seu

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nome na internet, e você é ummúsico muito importante. Chegoua tocar no Carnegie Hall no anopassado! Então agradeço muitopor me convidar, mas a resposta énão.

Ele observou a mim e meucafé da manhã intocado. Euestava mesmo muito enjoada.

– Está nervosa, não é?– É claro que estou! Você

pode imaginar como ficariaenferrujado depois de dez anossem pôr as mãos no piano?

– Sim, mas também tocariacom um entusiasmo e um vigorrenovados. Por que pelo menosnão vem me encontrar depois do

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concerto que vou dar hoje na horado almoço para tocarmos a peçainteira juntos? Tenho certeza deque Erling não vai se importar,mesmo que considere umablasfêmia tocar Francis Poulencno território sagrado de Grieg. Eo Logen, onde vai ser o recital desábado, é um teatro bem bonito. Éa ocasião perfeita para vocêvoltar a tocar.

– Você está mepressionando, Willem – vociferei,agora à beira das lágrimas. – Porque faz tanta questão de que eutoque?

– Se alguém não tivesse meforçado a voltar ao piano depois

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da morte de Jack, euprovavelmente nunca mais teriatocado uma nota sequer, entãotalvez possamos dizer que, de umponto de vista cármico, estouretribuindo o bem que mefizeram. Por favor?

– Ah, está bem, então.Apareço em Troldhaugen hoje àtarde para tentar – concordei,sentindo-me vencida pelocansaço.

– Ótimo. – Ele bateu umapalma de contentamento.

– Você com certeza vai ficarhorrorizado quando me ouvir. Eutoquei no funeral do Theo, masnão é a mesma coisa.

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– Então, em comparação,isso agora vai ser moleza. Nosvemos às três – disse ele,levantando-se da mesa.

Observei-o ir embora; seucorpo franzino não fazia jus aoenorme café da manhã que euacabara de vê-lo devorar. Eraóbvio que ele vivia à base deadrenalina. Dez minutos depois,de volta ao meu quarto, abri oestojo da flauta com hesitação eolhei para o instrumento como sefosse um inimigo que tivesse quecombater.

– O que foi que eu fiz? –murmurei.

Peguei as diferentes peças e

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as juntei, girando devagar osencaixes e alinhando oinstrumento de modo correto.Depois de afinar a flauta e tocaralgumas escalas rápidas, tenteitocar o primeiro movimento dasonata de cabeça. Para umaprimeira tentativa, até que nãosaiu tão ruim, pensei, enxugandoautomaticamente a umidadeexcessiva e limpando debaixo dasteclas antes de guardar oinstrumento outra vez.

Então saí para dar umpasseio pelo cais. Parei em umadas lojas com piso de tábuas demadeira para comprar um suéter,já que a temperatura parecia ter

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despencado e eu só trouxeraroupas de verão na mochila.

Após passar de novo nohotel para buscar a flauta, pegueium táxi e subi a colina. Pergunteiao taxista se ele conhecia umacasa chamada Froskehuset, queficava na mesma rua do MuseuGrieg. Ele respondeu que não,mas que podíamos olhar os nomesdas construções ao passar. Dito efeito: achamos a casa, uns poucosminutos mais abaixo na encostaem relação ao museu. Liberei otáxi e ergui os olhos para a belacasa de madeira em estilotradicional, pintada em um tomcreme. Quando cheguei perto do

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portão, vi que ela parecia meiomalconservada: a tinta estavadescascando da madeira e ojardim estava malcuidado. Fiqueiparada do lado de fora mesentindo como um ladrão queplaneja um roubo, e me pergunteiquem poderia morar ali agora ese eu deveria simplesmente baterà porta para descobrir. Decidinão fazê-lo, e retomei e subidaem direção ao museu.

Entrei no café me sentindoum pouco enjoada outra vez.Havia perdido totalmente oapetite desde a morte de Theo esabia que tinha perdido peso.Mesmo sem fome, pedi um

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sanduíche aberto de atum e meforcei a comer.

– Oi, Ally. – Erling chegousorrindo para me cumprimentarno canto do café. – Ouvi dizerque você tem um ensaioimprevisto hoje à tarde na sala deconcerto, depois do recital?

– Se você não se importar,Erling.

– Nunca me importo dealguém tocar uma bela música ládentro – garantiu-me ele. – Já leumais alguma coisa da biografia deJens Halvorsen?

– Na verdade, terminei olivro ontem à noite. Acabei de irver a casa em que ele e Anna

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moraram.– Ah, é lá que o biógrafo e

tataraneto Thom Halvorsen mora,por sinal. Mas você acha quepode ser parente da famíliaHalvorsen?

– Se for, não vejo como issoé possível. Pelo menos não ainda.

– Bom, quem sabe Thom vaipoder esclarecer melhor as coisasquando voltar de Nova York nofim da semana? Vai assistir aoconcerto de Willem hoje na horado almoço?

– Vou. Ele é extremamentetalentoso, não é?

– É, sim. Como ele talveztenha lhe contado, viveu uma

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tragédia pessoal algum tempoatrás. Acho que isso o tornoumais talentoso ainda comopianista. Na vida, esse tipo deacontecimento pode matar oucurar, se é que você me entende.

– Entendo, sim – respondi,tocada.

– Até mais tarde, Ally. –Erling meneou a cabeça para mime se afastou.

Meia hora depois, eu estavanovamente no auditório deTroldsalen ouvindo Willem tocar.Dessa vez o repertório era umapeça menos conhecida chamada“Humores”, que Grieg haviaescrito mais para o fim da vida,

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quando já mal conseguia sair decasa por causa da doença, masainda cambaleava até o chalépara escrever. Willem tocou apeça divinamente, e me pergunteionde estava com a cabeça por tersequer cogitado tocar com umpianista tão experiente etalentoso. Ou, para ser maisexata, onde ele estava com acabeça para querer tocar comigo.

Ao final da apresentação,depois de a plateia satisfeita seretirar, Willem acenou para eudescer até o palco, e fui me juntara ele, nervosa.

– Nunca tinha ouvido essapeça antes. É esplêndida, e você

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a tocou lindamente – elogiei.– Obrigado. – Ele me fez

uma curta mesura, então paroupara me observar. – Ally, vocêestá branca feito um papel! Vamosandar logo com isso antes quedesista e saia correndo.

– Ninguém pode entrar aqui,né? – perguntei, olhando para asportas lá em cima, nos fundos doauditório.

– Meu Deus! Você estácomeçando a parecer tãoparanoica quanto eu.

– Desculpe – balbuciei.Peguei minha flauta e a montei, eWillem me indicou a hora decomeçar.

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Fiquei orgulhosa deconseguir chegar ao final dosdoze minutos de música sem pularuma nota sequer, mas fui muitoauxiliada pelo acompanhamentointuitivo dele e pelo timbreincrivelmente fluido do pianoSteinway.

Willem me aplaudiu; o somecoou bem alto pelo auditóriovazio.

– Bom, se é assim que vocêtoca depois de uma década, achoque vou pedir para eles dobraremo preço do ingresso para o recitalde sábado à noite.

– É muita gentileza sua dizerisso, mas não saiu nem de longe

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perfeito.– Não, não mesmo, mas foi

um começo fantástico. Agorasugiro que a gente repita a peçamais devagar, pois precisamosresolver algumas questões detempo.

Passamos a meia horaseguinte ensaiando os trêsmovimentos da peça, um por um.Depois de eu guardar a flauta,quando estávamos saindo juntosdo auditório, dei-me conta de quenão havia pensado em Theo nemuma vez nos últimos 45 minutos.

– Vai voltar para a cidade? –quis saber Willem.

– Vou.

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– Então vou providenciar umtáxi.

No caminho de volta aocentro de Bergen, agradeci-lhe econfirmei que aceitava tocar comele no sábado.

– Nesse caso, fico muitofeliz – respondeu ele, espiandodistraído pela janela. – Bergen émesmo um lugar muito especial,não?

– É. Eu também sinto isso.– Um dos motivos pelos

quais aceitei vir fazer os recitaisna hora do almoço emTroldhaugen esta semana foiporque me convidaram paraentrar para a Orquestra

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Filarmônica daqui e ser o pianistatitular. Eu quis testar o terreno,pois isso significaria deixar meusantuário em Zurique e me mudarpara cá quase em tempo integral.E, depois do que lhe conteiontem, você sabe que mudançaimensa isso seria para mim.

– Jack morava em Zuriquecom você?

– Morava. Talvez esteja nahora de um novo começo. E pelomenos a Noruega é limpa –acrescentou ele, com umaexpressão séria.

– Isso é – falei, rindo. – E opovo é muito simpático. Mas alíngua deve ser difícil à beça de

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aprender.– Tenho sorte, meu ouvido é

muito apurado. Notas musicais,idiomas, de vez em quando umquebra-cabeça matemático: édessas coisas que eu gosto. Alémdo mais, todo mundo aqui falainglês.

– Bom, eu acho que aorquestra teria muita sorte sevocê viesse.

– Obrigado. – Ele mepresenteou com um raro sorriso. –Chegamos ao hotel e entramos. –O que vai fazer hoje à noite?

– Ainda não pensei.– Quer jantar?Ele percebeu na hora a

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minha hesitação.– Desculpe, você deve estar

cansada. Nos vemos amanhã àstrês. Boa noite.

Ele se afastou abruptamentee me deixou ali plantada sozinha,culpada e confusa. Mas eu nãoestava passando muito bem, o quenão era nem um pouco naturalpara mim. Fui para o quarto,deitei na cama e pensei comtristeza quantas coisas estavam“pouco naturais” para mimnaquele momento.

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Tive que ir às compras emBergen para achar algo formal erecatado para a apresentação. Aocolocar o vestido preto simplesque usaria no recital, afastei aslembranças da roupa semelhantecom a qual comparecera aofuneral de Theo. Passei um poucode rímel e senti a adrenalinacomeçar a correr por minhasveias a tal ponto que tive que meinclinar acima da privada, e

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quase vomitei. Enxuguei os olhoslacrimejantes e voltei ao espelhopara consertar o estrago no rímele passar um batom. Então pegueio estojo da flauta e o casaco edesci de elevador para encontrarWillem no lobby do hotel.

Além de estar meio baleadafisicamente, eu também estavaencucada com Willem desde oseu convite para jantar. Durantenossos ensaios juntos depoisdisso, sentira uma certa frieza noseu comportamento. Elemantivera a conversa em um nívelpuramente “profissional”, enossos diálogos no táxi eramapenas sobre a peça que tínhamos

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ensaiado.As portas do elevador se

abriram e eu o vi à minha esperana recepção; a gravata borboletae o smoking preto impecável lhecaíam bem. Torci para que aminha recusa não o tivessedeixado chateado. Tinha notadoum leve toque do mesmoconstrangimento pelo qual Theo eeu havíamos passado nocomecinho do nossorelacionamento, e algo agora medizia que Willem com certeza nãoera gay...

– Você está bonita – disse,levantando-se e vindo em minhadireção.

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– Obrigada, mas não estoume sentindo bonita.

– Parece que as mulheresnunca se sentem bonitas –comentou ele, brusco. Saímos dohotel e embarcamos no táxi queele havia arrumado.

O silêncio reinou dentro docarro, e o desconforto entre nósdois me deixou frustrada. Willemparecia distante e tenso.

Chegamos ao Teatro Logen,entramos e Willem foi aoencontro da organizadora que nosaguardava no foyer.

– Venham, venham – disseela, conduzindo-nos para dentrode uma elegante sala de concerto

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com o pé-direito alto, fileiras deassentos dispostas no chão e umestreito balcão circular noprimeiro andar iluminado porlustres. Não havia nada no palcoa não ser um piano de cauda euma estante de partitura paramim. Os canhões de luz acendiame apagavam enquanto osengenheiros eletricistas faziam asúltimas checagens.

– Vou deixar vocês daremuma última passada – disse amulher. – O público vai entrarquinze minutos antes do início,então vocês têm meia hora paraavaliar a acústica.

Willem lhe agradeceu e

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subiu os degraus do palco até opiano. Ergueu a tampa e correu osdedos de um lado para o outrosobre as teclas.

– Um Steinway B – afirmou,aliviado. – E o som está bom.Então, vamos dar uma passadarápida?

Tirei a flauta do estojo ereparei que meus dedos tremiamquando a montei. Tocamos asonata inteira, depois saí àprocura do banheiro enquantoWillem praticava seus solos. Tiveoutra ânsia de vômito, e quandofui passar uma água fria no rostozombei do meu próprio reflexo,que parecia um fantasma. Logo

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eu, que tinha fama de ser capaz desuportar as condições maisviolentas no mar sem um pingo denáusea. Agora, em terra firme,por ter que tocar flauta durantedoze minutos diante de umaplateia, parecia uma marinheirade primeira viagem enjoada comsua primeira tempestade.

De volta às coxias, espieipor entre os painéis e vi aspessoas entrando. Olhei derelance para Willem, que pareciaestar realizando algum tipo deritual a alguns metros de onde euestava, com uma porção demurmúrios, andando para um ladoe para o outro, fazendo exercícios

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com os dedos; deixei-o em paz.Infelizmente, a “Sonata paraFlauta e Piano” era a penúltimapeça do recital, o que meobrigaria a esperar sentada nascoxias, escondida e ansiosa.

– Tudo bem com você? –sussurrou Willem ao ouvir oapresentador dizer seu nome e leros trechos mais importantes doseu currículo.

– Tudo, obrigada – respondi.Uma onda de aplausos varreu aplateia.

– Quero pedir desculpasformais pelo meu pretensiosoconvite para jantar no outro dia.Foi totalmente inadequado,

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considerando as circunstâncias.Eu sei da sua condição emocionalatual, e de agora em diante vourespeitar isso. Espero quepossamos ser amigos.

Com isso, ele pisou nopalco, inclinou o corpo e sesentou ao piano. Começou com oEstudo no 5 de Chopin, em SolBemol Maior, veloz e complexodo ponto de vista técnico.

Enquanto escutava Willemtocar, fiquei pensando no eterno eintrincado balé que sempreocorria entre homens e mulheres.Quando as últimas notas da peçaencheram a sala, admiti que partede mim sentia uma estranha

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decepção com o fato de elequerer que fôssemos amigos. Semfalar na culpa, lá no fundo daminha alma, toda vez que eupensava no que Theo teria achadoda confusão que a atração porWillem provocava em mim...

Depois do que me pareceuuma eternidade andando de umlado para o outro pelo espaçoapertado das coxias, finalmenteouvi Willem me apresentar e fuime juntar a ele no palco. Abri-lheum largo sorriso deagradecimento por sua gentileza epor todo o incentivo que ele haviame dado nos últimos dias. Entãolevei a flauta à boca, indiquei que

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estava pronta e começamos.Depois de ele tocar sua

última peça da noite, tornei asubir ao palco, e foi muitoestranho agradecer os aplausos aoseu lado. Os organizadoreschegaram até a me dar umpequeno buquê de flores para meagradecer.

– Parabéns, Ally, foi bom.Muito, muito bom, para dizer averdade – parabenizou-meWillem enquanto descíamos dopalco juntos.

– Concordo plenamente.Uma voz conhecida fez eu

me virar, e vi Erling, curador doMuseu Grieg, em pé nas coxias

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ladeado por dois outros homens.– Oi – cumprimentei-o com

um sorriso. – E obrigada.– Ally, este é Thom

Halvosern, tataraneto e biógrafode Jens Halvorsen. Além deviolinista virtuose e maestro-assistente da Filarmônica deBergen. E este é David Stewart, ochefe da orquestra.

– Prazer, Ally – disse Thom,enquanto David Stewart se viravapara cumprimentar Willem. –Erling me disse que você estáfazendo pesquisas sobre os meustataravós.

Ergui os olhos para Thom epensei reconhecê-lo, mas na hora

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não consegui identificar de onde.Ele tinha o colorido típico dosnoruegueses: cabelosavermelhados, sardas no nariz eum par de grandes olhos azuis.

– Estou, sim.– Nesse caso, eu ficaria feliz

em ajudar no que puder. Mas meperdoe se hoje eu não estiverdizendo coisa com coisa. Acabeide chegar de Nova York. Erlingfoi me buscar no aeroporto, eviemos direto para cá ouvirWillem tocar.

– Jet lag é de matar –dissemos os dois ao mesmotempo, antes de marcar uma pausae dar um sorriso encabulado um

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para o outro.– É mesmo – arrematei, bem

na hora que David Stewart sevirava para nós.

– Infelizmente preciso irembora correndo, então vou medespedir – disse ele. – Thom, meligue se as notícias forem boas. –Ele fez suas despedidas e saiu.

– Como você talvez saiba,Ally, estamos tentando convencerWillem a entrar para aFilarmônica daqui. Algumainclinação até agora, Willem?

– Sim, Thom. E algumasperguntas também.

– Então sugiro queatravessemos a rua para comer e

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beber alguma coisa. Vocês vêmcom a gente? – perguntou Thom aErling e a mim.

– Se tiver coisas paraconversar com Willem, nãoqueremos incomodar – respondeuErling por nós dois.

– De forma alguma. Umsimples “sim” de Willem vaibastar para abrirmos ochampanhe.

Dez minutos depois,estávamos todos sentados em umaconchegante restaurante à luz develas. Como Thom e Willemestavam curvados sobre a mesa,muito entretidos em umaconversa, fiquei falando com

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Erling, sentado à minha frente.– Você tocou muito bem

mesmo hoje, Ally. Bem demaispara negligenciar esse talento,sem falar na alegria que tocar lheproporciona.

– Você também é músico? –indaguei.

– Sou. Minha família inteiraé de músicos, como a de Thom.Eu toco violoncelo e faço partede uma pequena orquestra aqui nacidade. Bergen é uma cidademuito musical. Nossa Filarmônicaé a orquestra mais antiga domundo.

– Finalmente podemos pediro champanhe! – interrompeu

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Thom. – Willem concordou ementrar para a nossa orquestra.

– Nada de champanhe paramim, obrigado. Nunca beboálcool depois das nove – disseWillem com firmeza.

– Então acho melhoraprender, se vai se mudar para aNoruega – provocou Thom. – Sóassim a gente consegue suportaros longos invernos daqui.

– Nesse caso, vouacompanhar vocês emhomenagem ao dia de hoje –decidiu Willem, cortês, bem nahora que um garçom aparecia comuma garrafa.

– A Willem! – dissemos em

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coro enquanto a comida eraservida.

– Na verdade, estou mesentindo bem mais alerta agora,depois de uma taça dechampanhe. – Thom sorriu paramim. – Fale mais sobre o que ligavocê a Jens e Anna Halvorsen.

Expliquei-lhe rapidamente ahistória do legado de Pa Salt, doqual faziam parte a biografia deAnna escrita pelo marido JensHalvorsen e as coordenadas daesfera armilar que haviam meconduzido primeiro a Oslo eagora a Bergen e ao Museu Grieg.

– Fascinante – murmurouele, observando-me com um ar

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pensativo. – Quer dizer que nóspodemos ser parentes? Para sersincero, eu pesquisei muitorecentemente a história da minhafamília, e no momento nãoconsigo ver como isso seriapossível.

– Nem eu – garanti a ele,subitamente desconfortável com ofato de ele talvez me tomar poruma ladra de genes interesseira. –Encomendei seu livro, aliás.Agora mesmo deve estar vindo ládos Estados Unidos.

– Que bom. Mas eu tenho umexemplar sobrando em casa, éclaro, se você quiser.

– Obrigada. Ou pelo menos

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posso pedir para você autografaro meu. Como está aqui empessoa, quem sabe pode meajudar com alguns detalhes? Vocêsabe o que aconteceu com afamília Halvorsen nos anosseguintes à biografia de Jens?

– Sei, mais ou menos.Infelizmente não foi uma históriamuito feliz, com as duas guerrasmundiais no meio. A Noruegaficou neutra na Primeira Guerra,mas foi bem prejudicada pelaocupação alemã na Segunda.

– Ah, é? Eu nem sabia que aNoruega tinha sido ocupada –confessei. – História não era omeu forte na escola. Na verdade,

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nunca sequer pensei no efeito quea Segunda Guerra Mundialpoderia ter tido nos paísesmenores, que não eram osprotagonistas do conflito. Eprincipalmente aqui, neste paíspacífico, escondido no topo domundo.

– Bom, em geral a genteaprende a história do nossopróprio país na escola, não é?Qual era o seu?

– Suíça – respondi com umarisadinha, olhando para ele.

– Neutra – entoamos os doisao mesmo tempo.

– Bem, nós aqui fomosinvadidos em 1940 – prosseguiu

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Thom. – Na verdade, a Suíça melembrou a Noruega quando fui darum concerto em Lucerna uns doisanos atrás. E não só por causa daneve. Os dois países com certezaparecem ter uma certadesconexão em relação ao restodo mundo.

– É – concordei. Fiqueiobservando Thom comer, aindatentando entender por que ele meparecia tão familiar, e concluí quedevia estar reconhecendo algumascaracterísticas genéticas que viranas fotografias de seusantepassados. – Os Halvorsenssobreviveram às guerras?

– É uma história bem triste,

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na verdade, e complexa demaispara eu conseguir contar agora,com meu cérebro prejudicadopelo fuso horário. Mas a gentepodia se encontrar em algummomento... quem sabe amanhã àtarde, na minha casa? É a mesmacasa em que Jens e Annamoraram, e posso lhe mostraronde eles passaram alguns dosmomentos mais felizes dorelacionamento deles. – Elearqueou uma das sobrancelhas, esenti uma leve animação aoconstatar que obviamente tambémconhecia a história do casal.

– Na verdade, eu vi a casauns dias atrás, quando estava indo

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para Troldhaugen.– Então sabe exatamente

onde fica. Mas agora, se me dálicença, está na hora de eu ir paraa cama. – Thom se levantou evoltou a atenção para Willem. –Bom voo de volta a Zurique, etenho certeza de que aadministração vai entrar emcontato para falar sobre o seucontrato. Ligue para mim sepensar em mais alguma coisa. Àsduas, amanhã, em Froskehuset,Ally?

– Sim. Obrigada, Thom.Depois que nos despedimos

de Erling, que fora levar Thomem casa, Willem perguntou:

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– Quer voltar a pé? O hotelnão fica longe.

– Acho que dou conta –falei, pensando que um pouco dear puro talvez ajudasse com a dorde cabeça que estava sentindo.Seguimos pelas ruas calçadas depedra e fomos dar no porto.Willem parou no cais.

– Bergen... meu novo lar!Será que tomei a decisão certa?

– Não sei dizer, mas seriacomplicado achar um lugar maisbonito do que este para morar.Difícil pensar que algo ruimpossa acontecer aqui.

– É isso que está mepreocupando. Será que estou

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entregando os pontos? Será queestou fugindo outra vez do queaconteceu com Jack? Tenhoviajado feito um louco desde queela morreu, e agora me perguntose vim para cá me esconder. – Elesuspirou e começamos a margearo cais em direção ao nosso hotel.

Estranhei o fato de ele ter sereferido ao parceiro como “ela”.

– Ou você pode ver ascoisas por um lado mais positivoe dizer que está seguindo emfrente, recomeçando – sugeri.

– É, poderia. Na verdade,Ally, eu queria perguntar se vocêpassou pelo processo todo de“por que continuei vivo depois

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que ele morreu”.– É claro que passei, e ainda

estou passando. O Theo meobrigou a sair do veleiro no qualestávamos competindo logo antesde se afogar. Passei horas e horaspensando em como poderia tê-losalvado se estivesse a bordo,mesmo sabendo que isso teriasido impossível.

– É... essa estrada não leva anada. Eu passei a entender que avida não passa de uma sequênciaaleatória de acontecimentos. Vocêe eu ficamos para trás; temos queseguir vivendo e pronto. Meuterapeuta me disse que é por issoque eu tenho sintomas de TOC.

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Quando Jack morreu, fiquei com asensação de que não tinhacontrole, e venho compensandoisso de forma exagerada desdeentão. Estou melhorando... hojeaté tomei aquela taça dechampanhe depois das nove... –Ele deu de ombros. – Umpassinho de cada vez, Ally. Umpassinho de cada vez.

– Sim. Qual é o nome todode Jack?

– Jacqueline. Emhomenagem a Jacqueline du Pré.O pai dela tocava violoncelo.

– Na primeira vez em quevocê falou nela, pensei que Jackfosse homem...

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– Ah! Pois é, parece queisso é mais uma forma decontrole, e funciona. Já meprotegeu de muitas mulherespredadoras com quem cruzei.Basta uma referência a Jack eelas recuam. Eu posso não ser umastro do rock, mas depois dosespetáculos há sempre umasgroupies de música clássica porperto, espichando os olhos paramim e pedindo para ver meu...ahn, instrumento. Uma delaschegou até a me dizer que tinhauma fantasia de me ver tocando oconcerto para piano No 2 deRachmaninoff nu.

– Bom, espero que você não

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tenha achado que eu fosse umadessas.

– É claro que não. Naverdade... – Tínhamos parado emfrente ao hotel, e Willem voltouos olhos para as águas calmas quebatiam no cais. – ... foi ocontrário. E, como já disse avocê, meu convite para jantar foiinadequado. Típico de mim... –Ele suspirou, subitamentedesanimado. – Enfim, obrigadapor ter tocado comigo hoje, eespero que possamos mantercontato.

– Willem, quem deveagradecer sou eu. Você me trouxede volta à música. Agora preciso

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ir para a cama antes que eu meencolha e durma na calçada.

Entramos no lobby deserto.– Eu vou embora amanhã

cedo – disse-me ele. – Tenho queorganizar as coisas lá em Zurique.Thom quer que eu venha o quantoantes.

– Quando você volta?– Em novembro, a tempo de

me preparar para o Concerto doCentenário de Grieg. – Paramosem frente ao elevador. – Você vaificar mais tempo aqui?

– Não sei, Willem. Não seimesmo.

– Bom – disse ele enquantoentrávamos no elevador e

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apertávamos nossos respectivosbotões. – Este é o meu cartão. Dênotícias.

– Dou, sim.O elevador parou no andar

dele.– Tchau, Ally. – Com um

breve sorriso, ele meneou acabeça para mim e saiu.

Dez minutos mais tarde, aoapagar meu abajur de cabeceira,torci para Willem manter mesmocontato. Apesar de estar a anos-luz de distância de outrorelacionamento, eu gostava dele.E, depois do que ele acabara dedizer, achava que ele talveztambém tivesse se interessado por

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mim.

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– Olá – disse Thom com umsorriso ao abrir a porta deFroskehuset e me fazer entrar. –Venha até a sala. Quer beberalguma coisa?

– Um copo d’água está bom,obrigada.

Quando ele saiu, corri osolhos pela sala. A decoraçãoexcêntrica tinha um estilo que eupassara a identificar comotipicamente norueguês: caseiro e

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muito aconchegante. Uma coleçãode poltronas desemparelhadas eum sofá com protetores de rendano encosto estavam dispostos emvolta de um imenso fogareiro deferro que com certeza espantava ofrio à noite, pensei. O únicoobjeto digno de nota na sala era opiano de cauda laqueado de pretojunto à bay window com vistapara o magnífico fiorde láembaixo.

Fui olhar mais de perto acoleção de fotografiasemolduradas dispostas sobre umahorrenda escrivaninha em falsoestilo rococó, no canto. Uma dasimagens em especial me chamou a

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atenção: era um menininho de uns3 anos – Thom, imaginei –sentado no colo de uma mulherperto do fiorde, sob um sol forte.Os dois tinham o mesmo sorrisolargo, as mesmas cores e osmesmos olhos grandes eexpressivos. Quando Thomvoltou, pude distinguir em seurosto vestígios do garoto dafotografia.

– Desculpe o estado da casa– disse ele. – Faz só alguns mesesque voltei para cá depois queminha mãe morreu, e ainda nãotive tempo de mexer nadecoração. Eu sou maisminimalista, mais no estilo

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escandinavo moderno; essasrelíquias do passado não têmmuito a ver comigo.

– Na verdade, eu estavajustamente aqui pensando oquanto esse estilo me agrada. Étão...

– Real! – dissemos os doisao mesmo tempo.

– Você leu meu pensamentodireitinho – falou Thom. – Mas,pensando bem, se está mesmofazendo pesquisas sobre Jens eAnna, é até adequado você ver ointerior original antes de eu jogara maior parte dessas coisasdentro de uma caçamba. Muitosdos móveis que estão aqui foram

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deles e hoje devem ter uns 120anos. Assim como tudo nestacasa, inclusive o encanamento.Foram eles que compraram oterreno... ou melhor, Annacomprou, em 1884. Eles levaramum ano para construir a casa.

– Eu nunca tinha ouvidofalar em nenhum dos dois antes deler o livro – confessei,desculpando-me.

– Bom, Anna era a maisconhecida do casal na Europa,mas Jens também era bemfamoso, principalmente emBergen. Ele começou mesmo avoar mais alto depois que Griegmorreu, em 1907, embora sua

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música fosse altamente derivadada do mestre e, para ser sincero,uma versão piorada. Não sei oquanto você sabe sobre oenvolvimento de Grieg na vida docasal...

– Depois de ler o livro deJens, sei bastante. Seiprincipalmente o que ele fez porAnna quando a resgatou napensão em Leipzig.

– É. Bom, como você aindanão teve a oportunidade de lermeu livro, uma coisa que nãodeve saber é que foi Grieg quemencontrou Jens vivendo emMontmartre com uma mulher quetrabalhava como modelo vivo

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para artistas. Ele tinha sidoabandonado por sua benfeitorabaronesa e ganhava a vida mal emal tocando rabeca, na maiorparte do tempo bêbado e drogadode ópio, como acontecia commuita gente no círculo boêmio deParis da época. Parece que Griegpassou um grave sermão nele eentão pagou sua passagem devolta para Leipzig, dizendo-lhede forma bem clara para ir sejogar aos pés de Anna e pedirperdão.

– Quem contou isso a você?– Meu bisavô Horst, a quem

Anna revelou tudo em seu leito demorte.

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– Quando Jens voltou,então?

– Por volta de 1884.– Poucos anos depois de

Grieg resgatar Anna em Leipzig?Não vou fazer rodeios, Thom:fiquei deprimida quando chegueiao final do livro. Não conseguientender por que Anna aceitariaJens de volta depois de tantosanos de abandono. Do mesmojeito, agora não entendo por queGrieg teria ido procurá-lo emParis. Ele devia saber o que Annasentia então a respeito do marido.Não faz sentido algum.

Thom me observou como seestivesse refletindo sobre alguma

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coisa.– Bom, é esse o problema da

história, como descobri quandoestava pesquisando a da minhaprópria família – disse ele porfim. – A gente descobre os fatos,mas é difícil saber quais foram asverdadeiras motivações humanasdas pessoas envolvidas. Nãoesqueça que foi Jens quemescreveu a biografia. O livro nãodiz nada sobre o que Anna achavado assunto e foi publicado depoisque ela morreu, basicamente umtributo do marido a ela.

– Eu, pessoalmente, teriarecebido Jens com um facão decozinha quando ele voltou com o

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rabo entre as pernas. Para mim, oprimeiro noivo dela, Lars,parecia uma opção bem maisatraente.

– Lars Trulssen? Sabia queele foi para os Estados Unidos evirou um poeta de algum renome?Casou-se com uma moça daterceira geração de uma ricafamília nova-iorquina com raízesnorueguesas e teve uma penca defilhos.

– É mesmo? Que bom ouvirisso, me sinto muito melhor. Tiveum pouco de pena dele, mas,enfim, nós mulheres nem sempreescolhemos o bonzinho, não é?

– Acho que prefiro não

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comentar sobre isso – disse Thomdando uma risadinha. – A únicacoisa que posso dizer é que, paraum observador qualquer, elescontinuaram casados e felizespelo resto da vida. Ao queparece, Jens ficou eternamentegrato a Grieg por salvá-lo dadevassidão de Paris e a Anna porperdoá-lo. Os dois casais comcerteza passavam muito tempojuntos, pois eram quase vizinhosde porta. Quando Grieg morreu,Jens ajudou a criar umdepartamento de música naUniversidade de Bergen com odinheiro que ele deixou. A escolaagora se chama Academia Grieg;

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foi lá que eu estudei.– Eu na verdade não sei

nada sobre a família depois de1907, ano em que termina o livrode Jens, e nunca sequer escuteinenhuma das composições dele.

– Na minha opinião não valea pena escutar muita coisa que elecompôs. Mas quando vasculhei asmuitas pastas de partituras quetinham passado anos mofandodentro de caixas no sótão,encontrei uma coisa muitoespecial. Um concerto para pianoque ele escreveu e que, até ondesei pelas minhas pesquisas, nuncafoi executado em público.

– Sério?

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– Como este ano é ocentenário de Grieg, vai haverdiversos eventos, entre eles umconcerto importante aqui emBergen para marcar o fim do anode comemorações.

– É, Willem comentou.– Como você pode imaginar,

o foco vai ser a músicanorueguesa, e seria maravilhosoestrear a obra do meu tataravô. Jáfalei com o Comitê deProgramação e com o próprioAndrew Litton, nosso respeitadoregente, e atualmente também meumentor de regência. Eles ouvirama peça... espetacular, na minhaopinião, e ela foi incluída no

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programa do concerto de 7 dedezembro. Como no sótão sóconsegui encontrar as partituraspara piano, mandei um conhecidomeu muito talentoso orquestrar amúsica. Mas quando cheguei emcasa de Nova York, ontem, tinhaum recado na secretáriaeletrônica dizendo que a mãe deleadoeceu algumas semanas atrás eque ele nem chegou a começar otrabalho.

Thom parou de falar uminstante; pude ver a decepção emsua expressão.

– Não vejo mesmo comoisso vai ficar pronto paradezembro. Uma pena... Na minha

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opinião, é de longe a melhorcoisa que Jens compôs. E, claro,estrear uma obra original de umHalvorsen que tocou na estreia dePeer Gynt teria sido perfeito.Mas, enfim, chega dos meusproblemas. E você, Ally? Játocou em alguma orquestra?

– Nossa, nunca. Não achoque meu talento na flauta algumdia tenha atingido esse patamar.Estou mais para amadora.

– Depois de ouvi-la tocarontem, vou ter que discordar.Willem disse que você estudouflauta quatro anos noConservatório de Genebra. Isso ébem diferente de “amadora” –

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brincou ele.– Pode ser, mas até algumas

semanas atrás eu era velejadoraprofissional.

– É mesmo? Mas como?Diante de uma xícara de chá

que Thom havia encontrado paramim dentro de um armário, fiz-lheum resumo da minha vida e dosacontecimentos que haviamprecedido minha chegada aBergen. Percebi que estava meacostumando a repetir a históriame atendo aos fatos, sem chegaràs emoções. Não sabia se isso erabom ou ruim.

– Meu Deus, Ally... euachava que a minha vida fosse

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complicada, mas a sua... bem.Não sei como você suportou asúltimas semanas. Meus parabéns,sério.

– Fiquei ocupadainvestigando meu passado – falei,tensa, querendo mudar de assunto.– Mas agora que já entediei vocêo bastante com a minha história,que tal retribuir o favor e mecontar sobre os Halvorsens maismodernos? Se não se importar –acrescentei depressa, ciente deque se tratava da família dele.Não queria que ele pensasse queeu estava reivindicando qualquerpropriedade permanente emrelação a ela. – Enfim, qualquer

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que seja o meu vínculo, deve ter aver com o passado recente,porque eu tenho só 30 anos.

– Eu também, na verdade.Nasci em junho. E você?

– 31 de maio, pelo que meupai adotivo me falou.

– Sério? Bem, eu nasci em1o de junho – disse Thom.

– Um dia de diferença –refleti. – Mas pode falar, sou todaouvidos.

– Bom... – Thom tomou umgole de seu café. – Fui criadoaqui em Bergen pela minha mãe,que morreu faz um ano. Foi assimque vim morar em Froskehuset.

– Eu sinto muito, Thom.

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Como você já sabe, eu conheço asensação de perder um dos pais.

– Obrigado. Foi bem ruim naépoca, porque éramos muitopróximos. Mamãe era mãesolteira, e não tinha nenhum paipor perto para nos dar apoio.

– Você sabe quem é seu pai?– Ah, sei sim. – Thom

arqueou uma das sobrancelhas. –Ele é a conexão de sangue comJens Halvorsen. Meu pai, Felix, ébisneto dele. Mas, ao contrário deJens, que pelo menos um diavoltou para Anna, meu pai nuncaassumiu as própriasresponsabilidades.

– Ele ainda está vivo?

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– Vivíssimo, mesmo sendovinte anos mais velho do que aminha mãe. Na minha opinião,meu pai tem o maior talentomusical de todas as gerações dehomens da família Halvorsen. E,assim como Anna, minha mãecantava lindamente. Basicamente,ela foi fazer aulas de piano commeu pai e ele a seduziu. Elaengravidou aos 20 anos. Ele serecusou a aceitar que fosse o paie recomendou a ela que meabortasse.

– Que barra. Foi isso quesua mãe lhe contou?

– Foi. E, conhecendo Felix,eu acredito nela totalmente –

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disse Thom com uma voz neutra.– Ela passou por muitadificuldade depois que eu nasci.Foi abandonada pelos pais... Eleseram de uma família do norte, dazona rural, muito antiquados emrelação a esses assuntos. Martha,minha mãe, virou praticamenteuma indigente. Não se esqueça deque trinta anos atrás a Noruegaainda era um país relativamentepobre.

– Que coisa horrível, Thom.E o que ela fez?

– Felizmente, meus bisavósHorst e Astrid se meteram nahistória e nos trouxeram paramorar com eles. Mas eu acho que

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mamãe nunca se recuperou do quemeu pai fez com ela. Passou oresto da vida tendo crisesterríveis de depressão e nuncadesenvolveu seu potencial decantora.

– Felix reconheceu vocêcomo filho?

– Ele foi obrigado. A justiçaordenou um exame de DNAquando eu era adolescente –explicou Thom, com um arsombrio. – Minha bisavó tinhamorrido e deixado a casa no meunome, e não no de Felix, netodeles. Ele contestou o testamentoalegando que mamãe e eu éramosimpostores e queríamos dar o

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golpe do baú, por isso o examede DNA. E não deu outra! Cempor cento de comprovação que osangue dos Halvorsens corre nasminhas veias. Não que eu algumdia tenha duvidado. Mamãe nuncateria mentido sobre uma coisadessas.

– Sei. Bom, em primeirolugar, tenho que confessar que oseu passado parece tão dramáticoquanto o meu – disse, sorrindo, efiquei aliviada ao ver Thomretribuir o sorriso. – Você vê seupai de vez em quando?

– Às vezes, na cidade, massocialmente não.

– Quer dizer que ele mora

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por aqui?– Ah, sim, lá no alto das

montanhas, com suas garrafas deuísque e uma interminável fila demulheres formando uma trilha atésua porta. Esse sim é um “PeerGynt” que nunca admitiu seuserros. – Thom deu de ombros comtristeza.

– Mas estou meio confusa...Você falou nos seus bisavós, masparece que falta uma geração. Oque houve com seus avós? A mãee o pai de Felix?

– Foi essa a história quemencionei para você ontem ànoite. Na realidade, eu nuncacheguei a conhecer nenhum dos

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dois. Eles morreram antes de eunascer.

– Sinto muito, Thom. –Fiquei admirada ao sentir meusolhos se encherem de lágrimas.

– Ai, Ally, meu Deus, nãochore. Sério, eu estou bem, estoutocando a minha vida. Vocêencarou coisa bem piorrecentemente.

– Eu sei que você está bem,Thom. Desculpe, sua história mecomoveu, só isso – falei, sementender direito por que isso tinhaacontecido.

– Como você pode imaginar,não é um assunto sobre o qual eufale com frequência. Na verdade,

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estou impressionado que eu tenhaconseguido contar tudo a vocêcom tanta honestidade.

– E eu estou grata por vocêter compartilhado isso comigo,Thom. Só mais uma pergunta.Você algum dia já escutou o ladoda história do seu pai?

Ele me encarou de um jeitoestranho.

– Como poderia haver outrolado?

– Ah, você sabe...– Além do fato de ele ser um

filho da mãe inútil e egoísta, queabandonou minha mãe na pior egrávida, você quer dizer?

– É – falei bem baixinho,

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sabendo que estava pisando emterreno perigoso. Recueidepressa. – Pelo que você contou,deve ter mesmo razão, é essa ahistória e pronto.

– O que não quer dizer queeu às vezes não sinta pena doFelix – admitiu ele. – Eleestragou a própria vida edesperdiçou um talento incrível.Graças a Deus, eu herdei umpouco desse talento, e por issosempre serei grato.

Vi Thom olhar para orelógio e entendi que era umadeixa para eu me despedir.

– Preciso ir andando. Játomei seu tempo o suficiente.

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– Não, Ally, por favor. Nãová ainda. Para dizer a verdade,acabei de pensar que estou comfome. Em Nova York está mais oumenos na hora do café da manhã.Quer umas panquecas? É quase aúnica coisa que eu sei fazer semlivro de receitas.

– Sério, se quiser que eu váembora, é só dizer.

– Tudo bem, mas não quero.Você pode vir ser minha sous-chef na cozinha, que tal?

– Está bem.Enquanto preparávamos as

panquecas, Thom começou a mefazer mais perguntas sobre minhavida.

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– Pelo que você disse maiscedo, seu pai adotivo parece tersido um homem muito especial.

– Foi mesmo.– E todas essas irmãs... você

nunca deve ter sentido falta decompanhia. Ser filho único àsvezes é muito solitário. Quandoeu era pequeno, era louco para terirmãos.

– O único mal de que eununca padeci foi solidão. Sempretive alguém com quem brincar,alguma coisa para fazer. E comcerteza aprendi a dividir.

– Apesar de ter tudo só paramim, não gostava de ser oreizinho da minha mãe – falou

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ele, servindo as panquecas nospratos. – Sempre senti umapressão dela para corresponderàs suas expectativas. Ela só tinhaa mim.

– Eu e minhas irmãs fomosincentivadas apenas a sermos nósmesmas – falei. Sentamo-nos àmesa da cozinha para comer. –Você sentiu culpa por sua mãe tersofrido tanto para colocá-lo nomundo?

– Senti. E, para ser bemcruel, quando ela ficavadeprimida e dizia que era culpaminha se a sua vida tinha saídodos trilhos, eu sentia vontade degritar que nunca tinha pedido para

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nascer e que a decisão tinha sidodela.

– Bom, a gente forma um pare tanto, não é?

Com o garfo a meio caminhoda boca, ele ergueu os olhos paramim:

– É mesmo. Mas é bom teralguém capaz de entender asituação pouco usual da minhafamília.

– Eu também sinto isso. –Sorri para ele do outro lado damesa. Ele sorriu de volta e tiveuma forte impressão de déjà vu.

– Que estranho – comentouele alguns segundos depois. –Tenho a sensação de que conheço

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você desde sempre.– Eu sinto a mesma coisa –

falei.Mais tarde, ele me levou de

carro de volta para o hotel.– Está livre amanhã de

manhã? – perguntou.– Não planejei nada.– Ótimo. Eu passo para

pegar você e vamos dar umpasseio curto de barco peloporto. Aí conto o que aconteceucom meus avós Pip e Karine.Como falei, é um capítulo difícile doloroso da história dosHalvorsens.

– Bem, você se importariase fizéssemos isso em terra

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firme? Minha veia de marinheiradesapareceu completamentedesde que Theo morreu.

– Entendo. Por que não vaime visitar em Froskehuset denovo? Pego você às onze. Boanoite, Ally.

– Boa noite, Thom.Despedi-me dele com um

aceno em frente ao hotel e subipara o quarto. Postei-me junto àjanela com os olhos perdidos naágua, maravilhada ao pensar emquantas horas Thom e eu tínhamospassado conversando sobrequalquer assunto, sobre todos osassuntos, e como isso parecerafácil e natural. Tomei uma

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chuveirada e fui para a camaciente de que, fosse qual fosse oresultado das minhasinvestigações sobre o passado,pelo menos eu estava fazendoamigos durante o processo.

Com esse pensamento,peguei imediatamente no sono.

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Na manhã seguinte, ao acordar, acalma que eu havia sentido navéspera desapareceu quandocorri até o banheiro para vomitar.Voltei para a cama e fiqueideitada, com os olhos marejados,sem entender por que andava mesentindo tão mal. Nunca tinhadado muito valor à minha saúde,uma vez que passara incólumepor todas as doenças infantis e euera sempre a fortaleza que

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ajudava Ma quando um vírusparticularmente difícil de curarpassava de irmã para irmã.

Agora estava me sentindopéssima e me perguntava seaquele primeiro mal-estar quetivera em Naxos na verdade sedevera a algum tipo de vírus nosistema digestivo que ainda nãohavia passado, pois eu certamentenão estava bem desde então. E acoisa estava piorando... Devia sersó a tensão das últimas semanas,pensei, impotente. Eu precisavacomer; meu nível de glicosedevia estar lá embaixo. Pedi aoserviço de quarto um café damanhã completo bem farto,

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decidida a devorar tudo. É assimque se trata enjoo no mar, Ally,falei para mim mesma ao mesentar na cama com a bandejasobre os joelhos e lutar paracomer o máximo que conseguia.

Vinte minutos depois, dei adescarga e mandei embora todo ocafé da manhã. Enquanto mevestia com gestos trêmulos, poisThom chegaria em meia hora,resolvi que lhe pediria aindicação de um bom médico,pois era óbvio que eu estavadoente. Na mesma hora queestava pensando isso, meu celulartocou.

– Alô?

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– Ally?– Oi, Tiggy, tudo bem?– Tudo... tudo sim. Onde

você está?– Ainda na Noruega.– Ah, tá – respondeu ela

depois de um instante.– O que houve?– Nada... nada mesmo. Só

queria saber se você já tinhavoltado a Atlantis.

– Não, desculpe. Está tudobem?

– Sim, tudo bem, tudo ótimo.Só liguei para saber como vocêestava.

– Estou bem. Descobrindovárias coisas sobre as pistas que

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Pa me deixou.– Que legal. Avise quando

voltar da Noruega; quem sabe agente consegue se encontrar? –disse ela com uma falsa animaçãona voz. – Amo você.

– Também amo você.Desci de elevador até o

térreo, intrigada com o tom devoz de Tiggy. Estava acostumadacom a sua serenidade, com a suacapacidade de sempre fazer todosem volta se sentirem melhor coma sua versão exclusiva deesperança esotérica. Mas naqueletelefonema ela havia soado muitodiferente. Prometi a mim mesmalhe mandar um e-mail mais tarde.

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– Oi. – Thom veio na minhadireção quando saí do elevador.

– Oi – disse, sorrindo etentando recuperar a compostura.

– Está tudo bem, Ally? Vocêestá meio... abatida.

– É, bom, na verdade não –falei enquanto caminhávamos atéa saída. – Não estou me sentindomuito bem. Para ser sincera, jáfaz alguns dias. Tenho certeza deque não é nada grave, só umainfecção alimentar ou algo assim,mas queria perguntar se vocêconhece algum médico que eupudesse consultar.

– É claro que conheço. Querir lá agora?

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– Não, eu não estou tão malassim, só não estou me sentindo...eu mesma.

Ele me ajudou a subir no seuvelho Renault.

– Você está mesmo com umacara péssima – disse ele, e pegouo celular. – Que tal marcar umaconsulta para hoje mais tarde?

– Está bem, obrigada.Desculpe – murmurei. Ele digitouum número no aparelho e falouem norueguês com a pessoa dooutro lado da linha.

– Pronto, marcado para asquatro e meia. Mas então... – Eleencarou meus traços abatidos esorriu. – Sugiro levá-la direto

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para Froskehuset e acomodá-ladebaixo de um edredom quentinhono sofá. Aí você pode decidir seprefere escutar a história dosmeus avós ou me ouvir tocarviolino.

– Não podemos fazer asduas coisas? – Dei-lhe um sorrisosem forças, perguntando-me comoele podia saber que, naquele diafrio de outono, com meu estômagosensível, a ideia de um edredom,de uma história e de um pouco demúsica era exatamente o que euprecisava.

Meia hora mais tarde,aninhada no sofá e com a ajudinhaextra do imenso fogareiro de

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ferro aceso, pedi a Thom quetocasse violino para mim.

– Por que não começa comsua peça preferida para violino?

– Está bem. – Ele deu umsuspiro fingido. – Mas,considerando seu estado hoje, nãoquero que pense que isso temalgum significado oculto.

– Combinado – prometi,levemente intrigada com ocomentário.

– Então está bem.Levando o violino

amorosamente ao queixo, Thom oafinou e, então, as notasplangentes de uma das minhaspeças preferidas começaram a

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sair das cordas. Entendi o que elequisera dizer e soltei umagargalhada.

Thom parou de tocar esorriu.

– Eu falei...– Sério, A morte do cisne

também é uma das minhasfavoritas.

– Ótimo.Ele recomeçou a tocar, e

fiquei ali deitada, aconchegada econfortável, ouvindo um virtuosedotado de talento natural me fazeraquela serenata. Senti-me honradacom aquele recital exclusivo.Quando a última nota triste sedissipou, uni as mãos e bati

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palmas.– Que coisa linda!– Obrigado. E agora, o que

quer escutar?– O que você mais gostar de

tocar.– Certo, então. Lá vai.Passei os quarenta minutos

seguintes ouvindo-o tocar umafabulosa seleção de suas peçaspreferidas, entre as quais oprimeiro movimento do Concertopara Violino em Ré Maior deTchaikovsky e a sonata Trinadodo diabo, de Tartini, e pudetestemunhar enquanto ele setransportava para dentro de outromundo, um mundo no qual eu

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tinha visto todo músico deverdade entrar quando tocava.Perguntei-me outra vez comopodia ter passado os últimos dezanos sem música e sem músicos.Eu também já haviaexperimentado aquela sensação.Em algum momento, devo terpegado no sono, tão relaxada,segura e quentinha quesimplesmente me deixei levar.Até sentir um toque delicado noombro.

– Desculpe, desculpe mesmo– falei, abrindo os olhos e dandocom Thom a me encarar compreocupação.

– Eu poderia ficar

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seriamente ofendido com o fatode o único membro da plateia terpegado no sono, mas não voulevar para o lado pessoal.

– E não deve mesmo, Thom.Juro a você que é um elogio, deum jeito meio irônico. Posso usaro banheiro? – perguntei, saindode baixo da coberta.

– Pode, fica no corredor àesquerda.

– Obrigada.Quando voltei, aliviada por

estar me sentindo melhor do quede manhã, Thom já estava nacozinha diante de algo queborbulhava sobre o fogão.

– O que está fazendo? –

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perguntei.– Almoço. Já passa da uma.

Deixei você dormir por mais deduas horas.

– Meu Deus! Não é à toa quevocê está ofendido. Mildesculpas.

– Pelo que você me disse,passou por muita coisa nosúltimos tempos.

– Passei, sim – concordei,sem vergonha de reconhecer isso.– Sinto tanta saudade do Theo...

– Imagino. Sei que isto vaisoar bizarro, mas de certamaneira eu invejo você.

– Como assim?– No sentido de que eu ainda

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não senti isso por mulhernenhuma. Já tive relacionamentos,mas nenhum deles levou a lugarnenhum. Ainda não encontrei a“alma gêmea” de que tanto falam.

– Mas vai encontrar, Thom.Tenho certeza.

– Pode ser... mas, para serbem sincero, estou perdendo asesperanças à medida que vouficando mais velho. Tudo isso meparece trabalhoso demais.

– Thom, alguém vaiaparecer, do mesmo jeito que oTheo apareceu para mim, e aívocê vai saber, simples assim.Mas o que tem aí nessa panela?

– A única outra coisa que eu

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sempre acerto... macarrão. Àmoda do Thom.

– Bom, não sei o que vocêpõe no seu, mas tenho certeza deque o meu “macarrão especial” émuito melhor – provoquei. – É aminha especialidade.

– Sério? Duvido que sejamelhor do que o meu. O povovem lá das colinas de Bergen sópara provar este macarrão – disseele. Escorreu a massa, despejouum molho por cima e misturou. –Queira se sentar, por gentileza.

Comi com cautela, semquerer fazer uma nova visita aobanheiro, mas descobri que narealidade o macarrão de Thom,

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uma saborosa mistura de queijo,ervas e presunto, estava descendobastante bem.

– E aí? – indagou ele,olhando para minha tigela vazia.– Estava bom?

– Excelente. Seu macarrãoespecial me ressuscitou. Agoraestou pronta pra ouvir o concertodo seu tataravô. Isso se vocêquiser tocá-lo para mim...

– Claro. Mas lembre que opiano não é meu primeiroinstrumento, de modo que nãofarei justiça à peça.

Voltamos para a sala e torneia me acomodar no sofá, dessa vezsentada, enquanto Thom pegava a

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partitura em uma prateleira.– Essa é a partitura original

para piano?– É – respondeu ele,

ajeitando os papéis na estante. –Então tá, muita paciência comigoenquanto tento acertar, ok?

Quando ele começou a tocar,fechei os olhos e me concentreina música. Sem dúvida nenhumahavia influências de Grieg, mastambém algo único. Um magníficoe hipnótico tema que percorria amúsica inteira lembravaRachmaninoff, e talvez um poucoStravinsky. Thom terminou comum floreio e se virou para mim.

– O que achou?

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– Já estou cantarolando amelodia na cabeça. Éhipnotizante, Thom. Sério.

– Também acho. DavidStewart e Andrew Litton pensama mesma coisa. Amanhã vou mededicar a encontrar alguém paraconcluir o arranjo para orquestra.Não sei se vão conseguir terminara tempo, mas vale a pena tentar.Sinceramente, não sei comonossos antepassados conseguiamse virar. Se hoje em dia, mesmocom todo o auxílio doscomputadores, já é difícil,imagine escrever à mão cada notapara cada instrumento de umaorquestra inteira na partitura;

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devia ser uma empreitadadescomunal. Não é de estranharque os grandes compositoreslevassem tanto tempo paraconcluir suas sinfonias econcertos. Eu tiro meu chapéupara Jens e seus semelhantes, tiromesmo.

– Você faz mesmo parte deuma linhagem ilustre, não é?

– Hum, a grande questão,Ally, é saber se você também faz– disse ele devagar. – Depois quevocê foi embora ontem, tive muitotempo para pensar em qualpoderia ser seu parentesco com oclã dos Halvorsens. Como meupai Felix é filho único, e nenhum

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dos meus avós tampouco teveirmãos, só consegui encontraruma solução.

– Qual?– Estou com medo de você

se ofender.– Diga logo, Thom. Sério, eu

aguento – falei.– Está bem. Considerando o

movimentado histórico do meupai com as mulheres, fiqueipensando se não seria possívelele ter tido um filho ilegítimo.Que talvez nem ele mesmo saibaque existe.

Encarei-o, tentandoprocessar mentalmente o que eledizia.

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– Imagino que seja umateoria possível, sim. Mas, Thom,por favor lembre que ainda nãoexiste nenhuma prova de que euseja parente de sangue dosHalvorsens. Fico muito pouco àvontade de aparecer assim, donada, e me intrometer na históriada sua família.

– Escute, para mim, quantomais Halvorsens houver, melhor.Atualmente eu sou o último dafamília.

– Bom, só há um jeito desaber. Perguntar para o seu pai.

– Tenho certeza de que elevai mentir – disse Thom comamargura. – Como normalmente

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faz.– Pelo que você diz, tomara

que ele não tenha nenhumarelação comigo.

– Não estou querendo sernegativo, Ally, não mesmo. É quenão tenho muita coisa positivapara falar dele. – Thom deu deombros.

– Certo, deixe-me entenderas gerações – prossegui. – Querdizer que Jens e Anna tiveram umfilho chamado Horst?

– Isso. – Thom foi até aescrivaninha e pegou um livro. –Esta é a biografia que escrevi. Fizuma árvore genealógica dafamília Halvorsen. Tome. – Ele

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me entregou o livro. – Está nofim, antes dos agradecimentos.

– Obrigada.– Horst era um violoncelista

competente. Não estudou emLeipzig, mas em Paris – continuouele enquanto eu procurava aárvore genealógica. – Depoisvoltou para a Noruega e veiotocar na Filarmônica de Bergen,onde ficou quase a vida inteira.Era um homem encantador, emesmo que tivesse 92 anosquando eu nasci, ainda me lembrodele ativo na minha primeirainfância. Segundo minha mãe mecontou, meu bisavô foi a primeirapessoa a colocar um violino nas

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minhas mãos, quando eu tinha 3anos. Ele morreu com 101 anossem nunca ter ficado doente umdia sequer na vida. Tomara que eutenha herdado esses genes.

– E os filhos dele?– Horst se casou com Astrid,

15 anos mais nova, e elespassaram a maior parte da vidaaqui em Froskehuset. Tiveram umfilho que batizaram de Jens, emhomenagem ao avô, mas poralgum motivo ele sempre foichamado de Pip.

– E o que aconteceu comele? – indaguei, sem entender,com os olhos pregados na árvoregenealógica.

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– Foi essa a história à qualme referi. É bem dolorosa, Ally.Como você não está se sentindomuito bem, tem certeza de que vaiquerer escutar?

– Tenho – respondi,decidida.

– Está bem. Então, Jens Netose revelou um músico de talento efoi para Leipzig estudar, assimcomo o avô tinha feito antes dele.Mas o ano era 1936, e o mundo, éclaro, estava mudando...

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Pip

Leipzig, AlemanhaNovembro de 1936

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38

Jens Horst Halvorsen, maisconhecido como Pip, apelido querecebeu quando ainda era umaminúscula sementinha na barrigada mãe, caminhou a passos firmesna direção do imponente edifíciode pedra onde funcionava oConservatório Real de Música deLeipzig. Nessa manhã, ele e oscolegas tinham uma aula inauguralcom Hermann Abendroth, famosoregente da Orquestra Gewandhaus

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da cidade, e ele sentia todo seucorpo formigar de tantoentusiasmo. Desde que haviatrocado o mundo musical estreitoe limitado de Bergen, sua cidadenatal, por Leipzig, todo umuniverso novo havia sedescortinado para ele, tanto doponto de vista criativo quantopessoal.

Em vez da linda, mas aosseus ouvidos antiquada, músicade compositores como Grieg,Schumman e Brahms, que elehavia escutado com o pai desde ainfância, o Conservatório havialhe apresentado compositores queestavam vivos. Seu atual favorito

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era Rachmaninoff, cuja Rapsódiasobre um tema de Paganini, queestreara dois anos antes nos EUA,era a peça que servira deinspiração para Pip compor aspróprias músicas. Ele assobiavaa melodia baixinho enquantopercorria as largas ruas deLeipzig. As aulas de piano ecomposição haviam instigado suaimaginação criativa e lheapresentado ideias musicaisprogressistas. Além de admirar otalento musical de Rachmaninoff,ele também ficara enfeitiçado porA sagração da primavera, deStravinsky, peça tão moderna eousada que mesmo vinte anos

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depois da estreia em Paris, em1913, ainda levava seu pai, elepróprio um experientevioloncelista, a qualificá-la como“obscena”.

Enquanto caminhava, Pip iapensando em Karine, o outroamor de sua vida. Ela era a musaque lhe servia de inspiração e queo incentivava a progredir cadavez mais. Um dia ele lhededicaria um concerto.

Os dois tinham se conhecidodurante um recital na sala deconcerto da Gewandhaus, cercade um ano antes, em uma geladanoite de outubro. Pip acabara decomeçar o segundo ano no

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Conservatório e Karine, oprimeiro. No foyer daGewandhaus, enquanto elesesperavam para ocupar seuslugares na última fila da plateia, amoça deixou cair uma luva de lã ePip a pegou do chão. Seus olhareshaviam se cruzado quando ele lhedevolveu a peça – desde entãoeram inseparáveis.

Karine era uma misturaexótica de antepassados francesese russos, fora criada em uma casadecididamente boêmia em Paris.Seu pai era um escultor francêsde algum renome e sua mãe, umabem-sucedida cantora de ópera.Sua própria criatividade havia

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encontrado um canal de expressãono oboé, e ela era uma das poucasalunas do Conservatório. Dona decabelos negros e aveludadoscomo a pelagem de uma pantera eolhos escuros brilhantesposicionados acima de malaressaltados, Karine tinha uma peleque, mesmo no auge do verão,permanecia sempre pálida ebranca como a neve da Noruega.Tinha um estilo único de se vestire, em vez dos adornostipicamente femininos, preferiausar calças compridasacompanhadas por jalecos deartista ou paletós de alfaiataria.Longe de lhe dar um aspecto

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masculino, essas roupas só faziamacentuar sua beleza lasciva. Suaúnica imperfeição física visível,da qual ela vivia reclamando, erao nariz, pelo visto uma herançado pai judeu. Pip não seimportava que o nariz dela fosseigual ao de Pinóquio depois decontar uma mentira. Para ele,Karine era perfeita, sem tirar nempôr.

Os dois já tinhamconversado sobre seu futurojuntos: fariam o possível paraarrumar empregos em orquestrasna Europa, e depois disso torciampara conseguir economizar osuficiente para emigrar para os

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EUA e lá construir uma vidanova. Para ser bem honesto, esseera mais um sonho de Karine doque de Pip. Contanto que elaestivesse ao seu lado, eleconseguiria ser feliz em qualquerlugar, mas entendia por que amoça queria ir embora. NaAlemanha, a propagandaantissemita veiculada pelopartido nazista crescia em ritmoacelerado, e em outras regiões dopaís os judeus já eramconstantemente intimidados.

Por sorte, Carl FriedrichGoerdeler, prefeito de Leipzig,ainda era um forte opositor dodiscurso nazista. Todos os dias,

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Pip garantia a Karine que nada deruim iria lhe acontecer ali e queele cuidaria dela. Sempreconcluía dizendo que, quandoestivessem casados, ela ganhariaum sobrenome norueguês parasubstituir o seu, Rosenblum, maisobviamente judeu... “ainda quevocê seja mesmo um lindo botãode rosa”, provocava ele toda vezque o assunto vinha à tona.

Nesse dia, porém, o solestava brilhando e os tensostremores provocados pela ameaçanazista pareciam distantes eexagerados. Apesar do ar gelado,em vez de pegar o bonde, Pipdecidira naquela manhã fazer a pé

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o trajeto de vinte minutos de seusaposentos em Johannisgasse até oConservatório. Caminhoupensando em como a cidade haviacrescido desde a época de seupai. Embora Horst Halvorsentivesse morado a maior parte davida em Bergen, havia nascido aliem Leipzig, e a consciência dessaconexão familiar dava a Pip umasensação ainda mais forte depertencimento.

Já perto do Conservatório,ele passou pela estátua de bronzede Felix Mendelssohn, fundadorda escola de música, que ficavaem frente à sala de concerto daGewandhaus. Mentalmente,

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inclinou a boina para aquelegrande homem antes de verificarseu relógio de pulso e apertar opasso ao se dar conta de que nãotinha muito tempo.

Dois de seus melhoresamigos, Karsten e Tobias, jáestavam à sua espera, recostadosem uma das colunas encimadaspor arcos que formavam afachada do prédio.

– Bom dia, dorminhoco.Karine não deixou você dormir,foi? – indagou Karsten com umsorrisinho malicioso.

A provocação fez Pip sorrir,bem-humorado.

– Não. Eu vim a pé e levou

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mais tempo do que imaginei.– Pelo amor de Deus, andem

logo, vocês dois – interrompeuTobias. – Querem mesmo chegaratrasados na aula de HerrAbendroth?

Os três se juntaram ao fluxoconstante de alunos que entravamna Großer Saal, uma sala amplacujo teto arredondado erasustentado por fileiras depilastras, com um balcão superiorde onde se podia ver o térreo e otablado. O espaço era usado tantocomo sala de aula quanto comosala de concerto. Ao sentar-se,Pip recordou o primeiro recitalde piano que dera ali e fez uma

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careta. Seus colegas eprofessores formavam um públicobem mais crítico do que qualquerum que ele pudesse vir aencontrar no futuro em salas deconcerto normais. De fato, depoisde ele terminar, sua apresentaçãohavia sido analisada e destruída.

Agora, dois anos e meiodepois, ele se sentia quase imunea qualquer comentário ácidosobre seu modo de tocar; oConservatório se orgulhava deformar músicos profissionaisresistentes, prontos a sair porsuas portas e integrar qualquerorquestra do mundo.

– Já leu o jornal de hoje?

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Nosso prefeito foi a Muniquepara uma reunião do Partido –sussurrou Tobias enquanto eles seacomodavam. – Com certeza vaisofrer mais pressão para aplicaras táticas antissemitas aqui emLeipzig. A situação está ficandomais perigosa a cada dia quepassa.

Fortes palmas ecoaramquando Hermann Abendrothentrou na sala, mas Pip, mesmoaplaudindo, sentiu o coraçãobater um pouco mais depressacom a notícia que Tobias acabarade lhe dar.

Mais tarde, encontrouKarine e a melhor amiga dela,

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Elle, no café que costumavamfrequentar, localizado entre a suapensão e a das moças. As duashaviam se conhecido no primeirosemestre do Conservatório, poisestavam alojadas no mesmoquarto. Como tinham nascido naFrança e falavam o mesmoidioma, o vínculo fora imediato.Nessa noite, Elle havia trazido onamorado, Bo, sobre quem Pippouco sabia, a não ser que eletambém era aluno de música dosegundo ano. A mesa pediu umarodada de cerveja Gose e Pipreparou no contraste entre oencanto moreno de Karine e abeleza loura de olhos azuis de

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Elle. A cigana e a rosa, pensou,enquanto as bebidas eramservidas.

– Imagino que já tenhaouvido a notícia? – Karine baixoua voz para falar com ele.Ultimamente, não era possívelsaber quem estava escutando.

– Ouvi, sim – respondeu ele;podia ver a tensão impressa nostraços da namorada.

– Elle e Bo também estãopreocupados. Você sabe que Elletambém é judia, mesmo que nãopareça. Que sorte a dela... –murmurou Karine. Então voltou aatenção para os amigos sentadosdo outro lado da mesa.

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– Achamos que é só umaquestão de tempo para aconteceraqui o que já está acontecendo naBavária – disse Elle baixinho.

– Temos que esperar e ver oque o prefeito consegue lá emMunique. Mas, mesmo se o pioracontecer, tenho certeza de queninguém vai se meter com osalunos do Conservatório –garantiu-lhes Pip. – Seja qual fora sua inclinação política, osalemães têm a música no coraçãoe na alma. – Ao falar, desejou quesuas palavras não soassem tãovazias. Olhou para Bo do outrolado da mesa, cujos olhosatormentados estavam sombrios

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quando ele passou um braçoprotetor em volta dos ombros deElle. – Como você está, Bo? –indagou Pip.

– Bastante bem – respondeuo outro.

Bo era um homem de poucaspalavras, que devia seu apelido àinsistência de carregar consigopara onde fosse o arco dovioloncelo, Bogen em alemão.Pip sabia que ele era um dosvioloncelistas mais talentosos doConservatório e que tinha umfuturo brilhante pela frente.

– Onde vai passar o Natal?– Eu...Nessa hora, Bo olhou por

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cima do ombro de Pip; o choquefez seu corpo dar um tranco e acor se esvair do seu rosto. Pip sevirou e viu dois oficiais da SSentrarem energicamente pelaporta, com seus típicos uniformescinza e as pistolas em coldres decouro na cintura. Pip viu Boestremecer e olhar para o outrolado. Infelizmente, aquela era umavisão frequente em Leipzig nosúltimos tempos.

Os dois oficiais correram osolhos pelos clientes do café eentão se sentaram a uma mesapróxima.

– Ainda não temos certezado que vamos fazer – respondeu

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Bo, recobrando o sangue-frio.Virando-se para Elle,

sussurrou alguma coisa em seuouvido; alguns minutos depois, osdois se levantaram para irembora.

Karine e Pip observaram ocasal de amigos ir embora damaneira mais discreta possível.

– Eles estão com muitomedo – disse Karine com umsuspiro.

– Bo também é judeu?– Ele diz que não, mas

muitos mentem, mesmo quesejam. Ele está preocupado com amulher que ama. Acho que talvezeles não demorem a ir embora da

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Alemanha.– Para onde?– Ainda não sabem. Paris,

talvez, mas, segundo Elle, Boteme que, se a Alemanha causaruma guerra, ela chegue à Françatambém. O meu país. – Karineestendeu a mão e, quando Pip asegurou, sentiu que estavatremendo.

– Como eu disse, vamos vero que acontece quando o prefeitoGoerdeler voltar – repetiu ele. –Se for preciso, Karine, nóstambém vamos embora.

No dia seguinte, Pippercorreu a bruma cinza suave damanhã de novembro até o

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Conservatório. Ao chegar pertoda Gewandhaus, seus joelhosquase cederam ao deparar com amultidão reunida em frente aoedifício. Onde na véspera seerguia orgulhosa a estátua deFelix Mendelssohn, fundadorjudeu do Conservatório, agoranão restava nada exceto uma pilhade entulho e pó.

– Ai, meu Deus do céu –murmurou ele entre os dentes aopassar apressado por todos,ouvindo os cânticos insultuososentoados aos gritos por váriosmembros uniformizados dajuventude hitlerista em meio àsruínas da estátua. – Começou.

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Chegando ao Conservatório,encontrou uma multidão de alunoschocados no hall de entrada. ViuTobias e foi até ele.

– O que houve?– Haake, o vice-prefeito,

mandou derrubar a estátua. Estavatudo planejado para quandoGoerdeler estivesse em Munique.Agora ele com certeza vai serforçado a renunciar. E entãoLeipzig estará perdida.

Pip procurou Karine emmeio ao caos e a encontrouolhando por uma das janelas emarco. Ela se sobressaltou quandoele pôs uma das mãos no seuombro, e quando se virou ele viu

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que seus olhos estavam cheios delágrimas. Enquanto ele aabraçava, ela balançou a cabeçasem dizer nada.

Nesse dia, WaltherDavisson, diretor doConservatório, cancelou todas asaulas; a região estava muito tensae o clima era consideradoperigoso demais para os alunos.Karine disse que iria encontrarElle em um café na esquina deWasserstraße e Pip se ofereceupara acompanhá-la. Quandochegaram, Elle estava sentadacom Bo em uma discreta mesareservada.

– Agora que isso aconteceu,

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não temos mais ninguém para nosproteger – falou Karine,acomodando-se junto com Pip. –Todo mundo sabe que Haake éantissemita. Vejam como eletentou aplicar aquelas leishorríveis do resto da Alemanha.Quanto será que vai demorar paraeles impedirem médicos judeusde exercerem a medicina earianos de os consultarem aquiem Leipzig?

Pip encarou os três rostospálidos à sua volta.

– Não podemos entrar empânico; vamos esperar Goerdelervoltar. Os jornais dizem que serádaqui a poucos dias. De Munique,

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ele foi à Finlândia resolver umaquestão relacionada à Câmara deComércio. Estou certo de que,quando souber o que aconteceu,voltará para Leipzig na hora.

– Mas o clima na cidade éde ódio puro! – exclamou Elle. –Todo mundo sabe que muitosjudeus estudam no Conservatório.E se eles decidirem ir mais longee destruir o prédio inteiro, comofizeram com sinagogas em outrascidades?

– O Conservatório é umtemplo à música, não umainstituição política ou religiosa.Por favor, precisamos tentarmanter a calma – reiterou Pip.

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Elle e Bo, porém, já estavamtotalmente distraídos em umaconversa sussurrada.

– É muito fácil para vocêdizer tudo isso – observou Karinepara ele, entre os dentes. – Vocênão é judeu e pode passar por umdeles. – Ela examinou os olhosazul-claros e cabelos onduladosruivo-alourados dele. – Para mimé diferente. Logo depois de aestátua ser derrubada, passei porum grupo de jovens a caminho doConservatório e eles ficaramgritando “Jüdische Hündin!”. – Alembrança a fez baixar os olhos.Pip sabia muito bem o quesignificava o xingamento: cadela

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judia. Seu sangue ferveu, masperder as estribeiras não ajudariaem nada.

– E tem mais: não consigonem falar com meus pais –continuou ela. – Eles estão nosEstados Unidos preparando anova mostra de escultura do meupai.

– Meu amor, eu a mantereisegura. Mesmo que tenha quelevá-la de volta para a Noruegapara isso, nada de mau vaiacontecer a você. – Ele segurou-lhe a mão e afastou uma mecha decabelos pretos brilhantes de seurosto ansioso.

– Promete?

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Pip beijou-lhe a testa comcarinho.

– Prometo.

Para alívio de Pip, as coisasde fato se acalmaram ao longodos dias seguintes. Goerdelervoltou e prometeu reerguer aestátua de Mendelssohn. OConservatório reabriu, e toda vezque entravam, Pip e Karinefaziam o possível para desviar osolhos da pilha de entulho. A

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música tocada pelos alunosparecia agora imbuída de umapaixão e pungência renovadas.Como se eles estivessem tocandopara salvar a própria vida.

O feriado de Natal chegou,mas não era longo o bastante paraque Pip ou Karine voltassem paracasa. Em vez disso, os doispassaram uma semana em umpequeno hotel, no qual seregistraram como marido emulher. Como Pip fora criado emuma casa luterana, com umarígida visão acerca do sexo antesdo casamento, ficara surpresocom a atitude laissez-faire deKarine em relação ao tema

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quando ela havia sugerido queeles fossem para a cama poucassemanas depois de terem seconhecido. Descobrira que elanem era mais virgem como ele.Quando eles fizeram amor pelaprimeira vez, Karine achoudivertida a sua timidez.

– Mas é claro que isso é umprocesso natural para duaspessoas apaixonadas – provocouela, em pé e nua na sua frente,posicionando os longos membrosmuito brancos de modonaturalmente elegante, com osseios perfeitos e miúdosempinados. – Nosso corpo foifeito para nos dar prazer. Por que

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negar isso a ele?Nos últimos meses, Pip

havia sido instruído nas artes doamor físico e chafurdavaalegremente no que o pastor dasua cidade chamaria de pecadosda carne. Era o primeiro Natalque passava longe da família, econcluiu que estar na cama comKarine era mil vezes melhor doque qualquer presente quepudesse ter recebido do PapaiNoel na véspera de Natal emcasa.

– Eu amo você – sussurravaele sempre no seu ouvido deitadoao lado dela, fosse dormindo ouacordado. – Eu amo você.

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O novo semestre começouem janeiro, e Pip, sabendo queseu tempo no Conservatório eralimitado, concentrou as energiasem absorver tudo que lheensinavam. Durante o invernogelado de Leipzig, andava pelaneve cantarolando Rachmaninoff,Prokofiev e a Sinfonia dosSalmos de Stravinsky. À medidaque fazia isso, as própriascomposições começavam a seformar na sua cabeça.

Chegava no Conservatório,

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pegava umas folhas pautadas nabolsa e, com as mãos ainda meiocongeladas, anotava as melodiasantes de esquecê-las. Aos poucos,aprendera que o método decomposição que funcionavamelhor para ele era o que sebaseava no pensamento livre e emdeixar a imaginação fluir, em vezdaquele usado pelos outrosalunos, que envolvia o meticulosoplanejamento de temas e acomposição de apenas umcompasso de cada vez, arranjadocom grande cuidado.

Mostrou o trabalho a seusupervisor; este, apesar de fazercríticas, incentivou-o. Pip andava

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muito animado, pois sabia queaquilo era só o começo de seuprocesso individual. Seu sanguepulsava com energia e bombeavamais depressa pelas veias quandoele começava e escutar sua musainterior.

A cidade continuavarelativamente calma; Goerdelerera candidato a reeleição, emmarço. O Conservatório inteiro oapoiava, e os alunos distribuíamfolhetos e cartazes instando acidade a votar. Karine pareciaconfiante na vitória.

– Apesar de ele até agoranão ter conseguido reerguer aestátua, com certeza depois que o

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povo falar e ele for reeleito, oReich não terá outra escolhasenão apoiá-lo na empreitada –dissera ela, esperançosa, quandoestavam os dois tomando cafécom Elle após um longo dia decampanha.

– Sim, mas todos sabemosque Haake se opõe abertamente àreeleição dele – contrapôs Elle. –A destruição da estátua deMendelssohn revelou claramentea posição dele em relação aosjudeus.

– Haake está só instigando atensão para preparar seu ninhonazista – concordou Karine,sombria.

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Na noite em que os votosforam contados, Pip, Karine, Ellee Bo se juntaram à multidão emfrente à prefeitura e deram vivaseufóricos quando souberam queGoerdeler tinha sido reeleito.

Infelizmente, quando osbotões de flor brotaram nasárvores em maio e o sol enfimapareceu, a euforia na cidade serevelou efêmera.

Pip havia passado dias e

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noites compondo em sua sala deensaio no Conservatório. Karinefoi procurá-lo para dar as últimasnotícias.

– Mandaram avisar deMunique... A estátua não vai serreconstruída – disse ela, ofegante.

– Que notícia terrível. Mas,por favor, minha amada, tente nãose preocupar. Falta pouco para ofim do semestre, e entãopoderemos avaliar a situação ebolar um plano.

– Mas, Pip, e se as coisaspiorarem mais depressa do queisso?

– Tenho certeza de que nãoserá o caso. Agora vá para casa;

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nos vemos à noite.Mas Karine estava certa, e

alguns dias depois Goerdelerrenunciou. A cidade mergulhououtra vez no caos.

Pip estava ocupado sepreparando para as provas, alémde estar também aperfeiçoandoseu primeiro opus, que seriaapresentado em um concerto deformatura logo antes do semestreacabar. Após ficar acordado até

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altas horas concluindo os arranjospara orquestra, esforçava-se paraarrumar tempo de consolar adesesperada Karine.

– Elle me disse que ela e Bovão embora de Leipzig assim queo semestre terminar, daqui a duassemanas, e não vão mais voltar.Segundo eles, é perigoso demaisficar aqui agora, com os nacional-socialistas livres para exigir assanções contra os judeus que asoutras cidades já estão aplicando.

– Para onde eles vão?– Não sabem ainda. Talvez

para a França, mas Bo teme quehaja problemas lá também. OReich tem defensores por toda a

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Europa. Vou escrever para meuspais pedindo conselho. Mas, seElle for embora, eu também vou.

Essa informação atraiu todaa atenção de Pip.

– Mas pensei que os seuspais estivessem nos EstadosUnidos.

– E estão. Meu pai estápensando em ficar por láenquanto durar essa tempestadeantissemita na Europa.

– E você iria para lá ficarcom eles? – Pip sentiu uma ondade pânico lhe retorcer asentranhas.

– Se eles acharem que é omelhor a fazer, sim, iria.

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– Mas... mas e nós dois? Oque vou fazer sem você? –indagou ele, e pôde ouvir o tomegoísta na própria voz.

– Você poderia vir comigo.– Karine, você sabe que eu

não tenho dinheiro para viajarpara os Estados Unidos. E comopoderia ganhar a vida lá se nãome formar no Conservatório eacumular alguma experiênciaantes de ir?

– Chéri, eu acho que vocênão está entendendo a gravidadeda situação. Judeus nascidos naAlemanha, que vivem aqui hágerações, já perderam acidadania. Os membros do meu

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povo não podem mais se casarcom arianos nem servir noexército e estão proibidos dehastear a bandeira alemã. Ouvidizer até que, em algumasregiões, eles estão reunindobairros inteiros de judeus paradeportá-los. Se tudo isso jáaconteceu, quem pode saber a queponto as coisas vão chegar? – Elaempinou o queixo, desafiadora.

– Quer dizer que você iriapara os Estados Unidos sozinha eme deixaria aqui?

– Se isso for salvar minhavida, sim, claro. Pelo amor deDeus, Pip, sei que você estáenvolvido com a sua composição,

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mas imagino que prefira me verviva do que morta, não é?

– Claro! Como você podesequer sugerir que eu cogite outracoisa? – disse ele, e a raiva ficouclara na sua voz.

– Porque você se recusa alevar a sério o que estáacontecendo. No seu mundonorueguês seguro nunca houveperigo. Nós, judeus, pelocontrário, sabemos que semprevamos estar vulneráveis aperseguições, como aconteceu aolongo de toda a história. E agoranão é diferente. Estamos sentindoisso, todos nós. Talvez seja sóuma coisa tribal, mas nós

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sabemos quando o perigo éiminente.

– Não acredito que você iriasem mim.

– Pip! Por favor, não sejainfantil! Você sabe que eu o amo equero passar o resto da minhavida com você, mas esta... estasituação não é novidade paramim. Antes mesmo de o Reichlegalizar as perseguições, nóssempre fomos alvo de antipatia.Em Paris, anos atrás, jogaramovos no meu pai durante uma dasexposições de escultura dele. Ossentimentos antissemitas existemhá milhares de anos. Você precisaentender isso.

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– Mas por quê?Karine deu de ombros de

leve.– Porque a história fez de

nós um bode expiatório, chéri. Aspessoas sempre temem quem édiferente, e ao longo dos séculosnós fomos forçados a sair de umlugar para outro. Onde quer quecheguemos, nos instalamos esomos bem-sucedidos. Nós nosunimos, pois foi isso queaprendemos a fazer. Foi assimque sobrevivemos.

Pip baixou os olhos,constrangido. Karine tinha razão.Para ele, que havia passado amaior parte da vida na sua

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cidadezinha no topo do mundo, oque ela dizia era como umahistória fictícia de outro mundo. Emuito embora ele tivesse vistocom os próprios olhos o entulhoda estátua destruída deMendelssohn, de certa formajustificara o ocorrido em suamente dizendo que era apenas umgrupo aleatório de rapazesfazendo um protesto, como ospescadores de vez em quandofaziam quando o preço docombustível para barcosaumentava, mas os comerciantesde peixe se recusavam a subir opreço por quilo.

– Tem razão – falou. – Me

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perdoe, Karine. Sou um idiotaingênuo.

– Eu acho que tem mais aver com o fato de você nãoquerer ver a verdade. Você nãoquer que o mundo lá foraatrapalhe seus sonhos e planospara o futuro. Nenhum de nósquer. Mas a situação é essa. – Elasuspirou. – E a verdade é que eunão me sinto mais segura aqui naAlemanha. Então preciso irembora. – Ela se levantou. – Vouencontrar Elle e Bo no CoffeeBaum daqui a meia hora paraconversar sobre a situação. Nosvemos mais tarde. – Ela o beijouno alto da cabeça e se afastou.

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Depois de Karine sair, Pipbaixou os olhos para a músicaespalhada pela escrivaninha à suafrente. A apresentação de suaobra estava marcada para dali amenos de duas semanas. Apesarde repreender a si mesmo peloegoísmo, não pôde deixar de seperguntar se ela agora iria mesmoacontecer.

Mais tarde, nesse mesmodia, quando tornou a encontrar

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Karine, ela estava mais calma.– Escrevi pedindo conselho

aos meus pais, e enquanto issonão tenho outra escolha senãoesperar a resposta. De modo que,no fim das contas, vou ouvir vocêtocar sua obra-prima.

Pip estendeu a mão esegurou a dela por cima da mesa.

– Você consegue me perdoarpor ser tão egoísta?

– É claro que sim. Entendoque o momento não poderia serpior.

– Estive pensando...– Em quê?– Que talvez a melhor

solução fosse você ir passar o

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verão comigo na Noruega. Lá nãoprecisaria se preocupar com suasegurança.

– Eu? Ir para a terra dasrenas, dos pinheiros e da neve? –brincou Karine.

– Na verdade nem sempreneva lá. Você vai descobrir que éum lugar lindo no verão – disseele, ficando na defensiva namesma hora. – Nós temos umapequena população de judeus queé tratada exatamente igual aqualquer outro cidadão. Você vaiestar segura. E, se a guerraestourar mesmo na Europa, nãovai chegar à Noruega, nem elanem os nazistas. Todo mundo lá

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diz que somos um país pequeno eirrelevante demais pararepararem em nós. Em Bergen hátambém uma excelenteorquestra.... uma das mais antigasdo mundo. Meu pai tocavioloncelo lá.

Os olhos escuros ebrilhantes de Karine oobservavam com atenção.

– Você me levaria para a suacasa?

– É claro! Meus pais jásabem tudo sobre você, e minhaintenção é nos casarmos.

– Eles sabem que eu soujudia?

– Não. – Pip sentiu um rubor

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lhe subir às faces, em seguidateve raiva por permitir que issoacontecesse. – Mas não é porqueeu não queria que elessoubessem. É porque a suareligião não importa, só isso.Meus pais são gente instruída,Karine, não camponeses. Lembre-se: meu pai nasceu em Leipzig.Estudou música em Paris e vivenos contando sobre a vida boêmianas ruas de Montparnasse durantea Belle Époque.

Foi a vez de Karine sedesculpar.

– Tem razão. Estou sendoarrogante. E talvez... – Ela levouum dos indicadores ao ponto

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entre os olhos, logo acima donariz, e o esfregou, como semprefazia quando estava pensando. –Talvez essa seja a resposta se eunão conseguir ir para os EstadosUnidos. Obrigada, chéri. É bompensar que existe um refúgio se ascoisas aqui piorarem no futuro. –Ela se inclinou por cima da mesae o beijou.

Mais tarde nessa noite,quando Pip foi para a cama, rezoupara “o futuro” poder esperar atédepois da apresentação da suacomposição.

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Muito embora eles tivessemlido nos jornais sobre judeusapedrejados ao saírem dasinagoga, além de muitos outrosincidentes preocupantes, Karineparecia menos ansiosa, talvezporque agora soubesse que haviaum plano alternativo. Assim, nasduas semanas seguintes, Pipmergulhou fundo e se concentrouem sua música. Não se atrevia atentar imaginar o que iriaacontecer quando o semestreacabasse e vivia com medo de

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Karine receber uma resposta dospais que talvez a fizesse partirpara os Estados Unidos. Pensarnisso lhe dava calafrios, pois elesabia que não tinha dinheiro parair com ela antes de começar aganhar alguma coisa comomúsico.

Na hora do almoço do dia daapresentação de formatura,quando seis novas obras curtas dealunos seriam executadas, Karinefoi procurá-lo.

– Bonne chance, chéri –falou. – Elle e eu vamos lá torcerpor você hoje à noite. Bo disseque, para ele, a sua é a melhor detodas.

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– É muita gentileza de Bodizer isso. E a contribuição delepara minha composição tocandovioloncelo na orquestra émaravilhosa. Agora preciso irfazer meu último ensaio. – Eledeu um beijo no nariz de Karine esubiu o comprido e ventosocorredor até a sala de ensaio.

Às sete e meia em ponto, Pipestava sentado de fraque naprimeira fila da Großer Saal,junto com os cinco outroscompositores. Walther Davisson,diretor do Conservatório,apresentou-os à plateia, e oprimeiro dos rapazes subiu aopalco. Pip seria o último a se

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apresentar, e sabia que selembraria para sempre daangustiante espera de uma hora emeia até chegar sua vez. Noentanto, o tempo passou, e, depoisde lançar aos céus uma pequenaprece, ele subiu os degraustorcendo para não tropeçar, detanto que suas pernas tremiam.Fez uma curta mesura para aplateia e sentou-se ao piano.

Depois de tocar, nãoconseguia se lembrar muito nemdos vivas que ecoaram quando osoutros compositores se uniram aele para um agradecimentoconjunto. Tudo que sabia era quetinha tocado o melhor que poderia

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naquela noite, e era só isso queimportava.

Mais tarde, foi cercado porcolegas e professores; todos lhederam tapinhas nas costas edisseram prever um grande futuropara ele. Um jornalista tambémlhe pediu uma entrevista.

– Meu Grieg particular –disse Karine, risonha, apósconseguir desbravar a multidãopara lhe dar um abraço. – Chéri,sua brilhante carreira acaba decomeçar.

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Como tinha exagerado muitono champanhe depois daapresentação, Pip se irritou ao seracordado na manhã seguinte emsua pensão por uma batida àporta. Levantou-se cambaleando,foi abrir, e deparou com asenhoria ainda de camisola, comum ar muito irritado e reprovador.

– Herr Halvorsen, tem umamoça dizendo que precisa lhefalar com urgência esperando láembaixo.

– Danke, Frau Priewe –agradeceu ele, fechando a porta.Vestiu a primeira camisa e a

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primeira calça que conseguiuencontrar.

Karine estava à sua esperana rua em frente à porta. Mesmoem uma emergência, pelo visto aregra de “proibido moças nacasa” de Frau Priewe continuavaa valer.

– O que foi? O queaconteceu?

– Ontem à noite três casasforam incendiadas... todas dejudeus. E a pensão de Bo foi umadelas.

– Ai, meu Deus do céu!Ele...?

– Ele está vivo. Conseguiuescapar. Saiu pela janela do

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primeiro andar e pulou. Com seuprecioso arco de violoncelo,claro. – Karine conseguiu dar umsorriso triste e irônico. – Pip, elee Elle estão indo embora deLeipzig agora mesmo. E eu sintode verdade que também devo ir.Venha, preciso de um café e, pelovisto, você também.

O pequeno café próximo aoConservatório tinha acabado deabrir as portas. Estava desertoquando os dois se sentaram diantede uma mesa junto à janela efizeram o pedido. Pip esfregou orosto para tentar recobrar ossentidos. Estava com uma forteressaca.

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– Notícias dos seus pais? –indagou a Karine.

– Você sabe que até ontem eunão tinha tido. E hoje está cedodemais para o carteiro –respondeu ela, sem paciência. –Faz menos de quinze dias queescrevi para eles.

– O que Elle e Bo vão fazer?– Vão embora da Alemanha

assim que puderem, isso é certo.Mas nenhum dos dois temdinheiro para ir para muito longe.Além do mais, nenhum de nóssabe para onde é seguro ir.Quanto a mim, o apartamento daminha família em Paris foialugado enquanto meus pais estão

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nos Estados Unidos. Não tenhocasa para onde voltar – disse elacom um dar de ombros.

– Então...? – Pip pressentiuo que ela estava dizendo.

– Sim, Pip. Se a sua ofertaainda estiver de pé, eu vou comvocê para a Noruega, pelo menosaté ter notícias dos meus pais. Étudo que posso fazer. O semestretermina daqui a poucos dias, e asua composição já foi tocada,então não vejo motivo paraadiarmos. Hoje de manhã, quandoestive com Elle e Bo, elesdisseram que, depois dosincêndios de ontem à noite, oêxodo de judeus de Leipzig vai

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começar para valer, entãoprecisamos ir embora enquantoainda temos essa possibilidade.

– Sim – concordou Pip. –Claro.

– E... eu tenho mais umacoisa a lhe pedir.

– O quê?– Você sabe que desde que

cheguei em Leipzig, Elle viroupraticamente uma irmã para mim.Os pais dela morreram durante aGrande Guerra, e ela e o irmãoforam para um orfanato. Ele foiadotado quando era bebê, e elanão o vê desde então. Elle nãoteve a mesma sorte, e só porquesua professora de música

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percebeu seu talento com a flautae a viola e a ajudou a conseguiruma bolsa ela hoje tem um futuro.

– Quer dizer que ela não temcasa?

– Tirando o orfanato, a casadela é aqui em Leipzig, no quartoque ela divide comigo. Bo e eusomos os únicos parentes que elatem. Pip, eles podem ir para aNoruega com a gente? Mesmo queseja só por algumas semanas. Deum lugar seguro, eles podemesperar para ver como vai ficar asituação na Europa e decidir oque fazer. Sei que é pedir muito,mas eu simplesmente não possodeixar minha amiga para trás. E,

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como ela não quer largar Bo, eletambém precisa ir.

Pip encarou sua expressãode desespero e imaginou o que ospais achariam se aparecesse naporta e anunciasse ter trazido trêsamigos para passar as férias naNoruega. Sabia que eles semostrariam generosos eacolhedores, principalmenteporque os três eram músicos.

– Sim, é claro que pode. Sefor o que você achar melhor, meuamor.

– Podemos partir assim quepossível? O quanto antes sairmosdaqui, melhor. Por favor? Vocêvai perder a cerimônia oficial de

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formatura, mas...Pip sabia que cada dia a

mais que Karine ficava emLeipzig era não só um perigo, mastambém um dia mais perto de umapossível resposta dos paissugerindo que fosse encontrá-losnos Estados Unidos.

– Claro. Podemos ir todosjuntos.

– Obrigada! – Karine oenlaçou pelos ombros, e ele viualívio em seus olhos. – Venha,vamos avisar a Elle e Bo que elesvão conosco.

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Dois dias depois, Pip fez seusamigos exaustos descerem apassarela do navio a vapor noporto de Bergen. Um brevetelefonema da sala do diretor doConservatório foi o único avisoque seus pais receberam sobre osconvidados-surpresa. Seguiu-seuma apressada série dedespedidas e agradecimentos comtodos os amigos e supervisores, eo diretor lhe deu um tapinha

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especial nas costas, elogiando suagenerosidade por levar os amigospara a Noruega.

– Fico triste por não ficaraté o fim do semestre – disse Pip,apertando a mão de WaltherDavisson.

– Acho que é sensato partiragora. Quem sabe o que podeacontecer? Em breve talvez nãoseja mais tão fácil. – Ele deu umsuspiro triste. – Vá com Deus,meu garoto. Escreva-me quandochegar.

Pip se virou para os amigos.Os três encaravam cansados asequência de casas de madeiracoloridas que margeava o porto,

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tentando se adaptar ao ambiente.Bo mal conseguia andar. Estavacom o rosto machucado por causada queda após pular pela janela, ePip desconfiava que tivessefraturado o cotovelo. Elle haviaprendido o braço direito donamorado ao peito com um lenço,e Bo não dera sequer um aidurante a longa viagem, apesar demal conseguir disfarçar no rosto ador que sentia.

Pip viu o pai em pé no cais efoi na sua direção com um largosorriso.

– Far! – exclamou, e Horstpassou os braços em volta dosombros do filho para um abraço.

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– Como vai?– Muito bem, obrigado. E

sua mãe também está ótima –respondeu Horst, com um sorrisocaloroso para todos. – Agora meapresente aos seus amigos.

Pip assim o fez, e os jovensapertaram a mão de seu pai comgratidão.

– Bem-vindos à Noruega –disse Horst. – Ficamos felizes emter vocês aqui conosco.

– Far – lembrou-lhe Pip. –Eles não falam norueguês,lembra?

– Mas é claro! Mildesculpas. Alemão? Francês?

– Nossa língua materna é o

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francês, mas nós falamos alemãotambém – disse Karine.

– Então vamos falar francês!– Horst bateu palmas como umacriança animada. – Nunca tenhooportunidade de exibir meuexcelente sotaque – disse ele comum sorriso, e seguiu tagarelandocom eles nesse idioma enquantocaminhavam em direção ao carro.

A conversa prosseguiu portoda a sinuosa estrada nas colinasque saía de Bergen até chegar aFroskehuset, sua casa; agoraquem se sentia excluído era Pip,pois sabia muito pouco francês.Sentado no banco do carona,observou o pai ao volante: Horst

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tinha os cabelos louros já ralospenteados para trás e seu rostoexibia as marcas de anos de bomhumor; Pip quase não conseguiase lembrar do pai sem um sorrisono rosto. Horst havia deixadocrescer um pequeno cavanhaque,que somado à barba fazia o filhopensar nos retratos que vira depintores impressionistasfranceses. Como ele tinhaprevisto, Horst parecia estarencantado de conhecer seusamigos, e ele nunca havia sentidomais amor pelo pai quanto diantedaquela generosa recepção.

Em casa, Astrid, sua mãe,bonita como sempre, veio abrir a

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porta e dispensou a mesmacalorosa acolhida, ainda que emnorueguês. Seu olhar logo recaiuem Bo, a essa altura tão exausto ecom tanta dor que precisava seapoiar em Elle para ficar em pé.

Astrid levou uma das mãos àboca.

– O que houve com ele?– Ele pulou de uma janela

quando sua pensão pegou fogo –contou Pip.

– Coitadinho! Horst, vá comPip, levem nossos outrosconvidados para a sala. Bo,sente-se para eu dar uma olhadanos seus ferimentos – disse ela, eindicou com um gesto a cadeira

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que ficava junto ao telefone nohall.

– Minha mãe é enfermeira –explicou Pip para Karine entre osdentes enquanto os dois seguiamHorst e Elle pelo corredor. –Com certeza em algum momentovocês vão ouvir a história decomo ela se apaixonou pelo meupai quando estava cuidando deledepois de uma operação deapendicite.

– Ela parece bem maisjovem do que ele.

– E é: quinze anos. Meu paisempre disse que arrumou umanoiva criança. Ela só tinha 18anos quando engravidou de mim.

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Na verdade, os dois se adoram.– Pip...Ele sentiu no braço os dedos

esguios e sensíveis de Karine.– Oi?– Obrigada. Por todos nós.

À noite, depois de o médicoter sido chamado para fazercurativos em Bo e marcar umaconsulta no hospital para ver se ocotovelo dele estava fraturado,Elle e Astrid ajudaram-no a subir

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até o andar de cima e o puserampara dormir no quarto de Pip.

Astrid então desceu parapreparar o jantar; Pip a seguiu atéa cozinha.

– Pobre rapaz – comentouela. – Está completamenteexausto. Seu pai me contou umpouco do que está acontecendoem Leipzig. Pode me passar odescascador de batatas?

– Claro. – Pip assim fez.– Eles são refugiados ou três

amigos que vieram conhecer aNoruega?

– As duas coisas, eu acho.– E quanto tempo vão ficar?– Mor, a verdade é que eu

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não sei.– São todos judeus?– Karine e Elle sim. Bo não

tenho certeza.– Reconheço que é difícil

acreditar no que está acontecendona Alemanha, mas acho quepreciso acreditar. O mundo é umlugar muito cruel. – Ela deu umsuspiro. – E Karine? É ela a moçasobre quem você tanto nos falou?

– É. – Pip observou a mãecontinuar a descascar as batatasenquanto esperava ela comentarmais alguma coisa.

– Ela parece cheia de vida emuito inteligente. E imagino quedê trabalho de vez em quando –

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acrescentou Astrid.– Ela com certeza me

desafia. Aprendi muito sobre omundo – falou Pip, um pouco nadefensiva.

– É exatamente disso quevocê precisa: de uma mulherforte. Só Deus sabe o que seu paiteria feito sem mim – disseAstrid, rindo. – E estou orgulhosado que você fez para ajudar seusamigos. Seu pai e eu faremos oque for possível para apoiá-los.Só tem uma coisa...

– O quê, Mor?– Enquanto Bo não se

recuperar, a sua generosidaderelegou você ao sofá da sala.

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Após um jantar no terraçocom vista para o glorioso fiordelá embaixo, Elle subiu para verBo, a quem tinham levado umabandeja com o jantar mais cedo, edepois foi se recolher. Horst eAstrid também foram se deitar.Pip escutou as risadinhasdiscretas dos dois ao subir aescada. Durante a refeição,quando viu a tensão desaparecerdo rosto das duas moças, sentiu-se muito orgulhoso dos pais egrato por estar na Noruega.

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– Eu também deveria subir –falou Karine. – Estou exausta,mas não se pode desperdiçar umavista assim tão mágica. Estávendo? São quase onze da noite eainda está claro.

– E o sol amanhã vai selevantar bem antes de você. Eudisse que aqui era lindo – falouPip. Levantou-se da mesa e andoupelo terraço até se debruçar noguarda-corpo de madeira, queformava uma barreira entre a casae os incontáveis pinheiros adescer pelas colinas em direção àágua.

– É mais do que lindo... é detirar o fôlego. E não estou falando

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só da paisagem. A acolhida dosseus pais, a gentileza deles...Estou encantada.

Pip a tomou nos braços, eela chorou no seu ombro lágrimassilenciosas de alívio. Ergueu osolhos para ele e observou seurosto.

– Diga que eu nunca vou terque ir embora.

E ele disse.

Na manhã seguinte, Horst

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levou Bo e Elle de carro até ohospital da cidade. O diagnósticofoi que Bo havia deslocado ocotovelo e sofrido uma fraturamúltipla; ele ficou lá para fazeruma operação e pôr o osso nolugar. Elle passou os diasseguintes no hospital com onamorado, o que possibilitou aPip apresentar Karine àsmaravilhas de Bergen.

Ele a levou a Troldhaugen, acasa de Grieg, que ficava a umacurta distância a pé da sua e eraagora um museu. Viu como elaficou encantada quando foramvisitar a cabana construída naencosta do fiorde onde o mestre

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havia composto algumas de suaspeças.

– Você também vai ter umacabana destas quando ficarfamoso? – perguntou-lhe ela. – Euposso lhe trazer docinhos e vinhona hora do almoço, e podemosfazer amor no chão.

– Ah, nesse caso eu talvezprecise trancar a porta. Umcompositor não pode se distrairenquanto está trabalhando –provocou ele.

– Então talvez eu tenha quearrumar um amante para meentreter nessas horas solitárias –disparou ela de volta, com umsorriso travesso, virando-se para

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ir embora.Aos risos, Pip a alcançou e a

abraçou pela cintura, por trás,impedindo-a de continuar. Seuslábios buscaram a delicada curvado pescoço dela.

– Nunca – sussurrou ele. –Só eu, mais ninguém.

Eles pegaram o trem e foramaté a cidade. Passearam pelasestreitas ruas calçadas de pedra epararam em um café paraalmoçar, onde Karine pôdeprovar aquavit pela primeira vez.

Ambos riram quando osolhos dela lacrimejaram e eladeclarou que a bebida era “maisforte do que absinto” antes de

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pedir na mesma hora uma segundadose. Depois do almoço, ele alevou para ver o Teatro NationaleScene, onde Ibsen já tinha sidodiretor artístico e Grieg, regenteda orquestra.

– Eles agora tocam em seupróprio teatro, o Konsert-palæet,onde meu pai passa boa parte davida. Ele é o primeirovioloncelista da orquestra – dissePip.

– Você acha que ele nosconseguiria um emprego?

– Tenho certeza de quepoderia recomendar nosso nome,sim – respondeu ele, sem quererestragar o entusiasmo de Karine

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dizendo que não havia nem nuncahouvera uma mulher tocando naOrquestra Filarmônica de Bergen.

Num outro dia, eles pegaramo Fløibanen, o minúsculofunicular que subia até o alto damontanha Fløyen, um dos seteimponentes picos ao redor deBergen. Do mirante, tinha-se umavista espetacular da cidade láembaixo e do fiorde cintilantemais atrás. Olhando por cima doguarda-corpo, Karine suspirou deprazer.

– Com certeza não podehaver vista mais linda no mundo –disse ela baixinho.

Pip estava adorando aquele

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entusiasmo genuíno da namoradapor Bergen, uma vez que ossonhos dela até então haviam seconcentrado no objetivo bemmais ambicioso de ir para osEstados Unidos. Ela pediu a Pippara começar a lhe ensinarnorueguês, pois ficava frustradapor não poder se comunicar coma mãe dele sem a presença dealguém para traduzir a conversa.

– Ela tem sido tão boacomigo, chéri, que eu quero lhedizer no seu próprio idiomaquanto estou agradecida.

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Bo voltou para casa com obraço direito imobilizado, e asnoites transcorriam em jantaresno terraço seguidos por concertosimprovisados. Com as portaspara o terraço escancaradas, Pipse sentava ao piano de cauda nasala. Dependendo da peça, Elletocava viola ou flauta, Karine,oboé e Horst, violoncelo.Tocavam de tudo, desde assimples canções folclóricasnorueguesas que Horst lhesensinava com paciência até peças

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de antigos mestres comoBeethoven ou Tchaikovsky, oumesmo composições maismodernas de figuras como Bartóke Prokofiev; mas Horst serecusava a passar de Stravinsky.A esplêndida música descia pelascolinas até o fiorde. A vida dePip se tornou uma junçãoharmoniosa de tudo que eleamava e necessitava, e ele sesentiu grato pelo fato de o destinoter levado seus amigos àNoruega.

Somente tarde da noite,deitado encolhido em uma camaimprovisada no quarto que agoradividia com Bo, ansiando pelo

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corpo sensual e nu de Karine aoseu lado, ele pensava que nada navida era totalmente perfeito.

Quando o quente mês deagosto foi chegando ao fim, osatuais moradores da casa dosHalvorsens precisaram ter sériasconversas sobre o futuro. Aprimeira delas foi entre Pip eKarine certa noite, já bem tarde,na varanda depois de todo mundoter se recolhido. A moça

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finalmente recebera uma carta dospais, que tinham decidido ficarnos Estados Unidos até astempestuosas nuvens da guerrapassarem. Eles recomendaram àfilha não voltar à Alemanha parao novo semestre. Da mesmaforma, achavam desnecessárioque ela empreendesse agora alonga e cara viagem até aAmérica, uma vez que estava porenquanto escondida e segura naNoruega.

– Eles mandam beijos eagradecimentos aos seus pais –falou Karine, tornando a dobrar acarta e a guardando no envelope.– Acha que Horst e Astrid vão se

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importar se eu prolongar minhaestadia?

– De jeito nenhum. Acho quemeu pai está meio apaixonado porvocê. Ou pelo menos pelo jeitocomo você toca oboé – respondeuPip, sorrindo.

– Mas, se eu for ficar aqui,não podemos continuar a abusarda hospitalidade dos seus pais. Eestou com saudades de você,chéri – sussurrou Karine,aninhando-se junto a ele e dandouma delicada mordida no lóbuloda sua orelha. Buscou os lábiosdele com os seus e os dois sebeijaram, mas Pip interrompeu obeijo quando uma porta se abriu

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no andar de cima.– Estamos debaixo do teto

dos meus pais, e você precisaentender que...

– É claro que eu entendo,chéri. Mas quem sabe podemosencontrar um lugar para ficarmosjuntos aqui. Quero tanto estar comvocê... – Karine pegou a mão delee a levou até o próprio seio.

– E eu com você, meu amor– falou Pip, manobrandodelicadamente a mão para longecaso alguém os pegassedesprevenidos. – Mas mesmo queos meus pais aceitem muitascoisas que outros na Noruega nãoaceitariam, qualquer sugestão de

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dividirmos a mesma cama semestarmos casamos seriainaceitável, debaixo do teto delesou do nosso. E seria umdesrespeito por tudo que elesfizeram por nós.

– Eu sei, mas o que maispodemos fazer? Essa situação éuma agonia para mim. – Karinerevirou os olhos. – Você sabecomo eu preciso dessa parte donosso relacionamento.

– Eu também preciso. – Pipàs vezes tinha a sensação de queele era a fêmea e ela o macho noque dizia respeito ao aspectofísico daquela união. – Mas amenos que você esteja disposta a

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se converter para se casarcomigo, é assim que as coisasfuncionam na Noruega.

– Vou ter que virar cristã?– Para ser mais exato, você

teria que virar luterana.– Mon Dieu! Que preço alto

para poder fazer amor. NosEstados Unidos tenho certeza deque não existem essas regras.

– Pode ser, Karine, mas nósnão estamos nos Estados Unidos.Vivemos em uma pequena cidadeda Noruega. E por mais que euame você, viver juntosabertamente bem debaixo do narizdos meus pais é algo que eu seriaincapaz de fazer. Você entende?

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– Entendo, entendo, mas meconverter... bem, seria trair o meupovo. Embora minha mãe só tenhase tornado judia depois de seconverter para se casar com meupai, então geneticamente eu sejasó metade judia. Tenho queperguntar o que meus pais acham.Eles deixaram o telefone dagaleria do meu pai para umaemergência, e acho que isso éuma emergência. Se elesconcordarem, podemos nos casarlogo?

– Não tenho certeza absolutadas regras, mas acho que o pastorteria de ver o seu certificado debatismo.

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– Como você bem sabe, eunão tenho. Não posso tirar umaqui?

– Você faria isso? Serbatizada como luterana?

– Umas gotinhas d’água euma cruz na minha testa não vãotornar meu coração cristão, Pip.

– Não, mas... – Pip sentiuque ela não estava entendendodireito a questão. – Além do fatode que poderemos dormir juntos,você tem certeza de que quer secasar comigo?

– Me perdoe – disse ela comum sorriso. – A minhanecessidade de cuidar do ladoprático das coisas sobrepujou a

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parte romântica da conversa. Éclaro que eu quero me casar comvocê! Então vou fazer onecessário para que issoaconteça.

– Você se converteria pormim? – Pip ficou dominado pelaemoção e se comoveu. Sabiamuito bem o que a herançajudaica significava para ela.

– Se os meus paisconcordarem, sim. Chéri, eupreciso agir com a cabeça. Etenho certeza de que, nas atuaiscircunstâncias, qualquer deus,seja o seu ou o meu, vai meperdoar.

– Mesmo que eu esteja

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começando a pensar que você sóme quer por causa do meu corpo– provocou Pip.

– Provavelmente –concordou ela, tambémbrincando. – Amanhã peço ao seupai para dar um telefonema paraos Estados Unidos.

Pip observou-a sair dorecinto e pensou em como ela osurpreendia constantemente comseu temperamento explosivo eraciocínio quixotesco. Pensou sealgum dia entenderia de verdadeo quanto ela era complexa. Pelomenos, se os dois conseguissemse casar, nunca ficaria entediadono futuro.

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Os pais de Karineretornaram o telefonema da filhana noite seguinte.

– Eles concordaram –informou ela, grave. – E não sópara eu poder me casar com você.Eles acham que eu ficaria maissegura se adotasse o seusobrenome, só por garantia...

– Fico muito feliz, meu amor– disse ele, tomando-a nos braçose dando-lhe um beijo na boca.

– Então. – Depois de algumtempo, Karine se desvencilhoudele, agora com uma expressãomais leve. – Quando podemosorganizar tudo?

– Assim que você se

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encontrar com o pastor e eleaceitar batizá-la.

– Amanhã? – indagou ela,descendo a mão até sua virilha.

– Estou falando sério –repreendeu ele, grunhindo com otoque dela e em seguida afastandosua mão a contragosto. – Ficaraqui na Noruega por enquanto vaifazer você feliz?

– Existem lugares piorespara se fazer a vida, e porenquanto temos que viver um diadepois do outro até sabermos oque vai acontecer. Você sabe queeu adoro isto aqui, tirando essalíngua horrível de vocês, claro.

– Então preciso tentar

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encontrar logo trabalho comomúsico para nos sustentar. Ou naorquestra daqui, ou quem sabe emOslo?

– Talvez eu também possaarrumar trabalho.

– Talvez sim, quando tiveraprendido a dizer mais do que“por favor” e “obrigada” nanossa língua horrível – provocouele.

– Está bem, está bem! Estoutentando.

– Sim. – Pip lhe deu umbeijo no nariz. – Eu sei que está.

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Quando os dois anunciaramque desejavam se casar, Astridpreparou um jantar comemorativopara todos os seis.

– Vocês vão morar aqui emBergen? – quis saber ela.

– Por enquanto, sim. Se vocêpuder nos ajudar a arrumarempregos como músicos, Far –falou Pip.

– Com certeza possoperguntar por aí – respondeuHorst, e Astrid então se levantoue deu um abraço na futura nora.

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– Agora chega deconsiderações práticas. Hoje éuma noite especial. Parabéns,Kjære, e bem-vinda à famíliaHalvorsen. Fico especialmentefeliz, pois achava que fôssemosperder Pip e seu talento para aEuropa ou os Estados Unidos. Evocê trouxe o nosso filho paracasa.

Pip traduziu as palavras damãe e ficou com lágrimas nosolhos, assim como sua futuraesposa.

– Parabéns – disse Bo derepente, puxando um brinde. –Elle e eu esperamos poder fazer amesma coisa em breve.

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Astrid foi conversar com opastor da igreja da cidade, queconhecia bem. Não revelou o quesabia sobre as origens judaicasde Karine, mas o pastorconcordou em batizar a moça semdemora. Os Halvorsens e seushóspedes assistiram à curtacerimônia e, mais tarde, de voltaà casa, Horst chamou Pip de lado.

– Foi uma boa coisa o queKarine fez hoje, sob muitosaspectos. Um amigo meu daorquestra acabou de voltar de um

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concerto em Munique. Acampanha dos nazistas contra osjudeus está ganhando força.

– Mas com certeza nunca vainos afetar aqui...

– É de se pensar que não,mas quando um louco consegueatrair a atenção de tanta gente, enão só na Alemanha, quem podesaber onde isso tudo vai dar? –respondeu Horst.

Pouco depois, Bo e Elleanunciaram que também ficariamem Bergen. Bo havia tirado ogesso, mas seu cotovelo aindaestava enrijecido demais paratocar violoncelo.

– Estamos os dois rezando

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para ele se recuperar logo. Botem tanto talento... – confidenciouElle a Karine à noite no quartoque dividiam. – Todos os sonhosdele dependem disso. Porenquanto, ele arrumou trabalhonuma oficina que confeccionacartas náuticas no porto.Ofereceram-nos um pequenoapartamento que fica em cima daloja. Nós fingimos que já somoscasados, e eu farei faxina para aesposa do dono da oficina.

– Vocês sabem norueguêssuficiente para isso? – perguntouKarine à amiga, com inveja.

– Bo aprende rápido. Eu meesforço. Além do mais, o dono da

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oficina é alemão, que, como vocêsabe, nós dois falamos bastantebem.

– E vocês vão se casar deverdade?

– Nós queremos, sim, masprecisamos economizar. Entãopor enquanto precisamos viveruma mentira. Segundo Bo, averdade mora no coração, não emum pedaço de papel.

– Concordo – disse Karine,estendendo a mão para a amiga. –Promete que vamos continuarpróximas quando vocês semudarem para a cidade?

– Claro. Você é minha irmãem todos os sentidos, menos no

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nome, Karine. Eu amo você e nãotenho como agradecer o suficientea Pip pelo que vocês dois fizerampor nós.

– E nós em breve tambémteremos nosso próprio teto? –perguntou Karine a Pip na manhãseguinte, depois de lhe contar anovidade de Elle e Bo.

– Se a entrevista de amanhãcorrer como espero, daqui aalgum tempo, sim – respondeu

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Pip. O pai havia lhe conseguidouma entrevista com Harald Heide,regente da Filarmônica deBergen.

– Vai correr, chéri –garantiu-lhe Karine com um beijo.– Vai, sim.

Quando chegou ao Konsert-palæet, Pip estava quase tãonervoso quanto ao fazer o testepara ingressar no Conservatório.Talvez, pensou com amargura,

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porque agora sua performancetinha consequências no mundoreal, enquanto naquela época eleera um rapaz despreocupado, semresponsabilidades a não serconsigo mesmo. Apresentou-se àmulher da bilheteria, que oconduziu por um corredor até umaespaçosa sala de ensaio ondehavia um piano e várias estantesde partitura. Dali a pouco, umhomem alto, de ombros largos,com olhos alegres e fartoscabelos louro-escuros, veioencontrá-lo e se apresentou comoHarald Heide.

– Seu pai elogiou seustalentos em mais de uma ocasião,

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Herr Halvorsen. É óbvio que eleestá encantado por tê-lo de voltaà Noruega – comentou o regente,apertando a mão de Pip de modocaloroso. – Soube que o senhortoca piano e violino?

– Isso mesmo, maestro,embora o piano tenha sido meuinstrumento principal quandoestudei em Leipzig. Espero umdia me tornar compositor.

– Então venha, vamoscomeçar. – Com um gesto, Heideindicou que Pip deveria se sentarao piano, enquanto ele próprio seacomodou em um estreito bancoencostado a uma das paredes dasala. – Quando estiver pronto,

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Herr Halvorsen.As mãos de Pip tremeram

um pouco quando ele as ergueuacima do teclado, mas quandoiniciou a lenta série da aberturado primeiro movimento doConcerto para Piano no 2 em DóMenor, de Rachmaninoff, seunervosismo desapareceu. Apaixão arrebatada da música oinvadiu. Ele fechou os olhos econseguiu escutar mentalmente oacompanhamento das seções decordas e metais enquanto seusdedos executavam como numadança a rápida progressão dearpejos que se seguia. Estava nametade da parte lenta e lírica em

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Mi Bemol Maior quando HerrHeide o mandou parar.

– Acho que já ouvi osuficiente. Uma maravilhamesmo. Se o senhor tocar violinocom metade desse talento, HerrHalvorsen, não vejo motivoalgum para não lhe oferecer umemprego. Vamos até minha sala,lá conversaremos melhor.

Uma hora mais tarde, Pipchegou em casa extasiado. Assimque entrou, deu a notícia a Karinee aos pais: estava agoraoficialmente empregado pelaOrquestra Filarmônica de Bergen.

– Vai ser só como substituto,para cobrir o piano e o violino

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quando os titulares tiverem outrocompromisso ou não estiverem sesentindo bem, mas Herr Heide medisse que o pianista atual já estávelho e volta e meia não conseguetocar. Talvez não demore a seaposentar.

– Franz Wolf parece umportão enferrujado e tem artritenos dedos. Você terá muitasoportunidades de tocar. Muitobem, filho! – Horst lhe deu umtapa nas costas. – Vamos tocarjuntos como eu fazia com meupai, Jens.

– Você também disse a eleque é compositor? – pressionouKarine.

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– Disse, mas tudo tem seutempo, e por enquanto estouapenas grato por poder sustentá-la quando nos casarmos, comodeve fazer um marido.

– E quem sabe um dia eutambém possa tocar na orquestra– falou Karine, e fez uma careta.– Não acho que eu vá dar umaboa Hausfrau.

Pip traduziu para a mãe oque a noiva acabara de dizer, eAstrid sorriu.

– Não se preocupe.Enquanto você e seu paiestiverem tocando, ensinarei aKarine tudo que ela precisa sabersobre como cuidar de uma casa.

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– Dois Halvorsens em umaorquestra outra vez, um filhoprestes a se casar e, tenhocerteza, muitos netos para amarno futuro. – Os olhos de Horstbrilhavam de felicidade.

Pip viu Karine arquear assobrancelhas escuras para ele. Jádissera inúmeras vezes que nãotinha instinto materno e que eraegoísta demais para ter filhos. Elenão a levava a sério; achava quefosse o seu jeito de tentar chocardizendo coisas que não se dizia.E ele a amava por isso.

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Karine e Pip se casaram nodia anterior à véspera do Natal.Uma nevasca recente haviadisposto sobre a cidade umimaculado cobertor branco e asluzes cintilantes nas ruas doCentro davam a tudo umaatmosfera de conto de fadasquando eles foram até o GrandHotel Terminus em umacarruagem puxada a cavalo. Apósa recepção pela qual Horstinsistira em pagar, os recém-casados enfim se despediram dos

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convidados e subiram. Ao entrarno quarto – um presente decasamento de Elle e Bo – caíramnos braços um do outro com umavoracidade que só seis meses deabstinência eram capazes degerar. Enquanto se beijavam, Pipsoltou os botões do vestido derenda cor creme de Karine e,quando a roupa deslizou por seusombros e braços, os dedos deleseguiram o mesmo caminho etocaram suas omoplatas elegantesantes de irem roçar os mamilosrosa. Ela gemeu, agarrou um tufodos cabelos dele e, afastando aboca da sua, guiou a cabeça domarido em direção ao próprio

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seio. Soltou um arquejo de prazerao sentir os lábios dele sefecharem em volta do mamilo eao mesmo tempo empurrou ovestido pelo quadril atéfinalmente ir ao chão. Pip então apegou no colo e a levou até acama com a respiração aceleradae curta, enlouquecido de tantodesejo. Em pé ao lado da cama,começou atabalhoadamente a tiraras próprias roupas, mas Karine seajoelhou no colchão e o deteve.

– Não... agora é a minha vez– falou, com a voz rouca.

Com destreza, desabotoouprimeiro a camisa, em seguida acalça. Poucos segundos depois,

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puxou-o para cima de si, e osdois se perderam um no outro.

Passado o prazer, ficaramdeitados os dois juntos, saciados,ouvindo o relógio da antiga praçada cidade bater a meia-noite.

– Com certeza valeu a pename converter por isso – afirmouKarine, levantando-se apoiada nocotovelo e sorrindo enquantoencarava o marido nos olhos eacariciava seu rosto com ascostas dos dedos. – E se eu nãodisse isso antes, vou dizer agora,poucas horas depois de virar suamulher... e quero que você nuncase esqueça: amo você, chéri, enão consigo me lembrar de um

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tempo em que tenha sido maisfeliz do que agora.

– Nem eu – sussurrou ele,tirando a mão dela da própriaface e a levando aos lábios. –Que dure para sempre.

– Para sempre.

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40

1938

Durante os meses de janeiro,fevereiro e março, enquanto aneve e a chuva castigavam Bergensem trégua e as breves horas deluz do sol logo cediam lugar àescuridão, Pip passava váriashoras por dia ensaiando com aFilarmônica de Bergen. No iníciosó era chamado para tocar nos

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concertos noturnos uma vez porsemana, no máximo, mas àmedida que o pobre velhopianista Hans começou a tirarcada vez mais licenças por causada artrite, Pip foi se tornando aospoucos uma presença frequente naorquestra.

Enquanto isso, dedicava otempo livre a compor seuprimeiro concerto. Não mostravaa ninguém o resultado de seutrabalho. Nem mesmo a Karine.Quando estivesse pronto,dedicaria o concerto a ela. Àtarde, depois dos ensaios, muitasvezes ficava no teatro. Ali,rodeado pela atmosfera

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fantasmagórica de um auditóriosem músicos nem plateia,trabalhava em sua composição nopiano do fosso da orquestra.

Karine, por sua vez,mantinha-se ocupada com Astrid,por quem havia desenvolvido umgrande amor. Seu norueguês foimelhorando aos poucos e, guiadapela paciente mão da sogra, elase esforçava para aprender a artedas prendas domésticas.

Sempre que o trabalho deElle permitia, Karine encontravaa amiga no diminuto apartamentoem cima da oficina de cartasnáuticas de frente para o porto eas duas conversavam sobre suas

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esperanças e planos para o futuro.– Não posso evitar a inveja

que sinto por vocês terem aprópria casa – confessou Karinecerta manhã, enquanto tomavamcafé. – Pip e eu agora somoscasados, mas ainda moramos nacasa dos pais dele e dormimosem seu quarto da infância. Doponto de vista romântico, não é olugar mais sedutor que existe.Sempre temos que tomar cuidadopara não fazer barulho, mas euvivo ansiando pela liberdade defazer amor sem pensar em maisnada.

Elle estava acostumava comas declarações ousadas da melhor

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amiga.– Sua hora vai chegar, tenho

certeza. – Ela sorriu. – Você temsorte de ter o apoio dos pais dePip. Para nós ainda é complicado.O cotovelo de Bo melhoroubastante, mas ainda não sarou osuficiente para ele poder fazer umteste para a orquestra daqui, nemde qualquer outro lugar, aliás. Eleestá arrasado por não poder sededicar à sua paixão nomomento... e eu também, paradizer a verdade.

Karine sabia exatamente doque a amiga estava falando:confinada como estava a umambiente doméstico desde que

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chegara a Bergen, suashabilidades musicais tambémtinham ficado restritas àsapresentações noturnas casuaisem Froskehuset. Mas elareconhecia também que os seusproblemas empalideciam epareciam insignificantes secomparados aos desafios que Ellee Bo eram obrigados a enfrentar.

– Sinto muito, Elle. Estousendo egoísta.

– Não está não, irmã. Amúsica está no nosso sangue e édifícil viver sem ela. Pelo menosa incapacidade de Bo tocar teveuma consequência boa. Ele estágostando de trabalhar na

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confecção de cartas náuticas ecomeçou a se dedicar a aprendersobre métodos de navegação. Porenquanto está satisfeito, e eutambém estou.

– Que bom – falou Karine. –E fico feliz por ainda estarmosmorando na mesma cidade epodermos nos encontrar sempreque quisermos. Não sei o que eufaria sem você.

– Nem eu sem você.

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No início de maio, Pipanunciou a Karine que haviaeconomizado dinheiro suficientepara alugar uma casinha emTeatergarten, no coração dacidade, a poucos passos do teatroe da sala de concerto.

Quando lhe contou isso, eladesatou a chorar.

– Essa notícia veio numótimo momento, chéri. Porque,tirando todo o resto, preciso lhecontar que estou... Mon Dieu!Estou grávida.

– Mas que notíciamaravilhosa! – exclamou Pip,correndo para junto da mulher eenvolvendo-a em um abraço

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exultante. – Tente não fazer umacara tão horrorizada – zombouele, erguendo seu queixo trêmulopara poder encará-la nos olhos. –Você, que acredita tanto no poderda natureza, deveria ser aprimeira a admitir que umacriança é apenas o resultado dedois corações batendoapaixonados.

– Eu sei de tudo isso, masestou enjoando loucamente tododia de manhã. E se eu não gostardo bebê? E se me revelar umapéssima mãe? E se...

– Shh, pronto. Você está sóassustada. Como todas as mães deprimeira viagem.

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– Não! As mulheres que euconheço sempre se alegraramcom as suas gestações. Ficavamlá sentadas feito éguas prenhes,alisando a barriga que despontavae aproveitando a atenção detodos. Mas tudo que eu consigover é um estranho dentro do meucorpo, levando embora meuabdômen lisinho e esgotandominha energia!

Com isso, ela desabou juntoa ele com outro surto de soluçosruidosos.

Pip reprimiu um sorriso,inspirou fundo e fez o que pôdepara consolá-la.

Mais tarde, nessa mesma

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noite, os dois contaram a Horst eAstrid que eles seriam avós e queele e Karine se mudariam para aprópria casa.

Seguiu-se uma rodada geralde felicitações, mas Horst nãodeu um copo a Karine quando agarrafa de aquavit começou acircular.

– Está vendo? – reclamouela ao se deitar na cama ao ladode Pip. – Todos os meus prazeresagora são coisa do passado.

Pip riu baixinho, tomou-anos braços e pôs a mão debaixoda camisola para acariciar a leveprotuberância da barriga. Pensouque era como ver o primeiro

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despontar de uma lua crescente nocéu estrelado. Ele e ela tinhamfeito aquilo juntos. E era ummilagre.

– São só mais seis meses,Karine. E eu juro que na noite doparto levo para a sua cabeceirauma garrafa inteira de aquavit evocê vai poder beber tudo.

No início de junho, o casalse mudou para a casa nova emTeatergarten. Embora minúscula,

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era linda e perfeita, com oexterior de ripas azul-claras euma varanda de madeira que seabria da cozinha. Durante overão, enquanto Pip estava notrabalho, Karine deu duro paradecorar o interior com a ajuda deAstrid e Elle e pôs vasos depetúnias e lavanda na varanda.Apesar do orçamento apertado, acasa logo se tornou um portoseguro de tranquilidade eaconchego.

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Na noite de seu vigésimosegundo aniversário, em outubro,Pip chegou em casa do teatrodepois de uma apresentaçãonoturna e encontrou Karine, Elle eBo em pé na sala de estar.

– Feliz aniversário, chéri –disse Karine, com os olhosbrilhando de animação. Os três seafastaram para revelar um pianode armário posicionado maisatrás, no canto da sala. – Sei quenão é um Steinway, mas já é umcomeço.

– Mas como...? – indagouPip, estupefato. – Não temosdinheiro para uma coisa dessas.

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– Com isso me preocupo eu,você se contente em aproveitar.Um compositor precisa ter opróprio instrumento disponívelem todos os momentos para poderperseguir sua musa – disse ela. –Bo já testou e disse que o timbreé bom. Venha, Pip, toque paranós.

– Claro.Pip foi até o piano, correu os

dedos pela tampa que protegia asteclas e admirou a marchetariasimples que decorava a madeiradourada do painel mais acima.Não havia marca de fabricante,mas o instrumento tinha umaconstrução sólida e estava em

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excelente estado; era óbviotambém que havia sido enceradocom muito amor. Ao erguer atampa, ele deparou com as teclasreluzentes, então olhou em voltaem busca de um lugar para sesentar.

Elle se adiantou apressada.– E este aqui é o nosso

presente – disse, tirando umabanqueta estofada de trás de umacadeira onde estava escondida epousando-a diante do piano. – FoiBo quem esculpiu a madeira. Eucosturei o assento.

Pip olhou para os pés depinho esculpidos com elegância epara o intrincado bordado do

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assento. Ficou maravilhado.– Eu... eu não sei o que dizer

– falou, sentando-se. – A não serobrigado, a vocês dois.

– Isso não é nada emcomparação com o que você e suafamília fizeram por nós, Pip –disse Bo em voz baixa. – Felizaniversário.

Pip levou os dedos aoteclado e começou a tocar osprimeiros compassos doCapriccio em Sol Bemol deTchaikovsky. Bo tinha razão: oinstrumento de fato tinha umtimbre bonito, e ele pensou,animado, que agora poderiatrabalhar em seu concerto a

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qualquer hora do dia ou da noite.

Conforme a gravidez deKarine avançava, faltando apenasalgumas semanas para o parto,Pip passava o tempo sentadodiante de seu amado piano,compondo com frenesi eexperimentando acordes evariações harmônicas. Sabia que,quando o bebê nascesse, a paz dacasa logo seria perturbada demaneira irrevogável.

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Felix Mendelssohn EdvardHalvorsen, batizado emhomenagem ao pai de Karine,veio ao mundo feliz e saudável nodia 15 de novembro de 1938.Justamente como Pip desconfiava,apesar de todos os medos deKarine, ela abraçou amaternidade como se tivessenascido para isso. Emborasatisfeito por vê-la tão realizadae feliz, precisava admitir que àsvezes se sentia excluído daqueleestreito vínculo entre mãe e bebê.Toda a atenção da esposa estavaagora concentrada no preciosomenino, e Pip adorava e detestavaessa mudança de foco em igual

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proporção. O que achava maisdifícil de suportar era que, antes,Karine sempre o incentivava atrabalhar nas suas composições;ultimamente, porém, parecia quetoda vez que ele se sentava aopiano ela o mandava fazersilêncio.

– Pip! O neném estádormindo e você vai acordá-lo.

No entanto, um motivo emespecial o deixava grato pelo fatode Karine estar fechada naquelecasulo maternal: assim ela nãotinha mais interesse em ler osjornais, que a cada semanapareciam expor as tensõescrescentes na Europa. Após a

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anexação da Áustria pelaAlemanha, em março, no final desetembro houvera um lampejo deesperança de que a guerrapudesse ser evitada: França,Alemanha, Grã-Bretanha e Itáliahaviam assinado o Acordo deMunique, que cedia à Alemanha aárea dos Sudetos, naTchecoslováquia, em troca deuma promessa de Hitler de que opaís germânico não faria maisnenhuma exigência territorial. Oprimeiro-ministro da Grã-Bretanha, Neville Chamberlain,chegara a anunciar em umdiscurso que o acordo conduziriaà “paz na nossa época”. Pip

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desejou com todas as forças que obritânico estivesse certo. Àmedida que o outono foipassando, contudo, as conversasno fosso da orquestra e nas ruasde Bergen se tornaram cada vezmais sombrias; poucosacreditavam que o Acordo deMunique fosse se sustentar.

Pelo menos as festividadesdo Natal proporcionaram umabem-vinda trégua. O casal passouo dia de Natal na casa de Horst eAstrid junto com Elle e Bo. Navéspera do ano-novo, deram umafesta em casa e, quando os sinosda meia-noite anunciaram achegada do ano de 1939, Pip

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abraçou a mulher e a beijou comternura.

– Meu amor, eu devo a vocêtudo que sou. Nunca serei capazde lhe agradecer o suficiente portudo que você tem sido para mim.E por tudo que você me deu –sussurrou ele. – Um brinde a nóstrês.

No primeiro dia no ano,Karine – após ser convencida adeixar Felix sob os carinhosos

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cuidados dos avós – embarcoujunto com Pip, Bo e Elle no navioHurtigruten e eles zarparam doporto de Bergen para subirem amagnífica costa oeste da Noruega.Diante das incontáveis paisagensesplendorosas pelas quaispassaram, Karine chegou aesquecer o remorso materno. Suapreferida foi a cascata das SeteIrmãs, suspensa à beira do fiordede Geiranger.

– É mesmo de tirar o fôlego,chéri – comentou ela em pé noconvés com Pip, envolta emvárias camadas de lã para seproteger das temperaturas abaixode zero. Os dois admiraram,

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maravilhados, as incríveisesculturas naturais de gelo que seformaram quando a cachoeiracongelou em pleno movimentocom a chegada do inverno.

O Hurtigruten continuou asubir o litoral, entrando e saindode fiordes, e parou em váriosportos pequeninos para entregarcomida e correspondência; onavio era uma linha deabastecimento para os moradoresdas comunidades isoladas quepovoavam a costa.

Durante o trajeto até o pontomais setentrional da viagem,Mehamn, bem no alto da costaártica da Noruega, Pip falou aos

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companheiros sobre o fenômenoda aurora boreal.

– As Luzes do Norte sãocomo um espetáculo celeste deluzes do próprio Deus – falou,tentando resumir em palavras abeleza do fenômeno, mas sabendoque não estava lhe fazendo jus.

– Você já viu? – quis saberKarine.

– Já, mas só uma vez,quando as condições estavamboas e as luzes desceram ao sul osuficiente para chegar até Bergen.Nunca fiz esta viagem antes.

– Como elas se formam? –indagou Elle, erguendo os olhospara o céu limpo e estrelado.

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– Tenho certeza de queexiste uma explicação técnica,mas não sou a pessoa indicadapara fornecê-la – admitiu Pip.

– E talvez nem sejanecessário explicar – comentouBo.

A travessia depois deTromsø ficou agitada, e as duasmoças se recolheram à cabinequando o barco se aproximou daponta do Cabo Norte. O capitãoinformou que aquele era o melhorponto para se observar as Luzesdo Norte, mas, sabendo o quantoKarine estava passando mal, Pipnão teve escolha senão deixar Bosozinho olhando para o céu e

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descer para cuidar dela.– Eu disse que não gostava

de barcos – gemeu Karine,agachada acima do saquinhoatenciosamente providenciadopara quem enjoava no mar.

Quando eles se afastaram doCabo Norte e recomeçaram adescer em direção a Bergen, o diarompeu com águas maistranquilas. Bo deu bom-dia a Pipno refeitório com um semblantedominado pelo entusiasmo.

– Eu vi, amigo! Eu vi omilagre! E a sua majestade bastapara convencer o mais fervorosodescrente de que existe um podermaior. Que cores... verde,

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amarelo, azul... o céu inteiro seacendeu, radioso! Eu... – Bo seengasgou com as própriaspalavras, em seguida recobrou ocontrole. Com os olhos a brilharpor causa das lágrimas contidas,estendeu os braços para Pip e lhedeu um abraço. – Obrigado –agradeceu. – Obrigado.

De volta a Bergen, Pip serecolhia à sala de concertodeserta ou à casa dos pais para

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usar o piano que havia lá, tudo demodo a não incomodar o pequenoFelix. Constatou que seuraciocínio estava disperso devidoàs incontáveis noitesmaldormidas nas quais o bebê seesgoelava por causa das cólicas,das quais era particularmenteinclinado a padecer. EmboraKarine se levantasse para cuidardo filho e deixasse Pip dormir,pois sabia o quanto ele precisavatrabalhar, o choro agudo de Felixecoava nas paredes finas dapequena casa, tornando o repousoimpossível para os dois.

– Talvez eu devesse apenaspôr um pouco de aquavit na

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mamadeira dele e acabar comisso – falou Karine exaustadurante o café da manhã depoisde uma noite particularmenteruim. – Esse bebê está acabandocomigo. – Ela deu um suspiro. –Sinto muito pelo incômodo, chéri.Pelo visto eu não consigo acalmá-lo. Que mãe terrível eu sou...

Pip a abraçou e enxugousuas lágrimas com os dedos.

– É claro que não é, meuamor. Isso vai passar, prometo.

À medida que o verão foi seaproximando, ambos começarama pensar que nunca mais teriamuma noite de sono ininterrupta navida. Então, na primeira noite de

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silêncio, os dois acordaramautomaticamente às duas damadrugada, horário em que agritaria em geral começava.

– Você acha que ele estábem? Por que não está chorando?Mon Dieu! E se ele tivermorrido? – falou Karine, e desceucorrendo da cama para ir até oberço encaixado em um canto dominúsculo quarto. – Não... eleestá respirando, e não pareceestar com febre – sussurrou elaem pé junto a Felix, com uma dasmãos na testa do bebê.

– Então o que ele estáfazendo? – indagou Pip.

Um sorriso começou a se

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formar nos lábios de Karine.– Dormindo, chéri. Ele só

está dormindo.

Quando a paz em casa foirestaurada, Pip voltou a trabalharem sua música. Depois de muitorefletir, havia decidido batizarsua composição de Concerto doHerói. A história que lera sobre asacerdotisa que contrariava asregras do templo ao se permitirfazer amor com um jovem

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admirador e depois, quando elese afogou, se jogava no mar atrásdele, condizia bem com otemperamento dramático eindependente de Karine. Além domais, Karine era mesmo a sua“heroína”, e Pip sabia que, se umdia a perdesse, faria a mesmacoisa.

Certa tarde de agosto, elepousou o lápis que usava paraescrever nas partituras e seespreguiçou com os braços acimada cabeça, aliviado. O últimoarranjo para orquestra estavapronto. Sua composição estavaconcluída.

No domingo seguinte, o

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casal levou o pequeno Felix detrem para visitar os avós emFroskehuset. Depois do almoço,Pip distribuiu as partituras devioloncelo, violino e oboé epediu que Karine e Horst asestudassem. Após um curto ensaio– tanto seu pai quanto sua mulhereram ótimos na leitura a primeiravista –, ele se sentou ao piano e apequena orquestra começou atocar.

Vinte minutos depois, Pippousou as mãos no colo. Ao sevirar, viu Astrid enxugandolágrimas dos olhos.

– Foi meu filho quemcompôs isso... – sussurrou ela,

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erguendo os olhos para o marido.– Acho que ele herdou o talentodo seu pai, Horst.

– Herdou, mesmo –concordou ele, visivelmentecomovido. Deu um tapa no ombrode Pip. – Que composiçãoinspirada, filho! Você precisatocá-la para Harald Heide oquanto antes. Aposto que ele vaiquerer estreá-la aqui em Bergen.

– É claro que tudo isso se

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deve a mim por ter lhe dado opiano – afirmou Karine,extasiada, quando os doisestavam sentados no trem de voltapara casa. – E agora, quandovocê ficar rico, vai podersubstituir o colar de pérolas quevendi para comprá-lo. – Ao ver aexpressão de choque no rosto domarido, ela se curvou para beijarsua bochecha. – Não se preocupe,meu amor. Você deixou Felix e eumuito orgulhosos, e nós oamamos.

Pip reuniu coragem paraprocurar Harald Heide na sala deconcerto antes da primeiraapresentação noturna da semana.

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Foi ter com ele nos camarins eexplicou que havia composto umconcerto e desejava ouvir suaopinião a respeito.

– Por que deixar paraamanhã o que se pode fazer hoje?Toque-o para mim agora, que tal?– sugeriu o regente.

– Ahn... está bem, maestro.Nervoso, Pip se sentou,

levou os dedos ao teclado e tocouo concerto inteiro de cabeça.Harald não o deteve e, no fim,aplaudiu bem alto.

– Bem, bem, muito bom,muito bom mesmo, HerrHalvorsen. O tema recorrente éincrivelmente original e

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fascinante. Eu mesmo já o estoucantarolando. Dei uma olhadaaqui nestas páginas e vi quealguns arranjos precisam seralterados, mas posso ajudá-locom isso. Será que temos umnovo Grieg entre nós? – indagouele, devolvendo as partituras paraPip. – A influência do trabalhodele é bem visível na estrutura,mas acredito ter escutado umpouco de Rachmaninoff, e deStravinsky também.

– Espero que tenha escutadotambém um pouco de mim,maestro – respondeu Pip, ousado.

– Escutei, escutei sim.Parabéns, rapaz. Acho que

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podemos pensar em incluir a peçano programa no início daprimavera, o que lhe daria tempopara trabalhar nos arranjos.

Depois do concerto, Piptomou a liberdade de acordarKarine, que já estava dormindo.

– Dá para acreditar, Kjære?Está acontecendo de verdade!Nessa mesma época, no ano quevem, talvez eu seja umcompositor profissional!

– Essa é a notícia maismaravilhosa que já recebi. Nãoque eu tenha duvidado sequer porum segundo. Você vai serinfluente – disse ela, com umarisadinha. – Eu vou ser a mulher

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do célebre Pip Halvorsen.– Vou me chamar “Jens

Halvorsen”, é claro – corrigiuele. – Vou usar o nome corretoque era do meu avô.

– Que ficaria muitoorgulhoso de você, chéri, tenhocerteza. Assim como eu estou.

Eles brindaram à notíciacom uma dose de aquavit cadaum e completaram acomemoração fazendo amor emsilêncio para não acordar Felix,que dormia em paz no berço aopé da cama.

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Por que a felicidade ésempre tão curta? Foi a perguntaque Pip fez a si mesmo, arrasado,quando leu no jornal do dia 4 desetembro que, após a invasãoalemã da Polônia, no dia 1o

daquele mês, França e Grã-Bretanha haviam declaradoguerra à Alemanha. Ao sair decasa e percorrer a curta distânciaaté a sala de concerto paraensaiar, pôde sentir o desânimocobrindo os moradores da cidadecomo uma capa.

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– Mas a Noruega conseguiuse manter neutra na última guerra,então por que não nessa? Nóssomos um país de pacifistas, enão deveríamos ter nada a temer– declarou Samuel, um doscolegas músicos de Pip, enquantoa orquestra afinava osinstrumentos no fosso. Estavamtodos embasbacados com anotícia e tomados pela tensão epelo nervosismo.

– Ah, mas lembre queVidkun Quisling, líder do partidofascista aqui da Noruega, estáfazendo o possível para angariarapoio à causa de Hitler – retrucouHorst, sombrio, enquanto passava

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resina no arco do violoncelo. –Ele já deu muitas palestras sobreo que chama de “questãojudaica”. Se ele chegar ao poder,que Deus não permita, há poucasdúvidas de que tomaria o partidodos alemães.

Após o concerto, Pipchamou o pai de lado.

– Far, você acha mesmo quenós vamos entrar nessa guerra?

– Infelizmente, é umapossibilidade. – Horst deu deombros com tristeza. – E mesmoque o nosso país resista a pegarem armas para qualquer um doslados, tenho dúvidas de que oregime alemão vá nos deixar em

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paz.Nessa noite, Pip fez o que

pôde para consolar Karine, cujosolhos exibiam de novo o medoque ele vira em Leipzig.

– Por favor, fique calma –disse-lhe ele. Ela andava para láe para cá pela cozinha segurandoo pequeno Felix contra o peito,em um gesto protetor, como se osnazistas fossem entrar de repentepela porta e lhe arrancar o filhodos braços. O menino secontorcia. – Lembre-se, vocêagora foi batizada luterana e seusobrenome é Halvorsen. Mesmose os nazistas invadirem nossopaís, o que é muito pouco

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provável, ninguém vai saber quevocê é judia de nascença.

– Ah, Pip! Não seja tãoingênuo! É só olhar para mim eeles vão ver a verdade. Depoisdisso, bastará investigar umpouco. Você não entende comoeles são meticulosos... nadaconsegue detê-los quando queremnos encontrar! E o nosso filho?Ele tem sangue judeu! Eles podemlevá-lo também!

– Não vejo como elespodem descobrir alguma coisa.Além do mais, temos queacreditar que não vão chegar atéaqui – falou Pip, empurrando depropósito para o fundo da mente,

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com determinação, oscomentários que ouvira do paimais cedo. – Várias pessoas medisseram que existe um fluxoconstante de judeus vindo daEuropa para a Noruega pelaSuécia, para fugir da ameaçanazista. Eles veem nosso paíscomo um porto seguro. Por quevocê não consegue ver isso?

– Porque eles podem estarerrados, Pip... eles podem estarerrados. – Ela deu um súbitosuspiro e desabou sentada emuma cadeira. – Será que vou sersempre obrigada a sentir medo?

– Eu juro, Karine, que fareitudo que puder para proteger

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você e Felix. Custe o que custar,meu amor.

Ela ergueu para ele os olhosescuros atormentados eincrédulos.

– Eu sei que é esse o seudesejo, chéri, e lhe agradeço porisso, mas infelizmente pode serque dessa vez nem você consigame salvar.

Assim como haviaacontecido depois de a estátua deMendelssohn em Leipzig serreduzida a ruínas, Pip sentiu aatmosfera de tensão se acalmar nomês seguinte, à medida que todosna Noruega começavam a aceitara situação e reagir de acordo. O

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rei Haakon e o primeiro-ministroJohan Nygaardsvold fizeram opossível para assegurar aoscidadãos que a Alemanha nãotinha interesse naquele cantinhominúsculo do mundo que era opaís deles. Não havia por queentrar em pânico, repetiam,embora o Exército e a Marinhativessem sido mobilizados ediversas precauções jáestivessem sendo tomadas caso opior acontecesse.

Ao mesmo tempo, guiadopelas mãos experientes ecuidadosas de Harald, Pippassava horas aperfeiçoando osarranjos de seu concerto. Logo

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antes do Natal, Harald lhe deu amaravilhosa notícia de que oConcerto do Herói seria incluídona Programação de Primavera. Ànoite, isso deu margem a rodadasextras de aquavit quando elechegou em casa.

– Minha primeiraapresentação será dedicada avocê, meu amor.

– E eu estarei lá para ouvi-lo dar à luz sua obra-prima. Vocêestava presente quando dei à luz aminha – falou Karine,embriagada, atirando-se nosbraços dele.

Os dois então fizeram amorruidosamente, com entrega, sem

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se preocupar com o filho, queestava passando a noite na casados avós.

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41

Em uma chuvosa manhã demarço de 1940, sentado em frentea Karine à mesa do café, Pip viuo cenho da mulher se franzirprofundamente quando ela leuuma carta dos pais.

– O que foi, amor? –perguntou.

Ela o encarou.– Meus pais estão dizendo

que nós deveríamos partir para osEstados Unidos agora mesmo.

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Estão convencidos de que o planode Herr Hitler é dominar omundo, de que ele não vaisossegar enquanto não tiver ocontrole da Europa e depois vaiquerer mais ainda. Mandaramalguns dólares para nos ajudarcom o custo da viagem, estávendo? – Ela abanou para eleumas notas de dinheiro. – Sevendermos o piano, seria fácilconseguir o que falta. Segundoeles, agora nem a França nemmesmo a Noruega estão livres dorisco de uma invasão.

Faltavam só algumassemanas para a estreia de Pip,marcada para um concerto

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especial de domingo no teatroNationale Scene no dia 14 deabril. Ele sustentou o olhar deKarine.

– Perdão, mas como é que osseus pais, que estão a milhares dequilômetros daqui, podem sabermais do que nós sobre a situaçãoda Europa?

– Porque eles têm uma visãogeral, uma neutralidade que nãoconseguimos ter. Nós estamosdentro da situação, e talvezestejamos todos nos enganandoaqui na Noruega, porque é a únicacoisa que podemos fazer para nostranquilizarmos. Pip, de verdade,eu acho que está na hora de irmos

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embora – insistiu ela.– Minha querida, você sabe

tão bem quanto eu que o futuro denós três depende do sucesso daestreia do meu concerto. Como eupoderia virar as costas para issoagora?

– Para garantir a segurançada sua mulher e do seu filho,talvez?

– Por favor, Karine, não digaisso! Eu fiz tudo que pude paraproteger você e vou continuarfazendo. Se quisermos ter umfuturo nos Estados Unidos, eupreciso antes criar uma reputaçãoque me preceda. Caso contrário,chegarei apenas como mais um

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candidato a compositor de umpaís do qual a maioria dosamericanos nunca ouviu falar.Duvido que consiga entrar naFilarmônica de Nova York sequerpara servir o chá, quem dirácomo um músico a ser levado asério.

Pip viu um súbito lampejode raiva nos olhos da mulher.

– Tem certeza de que édinheiro que você quer? Ou seráque o mais importante é o seuego?

– Pare de sercondescendente – retrucou ele,frio, levantando-se da mesa. – Eusou seu marido e pai do seu filho.

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Quem toma as decisões nesta casasou eu. Tenho reunião com Haralddaqui a vinte minutos.Conversamos sobre esse assuntodepois.

Pip saiu de casa fervilhandode ressentimento e pensando queàs vezes Karine o pressionavademais. Além de ler todos osjornais que conseguia encontrar,ele estava sempre com os ouvidosbem atentos e monitoravacuidadosamente os boatos quecorriam pelas ruas e no fosso daorquestra. Havia dois músicosjudeus entre eles, e ninguémparecia pensar que houvessemotivo para pânico. Ninguém

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havia sugerido que Herr Hitlertivesse planos iminentes deinvadir o país. Com certeza ospais de Karine estão alarmados,pensou ele enquanto percorria asruas da cidade. Como a estreiaera dali a três semanas, seria umaloucura total eles viajarem agora.

Pela primeira vez, pensou,sentindo uma onda de irritaçãobrotar dentro de si por ter suasopiniões contrariadas, Karineteria que escutar o marido.

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– Então que seja. – Com umdar de ombros, Karine descartoua questão quando Pip lhe disse,nessa mesma noite, que seu planoera que a família permanecesseem Bergen até depois da estreia.– Se acha que sua mulher e seufilho estão seguros aqui, nãotenho outra escolha senão confiarem você.

– Eu acredito, sim, quevocês estão seguros. Pelo menospor enquanto. No futuro, podemosavaliar a situação conforme anecessidade. – Pip a viu selevantar da cadeira, tensa, apósescutar sua veemente recusa da

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opinião dos sogros e do instintopessoal da própria mulher. – Nãoposso impedi-la de ir, claro, sefor isso que você quiser fazer –acrescentou ele dando de ombros,cansado.

– Como você bem disse, émeu marido, e eu preciso acatarsua opinião e seu juízo. Felix e euvamos ficar com você, claro.Nosso lugar é aqui. – Ela lhe deuas costas e continuou a caminharem direção à porta. Então parou etornou a se virar. – Só rezo paravocê estar certo, Pip. Porque, senão estiver, que Deus ajude todosnós.

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Cinco dias antes do diamarcado para a estreia doconcerto de Pip, a máquina deguerra alemã atacou a Noruega.Como toda a frota mercanteestava ocupada ajudando a Grã-Bretanha a fazer um bloqueio noCanal da Mancha para proteger opaís de uma invasão, a Noruegafoi pega totalmente desprevenida.Com sua pífia força naval, osnoruegueses deram o melhor de sipara defender os portos de Oslo,Bergen e Trondheim, e

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conseguiram até destruir um naviode guerra alemão carregado dearmas e mantimentos no fiorde deOslo. Entretanto, o bombardeiopor mar, ar e terra foi incessante eimpossível de deter.

Com Bergen sitiada, Pip,Karine e Felix buscaram abrigoem Froskehuset, nas colinas, ondeficaram, petrificados de terror,ouvindo o zumbido da Luftwaffeno céu e o barulho dos tiros nacidade lá embaixo.

Pip não conseguia erguer osolhos para encarar a mulher;sabia exatamente o que o olhardela lhe diria. Nessa noite, elesse deitaram na cama, ambos

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calados, e ficaram lá, como doisestranhos, com Felix dormindoentre eles. Depois de algumtempo, sem conseguir maissuportar aquilo, Pip procurou amão dela.

– Como você vai conseguirme perdoar? – perguntou ele parao escuro.

Karine deixou passar umlongo intervalo antes deresponder.

– Porque é o meu dever.Você é meu marido e eu amovocê.

– Eu juro que, mesmo agoraque isso aconteceu, nós estamosseguros. Todo mundo diz que os

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cidadãos noruegueses não têmnada a temer. Os nazistas só nosinvadiram para proteger otransporte do minério de ferro daSuécia que os abastece. Não temnada a ver com nós dois.

– Não, Pip. – Karine deu umsuspiro exausto. – Mas temsempre a ver conosco.

Durante os dois diasseguintes, os moradores deBergen receberam garantias dos

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ocupantes alemães de que nadatinham a temer e de que a vidaseguiria seu curso normal.Suásticas foram penduradas nasede da prefeitura e soldados deuniforme nazista enchiam as ruas.O centro da cidade foraduramente atingido durante abatalha por Bergen, levando aocancelamento de todos osconcertos previstos.

Pip se desesperou. Haviaarriscado a vida da mulher e dofilho por uma estreia que agorasequer iria acontecer. Saiu decasa e subiu a colina até afloresta. Deixou-se desabar sobreum tronco de árvore caído e

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enterrou o rosto nas mãos. Pelaprimeira vez em sua vida adulta,chorou copiosamente de vergonhae horror.

Nessa noite, Bo e Elle foramvisitá-los em Froskehuset, e osseis discutiram a situação.

– Ouvi dizer que o nossocorajoso rei conseguiu sair deOslo – informou Elle a Karine. –Está escondido em algum lugar noNorte. E Bo e eu também vamosembora.

– Quando? Como? – quissaber Karine.

– Bo tem um amigo pescadorque trabalha no porto. Ele disseque vai nos levar até a Escócia,

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nós e qualquer um que queira irjunto. Vocês querem?

Karine lançou um olharfurtivo na direção de Pip, muitoentretido em uma conversa com opai.

– Duvido que meu maridoqueira. Felix e eu corremosperigo aqui? Elle, por favor, mediga. O que Bo acha?

– Nenhum de nós sabe,Karine. Mesmo que consigamosalcançar a Grã-Bretanha, talvezos alemães cheguem lá também.Essa guerra parece uma praga ase espalhar por toda parte. Pelomenos aqui você está casada comum norueguês, além de agora ser

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luterana. Contou para alguémsobre sua verdadeira religião eorigem?

– Não! Tirando meus sogros,claro.

– Então talvez seja melhorficar aqui com o seu marido. Vocêtem o sobrenome dele e a históriada famosa família Halvorsen emBergen para protegê-la. Para Bo eeu é diferente. Não temos nadapara nos esconder. Só somosgratos a Pip e à família dele porterem nos acolhido e nos salvadodo perigo. Se tivéssemos ficadona Alemanha... – Elle estremeceu.– Andei ouvindo histórias decampos para judeus, de famílias

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inteiras que desapareceram decasa na calada da noite.

Karine também tinha ouvidoessas histórias.

– Quando vocês vãoembora?

– Não vou dizer. É melhorvocê não saber, para o caso de ascoisas aqui piorarem. Por favor,não comente nada com Pip nemcom os pais dele.

– Vai ser em breve?– Vai. E Karine... – Elle

segurou a mão da amiga. – Temosque nos despedir agora. Tudo queposso fazer é torcer e rezar paraum dia nos vermos de novo.

Elas se abraçaram com os

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olhos úmidos de lágrimas eficaram de mãos dadas, em umapostura de silenciosasolidariedade.

– Estarei sempre aqui paraajudar você, amiga – sussurrouKarine. – Me escreva quandochegar à Escócia.

– Vou escrever, prometo.Não esqueça que, apesar de terjulgado mal a situação, seumarido é um homem bom. Comoalguém a não ser os da nossa raçapoderia ter previsto o que estáacontecendo? Perdoe Pip, Karine.Ele não consegue entender o queé viver sempre com medo.

– Vou tentar – respondeu

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Karine.– Ótimo. – Com um leve

sorriso, Elle se levantou do sofá efez um gesto para Bo, indicandoque estava pronta para ir embora.

Ao vê-los sair, Karinesoube, com uma certeza que vinhado fundo da alma, que nunca maiscolocaria os olhos em nenhumdos dois.

Dois dias mais tarde, Karinee Pip enfrentaram a viagem colina

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abaixo e voltaram para casa.Viram que a fumaça ainda subiadas casas incendiadas na parte doporto destruída pelosbombardeios e pelo fogo.

A oficina de cartas náuticasera uma delas.

Ficaram ambos parados,horrorizados, sem conseguirdesgrudar os olhos da pilhafumegante.

– Eles estavam aí dentro? –perguntou Pip, engasgado.

– Não sei – respondeuKarine, lembrando-se dapromessa feita a Elle. – Pode ser.

– Meu Deus do céu. – Pipcaiu de joelhos e começou a

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chorar, mas na mesma horaKarine viu um pelotão desoldados alemães chegarmarchando pela rua.

– Levante-se! – sibilou ela.– Agora!

Pip obedeceu, e os doismenearam a cabeça comdeferência para os soldados quepassaram, torcendo para seremvistos apenas como um jovemcasal norueguês apaixonado.

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Na manhã do dia em que oConcerto do Herói devia terestreado, Pip acordou e constatouque Karine já tinha se levantado.Viu Felix ainda dormindo a sonosolto no berço ao pé da cama edesceu para procurá-la. Ao entrarna cozinha, encontrou um bilheteem cima da mesa.

Fui comprar pão e leite.Volto logo. Um beijo.

Foi até a porta da frente esaiu à rua aflito para procurá-la,perguntando-se que bicho apoderia ter mordido para sair decasa sozinha. Ao longe, pôdeouvir o estouro ocasional detiros: alguns pelotões do exército

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norueguês continuavam a resistiraté o amargo fim, emboraninguém tivesse qualquer ilusãoem relação a quem sairiavencedor.

Quando não encontrouvivalma na rua deserta a quempudesse perguntar pela mulher,Pip tornou a entrar na casa e foiacordar o filho. O menino, quetinha agora um ano e cinco meses,saiu da cama e desceu a escadade mãos dadas com o pai sobre asperninhas hesitantes. Ouviu-seuma nova e súbita rajada de tirosbem alta.

– Bang bang! – imitou Felix,sorrindo. – Cadê mamãe? Fome!

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– Ela vai voltar logo. Vamosver o que conseguimos encontrarna cozinha para você comer.

Ao abrir a despensa econstatar que não havia nada ládentro, reparando nas duasgarrafas de leite vazias junto àpia, Pip entendeu na hora por queKarine tinha saído. Recorreu a umpedaço de pão, sobra do jantar davéspera, para manter Felixtranquilo até ela voltar. Sentou ofilho no colo e leu uma históriapara ele, tentando se concentrarem algo que não o próprio medo.

Duas horas mais tarde, aindanão havia sinal algum de Karine.Desesperado, Pip foi bater à

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porta da vizinha. A mulher otranquilizou dizendo que já estavahavendo racionamento de comidae que na véspera ela mesma tinhaficado mais de uma hora na filapara comprar pão.

– Tenho certeza de que elavai voltar logo; talvez tenhaprecisado ir mais longe do que onormal para encontrarmantimentos.

Pip voltou para casa edecidiu que não dava mais paraaguentar. Vestiu Felix e saiu,segurando o menino pela mãocom firmeza. Colunas de fumaçaacre do bombardeio da Luftwaffeainda pairavam acima da baía e

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ainda se podia ouvir barulhos detiros ocasionais. Emborapassasse das onze, as ruasestavam quase desertas. Ele viuque a padaria da qual eles eramfregueses estava com asvenezianas fechadas, assim comoa quitanda e a peixaria maisadiante em Teatergarten. Ouviu ospassos pesados de uma patrulhae, ao dobrar a esquina deparoucom os soldados marchando nasua direção.

– Soldado! – Alheio aqualquer perigo que elespudessem representar, Felixapontou para os homens.

– É, soldado – falou Pip,

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tentando atinar aonde Karinepoderia ter ido. Então pensou napequena sequência de comérciosem Vaskerelven, logo depois doteatro. Ela muitas vezes lhe pediapara passar lá na ida ou na voltado trabalho, caso eles estivessemprecisando de alguma coisa.

Quando eles chegaram pertodo teatro, Pip ergueu os olhos eviu que a fachada estavacompletamente destruída. A visãoo fez engasgar de horror. Seuprimeiro pensamento foi que,embora as partituras originaispara piano estivessem emFroskehuset, o resto de seusarranjos estava trancado a sete

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chaves no escritório do teatro.– Meu Deus... quase com

certeza estão destruídas –murmurou, atarantado.

Para o filho não perceberquanto ele estava abalado eassustado, desviou os olhos dafachada e passou pelas ruínas doteatro decidido a não se permitirpensar no que havia lá dentro.

– Far? Por que estãodormindo?

Felix apontou para a praça aalguns metros dali, e foi então quePip viu os cadáveres, uns dez oudoze, que pareciam ter sidojogados no chão como bonecos depano descartados. Pôde ver que

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dois deles usavam o uniformemilitar norueguês, enquanto osoutros eram obviamente civis:homens, mulheres e até mesmo ummenininho. Devia ter havido umconfronto mais cedo, e algunsinocentes tinham sido pegos nofogo cruzado.

Tentou puxar o filho paralonge, mas Felix permaneceugrudado no mesmo lugar eapontou para um dos corpos.

– Vamos acordar Mor agora,Far?

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Ally

Bergen, NoruegaSetembro de 2007

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Lágrimas faziam meus olhosarderem quando Thom, que haviame contado a história andando deum lado para outro, finalmente sedeixou cair em uma cadeira.

– Meu Deus, Thom, não seinem o que dizer. Que coisa maishorrível – sussurrei depois dealgum tempo.

– É. Terrível mesmo. É tãodifícil acreditar que faz só duasgerações... E tudo aconteceu bem

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aqui, no que as pessoas por tantotempo consideraram um portoseguro no topo do mundo.

– Como Pip conseguiusuportar a morte de Karine? Eledeve ter se sentido totalmenteresponsável.

– Ally, eu... Ele nãoconseguiu suportar, enfim.

– Como assim?– Depois de encontrar

Karine morta na praça, ele trouxeFelix para ficar aqui com os avós.Disse a Horst e Astrid que iriadar uma volta, que precisava deum tempo para pensar. Quando anoite caiu e ele não voltou, Horstsaiu à sua procura. E encontrou o

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filho morto na mata logo acima dacasa. Ele tinha pegado aespingarda de caça do pai nobarracão e se matado.

De tão chocada ehorrorizada, fiquei sem conseguirfalar.

– Meu Deus do céu,coitadinho do Felix.

– Ah, o Felix ficou bem –disse Thom, abruptamente. – Eleera pequeno demais para entendero que tinha acontecido, e é claroque Horst e Astrid o criaram.

– Mesmo assim, perder pai emãe no mesmo dia... – Li aexpressão de Thom e decidi mecalar.

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– Sinto muito, Ally –reconheceu ele, pois tinhapercebido a dureza na própriavoz. – De fato, e acho que isso foiainda pior, ele só soube averdade sobre a morte do paiquando um sujeito muito espertoda Filarmônica resolveu lhecontar um belo dia, pensando queele já soubesse.

– Ui – falei, e estremeci.– Ele estava com 22 anos e

tinha acabado de entrar para aorquestra. Muitas vezes meperguntei se foi isso que o fez sairdos trilhos, perder o foco ecomeçar a beber... – Thom deixoua frase em suspenso.

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– Pode ser – respondi, comdelicadeza. Minha vontade eraresponder que sim, eu tinhacerteza de que uma revelaçãodaquelas bastaria paradesestabilizar qualquer um, masme contive.

De repente, Thom olhou parao relógio e deu um pulo.

– Temos que ir, Ally, senãovamos perder sua hora nomédico.

Saímos de casa, pulamos nocarro e Thom desceu a colinabem depressa em direção aocentro de Bergen. Chegando aoconsultório, encostou o carro emfrente à entrada.

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– Vá entrando, eu vouestacionar e já venho.

– Não tem necessidade,Thom. Sério.

– Vou entrar mesmo assim.Nem todo mundo aqui fala inglêsou francês, você sabe. Boa sorte.– Ele me sorriu e partiu nadireção do estacionamento.

Fui chamada na hora e,embora o inglês da médica nãofosse perfeito, bastou para elaentender o que eu estava tentandolhe dizer. Ela me fez váriasperguntas, em seguida me fez umexame pélvico minucioso.

Depois do exame, quandome sentei, disse que pediria um

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exame de sangue e de urina.– Qual o problema? –

perguntei, nervosa.– Quando foi sua última

menstruação, senhorita...D’Aplièse?

– Ahn... – A verdade era queeu não me lembrava. – Não tenhocerteza.

– Existe algumapossibilidade de a senhorita estargrávida?

– Eu... eu não sei – respondi,incapaz de processar aenormidade daquela pergunta.

– Bem, vamos fazer osexames de sangue só para excluirqualquer outra possibilidade.

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Mas o seu útero com certeza estáaumentado, e, portanto, os enjoosque a senhorita vem sentindoprovavelmente se devem àsprimeiras semanas de umagestação. Eu diria que estágrávida de uns dois meses e meio.

– Mas eu perdi peso – falei.– Não pode ser isso.

– Algumas mulheresemagrecem por causa dos enjoos.A boa notícia é que isso tende apassar depois do primeirotrimestre. A senhorita devemelhorar muito em breve.

– Certo. Bem... obrigada.Levantei-me, e me senti

subitamente sem ar e tonta quando

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ela me entregou o potinho paralevar ao banheiro e me indicouonde ficava a enfermeira quetiraria meu sangue. Saí doconsultório, encontrei o banheiromais próximo, fiz o que precisavafazer e fiquei ali, sentada, suandoe tremendo, tentandodesesperadamente me lembrar daúltima vez que tinha ficadomenstruada.

– Ai, meu Deus – falei paraas paredes, que fizeram o somreverberar. Tinha sido logo antesde subir a bordo com Theo e suatripulação para treinar para aRegata das Cíclades, em junho...

Saí do banheiro trôpega e fui

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tirar sangue. Pensei desanimadaem quantas vezes tinha ouvidomulheres dizerem que não haviampercebido estarem grávidas. Eusempre dava risada delas,pensando como alguma mulherpoderia deixar de ficarmenstruada sem pensar noassunto. E agora essa mulher eraeu. Com tudo o que tinhaacontecido nas últimas semanas,o fato simplesmente passaradespercebido.

Mas como? Fiquei pensandonisso enquanto ia ao encontro daenfermeira que ia coletar meusangue e arregaçava a manga paraque ela pudesse apertar o garrote

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acima do cotovelo. Eu semprehavia sido muito cuidadosa etomava a pílula religiosamente.Mas então pensei naquela noiteem Naxos na qual havia passadotão mal na frente de Theo e naqual ele cuidara de mim comtanto carinho. Seria possível queaquilo tivesse de alguma formaafetado o efeito doanticoncepcional? Ou será que eusimplesmente esquecera de tomaro remédio algum dia, no turbilhãodepois da morte de Pa...?

Voltei para a recepção,entreguei minha amostra de urinae fui informada de que o resultadosairia no dia seguinte à tarde e eu

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deveria telefonar para oconsultório para saber.

– Obrigada – falei para arecepcionista. Quando me virei,vi que Thom estava atrás de mim.

– Está tudo bem, Ally?– Está sim, eu acho.– Ótimo.Segui-o de volta até o carro

e fiquei sentada em silêncioenquanto ele me levava até meuhotel.

– Tem certeza de que estátudo bem? O que a médica falou?

– Ah, ela disse que euestava... cansada, estressada.Pediu uns exames – respondi,vaga. Não estava preparada para

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divulgar os detalhes dos quinzeminutos que podiam ter mudadominha vida até conseguirprocessar o fato.

– Bom, eu tenho umcompromisso com a orquestra naSala Grieg amanhã de manhã, masserá que posso passar no seuhotel para ver como você estádepois, por volta do meio-dia?

– Pode, sim. Seria ótimo.Obrigada por tudo, Thom.

– De nada. E desculpe se aminha história de hoje aperturbou. Me ligue se precisarde alguma coisa, está bem?

Desci do carro e reparei emsua expressão preocupada.

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– Claro. Tchau.Fiquei parada em frente à

porta do hotel olhando o carrodesaparecer de novo ao longo docais. Precisava ter certeza, e afarmácia que vira do carro nocaminho devia estar prestes aencerrar o expediente. Subicorrendo os poucos metros deladeira e cheguei ofegante bem nahora em que estavam fechando asportas. Comprei o que precisavae voltei para o hotel a um passobem mais lento.

No banheiro, segui asinstruções e aguardei os doisminutos.

Atrevi-me a dar uma espiada

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na haste plástica e vi que, empoucos segundos, a linha jáestava ficandoinconfundivelmente azul.

Nessa noite, passei por todauma gama de emoções. Umimenso alívio por não estarrealmente doente, apenas grávida,seguido pelo duplo temor de quenão apenas havia algo em meucorpo que eu absolutamente nãocontrolava, mas de que teria quelidar sozinha com o bebê quandoele nascesse. Então, depois dealgum tempo e de formatotalmente inesperada, umaalegria começou aos poucos aborbulhar dentro de mim.

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Eu estava grávida do filhode Theo. Parte dele continuavaviva... e naquele exato momentocrescia e ficava mais forte a cadadia dentro de mim. Havia nessepensamento algo de tão milagrosoque, apesar do medo, derrameilágrimas de alegria ao constatarcomo a vida de fato pareciasempre encontrar um jeito de serenovar.

Uma vez superado o choqueinicial, levantei-me e comecei aandar pelo quarto. Não me sentiamais letárgica nem enjoada ouassustada, mas sim repleta de umanova energia. Quer eu quisessequer não, aquilo estava

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acontecendo, e agora euprecisava pensar no que iriafazer. Que tipo de lar poderia dara um filho? E onde seria esse lar?Sabia que, por sorte, dinheiro nãoseria um problema. E com certezanão me faltaria ajuda se euquisesse: Ma em Genebra, Celiaem Londres. Sem falar nas cincotias corujas que minhas irmãsvirariam. Não seria uma criaçãoconvencional, mas jurei a mimmesma dar o melhor de mim paraser mãe e pai do filho de Theo.

Bem mais tarde, quandososseguei para tentar dormir,ocorreu-me de repente que nempor um segundo desde que eu

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tivera a confirmação havia mepassado pela cabeça apossibilidade de não ter aquelefilho.

– Oi, Ally – disse Thom nodia seguinte, beijando-me nasduas bochechas no lobby dohotel. – Está com uma caramelhor hoje. Fiquei preocupadoontem à noite.

– Estou me sentindomelhor... eu acho – arrematei,

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com um sorriso amargo. Decidique, no fundo, eu estava loucapara dividir a notícia comalguém. – Na verdade parece queeu estou grávida, é por isso quetenho passado tão mal.

– Ah... nossa, uau, quemaravilha... não é? – indagou ele,tentando avaliar meuspensamentos.

– É, eu acho que é sim,Thom. Mesmo que seja um grandechoque. E inesperado. E que obebê não tenha pai. Mas estoutão... feliz!

– Então eu também estoufeliz por você.

Sabia que ele ainda estava

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me olhando para se certificar deque eu não estava apenas tentandobancar a corajosa.

– Sério, está tudo bem. Naverdade, mais do que bem.

– Ótimo. Nesse caso, meusparabéns.

– Obrigada.– Já contou para mais

alguém?– Não. Você é o primeiro.– Que honra! – Comentou

ele. Saímos do hotel em direçãoao carro. – Mas agora não sei seo que eu tinha planejado parahoje à tarde é adequado, levandoem conta o seu... estado delicado.

– O que era?

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– Pensei que a gente poderiafazer uma visita ao Felix para vero que ele tem a dizer. Como aconversa provavelmente vai sermeio pesada, talvez seja melhordeixar para lá, por enquanto.

– Não, sério, eu estoutotalmente bem. Tenho certeza deque o medo por estar me sentindotão mal me fez passar mais malainda. Agora que sei o motivo,posso começar a planejar ascoisas. Então, sim, vamos visitaro Felix.

– Como eu disse ontem,existe grande probabilidade deque, mesmo sabendo da suaexistência, ele negue tudo. Eu

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estava bem debaixo do seu nariz,e mesmo assim ele se recusou aaceitar que eu fosse seu filho.

– Thom? – falei, depois deentrarmos no carro.

– Hum?– Você parece ter mais

certeza do que eu do meu vínculode parentesco com você e osHalvorsens.

– E talvez tenha, mesmo –reconheceu ele, dando a partidano carro. – Fato número um: vocême disse que o seu pai deixoupara cada uma das filhas umapista em relação ao própriopassado, o lugar onde a históriade cada uma começou. No seu

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caso, foi o livro do meu tataravô.Fato número dois: você é ou jáfoi musicista, e já está provadocientificamente que o talento podeser transmitido pelos genes. Fatonúmero três: você já se olhou noespelho?

– Por quê?– Ally, olhe só para nós

dois!– Tá. – Aproximamos nossas

cabeças e encaramos o retrovisor.– É – concluí. – A gente é

parecido. Mas, para ser bemsincera, essa foi uma dasprimeiras coisas que penseiquando cheguei aqui: que euparecia todo mundo.

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– Concordo que você tem ocolorido norueguês. Mas não estávendo? Até as nossas covinhassão parecidas. – Thom encostouos dedos na sua, e eu o imitei etoquei a minha.

Inclinei-me por cima daalavanca de marchas e lhe dei umabraço.

– Bom, mesmo que a gentedescubra que não é parente, achoque encontrei meu novo melhoramigo. Desculpe se isso pareceuma fala de filme da Disney, masneste exato momento estou mesentindo dentro de um filme,mesmo – falei, e ri com o absurdodaquilo tudo.

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– Então... – começou eleenquanto nos afastávamos domeio-fio. – Me diga outra vez:está mesmo disposta? Está prontapara visitar o ogro da colina quepode ou não ser seu paibiológico?

– Estou, sim. É assim quevocê o chama? Ogro?

– Ogro é um elogio emcomparação com os nomes pelosquais já o chamei antes, sem falarnos adjetivos usados pela minhamãe.

Começamos a margear oporto.

– Não acha que seria bomavisar que estamos indo? –

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perguntei.– Se ele souber que vamos,

quase com certeza vai ter“saído”, então não.

– Bom, pelo menos me faleum pouco mais sobre ele antes dechegarmos.

– Tirando o fato de ele serum desocupado inútil que jogou avida e o talento no lixo?

– Ah, Thom, não fale assim.Pelo que você me contou ontem,Felix teve uma infância tenebrosa.Perdeu o pai e a mãe de formahorrível.

– Está bem, desculpe. É quesão muitos anos de ressentimento,instigado pela minha mãe,

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reconheço. Para resumir, foiHorst quem ensinou meu pai atocar piano. E, pelo que reza alenda, ele tocava concertos aos 7anos e aos 12 já compunha osseus próprios. Com os arranjospara orquestra e tudo – Thom iafalando enquanto dirigia. – Com17 anos, conseguiu uma bolsapara estudar em Paris, e depoisde ganhar o concurso Chopin emVarsóvia foi logo aceito naorquestra daqui. Ele foi o pianistamais jovem que a Filarmônica deBergen já contratou. Minha mãeme disse que a partir daí foiladeira abaixo. Ele não tinha amenor ética profissional, chegava

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atrasado aos ensaios, muitasvezes de ressaca, e à noite jáestava bêbado. Todo mundo oaturava por ele ser muitotalentoso, mas um dia não deumais.

– Mais ou menos como o seubisavô Jens – refleti.

– Exato. Enfim, depois dealgum tempo, ele foi expulso daorquestra por chegar atrasado ounem dar as caras um sem-númerode vezes. Horst e Astrid tambémlavaram as mãos e não tiveramoutra escolha que não expulsá-lode Froskehuset. Acho que doeumuito neles serem duros comalguém que amavam para o seu

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próprio bem. Mesmo assim, Horstdeixou o neto usar o chalé que elee Astrid tinham construído anosantes, quando queriam ir caçar nafloresta. A construção era bembásica, para não dizer outracoisa. Felix vivia basicamente àscustas das mulheres que seduzia,então, segundo minha mãe, viviapassando de uma para a outra.Até hoje, com luz elétrica e águaencanada, o chalé mal passa deuma cabana melhorada.

– A cada frase que você diz,Felix se parece mais com PeerGynt. Como ele conseguiu levar avida sem trabalhar?

– Ele teve que ganhar algum

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dinheiro para financiar seuconsumo de álcool dando aulasparticulares de piano. Foi assimque conheceu minha mãe.Infelizmente, pouca coisa mudounos trinta anos desde então. Eleaté hoje é bêbado, duro, ummulherengo envelhecido etotalmente indigno de confiança.

– Que desperdício de talento– lamentei, com um suspiro.

– Pois é, uma tragédia. Entãoé isso. Um resumo da história domeu pai.

– Mas e agora, o que ele fazlá em cima o dia inteiro? –perguntei. Estávamos subindocada vez mais pelas colinas.

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– Para falar a verdade, nãosei dizer. Só sei que ele aindaaceita um ou outro aluno, e depoisvai direto gastar o dinheiro queganha com uísque. Felix estáficando velho, mas isso não querdizer que tenha perdido o charme.Ally, sei que o que vou dizer vaiparecer inadequado,considerando o motivo pelo qualvocê está indo lá, mas estou commedo de ele dar em cima de você.

– Eu me viro, Thom, podedeixar – garanti, com um sorriso.

– Disso eu tenho certeza. Éque eu me sinto... como se tivesseque proteger você. E estoucomeçando a me perguntar por

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que estou fazendo-a passar porisso. Talvez fosse melhor ir falarcom ele sozinho antes e explicar ahistória primeiro.

Pude sentir a tensão na vozdele e tentei aliviá-la.

– Por enquanto seu pai nãorepresenta absolutamente nadapara mim. É um desconhecido. Agente... você está fazendo umabaita suposição sobre o que podeou não ser verdade. E, seja láqual for a verdade, não vai serdoloroso para mim, prometo.

– Tomara que não, Ally.Tomara mesmo. – Ele diminuiu avelocidade do carro e estacionouao lado de uma ladeira coberta

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por pinheiros. – Chegamos.Ao seguir Thom pelos

degraus cobertos de mato quepareciam conduzir a algum tipode habitação, entendi que aquelaera uma situação bem maisdolorosa para ele do que paramim. Independentemente do quehouvesse no alto daquelesdegraus, eu continuaria a ter umpai que havia me amado e meprotegido durante toda a minhainfância. E com certeza nãoestava procurando nem precisavade outro.

Depois do ponto mais altoda colina, os degraus começarama descer, e vi um pequeno chalé

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de madeira aninhado em umaclareira entre as árvores que mefez pensar na casa da bruxa nahistória de João e Maria.

Em pé diante da porta, Thomapertou minha mão.

– Preparada?– Preparada – respondi.Vi que ele hesitou antes de

bater. Ficamos esperando umaresposta.

– Eu sei que ele está emcasa. Vi a motinho dele no pé dacolina – murmurou Thom, etornou a bater. – É triste, mas eleagora não tem nem mais dinheiropara um carro, e além do mais jáfoi parado tantas vezes pela

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polícia que parece pensar que amobilete é um meio de transportemais invisível. Meu Deus, comoele é burro!

Dali a algum tempo,ouvimos o barulho de passos ládentro e uma voz disse algo emnorueguês ao mesmo tempo que aporta se abriu. Thom traduziupara mim.

– Ele está esperando umaluno. Acha que somos ele.

Uma figura surgiu, e encareios olhos azuis brilhantes do paide Thom. Se eu esperava umvelho detonado, com o narizinchado por causa da bebida e ocorpo castigado por anos de

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abuso de álcool, estava enganada.O homem em pé na soleira daporta estava descalço e vestiauma calça jeans com um granderasgo no joelho e uma camisetaque parecia estar usando paradormir havia dias. Eu já tinhacalculado que ele devia estarbeirando os 70 anos, mas os fiosbrancos em seus cabelos eramraros e o rosto exibia poucasrugas. Se eu o tivesse visto narua, teria pensado que era nomínimo dez anos mais jovem.

– Oi, Felix. Como vai? –cumprimentou-o Thom.

Ele piscou para nós dois;sua surpresa era evidente.

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– Vou bem. O que estáfazendo aqui?

– Viemos fazer uma visita.Faz tempo que não nos vemos,essas coisas. Esta é Ally.

– Namorada nova, é? – Osolhos dele recaíram sobre mim esenti que me avaliavafisicamente. – Bonita.

– Não, Felix, ela não éminha namorada. Podemosentrar?

– Eu... a faxineira não temvindo, então está tudo umabagunça, mas sim, por favor,entrem.

Naturalmente, não entendinada dessa conversa toda, já que

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eles falaram em norueguês.– Ele fala inglês? –

sussurrei, seguindo Thom paradentro da casa. – Ou francês?

– Deve falar. Vou perguntar.– Thom explicou minhadeficiência linguística, e Felixmeneou a cabeça e começou namesma hora a falar francês.

– Enchanté, mademoiselle.Você mora na França? –perguntou ele. Conduziu-nos atéuma sala de estar espaçosa, mascaótica e suja, repleta de pilhasbambas de livros e jornaisvelhos, xícaras de café usadas epeças de roupa aleatórias jogadassem cuidado sobre móveis

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variados.– Não. Em Genebra –

respondi.– Ah, a Suíça... Estive lá

uma vez para um concurso depiano. Um país muito...organizado. Você é suíça? –perguntou ele, gesticulando paranos sentarmos.

– Sou – respondi. Afasteidiscretamente para o lado umsuéter velho e um chapéuamassado, de modo a abrirespaço no sofá de couro surradopara Thom e mim.

– Ah, que pena. Eu estavacom esperança de podermosconversar sobre Paris, onde

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desperdicei minha juventude –disse ele com uma risadinharouca.

– Sinto muito decepcioná-lo.Embora eu conheça Paris bastantebem.

– Não tão bem quanto eu,mademoiselle, eu garanto. Masessa é outra história. – Felix deuuma piscadela, e eu não soube sedava de ombros ou se ria.

– Com certeza – respondi,dócil.

– Podemos falar inglês, porfavor? – pediu Thom, abrupto. –Assim todo mundo entende.

– Mas então, o que a trazaqui? – perguntou Felix, trocando

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de idioma conforme solicitado.– Para resumir, Ally está à

procura de respostas – disseThom.

– Sobre o quê?– Sobre sua verdadeira

origem.– Como assim?– Ela foi adotada quando era

bebê e o pai adotivo dela morreufaz algumas semanas, deixandoalgumas informações para ajudá-la a encontrar a família biológicase ela quisesse – declarou Thom.– Uma das pistas que ela recebeufoi a biografia de Jens e AnnaHalvorsen escrita pelo seubisavô. Então eu pensei que

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talvez você pudesse ajudá-la.Vi os olhos de Felix

relancearem outra vez na minhadireção. Ele pigarreou, entãoestendeu a mão para um saquinhode fumo e uma seda e enrolou umcigarro.

– E como exatamente vocêacha que eu posso ajudar?

– Bom, Ally e eudescobrimos que temos a mesmaidade. E... – Vi Thom num embateinterior consigo mesmo antes deprosseguir. – Eu estava pensandose houve alguma mulher que vocêconheceu... alguma namorada, seilá... que... bom, que teve umafilha mulher por volta da mesma

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época em que a mamãe me teve.Ao ouvir isso, Felix soltou

uma gargalhada que pareceu umlatido e acendeu o cigarro.

– Felix, por favor, isso não éassunto para rir.

Estendi a mão e apertei a deThom para tentar mantê-lo calmo.

– Desculpe, eu sei que não.– Felix se controlou. – Ally éapelido de Alisson?

– Na verdade, de Alcíone.– Uma das Sete Irmãs das

Plêiades – observou ele.– Isso. Fui batizada em

homenagem a ela.– Foi mesmo? – De repente,

ele recomeçou a falar francês, e

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eu não soube dizer se era depropósito para irritar Thom ounão. – Bom, Alcíone, infelizmentenão sei de mais nenhum filho queeu tenha gerado. Mas se vocêquiser que eu ligue para todas asminhas ex-namoradas e perguntese elas, sem o meu conhecimento,tiveram uma filha trinta anosatrás, ligarei com prazer.

– O que ele falou? – quissaber Thom com um sussurro.

– Nada importante –respondi a Felix em um francêsrápido. – Não culpe Thom porfazer perguntas difíceis. Eusempre achei que essa busca nãofosse dar em nada. Seu filho é

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uma ótima pessoa e estava sótentando me ajudar. Sei que arelação de vocês dois é difícil,mas o senhor deveria se orgulhardele. Não vamos tomar mais oseu tempo. – Levantei-me. Estavafarta de ser tratada com aquelacondescendência. – Vamos, Thom– falei, tornando a passar para oinglês.

Thom também se levantou, epude ver dor nos seus olhos.

– Caramba, Felix, você édifícil mesmo – comentou ele.

– O que foi que eu fiz? –protestou o pai, dando de ombros.

– Eu sabia que era umaperda de tempo – murmurou

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Thom com raiva enquantoseguíamos depressa até a porta.Saímos e tornamos a subir osdegraus.

Senti a mão de alguém nomeu ombro. Era Felix.

– Perdão, Ally. Foi ochoque. Onde está hospedada?

– No Havnekontoret –respondi, tensa.

– Está bem. Tchau, então.Ignorei-o e me apressei para

alcançar Thom.– Desculpe, Ally. Foi uma

ideia idiota – disse ele aodestrancar a porta do carro paraentrar.

– Não foi, não – falei, para

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reconfortá-lo. – Obrigada portentar. Agora, por que nãovoltamos para a sua casa e eupreparo uma xícara de café paravocê se acalmar?

– Tá. – Ele engatou a ré epartiu a toda, fazendo o pequenomotor do Renault rugir feito umleão furioso com a forçadesnecessária de seu pé no pedal.

De volta a Froskehuset,Thom desapareceu por algum

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tempo; era óbvio que desejavaficar sozinho. Entendi quãoprofunda era a dor do passado. Arejeição de Felix tinha deixadouma cicatriz feia e aberta, que,depois de ter conhecido opersonagem, eu duvidava que umdia fosse fechar. Sentei-me nosofá e me distraí folheando asvelhas partituras do concerto parapiano escrito por Jens Halvorsen,que formavam uma pilha mal-arrumada sobre a mesa à minhafrente. Ao passar os olhos pelaprimeira página, reparei emnúmeros escritos em caligrafiamiúda no canto inferior direito.Meu cérebro fez o possível para

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voltar às aulas que tivera quandoestava na escola, e peguei umacaneta para traduzir os númerosna última página do meu diário.

– Ah, mas é claro! – falei emvoz alta, com uma exclamação detriunfo. Talvez isso deixe Thomum pouco mais alegre, pensei. –Tudo bem? – perguntei quandoele reapareceu.

– Tudo. – Ele se sentou aomeu lado.

– Lamento que você tenhaficado chateado, Thom.

– E eu lamento terapresentado você a ele. Por queachei que fosse ser diferente?Nada nem ninguém muda, Ally, a

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verdade é essa.– Pode ser, mas, Thom,

escute uma coisa – interrompi. –Desculpe mudar de assunto, maseu acho que acabei de descobriruma coisa muito interessante.

– O quê?– Bem, você simplesmente

partiu do pressuposto de que esteconcerto era obra do seu tataravôJens...

– Sim. Por que não partiria?– E se não fosse?– O nome dele está na folha

de rosto da partitura original. –Thom olhou para mim, sementender, e apontou para apartitura. – Essa bem aí na sua

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frente. Está escrito que foi elequem compôs.

– E se o concerto de pianoque você achou não tivesse sidoescrito pelo seu tataravô Jens,mas por Jens Halvorsen Neto, seuavô, mais conhecido como Pip? Ese este fosse o Concerto doHerói dedicado a Karine quenunca chegou a ser tocado? E,pelos motivos que você meexplicou ontem, Horst o teriaguardado no sótão, porque nãopodia suportar ouvi-lo de novodepois do que havia acontecidocom o filho e a nora?

Deixei essa ideia pairar noar e esperei Thom pegá-la.

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– Pode continuar. Estouescutando.

– Eu sei que você disse queo concerto tinha uma sonoridadenorueguesa e, sim, com certeza háalgumas influências. Não souhistoriadora da música, então nãoleve a ferro e fogo o que voudizer, mas a música que vocêtocou para mim ontem não seencaixa com o que estava sendoproduzido no início do séculoXX. Pude distinguir toques deRachmaninoff e, mais importanteainda, de Stravinsky também. EStravinsky só começou a comporsuas obras mais marcantes nasdécadas de 1920 e 1930, bem

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depois da morte do primeiro JensHalvorsen.

Uma nova pausa se fez e viThom refletir sobre o que euacabara de dizer.

– Tem razão. Acho que eusimplesmente parti do princípiode que esse era o trabalho doprimeiro Jens. Partituras velhas,para mim, são velhas e pronto,quer tenham oitenta, noventa oucem anos. Encontrei tantas lá nosótão que com certeza tinham sidocompostas por Jens Halvorsenque imaginei que o concerto fossedele também e pronto. E o títulonão é Concerto do Herói, é? Massabe de uma coisa? Quanto mais

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penso a respeito, mais tenho asensação de que talvez vocêesteja certa – reconheceu ele.

– Você me disse que todas aspartituras do arranjo paraorquestra original quasecertamente se perderam quando oteatro foi bombardeado. Estadeve ser a composição originalpara piano de Pip, escrita antesmesmo de ele escolher o nome doconcerto – falei, apontando paraas páginas.

– Os outros trabalhos domeu tataravô eram bem maisromânticos e pouco originais.Mas este aqui tem fogo, tempaixão... É diferente de todas as

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outras coisas compostas por eleque escutei. Meu Deus, Ally. –Thom deu um sorriso débil. – Agente começou com o seumistério, e agora parece queestamos resolvendo o meu.

– Na realidade, temos umaprova irrefutável – afirmei, e atéeu pude ouvir uma certasatisfação na minha voz.

– Ah, é?– É. Olhe aqui. – Apontei

para as letrinhas escritas a tintana parte inferior direita dapágina. – MCMXXXIX – li emvoz alta.

– E daí?– Você estudou latim na

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escola? – perguntei.– Não.– Bom, eu sim, e essas letras

representam números.– Sim, isso até eu sei. Mas

essas daí formam o quê?– O ano de 1939.Thom ficou em silêncio,

digerindo o significado daquilo.– Então esta é mesmo uma

composição do meu avô.– Pela data, deve ser, sim.– Eu... eu não sei o que

dizer.– Nem eu. Principalmente

depois do que você me contouontem.

Ficamos os dois sentados em

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silêncio por algum tempo.– Meu Deus, Ally, é mesmo

um achado incrível – disse Thom,recuperando finalmente a fala. –Enfim, não só por causa dosignificado emocional, mastambém pelo fato de a estreiaoriginal na Filarmônica deBergen ter sido marcada paraquase setenta anos atrás. E porcausa de tudo que contei, a peçanunca mais tornou a ver a luz dodia.

– E Pip a dedicou a Karine...sua “heroína”. – Mordi os lábiosquando as lágrimas me subiramaos olhos. A relação com minhaprópria vida era evidente.

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Pensei em como os doistambém eram jovens e estavamapenas começando a vida quandoo destino interferiu de formacruel. E em como eu tinha sortepor viver em uma época melhor,por ainda estar viva e, com sorte,ter o privilégio de criar o filhoque carregava dentro de mim.

– É. – Thom, que tinha lidominha expressão, me deu umabraço espontâneo. – O que querque a gente descubra ser um dooutro, Ally, eu prometo quesempre vou estar ao seu lado.Prometo.

– Obrigada, Thom.– Agora vou levá-la para

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casa e dar um pulo na Sala Griegpara falar com David Stewart, ochefe da orquestra. Tenho quecontar a ele a história doConcerto do Herói. E ele precisame ajudar a encontrar alguémcapaz de orquestrá-la a tempopara o Concerto do Centenário deGrieg. A peça tem que ser tocadanessa noite. E ponto final.

– É – concordei. – Temmesmo.

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Um bilhete me aguardava narecepção quando entrei no hoteldepois de pegar uma carona comThom. Abri-o dentro do elevadore, para minha surpresa, vi que erade Felix.

“Ligue para mim”, dizia orecado. Seguia-se um número decelular.

É claro que eu não iria ligar,não depois da péssima maneiracomo ele se comportara maiscedo. Tomei uma ducha e fui medeitar, refletindo sobre osacontecimentos do dia e pensandomais uma vez em como sentiapena de Thom.

Thom, que desde o início da

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vida soubera ter um pai ciente dasua existência, mas que o haviarejeitado. Lembrei-me das minhasnoites de adolescente, quandoreclamava da autoridade de Maou Pa Salt e desejava conhecermeus pais verdadeiros que, eutinha certeza, iriam me entendermuito melhor.

Ao pegar no sono, mais umavez me dei conta de que haviatido uma infância abençoada.

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Na manhã seguinte, antes dequalquer coisa, liguei para amédica para pegar o resultado doexame de urina. Como eu jásabia, deu positivo, e ela meparabenizou, simpática.

– Quando voltar paraGenebra, senhorita D’Aplièse,vai precisar começar o pré-natal– instruiu ela.

– Sim, farei isso. E muitoobrigada.

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Continuei deitada na camatomando um chá fraco, pois nãoconseguia suportar o cheiro decafé. Embora ainda estivessemuito enjoada, agora que sabiaque era natural, isso não mepreocupava mais. Pensei queprecisava me lembrar de comprarum livro sobre gravidez. Eu nãotinha a menor ideia sobre nadarelacionado a ter um bebê, masserá que alguma mulher tinha,antes de passar pela experiência?

Meus sentimentos emrelação à maternidade semprehaviam sido um tantoambivalentes; eu não era nemfortemente contra, nem fortemente

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a favor. Era uma daquelas coisasque poderiam ou não vir aacontecer no futuro. Theo e eutínhamos conversado a respeito,claro, e dado risada ao inventarnomes ridículos para nossosherdeiros imaginários. Tínhamoscomentado como o estábulo em“Algum Lugar” teria que sergrande o suficiente para abrigartoda essa nossa prole bronzeada,que teria uma infância digna deum romance. Infelizmente, issonão iria acontecer. E em algummomento do futuro próximo euprecisaria decidir se eu queria tero bebê. E onde ficava esse tal de“lar”.

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O telefone tocou nacabeceira e atendi. A recepçãome avisou que era o Sr.Halvorsen querendo falar comigo.Imaginei que fosse Thom, entãodisse à mulher para completar aligação.

– Bonjour, Ally. Ça va?Para meu horror, era Felix.– Sim, tudo bem – respondi,

seca. – E com o senhor?– Quanto meus velhos ossos

permitirem. Está ocupada?– Por quê?Houve um silêncio na linha

antes de ele responder.– Eu queria conversar com

você.

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– Sobre?– Não quero falar pelo

telefone, então me avise quandoestiver disponível para meencontrar.

Pelo tom de voz, pude verque o assunto era sério, fosse elequal fosse.

– Daqui a uma hora mais oumenos? Aqui no hotel?

– Ótimo.– Combinado. Nos vemos,

então.Estava sentada na recepção

à sua espera quando ele chegou,segurando em uma das mãos umcapacete gasto. Quando melevantei para cumprimentá-lo,

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perguntei-me se a luz estava ruimou se ele tinha mesmoenvelhecido da noite para o dia.Agora parecia o homem idosoque de fato era.

– Bonjour, mademoiselle –disse ele, forçando um sorriso. –Obrigado por ter tirado essetempo para me encontrar. Sugerealgum lugar onde possamosconversar?

– Acho que o hotel tem umlounge para os hóspedes. Serve?

– Sim.Conduzi-o pelo lobby até o

lounge deserto. Ele se sentou,passou um tempo me olhando,então abriu um sorriso fraco.

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– Está cedo demais para umdrinque?

– Não sei, Felix. É vocêquem sabe.

– Um café, então.Fui encontrar uma garçonete

para trazer café e uma água paramim, e pensei no quanto Felizparecia desanimado nessa manhã,como se a energia que o moviahouvesse se desintegrado e eleestivesse agora vazio. Ficamosjogando conversa fora até agarçonete trazer nossas bebidas ese retirar; eu sabia que, fosse qualfosse o teor da conversa, erapreciso que ocorresse emparticular e sem interrupções.

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Olhei para Felix com um ar deexpectativa enquanto ele bebiaum gole de café e reparei quesuas mãos tremiam ao segurar axícara.

– Ally, em primeiro lugar,quero falar com você sobreThom. É óbvio que vocês doissão próximos.

– Somos, mas devo ressaltarque só nos conhecemos há poucosdias. É extraordinário, mesmo. Jáexiste uma verdadeira ligaçãoentre nós dois.

Os olhos de Felix seestreitaram por um instante.

– Deve haver. Pelo jeitocomo vocês se comportaram

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juntos ontem, pensei que já seconhecessem há anos. Enfim,voltando ao assunto, imagino queele tenha lhe contado a história decomo eu me recusei a aceitar queera seu pai?

– Contou, sim.– Você acreditaria se eu

dissesse que, até o exame deDNA, eu achava sinceramenteque ele não fosse meu filho?

– Se é o que o senhor diz, eutenho que acreditar.

– É verdade, Ally. – Felixassentiu, veemente. – Martha, mãede Thom, era minha aluna. Sim,nós tivemos um caso breve, mastalvez Thom nunca tenha lhe dito

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que, ao mesmo tempo, Marthatinha um namorado firme. Naverdade, ela era noiva desserapaz quando nos conhecemos e ocasamento já estava marcado.

– Entendo.– Sem querer parecer

arrogante, bastou Martha me veruma vez e pronto: apaixonou-seloucamente, a ponto de isso viraruma obsessão – prosseguiu Felix.– É claro que, para mim, a coisatoda não significou nada. Parafalar sem rodeios, era só sexo epronto. Eu nunca quis nada alémdisso, nem de mulher nenhuma,aliás. Na verdade, Ally, nunca fuium homem para casar e com

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certeza não tinha vocação paraser pai. Hoje em dia vocês talvezusem a expressão “medo derelacionamento”, mas eu sempredeixei claro para minhasnamoradas que era assim. Crescina época do amor livre, nosloucos anos 1960, quando todomundo de repente se libertou dasantigas regras. E, para o bem oupara o mal, essa atitude nunca meabandonou. É assim que eu sou. –Ele deu de ombros.

– Certo – falei. – Então,quando a mãe de Thom lhe contouque estava grávida, o que osenhor disse?

– Que se ela quisesse ter o

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bebê, que na época pensei quedevia ser filho do noivo dela, jáque só tínhamos transado umasduas vezes, ela deveria contarpara ele e se casar o quanto antes.Ela me disse que tinha rompido onoivado na noite anterior porquese dera conta de que não o amava.Pelo visto, amava a mim. – Felixlevou uma das mãos à testa e apassou nos olhos. – Sintovergonha em dizer que ri na caradela, falei que ela era louca.Tirando o fato de não haver provade que o filho fosse meu, a ideiade morarmos juntos e bancarmosa família feliz era um absurdo. Eumal tinha dinheiro para comer,

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morava em um chalé gelado...Mesmo que eu quisesse, o quepoderia ter oferecido a umamulher e um filho? Então eu amandei embora pensando que, sesoubesse que não teria futurocomigo, não lhe restariaalternativa a não ser voltarcorrendo para o noivo. Mas éclaro que ela não voltou. Em vezdisso, pouco depois do parto, foicorrendo para Horst e Astrid,meus avós, que a essa alturaestavam com 93 e 78 anos, econtou a eles que filho da mãe eutinha sido com ela. Se o meurelacionamento com os dois jáera conturbado, isso foi a gota

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d’água. Meu avô e eu maltornamos a nos falar até elemorrer, embora eu o idolatrassequando era pequeno. Horst foi umhomem maravilhoso, Ally,maravilhoso mesmo. Quando euera mais novo, considerava-omeu herói. – Felix ergueu paramim uns olhos tristonhos. – Vocême acha um filho da mãe? ComoThom?

– Não estou aqui para julgaro senhor. Estou aqui para ouvir oque tem a dizer – respondi,cautelosa.

– Certo. Depois de eu dizerque não queria ter nada a ver comaquela criança, Martha

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desapareceu, mas me escreveupara avisar que teria o bebê eficaria na casa de uma amiga noNorte, perto da família, atédecidir o que fazer. Nasincontáveis cartas que meescreveu, continuava dizendo queme amava. Eu nunca respondia,torcendo para que o silêncio aincentivasse a virar a página. Elaera jovem e muito atraente, e eutinha certeza de que não teriadificuldade para encontrar outrapessoa que lhe desse o que elaprecisava. Aí eu... recebi umacarta acompanhada por uma foto,logo depois do parto. Eu...

Felix fez uma pausa. Vi-o

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olhar para mim de modo estranhoe então continuar.

– Passei os meses seguintessem notícias dela, até que um diaa vi empurrando um carrinho nocentro aqui de Bergen. Comocovarde que sou, eu me escondi.– Ele fez uma careta. – Masdepois perguntei a um amigo seele sabia onde Martha estavamorando. E foi ele quem mecontou que meus avós a tinhamacolhido, porque ela não tinhapara onde ir. Pelo visto, a amigacom quem estava morando a tinhaposto para fora. Thom talveztenha lhe dito que ela sofriacrises de depressão, e não gosto

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nem de imaginar como deve tersido o pós-parto.

– O que o senhor achou deela ter ido morar com seus avós?– perguntei.

– Fiquei uma fera! Senti queeles tinham sido manipuladospara acolher uma moça que diziater tido um filho meu, mas o queeu podia fazer? Ela conseguiraconvencê-los totalmente. Meusavós já tinham desistido de mimanos antes, julgando-me umimprestável imoral, de modo queaos seus olhos meucomportamento era apenasnatural. Meu Deus, Ally, comofiquei bravo. Passei anos assim.

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Sim, eu tinha cometido um erro aoengravidar uma mulher, mas elesnunca quiseram ouvir a minhaversão da história, nem sequeruma vez. Martha os fez acreditarque eu era um merda e pronto.Olhe, vou pedir uma bebida. Vocêquer alguma coisa?

– Não, obrigada.Vi-o se levantar e sair do

lounge em busca do bar perto darecepção. Tentei recordar aspalavras de Pa Salt sobre o outrolado de uma história. Tudo queFelix tinha dito até ali faziasentido. E, mesmo ele sendo umalcoólatra irresponsável, eu nãoachava que fosse mentiroso. Ele

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era muito franco, por sinal. Se ahistória era verdade, conseguiaentender completamente o pontode vista dele.

Felix voltou com uma grandedose de uísque na mão.

– Skål! – exclamou, dandouma golada.

– O senhor já tentou contaralgumas dessas coisas para oThom?

– É claro que não. – Ele riualto. – Desde o dia em quenasceu, ele escutou que eu nãovalia nada. Além do mais, passoua defender a mãe comintensidade, o que écompreensível. Mas, com o

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passar dos anos, senti, sim, penadele, fosse ele meu filho ou não.Sabia pelas fofocas da cidade queMartha tinha crises recorrentes dedepressão. Pelo menos o fato deThom morar com meus avósdurante seus primeiros anos deformação deve ter lhe dadoalguma estabilidade emocional.Martha era mesmo meio maluca;parecia uma criança, e viviaachando que tudo seriaexatamente do jeito que elaqueria.

– Então o senhor deixou asituação como estava atédescobrir que Thom tinhaherdado a casa da sua família?

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– Sim. Horst morreu quandoThom tinha 8 anos, mas a minhaavó, que era bem mais nova,morreu quando ele tinha 18.Quando o advogado me disse queeu tinha herdado o violoncelo deHorst e uma pequena quantia emdinheiro e que todo o resto tinhaficado para Thom, senti queprecisava mesmo fazer algumacoisa.

– E como se sentiu quandodescobriu que era mesmo o paidele?

– Absolutamente estupefato– reconheceu Felix, tomandooutro gole de uísque. – Mas avida é assim mesmo, não é? – Ele

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riu. – Vive nos pregandopequenas peças. Sei que o fato deeu ter contestado o testamento fezThom me odiar ainda mais. Mas,diante do que acabei de contar,tenho certeza de que você entendeque eu estava convencido de queele era um filhote de cucoaboletado no meu ninhohereditário.

– O senhor ficou felizquando soube que Thom era seufilho? – perguntei, sentindo-meum pouco uma terapeutaanalisando um paciente. Theoteria amado aquilo tudo, pensei.

– Para ser sincero, nãoconsigo me lembrar do que senti

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– admitiu Felix. – Nas primeirassemanas depois que o teste deupositivo, bebi sem parar. Martha,claro, me escreveu uma cartatriunfante, cheia de animosidade,que eu joguei no fogo. – Elesuspirou fundo. – Que confusão.Que grande confusão!

Ficamos os dois sentados emsilêncio por um tempo, e tenteidigerir o que ele tinha mecontado. Senti uma grande tristezapor aquelas vidas que tinhamdado tão errado.

– Thom me disse que osenhor era muito talentoso comopianista e compositor – arrisquei.

– Era? Pois saiba que eu

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ainda sou! – Pela primeira vez,Felix deu um sorriso genuíno.

– Então é uma pena que nãouse o seu talento.

– E como sabe que não uso,mademoiselle? Aqueleinstrumento lá no meu chalé é meuamante, meu algoz e minhasanidade. Eu posso beber demaise não ser confiável o bastantepara ninguém me contratarprofissionalmente, mas isso nãosignifica que tenha parado detocar. O que você acha que eufico fazendo o dia inteiro naquelechalé no meio do nada? Tocando,tocando para mim mesmo. Quemsabe um dia eu a deixo escutar –

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completou ele com um sorriso.– Thom também?– Duvido que ele vá querer,

e acho que não posso culpá-lo.Ele foi a maior vítima nessasituação. Preso entre uma mãeamargurada e depressiva e um paique nunca assumiuresponsabilidade. Ele tem todo odireito de me desprezar.

– Com certeza o senhordeveria contar a ele o que acaboude me contar.

– Ally, eu juro: bastaria eudizer uma palavra negativa sobrea sua preciosa mãezinha para elesair porta afora. Além do mais,seria cruel destruir a crença que

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ele carregou por toda a vida deque ela foi uma vítima inocente etirá-la do pedestal, especialmenteagora que já morreu. Queimportância tem isso? – Elesuspirou. – O que está feito estáfeito.

Gostei mais de Felix nessahora, pois o que ele acabara dedizer mostrava que se importavacom os dois. Mesmo que pelovisto não tivesse feito muita coisapara ganhar a estima do filho.

– Mas então, possoperguntar por que o senhor mecontou isso tudo? Quer que euconte para Thom?

Felix passou alguns

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segundos a me encarar, entãopegou o copo de uísque e oesvaziou.

– Não.– Então é para me dizer que

ele estava certo? Que eu sou outrafilha ilegítima sua? De outramulher? – brinquei, ainda que aexpressão nos olhos dele meinformasse que ele tinha mais adizer.

– Não é tão simples assim,Ally. Merda! Com licença. –Mais uma vez, ele se levantou equase correu até o bar, de ondevoltou dali a poucos minutos comoutra dose imensa de uísque. –Desculpe, não é preciso dizer que

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sou alcoólatra. E, só para constar,eu toco muito melhor quandoestou bêbado.

– Felix, o que você quer medizer? – insisti, sabendo que eleperderia a linha de raciocínio àmedida que o uísque penetrassesua corrente sanguínea.

– O fato é que... eu entendiontem quando vi você e Thomsentados lado a lado no meu sofá,feito duas cópias idênticas. Aíjuntei dois mais dois. Passei anoite inteira acordado pensandose era certo ou errado contar paravocê. Ao contrário do que todospensam a meu respeito, tenhocertos códigos morais e

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emocionais. E a última coisa queeu quero é causar mais danosalém dos que já causei.

– Felix, por favor, me contee pronto – tornei a pedir.

– Está bem, mas, como eu jádisse, também estou deduzindo.Certo...

Vi-o tatear o bolso em buscade alguma coisa e pegar um velhoenvelope, que pousou sobre amesa bem na minha frente.

– Quando Martha meescreveu dizendo que tinha dadoà luz, Ally, ela mandou junto umafoto.

– É, o senhor falou. Umafoto de Thom.

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– Sim. De Thom. Mas elaestava com outro bebê no colotambém. Uma menina. Marthateve gêmeos. Quer ver a carta e afoto?

– Ai, meu Deus – balbuciei.Sentindo a sala de repentecomeçar a girar, agarrei o braçodo sofá. Pus a cabeça entre aspernas e senti quando Felix sesentou ao meu lado e deu algunstapinhas nas minhas costas.

– Tome, Ally, beba umpouco de uísque. Sempre ajudacom o choque.

– Não. – Afastei o copo coma mão; o cheiro me deixouenjoada. – Não posso, estou

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grávida.– Caramba! – Ouvi-o dar um

suspiro. — O que foi que eu fiz?– Passe-me a água. Já estou

me sentindo um pouco melhor.Ele o fez e tomei alguns

goles. Senti a tontura passar.– Desculpe-me por isso, mas

estou bem agora.Espiei o envelope em cima

da mesa e o peguei. Com as mãostão trêmulas quanto as de Felix,abri-o e tirei lá de dentro umafolha de bloco de anotações euma velha fotografia em preto ebranco da bonita mulher que eusabia ser a mãe de Thom, pois avira nas fotos em Froskehuset.

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Ela segurava no colo dois bebêsenrolados em mantas.

– Posso ler a carta?– Está em norueguês. Eu

teria que ler para você.– Sim. Por favor, leia.– Certo. Primeiro está

escrito o endereço, que éHospital São Olavo, emTrondheim. A data é 2 de junhode 1977. Então, aí vai. – Felixpigarreou. – “Meu querido Felix,pensei que devesse lhe avisar quedei à luz gêmeos. Um menino euma menina. A menina chegouprimeiro, logo antes da meia-noite do dia 31 de maio, e nossofilho algumas horas depois, na

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madrugada de 1o de junho. Estoumuito cansada por causa do longotrabalho de parto, e talvez fiquemais uma semana aqui ou algoassim, mas estou me recuperandobem. Mando uma foto de nossosbebês, e se você quiser vê-losagora que nasceram, ou a mim,por favor, venha nos visitar. Euamo você. Martha.” Pronto. Éisso que diz a carta.

A voz de Felix saiu rouca, eparecia que estava prestes achorar.

– Trinta e um de maio... odia do meu aniversário.

– Sério?– Sério. – Encarei-o com o

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rosto vazio de expressão, emseguida tornei a olhar para osbebês da foto. Com as mantas, eraimpossível distinguir um dooutro, e eu não fazia ideia de qualdos dois eu poderia ser.

– Só posso supor que, comoMartha não tinha casa nemmarido, decidiu dar um de vocêspara adoção logo depois donascimento – arriscou Felix.

– Mas quando o senhor a viuem Bergen depois de ela voltardo parto... com certeza deve terse perguntado onde o segundobebê tinha ido parar. – Engoli emseco. – Onde eu tinha ido parar.

– Ally, eu acho que imaginei

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que o outro tivesse morrido –disse Felix, pousando a mãosobre a minha com hesitação. –Martha nunca mais mencionou suaexistência para mim... Nem, atéonde eu sei, para meus avós oupara Thom. Pensei que alembrança fosse simplesmentedolorosa demais, de modo queela havia decidido afastá-la damente. Além do mais, depoisdisso nós mal nos falamos, equando o fizemos foi para trocarpalavras de raiva e amargura.

– Esta carta... – Franzi ocenho, sem entender. – É como seMartha acreditasse que vocêsdois fossem ficar juntos.

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– Talvez ela achasse que ofato de eu ver a foto de doisbebês, que pelo visto eram meusfilhos, provocaria em mim umareação emocional. Que, comoeles tinham vindo ao mundo, eunão teria outra escolha que nãolevar a sério as minhasresponsabilidades.

– Você respondeu à carta?– Não. Me perdoe, Ally, mas

não.Minha cabeça parecia

prestes a explodir com asinformações que eu acabara dereceber e meu coração estavarepleto de emoçõescontraditórias. Antes de saber que

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Felix era quase com certeza meupai biológico, eu conseguiaracionalizar o que ele havia mecontado sobre o passado. Agora,porém, não sabia mais o quesentia em relação a ele.

– Talvez não seja eu. Nãoexiste absolutamente nenhumaprova concreta de que seja –murmurei, aflita.

– É verdade, mas basta olharpara vocês dois juntos e somar aisso sua data e ano de nascimentoe o fato de o seu pai adotivo terposto você na pista de umHalvorsen. Eu ficaria muitosurpreso se não fosse você –disse Felix com uma voz branda.

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– Hoje em dia é bem fácil tercerteza, como eu mesmo senti napele. Um exame de DNA vaiconfirmar na hora. Eu teria prazerem ajudá-la, se for isso que vocêquer, Ally.

Repousei a cabeça noencosto do sofá e respirei fundo,com os olhos fechados; sabia quenão precisava de nenhumaconfirmação. Como o próprioFelix tinha dito, tudo seencaixava. E, além de todas asrazões que ele acabara de citar,havia o fato de que, no mesmoinstante em que eu pusera osolhos em Thom, tivera a sensaçãode que o conhecia desde sempre,

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de que ele me era de algumaforma familiar. Nós éramosmesmo idênticos. Nos últimosdias, muitas vezes havíamosexpressado o mesmo pensamentoao mesmo tempo e rido disso.Pensar que havia encontrado meuirmão gêmeo me deixava tonta defelicidade, mas ao mesmo tempoeu tinha que lidar com o fato deminha mãe biológica ter sidoobrigada a escolher qual dosfilhos entregar para a adoção. Ede ela ter escolhido a mim.

– Sei o que está pensando,Ally, e sinto muito – disse Felix,interrompendo meus pensamentos.– Não sei se isso ajuda, mas

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quando Martha me contou queestava grávida disse estarconvencida de que era um meninoe de que era isso que ela queria.Tenho certeza de que, para ela, adecisão foi com base no sexo.Nada além disso.

– Obrigada, mas no momentoisso não faz com que eu me sintamelhor.

– Não, tenho certeza quenão. O que posso dizer? – Ele deuum suspiro.

– Nada. Pelo menos nãoainda. Mas obrigada por dividirisso comigo. O senhor se importase eu ficar com a carta e com afoto um tempinho? Prometo

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devolver.– Claro, pode ficar.– Me desculpe, mas quero ir

dar uma volta. Sozinha – falei,decidida, e me levantei. – Precisode um pouco de ar fresco.

– Entendo. Mais uma vez,me perdoe por ter lhe contado.Com certeza não teria feito issose soubesse que você estágrávida. Deve piorar tudo.

– Na verdade, Felix, estargrávida torna tudo muito melhor.Obrigada por ter sido tão sincerocomigo.

Saí do lounge, e em seguida,do hotel até dar com o ar gelado ecarregado de maresia. Comecei a

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caminhar rapidamente pelo caisem direção ao mar. Embarcaçõesancoradas faziam carga edescarga, e depois de algumtempo cheguei a um cabeço deamarração e me sentei nasuperfície dura e fria. Estavaventando, então prendi os cabelosque esvoaçavam em volta do meurosto com o elástico que sempretrazia no pulso.

Agora eu sabia. Uma mulherchamada Martha tinhaengravidado de mim em Bergende um homem chamado Felix, medado à luz e imediatamente meentregado para adoção. Minhamente racional me dizia que esse

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último ato era apenas o resultadoinevitável daquela investigaçãosobre minhas verdadeirasorigens, mas mesmo assim a dorde minha mãe ter escolhido a mimentre os dois bebês me queimavapor dentro.

Será que eu teria preferidoser o bebê com quem ela haviaficado, e trocar de lugar comThom?

Eu não sabia...O que sabia, porém, era que

desde o dia do meu nascimentoexistia um universo paralelo queavançava junto com o meu epoderia facilmente ter sido o meudestino. E agora esses dois

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universos tinham colidido, e eutrafegava pelos dois ao mesmotempo.

– Martha. Minha mãe. –Pronunciei as palavras em vozalta e me perguntei se,considerando seu nome, eutambém a teria chamado de “Ma”.

A ironia me fez sorrir. Erguios olhos para um casal degaivotas que passou planando novento. Então pensei na vida queestava crescendo dentro de mim,uma vida que eu nunca haviaesperado que existisse...

Mesmo meras 24 horasdepois de descobrir que estavagrávida e sem nunca ter pensado

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direito na ideia de ser mãe, oinstinto protetor que cresciadentro de mim era tão fortequanto qualquer amor que eu játivesse sentido.

– Como você pôde me darpara adoção? – gritei para o mar.– Como pôde fazer isso? – torneia indagar, e um soluço me subiupela garganta.

Deixei as lágrimas correremlivremente pelo rosto, e o ventoforte as secava à medida quecaíam.

Eu jamais saberia por queminha mãe tinha feito aquilo.Jamais ouviria seu lado dahistória. Jamais saberia quanto

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ela havia sofrido ao me entregarpara adoção e se despedir de mimpela última vez. E ela decertoteria abraçado Thom duas vezesmais forte, pois ainda tinha a elepara amar.

Enquanto meu fluxo deconsciência corria solto, levantei-me e recomecei a andar com umpasso apressado. Meuspensamentos colidiam uns com osoutros como as ondas do portoque, confusas por não poderemfluir livremente, espelhavam meudesespero.

Aquilo doía. Doía muito.Perguntei a mim mesma: O

que vim procurar nessa viagem?

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Dor?Ally, você está se deixando

sentir pena de si, falei para mimmesma, firme. E o Thom? Vocêencontrou seu irmão gêmeo.

É. E o Thom?À medida que comecei a me

acalmar e pensar no ladopositivo, percebi que, assimcomo Maia, que fora em busca deseu passado, eu também haviaencontrado o amor, ainda que demodo bem diferente. Ainda nanoite anterior, eu tinha ido para acama sentindo pena de Thom e desua infância difícil. Tambémconfessei a mim mesma que, atéentão, ficara preocupada com

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quão próxima dele eu me sentia.Incapaz de categorizar o que elerepresentava para mim, recusara-me a admitir que sentia amor porele. Mas sentia, sim. E saber queele era meu irmão gêmeo tornavatodos esses sentimentos naturais eaceitáveis.

Ao chegar à Noruega, euhavia acabado de perder as duaspessoas mais importantes daminha vida. Quando iniciei alonga caminhada de volta ao hotelpela beira do cais, entendi que ador da descoberta fora mais doque compensada por terencontrado Thom.

Cheguei ao hotel totalmente

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exausta. Fui para o quarto, aviseià recepção para bloquear meutelefone e caí num sono profundoe sem sonhos.

Já havia escurecido quandoacordei. Olhei para o relógio e vique passava das oito da noite; eutinha dormido várias horas.Afastei o edredom e fui lavar orosto com água fria; lembrei-medo que Felix tinha me contado.Antes de começar a digerir ainformação, porém, percebi queestava faminta, então vesti umacalça jeans, um moletom e descipara comer alguma coisa norestaurante.

Para minha surpresa, ao

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atravessar o lobby, vi Thomsentado em um dos sofás. Ele selevantou com um pulo assim queme avistou; seu rosto exibia umaexpressão preocupada.

– Tudo bem com você, Ally?Tentei ligar para o seu quarto,mas o telefone estava bloqueado.

– Tudo... O que está fazendoaqui? Não tínhamos combinadode nos encontrar hoje, tínhamos?

– Não, mas por volta da horado almoço abri a porta e depareicom Felix, histérico. Meu Deus,Ally, ele estava até chorando,então o levei para dentro, dei-lheum pouco de uísque e lheperguntei qual era o problema.

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Ele me disse que tinha contadouma coisa para você que nãodeveria ter contado, mas que nãosabia que você estava grávida.Estava preocupadíssimo com oseu estado emocional. Disse quevocê tinha ido dar um longopasseio pelo porto.

– Bom, como você pode ver,eu não me joguei no mar. Thom,tudo bem continuarmos essaconversa no restaurante? Estoufaminta.

– Claro. Isso pelo menos ébom sinal – disse ele,genuinamente aliviado.Encontramos uma mesa e nossentamos. – Então... Ele me

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contou a história toda.Espiei-o por cima do

cardápio.– E?– Assim como você, fiquei

muito chocado, claro, mas Felixestava tão abalado que naverdade me pegueireconfortando-o. Pela primeiravez na vida, tive pena dele.

Chamei a garçonete, pedi-lhe para trazer um pouco de pãosem demora e um filé com fritas.

– Quer alguma coisa? –perguntei a Thom.

– Por que não? Vou querer amesma coisa. E uma cerveja, porfavor – pediu ele à garçonete.

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– Mas quando você disseque o seu pai contou a história“toda”, isso inclui a verdadesobre sua mãe quando Felix aconheceu?

– Sim. Mas, se eu acreditonele ou não, é outra história.

– Já eu, como completaobservadora de tudo isso atépoucos dias atrás, acho queacreditei nele. Não que issojustifique o que ele fez... ou,melhor dizendo, o que ele não fez– acrescentei depressa, semquerer que Thom achasse que euestava tomando partido edefendendo Felix. – Mas talvezisso ajude a explicar o

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comportamento dele. Ele se sentiumanipulado por todo mundo.

– Infelizmente ainda nãocheguei ao estágio em que possoconfiar nele, ou mesmo começar aconfiar nele, mas pelo menos hojevi um pouco de remorso. Enfim,chega de falar sobre como estouou não me sentindo. E você? Foivocê quem teve o choque. Eusinto muito, Ally, muito mesmo.Sinto que deveria pedir desculpaspor ter sido o bebê com quemminha mãe ficou.

– Deixe de ser bobo, Thom.Nós nunca vamos saber osverdadeiros motivos que alevaram a fazer o que fez, e

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mesmo que agora seja bem ruimpensar nesse assunto, o que estáfeito está feito. Para minhaprópria paz de espírito, eugostaria de ver se o hospital ondeMartha nos deu à luz tem algumregistro, quem sabe algum detalhesobre a minha adoção posterior.E, se você não se importar, queriaque nós fizéssemos um exame deDNA.

– Claro. Mas eu não achoque haja muita dúvida, né?

– É – concordei. Quando opão chegou, arranquei um pedaçoe o enfiei na boca com avidez.

– Bom, apesar do trauma,pelo menos o seu apetite parece

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ter voltado. Ally, talvez este nãoseja um bom momento paracomeçar a pensar nos pontospositivos, já que você ainda estátendo que lidar com os negativos,mas acabei de me dar conta deque vou ser tio. Estou muito feliz.

– Nunca é cedo demais paracomeçar a olhar o lado positivo,Thom – afirmei. – Antes de euchegar à Noruega, estava muitoperdida e sozinha. E agora tenhoa impressão de que encontrei umanova família. Embora meuverdadeiro pai seja um bêbadosem escrúpulos.

Thom estendeu a mão pelamesa até a minha e a segurou

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timidamente.– Oi, irmã gêmea.– Oi, irmão gêmeo.Passamos um bom tempo de

mãos dadas. Eu sabia que ambosestávamos transbordando deemoção. Éramos duas metadesque formavam um inteiro.Simples assim.

– Que estranho... – dissemosos dois ao mesmo tempo, e rimos.

– Você primeiro. Afinal decontas, é a mais velha.

– Caramba, que pensamentoestranho. Na minha família, eusempre fui a segunda em relaçãoa Maia. E fique descansado: voutirar total vantagem da minha

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recém-descoberta posição desuperioridade – impliquei comele.

– Não duvido disso nem porum segundo – disse Thom. – Masnós dois dissemos que algo eraestranho...

– É, mas agora esqueci o queera. Tem tanta coisa estranhaacontecendo neste momento... –falei.

Nossa comida chegou.– Nem me diga! – Thom se

serviu da cerveja e ergueu o copopara brindar com a minha água. –Bom, a nós dois, reunidos depoisde trinta anos. Sabe de umacoisa?

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– Hum?– Eu não sou mais filho

único.– Verdade. E sabe de outra

coisa?– Hum?– As Seis Irmãs agora têm

um irmão.

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44

Durante o jantar, Thom sugeriuque eu me mudasse paraFroskehuset sem demora.

– Não tem nada maisdesanimador do que um quarto dehotel e, tecnicamente, Ally,metade daquela casa deve ser sua– disse ele ao subir os degraus dafrente com minha mochila.

– Falando nisso, o quesignifica Froskehuset, afinal? –perguntei.

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– “Casa do Sapo”. Pareceque Horst disse a Felix quecostumava deixar no descanso departitura do piano uma réplica dosapinho que Grieg carregavaconsigo. Não faço ideia do queaconteceu com o sapinho, mastalvez isso tenha algo a ver com onome que deram à casa.

– Acho que não resta maisdúvida. – Thom largou minhamochila no chão e, com umsorriso, levei a mão a um bolsolateral e peguei meu própriosapinho. – Olhe. Esta é a outrapista que Pa Salt me deixou. Videzenas de sapinhos parecidos noMuseu Grieg.

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Thom pegou o objeto e oestudou. Então sorriu para mim.

– Ele estava mandando vocêpara cá, Ally. Para o seuverdadeiro lar.

Thom e eu providenciamosum exame genético, e Felixinsistiu para nos forneceramostras de saliva e um folículocapilar. Em uma semana, ficouconfirmado que eu era mesmoirmã gêmea de Thom, e Felix, o

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pai que eu acabara de encontrar.– É claro que, por sermos de

sexos diferentes, não somosidênticos – falei, examinando osdados do resultado. – Cada um denós possui seu próprio perfil deDNA.

– Claro. Eu sou bem maisbonito do que você, mana.

– Obrigada.– De nada. Então, vamos

ligar para o nosso pai e dar a boanotícia?

– Por que não? – concordei.À noite, Felix apareceu

devidamente equipado com umagarrafa de champanhe e outra deuísque para si. Brindamos os três

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à nossa herança genética emcomum. Pude ver que Thom aindaestava muito reticente em relaçãoao pai, mas fazia um esforço porminha causa. Também reparei emcomo Felix estava tentando seredimir. Já era um começo,pensei, enquanto bebericava umdedinho de champanhe com o paie o irmão que acabara deencontrar.

Na hora de ir embora, Felixse levantou e cambaleou até aporta.

– Tem certeza de que estábem para dirigir esse troçoladeira acima? – perguntei ao vê-lo pôr o capacete.

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– Faço isso há quasequarenta anos e ainda não caínenhuma vez – respondeu ele,grunhindo. – Mas obrigado porperguntar. Faz tempo que ninguémse importa o suficiente para isso.Boa noite, e obrigado. Apareça,sim? – arrematou ele em voz altaao desaparecer noite adentro.

Fechei a porta e dei umsuspiro; sabia que não deveriadeixar transparecer na frente deThom a pena que sentia de Felix.

Como sempre, porém, meuirmão gêmeo leu meuspensamentos.

– Não tem problema – disseele quando voltei para a sala e fui

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até o fogareiro aquecer minhasmãos frias.

– O que não tem problema?– Você sentir pena de Felix.

Na verdade, mesmo sem querer,eu também sinto. Não estoupronto para perdoá-lo pelo queele fez com a minha mãe, mas vera mãe caída morta no meio da ruae ter um pai que se mata poucashoras mais tarde... – Thomestremeceu. – Mesmo que ele nãoconsiga se lembrar dos detalhes,nada poderia ser pior, né? E quempode saber que tipo de cicatrizisso deixou?

– É. Quem pode saber? –concordei.

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– Mas, enfim, chega de falarno Felix. – Thom soltou o ar e meencarou. – Tem mais uma coisaque eu queria dividir com você.

– É mesmo? Que cara séria.Será que vai me dizer que eutenho outra irmã ou outro irmão?

– Isso cabe a Felix, masquem sabe? – brincou ele. – Estoume referindo a algo mais... –Thom se esforçou para encontrara palavra certa. – Maisfundamental.

– Não consigo imaginar algomais fundamental do quedescobrir que meu verdadeirosobrenome é Halvorsen.

– Sem saber, você acaba de

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acertar na mosca, Ally. Quero lhemostrar uma coisa. – Ele selevantou e atravessou a sala até apequena escrivaninha no canto,pegou uma chave dentro de umvaso em cima do móvel e odestrancou. Abriu uma gaveta,pegou uma pasta e voltou para sesentar no sofá ao meu lado. Nãodisse nada, apenas esperei queele organizasse os pensamentos,fossem quais fossem.

– Certo. Então, você selembra de ter ficado irritadadepois de ler a biografia de JensHalvorsen sobre a vida dele e deAnna? Que não conseguiuacreditar que Anna tivesse

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aceitado Jens de volta sem dar umpio depois de ele abandoná-la emLeipzig durante todos aquelesanos?

– É claro que me lembro. Econtinuo sem entender. O próprioJens diz, no livro, que pensavaque ela tivesse desistido do amore dele. E Anna é descrita comouma jovem tão decidida que achoimpossível acreditar que o tenhaaceitado de volta do jeito queaceitou.

– Exatamente. – Thom tornoua me encarar.

– Desembuche, então –incentivei.

– E se ela tiver sido

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obrigada?– A quê?– A aceitá-lo de volta?– Pelo bem das aparências,

você quer dizer? Porque naquelaépoca uma mulher não podia seseparar sem um escândalo?

– Sim, mas não exatamente.Você com certeza está certa emrelação à moralidade da época.

– Thom, já passa das onzeda noite, e não estou comdisposição nenhuma para um jogode adivinhação – falei. – Diga oque quer dizer e pronto.

– Certo, mas antes vocêprecisa me jurar guardar segredototal, sério. Não pode contar nem

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para Felix. Não falei com maisninguém sobre isso.

– Thom, você estácomeçando a dar a impressão deque encontrou o velocino de ouroenterrado debaixo deFroskehuset. Por favor, fale logo.

– Desculpe, mas é que o fatoé uma verdadeira bomba. Então,quando eu estava pesquisando orelacionamento de Jens e AnnaHalvorsen com Grieg para o meulivro, segui os passos deles e fuiaté Leipzig. E lá encontrei istoaqui.

Thom pegou um envelope napasta, tirou uma folha de papel láde dentro e me entregou.

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– Dê uma olhada.Passei os olhos pelo

documento, e vi que era acertidão de nascimento de umcerto Edvard Horst Halvorsen.

– Nosso bisavô. E daí?– Tenho certeza de que você

não deve se lembrar de cabeça,mas na biografia Jens conta queele voltou para Leipzig em abrilde 1884.

– É, para ser sincera, não melembro mesmo.

– Bom, aqui está uma cópiada página do livro. – Ele meentregou. – Eu assinalei o trechorelevante. Segundo a certidão denascimento, porém, Horst nasceu

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em 30 de agosto de 1884. Então,tecnicamente, Anna deu à luz umacriança viva depois de umagestação de quatro meses. Mesmonos dias de hoje, isso éimpossível.

Examinei a data na certidãoe vi que ele tinha razão.

– Talvez Jens tenhaesquecido o mês exato em quevoltou para Leipzig. Afinal decontas, estava escrevendo emretrospecto, muitos anos depoisdo ocorrido.

– Foi também o que pensei.Pelo menos no começo.

– Está tentando me dizer queo bebê que Anna estava

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esperando, ou seja, Horst, nãopoderia ser filho de Jens?

– É. Estou. – Os ombrosdele caíram de repente, eu nãosoube dizer se por alívio,desespero ou medo. Talvez umamistura das três coisas.

– Está bem, até aí euentendo. Mas o que mais vocêdescobriu para confirmar essateoria?

– Isto aqui.Thom me entregou outro

papel da pasta. Vi que era a cópiade uma antiga carta em norueguês.Antes que eu pudesse reclamarque não conseguiria ler, ele mepassou outro papel.

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– A tradução em inglês.– Obrigada. – Li o texto, que

trazia a data de março de 1883. –É uma carta de amor.

– Isso. E no lugar de ondeessa saiu existem muitas outras.

– Thom, de quem é essacarta? – indaguei, erguendo osolhos para ele. – Quem é o“Sapinho” que assinou? – Antesde ele conseguir responder,entendi tudo. – Ai, meu Deus –murmurei. – Não precisa nem medizer. Você disse que havia outrascartas?

– Dezenas. Ele era umcorrespondente muito prolífico.Escreveu quase 20 mil cartas

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para diferentes pessoas durante avida. E eu comparei a caligrafiacom as cartas que estão no museude Bergen. É ele, com certeza.

– Mas onde você achouessas cartas? – perguntei,engolindo em seco.

– Bem aqui nesta sala,debaixo do nariz de todo mundo.E estavam aqui havia 110 anos.

– Onde? – indaguei,passeando os olhos pela sala.

– Achei o esconderijointeiramente por acidente. Umacaneta rolou para debaixo dopiano de cauda, ali, e quando meajoelhei para pegar bati com acabeça no fundo do instrumento.

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Olhei para cima e reparei queuma estreita borda de madeira deuns dois centímetros e meio dealtura tinha sido acrescentada àestrutura. Venha, vou lhe mostrar.

Ficamos os dois de quatrono chão debaixo do piano paraexaminar a estrutura. E ali, bemno meio, debaixo das cordas dopiano, havia uma bandeja rasa decompensado presa de formagrosseira ao instrumento. Thom apegou pelo fundo e a deslizoupelo estreito trilho de madeira.

– Viu? – disse ele, pondo abandeja em cima da mesa depoisde nos levantarmos. – Dezenas.

Fui pegando com cuidado

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carta após carta e as examinei,assombrada. De tão desbotada, atinta sobre o papel amarelado eraquase ilegível, ainda que euconseguisse ler norueguês, maspude ver que as datas iam de1879 a 1884 e que estavamassinadas Liten Frosk.

– E mesmo que ele sempretenha sido conhecido como Horst,talvez você tenha percebido que,pela certidão, nosso bisavô foibatizado com o nome Edvard –retomou Thom.

– Eu... não sei o que dizer –falei, ainda fitando a lindacaligrafia de uma das cartas àminha frente. – Estas cartas de

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Edvard Grieg para Anna comcerteza têm valor inestimável.Você as mostrou para algumhistoriador?

– Como eu disse antes, nãoas mostrei para ninguém.

– Mas por que então não asincluiu no seu livro? Elas sãouma prova cabal de que Grieg eAnna Halvorsen tiveram umrelacionamento.

– Na verdade, elas provammais do que isso. Depois de lê-las, não resta dúvida de que osdois foram amantes. Por pelomenos quatro anos.

– Caramba... Bom, se issofor verdade, tenho certeza de que

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você teria vendido milhões deexemplares se seu livro incluísseuma revelação bombástica dessassobre um dos maiorescompositores do mundo. Nãoentendo por que não o fez.

– Ally, você ainda nãoentendeu por quê? – indagou ele,com o cenho franzido. – Aindanão somou dois mais dois?

– Pare de sercondescendente, Thom –retruquei, irritada. – Estoutentando analisar a situação comoum todo, mas preciso de umtempo. Então essas cartasconfirmam que Anna e Griegeram amantes. E imagino que

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você ache que o pai do bebê deAnna era Grieg?

– Acredito que há uma boachance de ser, sim. Lembra que eulhe disse que foi o próprio Griegquem tirou Jens das sarjetas deParis? Isso foi no final de 1883,depois de ter passado quase o anointeiro separado da esposa Nina,morando na Alemanha. Então, naprimavera de 1884, na mesmaépoca em que Jens apareceu naporta da casa de Anna, Griegvoltou a morar com Nina emCopenhague. E Edvard HorstHalvorsen nasceu em agostodaquele ano.

– Edvard Horst Halvorsen,

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filho de Grieg – murmurei,tentando dar conta do enormesignificado de tal possibilidade.

– Como você mesma dissedepois de ler o livro, por quediabos Grieg iria a Paris procurarJens seis anos depois de seudesaparecimento? E por que Annaestaria disposta a aceitá-lo devolta? A menos que houvessealgum tipo de acordo entre ela eGrieg, pelo bem das aparências.Não podemos esquecer que, naépoca, Grieg era um dos homensmais conhecidos da Europa.Ainda que fosse aceitável ele servisto pela cidade acompanhandomusas talentosas como Anna, ele

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preferiu evitar o escândalo de serapontado como o pai de um filhoilegítimo. Não esqueça que Griegna época estava separado de Ninae que existem provas documentaisde que ele e Anna viajaram pelaAlemanha juntos dando recitais.Pode muito bem ter havidofofocas quanto ao relacionamentodos dois, mas a volta do maridodela teria posto fim àsespeculações quando um bebênascesse poucos meses depois.Anna e Jens se mudaram paraBergen no mesmo ano, e o meninofoi apresentado na Noruega comofilho do casal.

– E Anna teria aceitado que

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era isso que devia fazer? Viveruma mentira?

– Você precisa lembrar queAnna também era famosa naépoca. Qualquer sugestão deescândalo em relação a elatambém teria posto fim à suacarreira na música. Ela entendiaque Grieg jamais se divorciariade Nina. E, além do mais, ambossabemos que Anna era uma moçapragmática e sensata. O meupalpite é que eles combinaramisso, os dois.

– Mas, se você tem razão eJens encontrou Anna grávida dequatro meses ao voltar, por queele ficou?

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– Provavelmente porquesabia que, se não ficasse, teriamorrido na pobreza pouco depoisnas ruas de Paris. E Grieg quasecom certeza deve ter prometidofazer todo o possível para ajudá-lo em sua carreira de compositorna Noruega. Ally, você nãoentende? Todo mundo saíaganhando.

– Então, dali a menos de umano, os dois casais passaram aser vizinhos um do outro aquimesmo. Nossa, Thom... você achaque Nina algum dia desconfiou daverdade?

– Sinceramente, eu nãosaberia dizer. Não resta dúvida

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de que ela adorava Edvard e ele aela, mas ser casada com umpersonagem famoso desses tinhaum preço, como acho que sempretem. Talvez ela tenha ficadocontente com o fato de o maridovoltar. E havia Horst, claro.Morar assim tão pertopossibilitava que Grieg visitasseo suposto filho sempre quequisesse sem levantar suspeitas.Lembre-se: ele e Nina não tinhamfilhos vivos. Em uma das muitascartas que escreveu a um colegacompositor, Grieg afirma queadorava o bebê Horst.

– Quer dizer que Jens teveque suportar a situação?

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– Sim. Pessoalmente, euacho que foi bem-feito por terabandonado Anna. Ele passou oresto da vida vivendo à sombrade Grieg, e quase com certezacriando o filho ilegítimo domestre em seu lugar.

– Então por que escreveruma biografia dos dois, se ele eAnna tinham um segredo dessespara proteger?

– Você deve saber que Annamorreu no mesmo ano que Grieg.Foi nessa época que ascomposições de Jens começarama deslanchar de verdade. Eu achoque o livro não passou de umatentativa de alcançar a fama que

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Jens sentia que nunca haviaalcançado até então. Foi umsucesso de vendas na época dapublicação e deve ter lhe validobastante dinheiro.

– Ele deveria ter tomadomais cuidado com as datas –observei.

– Quem poderia saber, Ally?A não ser que alguém fosse atéLeipzig atrás da certidão denascimento de Horst, como eu fiz.

– Sim, mais de 120 anosdepois. Tudo isso não passa deespeculação, Thom...

– Dê uma olhada nestas fotos– disse ele, puxando trêsfotografias da pasta. – Este aqui é

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Horst jovem e estes são os seusdois possíveis pais. Com qualdos dois você acha que ele separece?

Olhei para as imagens e vique restavam poucas dúvidas.

– Mas Anna tinha cabelosclaros e olhos azuis, assim comoGrieg. Horst pode muito bem terherdado a aparência física damãe.

– Verdade – concordouThom. – Essa história toda só éalimentada pelas únicasferramentas que temos à nossadisposição para investigar opassado: vestígios documentais euma boa dose de suposição.

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Prestei pouca atenção no queThom estava dizendo; de repente,comecei a entender o que aquilosignificava.

– Então, se você estivercerto, Horst, Felix e eu somos...

– Pois é. Como eu disse nocomeço, estritamente falando,você no fim das contas talvez nãoseja uma Halvorsen.

– Sério, Thom, é coisademais para absorver. A gentepode provar isso de algumaforma, se quiser?

– Claro. John, irmão deGrieg, teve filhos, e osdescendentes deles ainda estãovivos. Poderíamos lhes

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apresentar as provas e perguntarse eles aceitam fazer um examede DNA. Já pensei mais de cemvezes em entrar em contato comeles, mas de que adiantariaprovocar um furacão desses emanchar a reputação imaculadade Grieg? Isso tudo aconteceumais de 120 anos atrás, e eu,pessoalmente, prefiro divulgarminha música pelos motivoscertos, não me aproveitando deum escândalo histórico. Entãodecidi deixar o passado nopassado. Foi por isso que nãoincluí a descoberta no livro.Agora você precisa tomar suaprópria decisão, Ally, e não

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posso culpá-la se quiser tercerteza, mesmo que eu preferissenão mexer nessa história.

– Meu Deus, Thom. Portrinta anos eu me contentei em nãosaber absolutamente nada sobreas minhas origens. Então achomesmo que, por enquanto, umanova herança genética só já vaibastar – falei, sorrindo. – EFelix? Você disse que não contoupara ele.

– Não, porque não podiaconfiar que ele não sairia por aíbêbado alardeando que é bisnetode Grieg e colocando todo mundona merda.

– Concordo. Nossa... – Dei

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um suspiro. – Que história.– É. E, agora que eu tirei

esse peso do peito, que tal umaxícara de chá?

Alguns dias depois, quandominha certidão de nascimentooriginal chegou, mostrei-a aThom. Eu tinha escrito para ohospital e para o cartório denascimentos e óbitos da região,que ficava em Trondheim, não sóporque queria ver a prova, mas

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também para descobrir qualquerdetalhe sobre como Pa Salt tinhame encontrado.

– Está vendo? Meu nome deorigem é “Felicia” – falei. –Deve ser por causa de Felix.

– Eu gosto bastante. É bembonito, bem mulherzinha –brincou Thom.

– Desculpe, mas mulherzinhaé uma coisa que eu não sou. Allycombina muito mais comigo –retruquei.

Mostrei-lhe outro documentoque havia chegado junto com acertidão, segundo o qual eu foraadotada no dia 3 de agosto de1977. Havia um carimbo de

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aspecto oficial no canto inferior,mas nenhum outro detalhe.

– Todas as agências deadoção com as quais entrei emcontato me escreveram de voltadizendo que não tinham nenhumregistro oficial de adoção e que,portanto, concluíam que oprocesso tinha sido conduzido emâmbito particular. Ou seja: PaSalt deve ter conhecido Marthaem algum momento – refleti,guardando na pasta a carta maisrecente.

– É só uma ideia, Ally –disse Thom de repente. – Masvocê me disse que Pa Salt adotouseis meninas, todas batizadas em

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homenagem às estrelas dasPlêiades. E se tiver sido ele quemescolheu você? E se eu que tiversido deixado de lado?

Pensei a respeito e vi queele tinha razão. Aquilo diminuiuminha dor na mesma hora.Levantei-me e fui até ele, queestava sentado ao piano. Enlacei-o pelo pescoço e o beijei no altoda cabeça.

– Obrigada por isso.– Não há de quê.Olhei para a partitura

equilibrada no piano, coberta deanotações a lápis.

– O que está fazendo comisso?

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– Ah, só dando uma olhadano que o sujeito que DavidStewart recomendou paracomeçar a trabalhar nos arranjospara orquestra do Concerto doHerói fez até agora.

– E que tal?– Para ser sincero, pelo que

vi até agora, não estou muito bemimpressionado. Duvido muito quevá ficar pronto para a estreia emdezembro, no Concerto doCentenário de Grieg. Já estamosquase no fim de setembro, e amúsica precisa estar pronta e nagráfica no fim do mês que vem,para a orquestra ter tempo deensaiar. Como David aprovou a

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inclusão do concerto noprograma, vou ficar arrasado seele não entrar, mas isto aqui... –Ele deu de ombros. –Simplesmente não parece certo. Ecom certeza não está à altura deser mostrado ao chefe daorquestra.

– Queria poder fazer algumacoisa para ajudar – falei. Entãoum pensamento me ocorreu, masnão tive certeza se deveriaexpressá-lo.

– O que foi? – perguntouThom. Eu estava descobrindo queera impossível esconder qualquercoisa do meu recém-descobertoirmão gêmeo.

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– Se eu lhe disser, prometeque não vai descartar logo decara?

– Está bem, prometo. Podefalar.

– Felix... quero dizer... nossopai poderia fazer os arranjos.Afinal de contas, ele é filho dePip. Tenho certeza de que terásensibilidade com a música dopróprio pai.

– O quê? Ficou maluca,Ally? Sei que está tentando fazera gente bancar a familiazinhafeliz, mas, sério, assim já édemais. Felix é um bêbadoimprestável que nunca realizounada na vida. Eu não poderia dar

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o precioso concerto do nosso avôpara ele destruir. Ou, pior, parachegar à metade e desistir. Sequisermos ter alguma chance devê-lo estrear no centenário, comcerteza esse não é o caminho aseguir.

– Você sabia que Felix aindatoca muitas horas por dia? Só pordiversão? E você mesmo medisse várias vezes que ele era umgênio, que compunha eorquestrava as próprias peçasquando era adolescente – insisti.

– Chega, Ally. Assuntoencerrado.

– Tudo bem. – Dei deombros e saí da sala.

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Estava frustrada, chateada.Aquele era o primeirodesentendimento entre Thom e eu.

Mais tarde, nesse mesmodia, Thom saiu de casa para umcompromisso na orquestra. Eusabia que as partituras originaisde Pip Halvorsen ficavamguardadas na escrivaninha da salade estar. Totalmente insegura, semsaber se estava fazendo a coisacerta ou não, destranquei aescrivaninha e peguei a pilha depapéis. Guardei-a dentro de umasacola, peguei a chave do carroque havia alugado e saí da casa.

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– O que acha, Felix?Eu havia lhe explicado a

história por trás do Concerto doHerói e dito como estávamosdesesperados para orquestrar apeça. Acabara de ouvi-lo tocar oconcerto do início ao fim. Apesarde ser a primeira vez que vira apartitura, sua execução não tiveraum erro sequer. Além de exibiruma proficiência técnica e umasensibilidade que eram as marcasde um pianista de grande talento.

– Maravilhoso, sério. Meu

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Deus, como meu pai eratalentoso.

Era óbvio que ele estavacomovido; por instinto, fui até elee apertei seu ombro.

– Era mesmo, não é?– Uma tragédia eu não

conseguir me lembrar dele. Malpassava de um bebê quando elemorreu, entende?

– Eu sei. E é uma tragédiaessa peça nunca ter estreado. Nãoseria incrível se estreasse?

– Sim, sim, com os arranjoscertos... Por exemplo, aqui nosprimeiros quatro compassos, umoboé, ao qual se juntaria umaviola aqui... – Ele apontou para a

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partitura. – Mas com os tímpanosentrando quase imediatamentedepois, de surpresa, assim. – Eleilustrou a batida com dois lápis. –Isso chocaria aqueles quepensassem estar ouvindo mais umpastiche de Grieg. – Ele deu umsorriso malicioso e vi o brilho emseus olhos quando estendeu a mãopara pegar uma partitura embranco e a preencheu com oarranjo que acabara de descrever.– Diga a Thom que seria umgolpe de mestre. E depois... –continuou ele, recomeçando atocar. – Depois vêm os violinos,ainda acompanhados pelostímpanos para dar aquela

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sensação de perigo.Ele tornou a preencher

alguns compassos da partitura.Então, de repente, parou e ergueuos olhos para mim.

– Desculpe. Estou meempolgando. Mas obrigado porme mostrar isso.

– Felix, quanto tempo vocêachar que levaria para fazer aorquestração inteira desseconcerto?

– Uns dois meses, talvez?Talvez seja mesmo porque o meupai foi o autor, mas consigo ouvirexatamente como ele deveriaficar.

– O que acha de três

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semanas?Ele me encarou, revirou os

olhos e deu uma risadinha.– Está de brincadeira, não é?– Não estou, não. Vou

precisar tirar uma xerox dapartitura de piano para você, masse conseguisse orquestrar esseconcerto e apresentar a Thom damesma forma brilhante queacabou de fazer para mim, duvidoque o chefe da OrquestraFilarmônica de Bergen consigadizer não.

Felix passou um temposentado em silêncio, pensando.

– Está me desafiando, éisso? É para provar ao Thom que

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eu sou capaz?– Tirando o fato de que a

peça está no programa doConcerto do Centenário de Grieg,em dezembro, é, sim. Porque,pelo que acabei de ouvir, você ébrilhante, brilhante mesmo. E senão se importar que eu diga isso,o prazo apertado significa quevocê vai precisar se concentrartotalmente.

– Uma mistura e tanto deelogios e ofensas, minha jovem –disse Felix com um muxoxo. –Vou escolher ficar com oselogios, porque você tem razão,claro. Eu funciono muito melhortrabalhando com um prazo e, nos

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últimos anos, têm faltado dissopor aqui.

– Quer dizer que vai tentar?– Se eu aceitar essa

empreitada, farei muito mais doque tentar, isso eu lhe garanto.Vou começar hoje à noite mesmo.

– Bom, infelizmente eu vouter que levar as partituras parapiano comigo. Não quero queThom descubra o que estamosfazendo.

– Ah, não se preocupe comisso, já estou com ela na cabeça.– Felix juntou as partituras,formou com elas uma pilha bem-arrumada e me entregou. – Traga-me uma cópia amanhã, mas

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depois disso não quero que fiquevindo aqui o tempo todo paraconferir o meu trabalho. Entãonos vemos daqui a três semanas.

– Mas...– Sem mas – disse ele,

acompanhando-me até a porta.– Está bem. Eu trago as

partituras amanhã. Tchau, Felix.– E... Ally?– Oi?– Obrigado pela

oportunidade.

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45

Passei as três semanas seguintesindócil, andando de um lado paraoutro em casa. Sabia queorquestrar bem uma sinfonia emgeral exigiria meses de trabalhoárduo. No entanto, mesmo queFelix só conseguisse completar osprimeiros cinco minutos, torcique isso bastasse para convencerThom do que eu mesma haviaescutado. Se ele não fizesse nada,nada estaria perdido e Thom

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jamais ficaria sabendo.Todo mundo merece uma

segunda chance, pensei comigomesma ao ouvir a porta da frentese abrir e Thom chegar após umaapresentação da ópera Carmencom a filarmônica. A temporadade concertos havia começado, equando ele desabou no sofá,exausto, peguei uma cervejagelada na geladeira e lheentreguei.

– Obrigado, Ally. Eu bemque poderia me acostumar comisso – disse ele, abrindo acerveja. – Na verdade, andeipensando em umas coisas nessesúltimos dias.

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– Ah, é?– Você já resolveu onde vai

ter a Polegarzinha?Polegarzinha era um apelido

para o bebê, surgido quandoThom tinha me perguntado de quetamanho ele estava agora e eu,usando como referência o recém-comprado livro sobre gravidez,havia usado o polegar parademonstrar.

– Ainda não.– Então que tal ficar aqui em

Froskehuset comigo? Você vivedizendo que está se coçando parareformar a casa, e eu certamentenão tenho tempo para isso.Considerando o tal instinto de

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fazer ninho sobre o qual você leuno livro outro dia, que talcanalizar isso de forma prática epôr mãos à obra? Em troca deabrigo e comida... cujo custo estáaumentando, visto o tamanho doseu duplo apetite – brincou ele. –Além, é claro, do seu direitooficial a metade da casa.

– Thom, esta casa é sua.Sério! Eu nunca sequer cogitariatirar metade dela de você.

– Bem, então que tal vocêinvestir algum dinheiro nareforma da casa se isso forpossível? Eu diria que seria umatroca justa. Está vendo? Nãoestou sendo tão generoso quanto

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você pensou.– Reformar esta casa não vai

custar muito, embora eu estejapensando que esse fogareirohorroroso tem que ser arrancadoe substituído por uma lareiramoderna, além de, quem sabe,uma calefação debaixo do pisonos outros cômodos. Ah, etambém é preciso comprar umboiler novo e trocar oencanamento dos banheiros,porque estou cheia de ter umfilete de água quente no chuveiroquando tomo banho, e tem ainda...

– Lá vamos nós – disseThom com uma risadinha. –Calculo pelo menos um milhão de

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kroner para fazer o serviçodireito. A casa vale uns quatromilhões, então eu estaria lhepagando um pouco mais para serminha designer de interiores.Teríamos que combinar que, seum de nós dois algum dia quiserse mudar, o outro poderá comprarsua parte na casa, mas Ally, euacho importante você sentir quevocê e o bebê têm o seu própriolar.

– Até agora eu me vireibastante bem sem lar nenhum.

– Até agora você nunca teveum filho. Como fui criado em umacasa que minha mãe vivia dizendoque não era nossa, eu gostaria que

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minha sobrinha ou sobrinho nãotivessem essa preocupação.Talvez possa oferecer meusserviços de figura paterna ementor até outro homem aparecerpara fazer esse papel. Coisa que,tenho certeza, um dia vaiacontecer – concluiu ele.

– Mas, Thom, se eu ficasseaqui...

– O quê?– Eu teria que aprender

norueguês! E isso é impossível.– Bom, você e o bebê podem

aprender juntos – falou elesorrindo.

– Mas e quando um de nósou os dois encontrarem outra

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pessoa?– Como eu disse, a gente

pode vender a casa ou comprar aparte do outro. Além do mais, nãoesqueça que aqui tem quatroquartos. E como eu me recuso adeixar você ficar com um homemque eu não aprovar, não temmotivo nenhum para nãopodermos viver aqui juntos, emcomunidade. De toda forma, nãoacho que a gente deva sepreocupar muito com o quepoderia acontecer. Essa não éuma das suas frases preferidas?

– Antigamente era, mas... euagora preciso planejar o futuro.

– Claro. A maternidade já

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está mudando você.Nessa noite, ao me deitar,

pensei em como Thom tinharazão. Eu não estava maispensando só em mim, mas no queera melhor para o neném. Nãohavia dúvida de que era feliz ali,me sentia segura e tranquilanaquele país que estavaaprendendo a amar. E por algummotivo o fato de a minhaverdadeira origem me ter sidonegada tornava ainda maisimportante que meu filho ou filhapudesse abraçar a sua. Nóspoderíamos fazer isso juntos.

Na manhã seguinte, eu dissea Thom que, a princípio, achava a

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ideia maravilhosa e que adorariaficar e ter o bebê em Bergen.

– Também vou ver seconsigo mandar trazerem para cáo iate Sunseeker de Theo. Mesmoque eu não consiga reunircoragem para subir a bordo,talvez você queira levar seusobrinho para passear pelosfiordes da Noruega no verão nomeu lugar.

– Ótima ideia – concordouThom. – Mas para o bem do bebê,Ally, sem falar no seu próprio,você algum dia vai ter que voltarao mar.

– Eu sei, mas não vai seragora – falei, seca. – A única

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coisa que me preocupa é o que euiria fazer depois de brincar de serdesigner de interiores e dar à luz.– Pus sobre a mesa as panquecasque ele adorava para o café damanhã.

– Viu? Você está fazendo denovo, Ally. Projetando o futuro.

– Cale a boca, Thom. Eu souuma mulher que trabalhou a vidainteira, que encarou um desafiopor dia.

– E não acha que se mudarpara outro país e ter um filhobastam como desafio?

– É claro que bastam, porenquanto. Mas, mesmo que euvire mãe, preciso ter algo para

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fazer.– Talvez eu possa ajudar –

disse Thom, casualmente.– Como assim?– Tem sempre lugar na

orquestra para uma flautista como seu talento. Na verdade, eu iasugerir uma coisa.

– Ah, é? O quê?– Você já está sabendo sobre

o Concerto do Centenário deGrieg, aquele que ia incluir oConcerto do Herói, mas queagora provavelmente não vaimais. A primeira metade doprograma tem a suíte Peer Gynt, eeu estava pensando em comoseria adequado uma Halvorsen de

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verdade tocar os primeiroscompassos de “Amanhecer”. Naverdade, já comentei isso comDavid Stewart, e ele achou aideia maravilhosa. O que vocêacha?

– Você já falou com ele?– É claro que já, Ally. Ele

adorou, e...– Mesmo eu tocando mal,

meu sobrenome vai garantir avaga – concluí no seu lugar.

– Ah, parece até que vocêestá sendo insensível depropósito! Ele a ouviu tocar comWillem no Teatro Logen, lembra?O que estou tentando dizer é quenunca se sabe aonde essa noite

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pode levar. De modo que eu nãome preocuparia muito em arrumarum emprego se você decidirfincar raízes permanentes poraqui.

Estreitei os olhos e o encareicom intensidade.

– Você já pensou em tudo,não é?

– Já, sim. Do mesmo jeitoque você teria feito.

Exatamente três semanas

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depois do dia em que eu havialevado o concerto para Felix, batià porta de sua casa com ocoração acelerado. Ele demorouum pouco para atender, e comeceia desconfiar que, embora já fossequase meio-dia, ainda estivessedormindo para curar a ressaca.

Quando ele apareceu, comos olhos vermelhos, de camiseta ecueca samba-canção, fiqueidesanimada.

– Oi, Ally. Entre.– Obrigada.A sala fedia a álcool e

tabaco rançoso, e minha tensãoaumentou quando vi as garrafasde uísque vazias enfileiradas

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como pinos de boliche sobre amesa de centro.

– Desculpe a bagunça.Sente-se – disse ele, tirando decima do sofá um cobertoresfarrapado e um travesseiro. –Acho que passei as últimassemanas dormindo onde caía.

– Ah.– Quer beber alguma coisa?– Não, obrigada. Você sabe

por que estou aqui, não sabe?– Vagamente – disse ele,

passando a mão pelos cabelosralos. – Tem alguma coisa a vercom o concerto?

– Isso, tem sim. E aí? – fuilogo perguntando, já desesperada

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para saber se ele havia encaradoo desafio.

– Então... onde foi mesmoque eu coloquei?

Havia partituras empilhadaspor todo o recinto, e muitas outrasfolhas amassadas e emboladasque já estavam ali na minhaúltima visita continuavam nomesmo lugar acumulando poeira eteias de aranha. Arrasada, fiqueiobservando enquanto elevasculhava prateleiras, gavetasque transbordavam e olhava atrásdo sofá em que eu estava sentada.

– Eu sei que guardei emalgum lugar seguro... – murmurouele, abaixando-se para olhar

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debaixo do piano. – Arrá! –exclamou, triunfante, ao erguer otampo do lindo Blüthner de caudae prendê-lo com a vara demadeira. – Aqui está. – Colocou amão lá dentro e pegou umagigantesca pilha de partituras, quetrouxe até mim e jogou no meucolo; meus joelhos quase cederamcom o peso de tanto papel. –Prontinho.

Vi que as primeiras folhas,reunidas dentro de uma pasta deplástico transparente, eram amúsica original para piano. Aseção seguinte era a flauta, depoisvinha a viola e em seguida ostímpanos, exatamente como ele

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havia descrito. Fui folheando aspastas e mais pastas de partituraspreenchidas com capricho.Quando cheguei aos metais játinha me esquecido para quantosinstrumentos ele havia compostoarranjos. Levantei o rosto comuma expressão de puro assombro,e o vi sorrir de volta com um arde superioridade.

– Se você me conhecesse hámais tempo, filha querida queacabei de encontrar, saberia queum desafio musical é algo que eusempre encaro. Sobretudo se forimportante como esse.

– Mas... – Meu olhar recaiusobre as garrafas de uísque na

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mesa à minha frente.– Como bem me lembro de

ter lhe dito, eu trabalho melhorbêbado. É triste, mas é verdade.Enfim, está tudo aí, pronto paravocê levar para o meu queridofilho e ver qual vai ser o vereditodele. Pessoalmente, acho que meupai e eu produzimos a obra de umgênio.

– Bem, não tenhoqualificação para julgar aqualidade dos arranjos, mas comcerteza a quantidade de trabalhoque você realizou no tempo quetinha é um milagre.

– Noite e dia, querida, noitee dia. Vá lá, pode ir.

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– Sério?– Sim, quero voltar a dormir.

Não dormi muito desde a últimavez que nos vimos.

– Está bem – assenti,levantando-me com a imensapilha de partituras imprensadacontra o peito.

– Me avise sobre o veredito,sim?

– Claro.– Ah, e diga ao Thom que

mandei avisar que a única parteem relação à qual ainda não estouconvencido é quando as trompasentram junto com o oboé noterceiro compasso do segundomovimento. Pode ser que esteja

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um pouco exagerado. Tchau, Ally.Com isso, a porta se fechou

com firmeza atrás de mim.

– O que é isso? – quis saberThom ao chegar em casa à tardeapós um compromisso com aorquestra e reparar nas pilhas departituras arrumadas com esmerosobre a mesa de centro da sala.

– Ah, são só os arranjosprontos do Concerto do Herói –respondi, casualmente. – Quer um

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café?– Até parece... – respondeu

ele, e então fez uma cara deespanto que chegou a ser cômicaao se dar conta do que estavavendo.

Andei com calma até acozinha, servi o café e, quandovoltei para a sala, vi Thom jáfolheando as partituras, do mesmojeito que eu tinha feito.

– Como? Quando? Quem?– Felix. Nas últimas três

semanas.– Está de brincadeira!– Não estou, não. – Sua

expressão me fez querer dar umsoco no ar.

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Ele pigarreou, fazendo a vozdescer uma oitava.

– Bom, não sei quanto àqualidade, claro, mas... – falou.

Observei-o começar acantarolar a parte do oboé, asviolas, e em seguida examinar ostímpanos e começar a rir.

– Maravilha! Gostei muito.– Você ficou bravo?– Depois eu digo. – Ele

então olhou para mim, e vi nosseus olhos entusiasmo e respeitogenuíno. – Mas à primeira vistaFelix fez um trabalho incrível.Esqueça o café; vou ligar paraDavid Stewart para pegá-lo antesde ele sair. Vou levar as partituras

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para ele agora mesmo. Tenhocerteza de que vai ficar tãosurpreso quanto nós.

Ajudei-o a recolher aspartituras e acenei para ele daporta, desejando-lhe boa sorte.Estava empolgadíssima.

Em pé diante da porta dafrente, ergui os olhos para asestrelas.

– Pip, sua “heroína” vaienfim estrear – sussurrei.

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À medida que o outono foipassando e os preparativos para aapresentação do concertoganharam força, agora com osinspirados arranjos completospara orquestra de Felix, eu memantive ocupada com meuspróprios preparativos. Haviaentrado em contato com GeorgHoffman e explicado minhasituação. Ele concordou que pôrum teto, que em parte era meu,sobre a minha cabeça e a do meufilho parecia uma ideia sensata.Reuni minhas magras economiaspessoais e o pouco de dinheirodeixado por Theo e comecei areforma de Froskehuset. Uma

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imagem já havia se formado naminha mente: um lindo refúgioescandinavo, com piso e paredesde pinho claro de demolição,móveis assinados por jovensdesigners noruegueses e as maismodernas tecnologias de fontesde energia limpa.

Eu vinha lutando contra ofato de que, tecnicamente, tantoThom quanto eu deveríamos fazero que era correto com Felix e, nomínimo, conceder-lhe um terço dapropriedade da casa quandomexêssemos na escritura paraincluir meu nome. Quandomencionei o assunto a Felix, elesorriu.

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– Não, meu bem, obrigado.É muita gentileza sua oferecer,mas estou feliz aqui no meu chalée, de toda forma, nós doissabemos exatamente para ondeesse dinheiro iria.

Na semana anterior, alémdisso, a Peters Edições –conhecida como C.F. Peters naépoca em que publicava a músicade Grieg tantos anos antes, emLeipzig – já havia se informadosobre o Concerto do Herói, euma gravação estava programadapara o ano seguinte com aFilarmônica de Bergen. Comoherdeiro legal dos direitos deapresentação e publicação da

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obra do pai, sem falar em seupróprio trabalho nos arranjos,Felix tinha uma boa chance de vira ganhar bastante dinheiro caso oconcerto fizesse o sucesso queAndrew Litton esperava.

Com a consciência aliviada– quer isso se devesse ao instintode fazer ninho ou não –, foi commuito otimismo e entusiasmo queconversei com os comerciantes econstrutores da cidade, consulteiespecialistas em planejamento eolhei incontáveis revistas e sitesna internet. Pensei em comominhas irmãs morreriam de rir demim: Ally, interessada em designde interiores? E fiquei pensando

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no quanto os hormônios eramresponsáveis por muitas açõeshumanas.

Quando estava folheando umcatálogo com amostras de tecido,me dei conta, culpada, de que nãotinha ligado para Ma com adevida frequência desde quechegara a Bergen. Nem paraCelia, aliás. E agora que euacabara de passar da “faseperigosa” dos três meses, as duasmereciam saber a notícia.

Liguei primeiro para Ma, emGenebra.

– Alô?– Ma, sou eu, Ally.– Chérie! Que maravilha

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ouvir você.Sorri, aliviada ao ouvir o

tom caloroso e completamentedesprovido de reprovação em suavoz.

– Como você está? –indagou ela.

– Bom, para dizer a verdade,essa é uma pergunta e tanto –respondi, com uma risadapesarosa.

Então, em um discursopontuado pelas expressões desurpresa e assombro de Ma,contei-lhe sobre Thom e Felix ecomo as pistas de Pa Salt tinhamme conduzido aos dois.

– Espero que você entenda

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por que decidi ficar mais umpouquinho aqui em Bergen –disse, por fim. – E há mais umacoisa que não contei e complicaum pouco a situação: estougrávida do Theo.

Um silêncio momentâneo dooutro lado da linha foi seguidopor um arquejo de alegria.

– Mas que notíciamaravilhosa, Ally! Quer dizer,depois de tudo que você... de tudopor que você passou. Para quandoé o bebê?

– Dia 14 de março. – Acheiinformação demais lhe dizer que,após o ultrassom confirmar a dataexata prevista para o nascimento,

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eu havia calculado que o bebêfora concebido no dia ou porvolta do dia da morte de Pa.

– Ai, Ally, chérie, eu nãopoderia estar mais feliz por você.Está feliz também? – quis saberela.

– Muito – tranquilizei-a.– Suas irmãs também vão

ficar. Elas vão ser titias, eteremos um novo bebê emAtlantis. Já contou para elas?

– Ainda não. Queria contarpara você primeiro. Tenho estadoem contato com Maia, Estrela eTiggy nas últimas semanas, masnão estou conseguindo encontrarElectra. Ela não respondeu

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minhas mensagens nem meus e-mails. Quando liguei para oagente dela em Los Angeles edeixei recado, ninguém meretornou. Está tudo bem com ela?

– Tenho certeza de que eladeve estar só muito ocupada...você sabe como a agenda dela émaluca – respondeu Ma depoisdo que pensei ter sido umaminúscula pausa. – Até onde eusei, ela está bem.

– Bom, fico aliviada. Mas,além disso, quando liguei paraEstrela em Londres e pedi parafalar com a Ceci, ela só disse queCeci não estava. Não tive notíciade nenhuma das duas desde então.

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– Entendo – disse Ma, semse comprometer.

– Você tem alguma ideia doque está acontecendo?

– Infelizmente, não. Masnesse caso também acho que nãohá nada com que você precise sepreocupar.

– Você me avisa se tivernotícias delas?

– Claro, chérie. Mas me falemais sobre os seus planos paraquando o bebê nascer.

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Quando finalmente encerreia conversa com Ma, apósconvidá-la para o Concerto doCentenário de Grieg emdezembro, assim como a todas asminhas irmãs que ela conseguisselocalizar, digitei o número deCelia. Como Ma, ela pareceuencantada em me ouvir.

Eu já tinha decidido quequeria dar a notícia da gravidez aCelia ao vivo; sabia quanto essemomento seria emocionante paraela. Além disso, ainda faltavaresolver a questão das cinzas deTheo.

– Celia, infelizmente eu

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agora não posso falar muito, masestava pensando... você seimportaria se eu pegasse umavião para visitar você daqui auns dias?

– Ally, não precisa pedir.Você é bem-vinda aqui quandoquiser. Eu adoraria vê-la.

– Talvez a gente pudesse ir aLymington e... – Minha voz falhouao dizer essas palavras, sem queeu pudesse evitar.

– Sim, chegou a hora – disseela baixinho. – Vamos fazer issojuntas, como ele queria.

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Dois dias mais tarde, meuvoo pousou em Heathrow, ondeCelia me aguardava nodesembarque. Quando estávamossaindo do aeroporto em seu velhoMini, ela me olhou do banco domotorista.

– Espero que não se importe,Ally, mas nós não vamos paraChelsea, e sim direto paraLymington. Não sei se cheguei alhe contar que ainda tenho umchalé lá. É pequeno, mas é paraonde Theo e eu íamos nas férias

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escolares, para podermos velejarjuntos. Eu pensei que... que dealguma forma fosse adequado nósficarmos lá.

Estendi a mão e apertei asua, fechada com força em voltado volante.

– Parece perfeito, Celia.E era, mesmo. O pequeno

chalé ficava bem no centrogeorgiano de Lymington, cercadopor ruas calçadas de pedra epitorescas construções em tonspastel. Deixamos as malas noexíguo hall de entrada eacompanhei Celia até umaaconchegante sala com vigas noteto. Ela então segurou minha

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mão.– Ally, antes de eu lhe

mostrar o seu quarto, só queriaavisar que o chalé tem apenasdois quartos... um é meu, ooutro... bem, é onde Theo dormia,e é claro que ainda contém...muitas lembranças.

– Não tem problema, Celia –tranquilizei-a, como sempretocada por sua gentileza econsideração comigo.

– Talvez você queira levarsua mala lá para cima? Vouacender a lareira e começar apreparar o jantar. Trouxe umascoisinhas de casa para poderimprovisar alguma coisa para a

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gente. A menos que você prefiracomer fora...

– Acho ótimo ficar em casa,Celia, obrigada. Já desço paraajudar você.

Peguei minha mochila e subia escada. No alto, vi uma porta demadeira baixa na qual tinham sidoimpressas grosseiramente, com oauxílio de um molde vazado, aspalavras “Cabana do Theo”. Abria porta e vi uma cama estreitaembaixo da janela de guilhotina,com um surrado ursinho depelúcia cor de caramelo sentadonos travesseiros. As paredesirregulares estavam cobertas porimagens de iates, e acima da

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cômoda pintada pendia umaantiquada boia salva-vidaslistrada de vermelho e branco.Lágrimas fizeram arder meusolhos ao constatar a semelhançacom meu próprio quarto demenina em Atlantis.

– Minha alma gêmea –sussurrei, sentindo a energia deTheo à minha volta.

Então me sentei na cama,peguei o ursinho e o aperteicontra o peito. A consciência deque Theo jamais veria o própriofilho fez as lágrimas escorrerempelo meu rosto.

Nessa noite, Celia e euficamos conversando

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amigavelmente enquanto elapreparava um ensopado defrango. Um fogo crepitava nalareira da sala, e nosacomodamos para comer no sofádesbotado e molenga.

– Que lugar aconchegante,Celia. Agora entendo por quevocê ama tanto isto aqui.

– Tive sorte de herdar essacasa dos meus pais. Os doistambém gostavam de velejar, eaqui era o lugar perfeito paratrazer Theo quando ele erapequeno. Peter nunca foi muito fãda vela, e de toda forma estavaquase sempre viajando a trabalhonessa época, de modo que Theo e

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eu passávamos muito tempo aqui,fosse qual fosse o motivo.

– Falando em Peter, tem tidonotícias dele? – pergunteidelicadamente.

– Por estranho que pareça,tenho sim. Na verdade, eu diriaaté que estamos bem próximosnas últimas semanas. Ele tem meligado sempre, e estamos atéfazendo planos de ele passar oNatal comigo em Chelsea. Já quenós dois pelo visto estamos meiosem rumo. – Um leve rubor surgiunas bochechas delicadas deCelia. – Sei que isso pode soarestranho, mas é como se a mortede Theo de alguma forma tivesse

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levado embora a amargura entrenós.

– De forma alguma. Sei queele magoou você de um jeitohorrível, mas tenho realmente asensação de que reconhece oserros que cometeu e como eles amachucaram.

– Bom, Ally, ninguém éperfeito. E talvez eu tambémtenha amadurecido e vistoalgumas coisas que fiz de errado.Com certeza sei que, depois deTheo nascer, por muitos anos elese tornou o meu mundo. Eu afasteiPeter, e como você decerto jápercebeu ele não lida muito bemcom o fato de ser ignorado. – Ela

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deu um sorriso.– É, posso imaginar que não.

Mas pelo menos fico feliz quevocês tenham voltado a se falar.

– Na verdade, eu disse a eleque íamos espalhar as cinzas doTheo amanhã de manhã na horado sol nascer, mas não tivenotícias. Isso é a cara do Peter...– Celia suspirou. – Ele nunca foimuito bom em falar as coisas querealmente importam. Mas, enfim,chega de falar sobre mim. Querosaber tudo que você tem feito naNoruega. Você já comentou nocarro que estava seguindo aspistas deixadas por seu pai. Sequiser me contar, eu adoraria

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ouvir a história toda.Passei a hora seguinte

narrando os detalhes da minhaestranha jornada em busca dasminhas raízes. Como na conversacom Ma, o único detalhe queomiti foi a possível relaçãogenética com Edvard Grieg.Assim como Thom, sentia que eramelhor guardar segredo quanto aessa revelação. Sem provassólidas, ela nada significava, eera, portanto, irrelevante.

– Ora, estou pasma! –exclamou Celia quando terminei orelato e ambas afastamos nossasbandejas com o jantar. – Vocêencontrou um novo irmão gêmeo e

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um novo pai também. Quereviravolta extraordinária...Como está se sentindo com issotudo?

– Para falar a verdade, estouanimadíssima. Thom é tão... iguala mim – falei, com um sorriso. –E espero não estar sendoinsensível se disser que, emboratenha perdido meu mentor com amorte de Pa Salt e minha almagêmea com a de Theo, pareço terencontrado outro homem comquem posso formar um vínculo,embora de modo inteiramentediferente.

– Ally, querida, isso émaravilhoso, maravilhoso

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mesmo! Que viagem você feznessas últimas semanas...

– Na verdade, Celia, aviagem ainda não terminou. Temmais uma coisa que eu precisocontar. – Encarei-a nos olhos,reparei na sua expressão intrigadae inspirei fundo. – Você vai seravó.

A expressão intrigada setransformou em umaincompreensão momentâneadurante o tempo que ela levoupara processar minhas palavras.Sua boca então formou um sorrisoextático, e ela se esticou pelosofá para me dar um abraço bemapertado.

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– Ally, eu mal possoacreditar numa coisa dessas...Tem certeza?

– Tenho, sim. Uma médicade Bergen confirmou a gestação.E na semana passada fui fazer aprimeira ultra. – Levantei-me dosofá para pegar minha bolsa eremexi lá dentro até encontrar oque estava procurando. Peguei aimagem em preto e brancogranulosa e lhe entreguei. – Seique não está lá grande coisa, masCelia, esse é o seu neto... ou neta.

Ela pegou o ultrassom e oexaminou, traçando com os dedoso contorno embaçado daminúscula vida que crescia dentro

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de mim.– Ally.... – Quando ela enfim

falou, sua voz saiu embargada deemoção. – É... é a coisa maislinda que eu já vi.

Depois de rirmos,chorarmos e nos abraçarmos maisuma dezena de vezes, tornamos anos acomodar no sofá, ambas umpouco tontas.

– Pelo menos agora euconsigo pensar na nossa... tarefade amanhã com alguma esperançano coração – disse Celia. –Falando nisso, eu tenho um bote avela que fica na marina daqui.Acho que o mais óbvio a fazer épartirmos assim que o dia raiar

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e... pôr Theo para descansar nomar.

– Eu... eu sinto muito, masnão vou conseguir – gaguejei. –Depois que Theo morreu, jureinunca pôr os pés em um barco.Espero que você entenda.

– Entendo sim, querida, maspor favor, pense um pouco. Comovocê mesma disse, não se podesimplesmente bloquear opassado. Acho que você já sabeque Theo teria detestado pensarque a separou da sua paixão.

E nessa hora eu entendi que,por mais difícil que parecesse, eudevia aquilo a Theo e ao nossofilho: tinha que voltar ao mar.

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– Você tem razão, Celia –assenti, depois de algum tempo. –É exatamente isso que devemosfazer.

Na manhã seguinte, acordeicom o despertador do meu celularantes de o sol nascer, e fiqueialguns instantes desorientada atésentir a textura de algo áspero nabochecha. Acendi a luz dacabeceira e vi o velho ursinho depelúcia de Theo deitado no

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travesseiro ao meu lado. Estendia mão para pegá-lo e enterrei onariz no pelo áspero, como seassim, de alguma forma, fosseconseguir inalar seu espírito.Desci da cama, vesti rapidamenteuma legging e um suéter grosso edesci as escadas, onde Celia jáestava me esperando. Não foipreciso dizer nada quando olheipara a urna azul de aspectoinócuo que ela segurava.

As ruas de Lymingtonestavam desertas quando saímosdo chalé e descemos a pé até amarina sob a meia-luz leitosa queprecedia a aurora. Quandoparamos no píer de madeira onde

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o bote de Celia ficava atracado, oúnico outro sinal de atividade nosarredores era um barco de pescaali perto. Os dois tripulantes noscumprimentaram com um brevemeneio de cabeça, em seguidaretomaram a tarefa de remendaras redes antes de sair para apesca do dia.

– Theo teria adorado isso,sabia? O ritmo eterno das marés edo mar, que segue como semprefoi desde o início dos tempos.

– É, ele teria adoradomesmo...

Ambas nos viramos aoescutar a voz conhecida e vimosPeter caminhando na nossa

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direção. Observei a expressão deespanto de Celia e depois o jeitocomo seu rosto se acendeuquando ele lhe abriu os braços eela se aninhou junto ao seu peito.Fiquei parada onde estava,deixando os dois terem aquelemomento juntos, mas eles entãoandaram na minha direção e Peterme abraçou também.

– Então tá – disse ele, e suavoz falhou. – É melhor andarmoslogo com isso.

Enquanto Celia subia abordo, ele sussurrou no meuouvido:

– Só espero não dar vexamena frente de vocês duas

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vomitando o café da manhã nessahora tão solene. Não sou muitobom no mar, Ally.

– E no presente momento eutambém não – murmurei de volta.– Venha, vamos fazer isso juntos– falei, estendendo a mão paraele.

Embarcamos, e enquanto eutentava me acostumar com o fatode estar a bordo, nervosa, ajudeiPeter a se equilibrar e a se sentar.

– Pronta para partir, Ally?– Sim – respondi a Celia, e

tratei de içar as velas e desatar ascordas.

Os primeiros raios cor-de-rosa e dourados do sol já se

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estendiam para tocar o litoral,cintilando na crista das ondaspreguiçosas à medida queavançávamos a bordo do Solent.Enquanto Celia assumiu o leme,fiquei andando pelo convés paraajustar as velas. A brisa geladaimpulsionava a embarcação esoprava com delicadeza meuscabelos para longe do rosto, e,embora eu estivesse com medo devoltar ao mar, senti-meestranhamente em paz. Imagens deTheo passaram pela minhacabeça, mas, pela primeira vezdesde a sua partida, pensar neleme encheu tanto de alegria quantode tristeza.

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Quando chegamos a umponto a algumas centenas demetros da costa, de onde se tinhauma magnífica vista do porto deLymington, recolhemos as velas;Celia desapareceu debaixo doconvés e tornou a surgir segundosdepois segurando a urna azul.Fomos na direção de Peter, queestava na popa da embarcação,verde de enjoo, e o ajudamos aficar em pé entre nós duas.

– Segure você, Peter –instruiu Celia na mesma hora emque o sol da manhã finalmenterompeu o horizonte em toda suaglória.

– Preparadas? – perguntou

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ele.Aquiesci, e nós três pusemos

as mãos em volta da urna, tãoinsignificante vista de fora, masimbuída de tantos sonhos,esperanças e recordações.Quando Peter ergueu a tampa elançou o conteúdo ao vento,observamos a fina nuvem decinzas descer flutuando até sejuntar à espuma do mar láembaixo. Fechei os olhos comforça, e uma única lágrimaescorreu pela minha bochecha.

– Adeus, meu querido –sussurrei, e desci a mãoinstintivamente para acariciar acurva da barriga. – Saiba que o

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nosso amor continua vivo.

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46

7 de dezembro de 2007

Como sempre, acordei cedo,cutucada por um leve movimentodentro de mim. Verifiquei ashoras e vi que passava um poucodas cinco; torci para aquilo nãoser um prenúncio do futuro e parao bebê não ter estabelecido seupadrão de sono já dentro doútero. Ainda estava escuro lá fora

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quando espiei por entre ascortinas com os olhos cansados.Uma grossa camada de gelocobria a janela. Fui ao banheiro evoltei para a cama para tentardormir de novo. Sabia que aqueleseria um dia cheio. À noite, aSala Grieg estaria com sualotação máxima de 1.500espectadores para o Concerto doCentenário. Entre eles estariammeus amigos e parentes. Estrela eMa chegariam a Bergen de aviãoà tarde para assistir ao concerto,e pensar em encontrá-las me faziaformigar de tanta ansiedade.

De um jeito estranho, eusentia que minha gravidez e o

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bebê que crescia dentro de mimeram coletivos: embora eu fosse amãe e a responsável por ele, suavinda ao mundo dali a três mesescriaria um vínculo entre um grupode seres humanos até entãodíspares.

Além da ligação com opassado que eu acabara deresgatar – Felix, meu pai, e Thom,meu irmão gêmeo – havia tambémas cinco tias, que com certezamimariam muito aquela criança.Electra, que finalmente havia memandado um e-mail de parabénsem resposta ao meu, já tinhadespachado por FedEx uma caixarepleta de roupinhas de bebê de

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marca que custavam os olhos dacara. Eu recebera mensagenscomoventes de quase todas asminhas irmãs, e, naturalmente, deMa, que do seu jeito tranquilo ediscreto eu sabia que devia estarlouca para segurar o recém-nascido no colo e reviver aspreciosas lembranças de quandonós chegamos para ficar aos seuscuidados. E havia, por fim, o ladode Theo da família: Celia e Peter,que faziam parte do meu presentemais recente e também estariamna plateia naquela noite. Eu sabiaque eles também seriam umaparte muito bem-vinda do meufuturo e do futuro do meu filho.

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– O círculo da vida –murmurei comigo mesma, epensei em como, pelo menos paramim, em meio a perdas terríveishouvera também vida e umaesperança renovada. Como Tiggyhavia comentado ao se referir àlinda rosa que floresce duranteseu tempo de vida, e depois aosoutros botões da mesma roseiraque começam a se abrir enquantoa primeira flor vai perdendo aspétalas, eu também haviaaprendido o milagre da natureza.E apesar de, em poucos meses,ter perdido as duas pessoas maisimportantes da minha vida, forapreenchida com um amor que, eu

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sabia, só faria se fortalecer. E mesentia abençoada por isso.

E nessa noite, depois doespetáculo, os diferentes fios daminha história iriam se encontrarpela primeira vez durante umjantar.

Isso me levou a pensarnovamente em Felix...

A programação da noite erabem direta: a primeira peçaapresentada seria a suíte PeerGynt, e na verdade quem estariana flauta seria eu, a tataraneta deJens Halvorsen, que tocariaaqueles primeiros e famososcompassos como ele havia feitomais de 130 anos antes, na

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estreia. Ou talvez até, como Thome eu havíamos refletido emparticular, a tataraneta do própriocompositor. Fosse como fosse,ambos tínhamos o direito de estarali. Thom estaria bem perto, noprimeiro violino – o mesmoviolino que era o segundoinstrumento de Jens –, e a históriados Halvorsen fecharia umcírculo completo.

A mídia tinha feito grandealarde em relação ao nossovínculo familiar, e o interessefora intensificado ainda mais pelofato de a segunda parte doprograma ser a estreia do recém-descoberto concerto para piano

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de Jens Halvorsen Neto,orquestrado por Felix, filho docompositor, que conduziria aorquestra ao piano.

Andrew Litton, o renomadoregente da Filarmônica deBergen, ficara extasiado aodescobrir aquela obra perdida eassombrado com os inspiradosarranjos de Felix, sem falar nopouco tempo que ele tivera paraconcluí-los. No entanto, quandoThom perguntou a David Stewartse o pai poderia tocar o concertona noite de estreia, o chefe daorquestra recusou na hora.

Depois dessa conversa,Thom voltou para casa e balançou

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a cabeça para mim.– Ele disse que conhece

Felix há muito tempo e que aestreia do concerto e aapresentação em si sãoimportantes demais para serempostas em risco. Eu admito queconcordo, Ally. Por maismaravilhosa que tenha sido a suaideia de reunir pela música... –Ele apontou para minha barriga. –... o que na realidade são cincogerações da família Halvorsen,Felix é o elo mais fraco. E se eletomar um porre na noite anterior esimplesmente não aparecer? Vocêsabe tão bem quanto eu que osucesso desse concerto depende

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do pianista. Se ele estivesse sótocando pratos lá no fundo seriaoutra coisa, mas, ao piano, Felixestaria no centro do palco. E aspessoas que mandam nafilarmônica não querem correr orisco de dar vexame se o nossopapaizinho querido não der ascaras. Como eu já contei, ele foidemitido anos atrás por terprovado que não era deconfiança.

Eu tinha entendido. Mas nãoestava disposta a desistir deFelix.

Assim, fora lhe falar no queThom e eu tínhamos batizado deseu “fosso” e perguntara se, caso

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eu brigasse por sua participação,ele poderia me jurar de pés juntos– pela vida do neto que estavapara nascer – que compareceria atodos os ensaios e estaria lá nodia do concerto.

Nessa manhã, Felix meencarou com seus olhos cansadose embaçados pela bebida e deude ombros.

– É claro que sim. Não queprecise ensaiar. Ally meu bem, euseria capaz de tocar dormindodepois de ter entornado algumasgarrafas.

– Você sabe que não é assimque funciona – repreendi. – E se asua atitude vai ser essa, então... –

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Virei as costas e comecei a andarem direção à porta.

– Está bem.– Está bem o quê? –

perguntei.– Eu juro que vou me

comportar.– Sério?– Sério.– Porque eu estou pedindo?– Não. Vou me comprometer

porque é o concerto do meu pai eeu quero fazer jus a ele. Etambém porque sei que ninguémvai conseguir tocá-lo melhor doque eu.

Fui então falar com DavidStewart pessoalmente, e depois

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de ouvi-lo recusar mais uma vez aparticipação de Felix ao piano,tenho vergonha de admitir quelancei mão de uma certachantagem.

– Afinal de contas, Felix éfilho de Pip e, portanto, éprovavelmente o detentor legaldos direitos do concerto – falei,com os olhos baixos para nãoficar vermelha. – Meu pai estátendo sérias dúvidas em relação apermitir que ele seja apresentado.Está preocupado que, se nãopuder tocar a música do que jeitoque o seu pai teria querido, entãotalvez seja melhor nem incluí-lano espetáculo.

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Eu estava apostando no fatode a orquestra quererdesesperadamente fazer a estreiamundial da mais empolgantecomposição norueguesa desde asobras de Grieg. E graças a Deusmeu instinto estava certo. Davidenfim cedeu e concordou.

– Mas vamos chamar Willempara ensaiar com a orquestratambém. Aí pelo menos se o seupai nos deixar na mão, a noite nãovai ser um desastre. E eu nem vouavisar à imprensa que ele vaitocar antes da apresentação.Combinado?

– Combinado – falei.Selamos o acordo com um aperto

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de mão e fui embora de cabeçaerguida, comemorandomentalmente o meu coup degrâce.

Embora Felix tivesse de fatocumprido a palavra e chegado nahora para os ensaios ao longo dasemana anterior, todos sabíamosque não havia garantia de que elenão fosse sumir na hora H. Afinalde contas, já tinha feito isso antes.

Felix não fora oficialmenteanunciado como pianista, e Thomme disse ter descoberto que doisprogramas diferentes haviam sidoimpressos: um com o nome deFelix, outro com o de Willem.

Senti-me um pouco culpada

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por isso. Não devia ser muitoagradável para o ego de Willemsaber que a primeira opção eraum bêbado envelhecido e poucoconfiável só porque o sobrenomedele era Halvorsen. Mas Willemtocaria o Concerto para Piano emLá Menor de Grieg na primeirametade do evento, o que pelomenos era um certo consolo.

Em uma noite da semanaanterior, eu fora ver Thom tocarna orquestra e Willem estava aopiano executando o Concerto paraPiano no 1 de Liszt. Ao observaraqueles dedos esguios etalentosos voarem por cima doteclado, suas narinas infladas e os

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cabelos escuros caindo por cimada testa, senti na barriga umconhecido friozinho que nadatinha a ver com o bebê abrigadodentro do meu corpo. E penseique pelo menos aquela minhareação física instintiva a elesignificava que, com o tempo, eutalvez viesse a superar a morte deTheo, mesmo que fosse demorarum pouco. Eu tinha 30 anos e umavida inteira pela frente. E estavacerta de que Theo não iria quererque eu a vivesse no celibato.

Por ironia, Thom e Willemtinham ficado próximos – noinício ligados pelo trabalho, masdepois por uma amizade pessoal

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que se desenvolveu em paralelo àrelação profissional. Thom ohavia convidado para ir à nossacasa na semana seguinte, e euainda não decidira se preferiaestar presente ou não.

Conformada enfim com ofato de que não conseguiria maisdormir naquela manhã, liguei olaptop para checar meus e-mails.Vi que Maia tinha me escrito eabri a mensagem.

Querida Ally, só para dizer queestarei pensando em você hoje. Queriaestar aí também, mas o Brasil ficamuito longe da Noruega. A gentetambém subiu para as montanhas,

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porque até para mim o calor do Rio éforte demais. Estamos na fazenda, enão consigo nem descrever quantoaqui é lindo. A casa precisa de muitareforma, mas pensamos emtransformá-la em um centro para ascrianças pobres poderem ter liberdadee espaço para correr e aproveitar estanatureza gloriosa. Mas chega de falarde mim. Espero que você e o nenémestejam bem, e mal posso esperar paraconhecer minha nova sobrinha ousobrinho. Estou muito orgulhosa devocê, irmãzinha. Beijos, Maia.

Sorri, satisfeita em constatarque ela parecia feliz, e fui tomaruma chuveirada antes de vestirminha calça de corrida, uma dasúnicas peças de roupa que ainda

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comportavam minha barriga cadavez mais volumosa. Recusava-mea gastar dinheiro com roupas degestante e passava a maior partedos dias usando um dos suétereslargos de Thom. Havia compradoum vestido preto para aapresentação daquela noite, eThom tinha comentadogentilmente como a roupa me caíabem, mas eu desconfiava queestivesse apenas sendo educado.

Desci as escadas e fui até acozinha improvisada,temporariamente instalada na salade estar até a reforma acabar, econstituída por uma bancada comuma chaleira elétrica e um micro-

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ondas. A cozinha de verdadeestava no osso, mas pelo menos ogrosso do trabalho já estavaconcluído, pensei. Tínhamos umboiler novo e os operários embreve iriam instalar a calefaçãosob o piso, mas a obra estavalevando o dobro do tempoprevisto, e eu estava em pânico,morrendo de medo de que a casanão ficasse pronta antes de oneném nascer. O instinto de fazero ninho continuava a meimpulsionar e, como eracompreensível, isso enlouqueciaos operários.

– Bom dia – falou Thom,aparecendo atrás de mim com os

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cabelos eriçados como sempreficavam logo depois de sair dacama. – Chegou o grande dia –disse ele com um suspiro. –Como está se sentindo?

– Nervosa, animada, epensando se...

– Se o Felix vai aparecer –entoamos em uníssono.

– Café? – ofereci quando aágua ferveu na chaleira.

– Sim, por favor. A quehoras o seu povo chega? –indagou ele, caminhandodistraído até as portas de vidronovas que davam para o terraço eproporcionavam uma vistagloriosa e desimpedida das

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coníferas e do fiorde lá embaixo.– Ah, em horários diferentes

durante o dia. Eu disse a Ma eEstrela para passarem na entradados artistas antes da apresentaçãoe darem um oi. – Meu estômagojá sensível se contraiu deansiedade ao pensar nisso. – Queridículo, né? Estou muito maispreocupada com o fato de umpunhado de amigos e parentes meverem tocar do que com o quequalquer crítico possa dizer.

– É claro. Nada maisnatural. Pelo menos você vaifazer seu solo logo no começo. Edepois a gente só vai ter de suaraté Felix tocar a última nota do

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Concerto do Herói.– Eu nunca toquei para uma

plateia tão grande – me queixei. –E com certeza não para umaplateia pagante.

– Vai correr tudo bem –disse ele, mas quando lheentreguei o café pude sentir queele também estava nervoso. Eraum grande dia para nós dois. Aquatro mãos, sentíamos ter geradouma nova entidade musical queestava prestes a vir ao mundo. E,nessa noite, como dois paisorgulhosos, iríamos testemunharseu nascimento.

– Vai ligar para o Felix paraver se ele está lembrado? – quis

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saber Thom.– Não. – Eu já tinha

decidido que não ligaria. – Eleprecisa se responsabilizar porisso sozinho.

– Verdade. – Thom deu umsuspiro. – Certo. Vou tomar umaducha. Você consegue estar prontapara sair daqui a vinte minutos?

– Consigo.– Meu Deus, tomara que ele

apareça.Foi então que me dei conta

de que, apesar de qualquerafirmação contrária, o fato deFelix aparecer ou não à noitesignificava ainda mais para Thomdo que para mim.

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– Ele vai aparecer. Eu seique vai.

Duas horas mais tarde,porém, quando ocupei meu lugarna orquestra para o ensaio e vi abanqueta do piano vazia, minhaconfiança murchou. Às dez equinze, quando Andrew Littonfalou que não podia mais esperarpara começar, segurei o celularentre as palmas das mãos quentes,tensa.

Não, eu não iria telefonarpara ele.

Willem já fora chamado paraassumir o lugar de Felix ao piano,e Thom lançou um olhar desoladona minha direção quando Andrew

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Litton levantou a batuta paracomeçar.

– Como você pôde fazerisso? Seu merda! – praguejeientre os dentes.

Bem nessa hora, vi meu paibiológico chegar correndo peloauditório em direção ao palco,ofegante e pálido.

– Duvido que alguém aquivá acreditar em mim – disse ele,subindo os degraus. – Mas aminha moto quebrou no meio dadescida do morro e tive que pedircarona para percorrer o resto docaminho. Trouxe comigo a gentilsenhora que me resgatou naestrada para servir de prova.

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Hanne, estou dizendo a verdade?Cento e um pares de olhos

acompanharam seu dedo queapontava para os fundos doauditório, onde estava em pé umamulher de meia-idade, nervosa eobviamente constrangida.

– Hanne, conte a eles.– Sim, a moto dele enguiçou

e eu lhe dei carona.– Obrigado. Haverá um

ingresso à sua espera nabilheteria para a apresentação dehoje à noite. – Felix se virou paraa orquestra e fez uma reverênciaexagerada. – Perdoem-me teratrasado vocês, mas às vezes ascoisas não são o que parecem.

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Depois do ensaio, vi Felixparado junto à entrada dosartistas fumando um cigarro e fuiaté ele.

– Oi, Ally. Me desculpe.Mas dessa vez, ao contrário dasoutras, foi por um motivolegítimo.

– Pois é. Quer ir beberalguma coisa?

– Não, meu bem, obrigado.Preciso ficar comportado parahoje à noite, lembra?

– Lembro, sim. Que coisaincrível, não é? São quatro ou atécinco gerações da famíliaHalvorsen reunidas hoje aqui.

– Ou da família Grieg,

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dependendo do ponto de vista –disse ele, dando de ombros.

– Ué... Você sabe sobreisso?

– É claro que eu sei. Annacontou para Horst em seu leito demorte e disse onde as cartasestavam escondidas. E meu avôme contou logo antes de eu irestudar em Paris. Já li todas elas.Bem picantes, não é?

A revelação casual medeixou pasma.

– Você nunca pensou emdizer nada? Em usar as cartas?

– Alguns segredos realmentedeveriam permanecer secretos,não acha, meu bem? E você, mais

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do que ninguém, deveria saberque o que importa não é a origemgenética, mas em quem a pessoase transformou. Boa sorte hoje ànoite. – Com isso, Felix acenoupara mim e saiu pela porta dosartistas.

Às seis e meia, Estrela memandou uma mensagem avisandoque ela e Ma tinham chegado. Fuibuscar Thom na sala depreparação dos músicos e juntossubimos o corredor; eu estavamuito nervosa com a ideia deapresentar meu irmão gêmeo àminha irmã.

– Ma – falei, apressando opasso ao me aproximar. Casual e

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elegante, ela usava um paletóChanel bouclé e uma saia azul-marinho.

– Ally, chérie, quemaravilha ver você. – Ma me deuum abraço e senti o cheiroconhecido de seu perfume,sinônimo de abrigo e segurança.

– Oi, Estrela. É maravilhosover você também. – Abracei-a,em seguida me virei para Thom,que observava minha irmã com aboca escancarada. – E este aqui éThom, meu mais novo irmão –apresentei-o. Estrela ergueu osolhos para ele e abriu um sorrisotímido.

– Oi, Thom – cumprimentou

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ela, e cutuquei-o para que elerespondesse.

– Ah, oi. É, ahn... é umprazer conhecer você, Estrela. Evocê também, Ma, ahn... querdizer, Marina.

Franzi o cenho para Thom,que estava se comportando demodo bem esquisito. Ele em geralera efusivo ao cumprimentar aspessoas, e fiquei um poucochateada por não estar sendoassim naquele momento.

– E nós estamos encantadasem conhecer você, Thom – falouMarina. – Obrigada por cuidar deAlly por mim.

– A gente cuida um do outro,

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não é, mana? – respondeu ele,sem deixar de olhar para Estrela.

Nesse instante, um avisopelo alto-falante chamou osmembros da orquestra parasubirem ao palco.

– Bom, infelizmente vamoster que ir agora, mas nos vemosno foyer depois da apresentação –falei. – Meu Deus, como estounervosa – completei com umsuspiro, beijando as duas para medespedir.

– Você vai se sairmaravilhosamente bem, chérie, eusei que vai – disse Ma para mereconfortar.

– Obrigada. – Acenei para

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elas e tornei a descer o corredorcom Thom. – O gato comeu sualíngua? – perguntei a Thom.

– Nossa, mas a sua irmã élinda, hein? – foi tudo que eleconseguiu dizer enquanto eu oseguia até o palco para nossaconversa com Andrew Littonantes da apresentação.

– Estou preocupada –sussurrei para Thom quandotornamos a subir ao palco

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exatamente às 7h27 da noite, sobaplausos ensurdecedores. – Eleainda parece estar sóbrio. E medisse que toca bem melhorbêbado.

Ao ver meu cenho franzidode genuína ansiedade, Thom deuuma risadinha.

– Eu sinto pena de Felix,sinto mesmo. Coitado, o cara nãoconsegue acertar! E, lembre-se,ele ainda tem a primeira metadeinteira da apresentação e ointervalo para remediar essasituação. Agora pare de sepreocupar com ele e aproveiteesse momento maravilhoso dahistória dos Halvorsens... ou dos

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Griegs. Amo você, mana –concluiu ele com um sorriso, enos afastamos para ocupar nossoslugares na orquestra.

Sentei-me entre os músicosda seção de madeiras, sabendoque dali a três minutos iria melevantar para tocar os primeirosquatro compassos de“Amanhecer”. E, como Felixtinha me dito mais cedo, poucoimportava quem havia meconcebido originalmente. Oimportante era eu ter recebido adádiva da vida, e cabia a mimfazer dela e de mim o melhor quepudesse.

Quando as luzes diminuíram

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e o silêncio tomou conta doauditório, pensei em todosaqueles que me amavam eestavam em algum lugar daquelaescuridão torcendo por mim.

E pensei em Pa Salt, quedissera que eu iria encontrarminha maior força no momento demaior fraqueza. E em Theo, quehavia me ensinado o que era amaralguém de verdade. Nenhum dosdois estava presente fisicamente,mas eu sabia que deviam estarmuito orgulhosos de mim meobservando lá de cima com asestrelas.

E então sorri ao pensar nanova vida dentro de mim que eu

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ainda não conhecia.Levei a flauta à boca e

comecei a tocar por todos eles.

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Estrela

7 de dezembro de 2007

As luzes do auditóriodiminuíram e vi minha irmã selevantar de seu lugar no palco.Pude ver o nítido contorno danova vida que ela carregavadesenhado por baixo do vestidopreto. Ally fechou os olhos porum instante, como quem faz umaprece. Quando finalmente levou a

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flauta à boca, uma mão segurou aminha e apertou de leve. E eusoube que Ma também estavasentindo a emoção daquelemomento.

À medida que a linda econhecida melodia que fizeraparte da minha infância e da deminhas irmãs em Atlantis flutuavapelo auditório, senti um pouco datensão das últimas semanasescorrer para fora de mimconforme a música ia ficandomais alta. Enquanto escutava,soube que Ally estava tocandopor todos aqueles que haviaamado e perdido, mas entenditambém que, assim como o sol

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nasce após uma longa noiteescura, sua vida agora tinha umanova luz. E, quando a orquestra sejuntou à sua flauta e o lindo somalcançou um crescendo,comemorando o raiar de um novodia, senti a mesma coisa.

No meu própriorenascimento, porém, outrostinham sofrido, e essa era a parteque eu ainda precisavaracionalizar. Só havia entendidorecentemente que existiam muitostipos diferentes de amor.

No intervalo, Ma e eu fomosaté o bar, e Peter e Celia Falys-Kings, que se apresentaram comoos pais de Theo, juntaram-se a

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nós para uma taça de champanhe.O modo como o braço de Peterrepousava de modo protetor nacintura de Celia os fazia parecerum jovem casal apaixonado.

– Santé – falou Ma, batendocom a taça na minha. – Que noitemaravilhosa, não?

– Sim, é mesmo – respondi.– Foi tão lindo quando Ally

tocou. Queria que as suas outrasirmãs tivessem estado aqui paraescutar. E o pai dela, claro.

Vi o cenho dela se franzircom uma súbita preocupação, eme perguntei que segredos elaestaria guardando. E que pesoeles a obrigavam a suportar.

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Assim como os meus.– A Ceci não conseguiu vir,

afinal? – perguntou ela, hesitante.– Não.– Vocês têm se visto

ultimamente?– Não tenho passado muito

tempo no apartamento, Ma.Ela não me pressionou para

saber mais. Sabia que nãoadiantava.

Senti a mão de alguém roçarmeu ombro e me sobressaltei.Sempre fui muito sensível aotoque. Peter rompeu o pesadosilêncio, embora com isso euestivesse acostumada.

– Oi, todo mundo. – Ele se

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virou para Ma. – Quer dizer que asenhora é a “mãe” que cuidou deAlly quando ela era pequena?

– Sou, sim – respondeu ela.– Fez um trabalho incrível.– Isso se deve a ela, não a

mim – retrucou Ma, modesta. –Todas as minhas meninas me dãomuito orgulho.

– E você é uma das famosasirmãs da Ally? – indagou Peter,voltando para mim os olhospenetrantes.

– Sou.– Qual é o seu nome?– Estrela.– E qual é a sua posição?– Sou a terceira.

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– Interessante. – Ele tornou ame encarar. – Eu também era oterceiro dos meus irmãos.Ninguém nunca me escutava nemprestava atenção no que eu dizia.Certo?

Não respondi.– Aposto que passa uma

porção de coisas pela sua cabeça,não é? – insistiu ele. – Na minha,pelo menos, passava.

Mesmo que ele tivesserazão, eu não iria concordar.Então dei de ombros e fiqueicalada.

– Ally é uma pessoa muitoespecial. Nós dois aprendemosmuito com ela – falou Celia,

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abrindo-me um sorriso caloroso emudando de assunto. Pude verque ela pensava que os meussilêncios significassem que euestava achando difícil lidar comPeter, mas não. Quem achava osmeus silêncios difíceis eram osoutros.

– Sim, é mesmo. E agora nósvamos ser avós. Que presente suairmã nos deu, Estrela – falouPeter. – E dessa vez quero estarsempre por perto do pequeno. Avida é curta demais, não é?

O sinal de dois minutostocou e todos à minha voltaesvaziaram os copos, por maischeios que estivessem. Tornamos

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a entrar no auditório e ocupamosnossos lugares. Ally já tinha mecontado por e-mail sobre as suasdescobertas na Noruega.Observei Felix Halvorsenatentamente quando ele subiu aopalco, e concluí que o vínculogenético não tivera nenhumimpacto nas característicasfísicas de Ally. Reparei tambémem seu passo arrastado aocaminhar em direção ao piano, eme perguntei se ele estariabêbado. Fiz uma pequena precepara que não fosse o caso. Peloque Ally havia comentado maiscedo, sabia o que aquela noitesignificava para ela e para Thom,

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o irmão recém-descoberto. Euhavia simpatizado com ele nahora, ao sermos apresentadosmais cedo.

Quando Felix levou osdedos acima do teclado e fez umapausa, senti todo mundo naplateia prender a respiração juntocomigo. A tensão só foi rompidaquando os dedos deles tocaram asteclas, e os primeiros compassosdo Concerto do Herói foramtocados em público pela primeiravez. Segundo o programa, poucomais de 68 anos após terem sidoescritos. Durante a meia horaseguinte, todos fomos testemunhasde uma apresentação de rara

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beleza, gerada por uma perfeitaalquimia entre compositor eintérprete, pai e filho.

Quando meu coração ganhouasas e se pôs a voar junto com alinda música, tive um vislumbredo futuro.

– A música é o amor àprocura de uma voz – falei entreos dentes, citando Tolstói. Agora,precisava encontrar a minha voz.E também a coragem para usá-la.

Os aplausos foramestrondosos e muito merecidos; aplateia inteira se levantou parabater os pés no chão e dar vivas.Felix fez várias reverências,então chamou o filho e a filha que

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estavam na orquestra para que sejuntassem a ele no palco, acalmoua plateia e dedicou aapresentação ao falecido pai eaos dois filhos.

Nesse gesto, vi uma provaviva de que era possívelcontinuar e operar uma mudançaque os outros acabariamaceitando, por mais difícil quefosse.

Quando os espectadorescomeçaram a se levantar, Matocou meu ombro e me dissealguma coisa.

Aquiesci, distraída, semescutar direito o que ela dizia, emurmurei que a encontraria no

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foyer. E fiquei sentada ali.Sozinha. Pensando. Enquantoisso, tive uma vaga consciênciade todos da plateia subindo oscorredores do auditório epassando por mim. Então, com orabo do olho, vi uma silhuetaconhecida.

Meu coração disparoudentro do peito, meu corpo selevantou por vontade própria, esaí correndo pelo auditório vazioaté a multidão que se aglomeravajunto às saídas, no fundo. Tenteidesesperadamente tornar a ver oque tinha visto, implorando paraaquele perfil inconfundívelreaparecer para mim no meio de

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tanta gente.Abri caminho até o foyer, e

minhas pernas me carregaram atéo lado de fora e o ar gelado dedezembro. Fiquei parada na rua,torcendo para ver de novo sópara ter certeza, mas a figuratinha desaparecido.

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Agradecimentos

Muitas pessoas me ajudaramcom a pesquisa para o livro Airmã da tempestade:

Os amigos da minhafantástica editora, CappelenDamm, tiveram papel fundamentalem me apresentar às pessoas comquem tive que falar. Meu primeiro(e maior) obrigada, portanto, vaipara Knut Gorvell, JoridMathiassen, Pip Hallen e MariannNielsen.

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Em Oslo:Obrigada a Erik Edvardson,

do Museu Ibsen, a Lars Roede, doMuseu de Oslo, e a ElseRosenqvist e Kari-Anne Petersen,do Museu Norsfolke.

Também preciso mencionarBjorg Larsen Rygh, da CappelenDamm (cuja dissertação sobresistemas de esgoto eencanamentos de Christiania em1876 saiu bem melhor que aencomenda!).

Obrigada ainda a HildeStoklasa, da Oslo CruiseNetwork, e um agradecimentomuitíssimo especial à equipe doGrand Hotel, que me serviu

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comida e bebida a todas as horasdo dia enquanto eu escrevia aprimeira versão desta obra.

Em Bergen:Tenho uma dívida com John

Rullestad, que me apresentou aErling Dahl e a Sigurd Sandmo(respectivamente ex-diretor eatual diretor do Museu Grieg emTroldhaugen), e também comHenning Malsnes, da OrquestraFilarmônica de Bergen, e a MetteOmvik, que me forneceu algunsótimos detalhes sobre o teatroDen Nationale Scene. Alémdisso, o renomado compositornorueguês Knut Vaage meexplicou o processo de

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composição orquestral.Por fim, não posso deixar de

agradecer à equipe do HotelHavnekontoret, que cuidou demim durante minha estadia nacidade.

Em Leipzig:Muito obrigada a Barbara

Wiermann, do Real Conservatóriode Música, e a minha encantadoraamiga Caroline Schatke, daeditora Peters, cujo pai, Horst,fez com que nos reuníssemos sobas circunstâncias mais fortuitas ecomoventes possíveis.

Como não levo muito jeitopara o mundo das coisas náuticas,fui auxiliada em todas as questões

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marítimas por David Beverley, ena Grécia por Jovana Nikic eKostas Gkekas, da “Sail in GreekWater”. Por seu auxílio com apesquisa sobre a Regata Fastnet,gostaria de agradecer tanto àequipe do Royal London YachtClub quanto às pessoas do RoyalOcean Racing Club, em Cowes.Além disso, preciso dizerobrigada a Lisa e ManfredRietzler, que me levaram parapassear no seu Sunseeker e memostraram tudo de que o iate eracapaz.

Também gostaria deagradecer a Olivia, minhafantástica assistente, e à minha

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esforçada equipe de edição epesquisa, formada por SusanMoss e Ella Micheler. As trêstiveram que trabalhar em horáriosmuito flexíveis para conseguircuidar não apenas da série AsSete Irmãs, mas também dareescrita e da edição de meusoutros títulos em catálogo.

Obrigada a meus trintaeditores internacionais mundoafora, em especial CatherineRichards e Jeremy Trevathan, daPan Macmillan do Reino Unido,Claudia Negele e GeorgReuchlein, da Random HouseAlemanha, Annalisa Lottini eDonatella Minuto, da Giunti, na

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Itália, e Peter Borland e JudithCurr, da Atria, nos EstadosUnidos. Todos me deram grandeapoio e abraçaram os desafios eas emoções de uma sériecomposta por sete livros.

Obrigada à minhaespetacular família, que tem semostrado tão paciente ao me verpassar a vida sempre com ummanuscrito e uma caneta atiracolo. Sem Stephen (quetambém faz as vezes de meuagente), Harry, Bella, Leonora eKit, essa jornada literáriasignificaria muito pouco.Obrigada à minha mãe, Janet, àminha irmã, Georgia.

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Agradeço ainda a JacquelynHeslop e aproveito para fazeruma menção muito especial a Flo,minha fiel companheira deescrita, que perdemos emfevereiro e de quem aindasentimos muita falta. E tambémcito com carinho Rita Kalagate,João de Deus e todos os meusincríveis amigos da Casa DomInácio, em Abadiânia, no Brasil.

Por fim, obrigada a vocês,leitores, cujo amor e forçaenquanto viajo aos quatro cantosdo mundo e ouço as suas históriassão para mim uma fonte deinspiração e humildade.

São coisas assim que me

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fazem perceber que nada do queeu possa vir a escrever é capazde competir com a incrível einfinitamente complexa jornadaque é estar vivo.

LUCINDA RILEYJunho de 2015

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Nota da autora

A série As Sete Irmãs, baseadana mitologia da constelação dasSete Irmãs das Plêiades, é umprojeto imenso: sete livros, seisdos quais sobre cada uma dasirmãs adotadas por Pa Salt mundoafora e levadas para Atlantis, suacasa de conto de fadas aninhadaem uma península particular àsmargens do lago Léman, emGenebra.

Tantos leitores me

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escreveram com perguntas sobrea série e possíveis respostas paraos mistérios levantados peloprimeiro volume que decidiincluir uma seção de Perguntas eRespostas em cada livro.

Para mim, a série nada maisé do que uma grande narrativaque estou dividindo em setepartes, embora os livros sejamtodos “independentes” e ahistória de cada uma dessas irmãstão singulares possa ser lida emqualquer ordem, já que asnarrativas começam no mesmomomento. Por trás de cadahistória, porém, existe um fiooculto e delicado que as une: a

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trama completa que vai formar osétimo volume da série.

A pesquisa para oselementos alegóricos e históricosda trama foi um grande desafio.Espero que as Perguntas eRespostas a seguir possamexplicar um pouco o fundohistórico da série e da trajetóriade minha incrível Ally.Entretanto, apesar do lado“técnico” envolvido na redaçãoda trama e necessário paraacertar cada pequeno detalhe, asérie As Sete Irmãs foi, comosempre, escrita de formatotalmente holística, e apenassegui o caminho que meus

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personagens me indicaram.Escrever muitas vezes é para mimuma jornada emocionante esurpreendente, como espero que aleitura tenha sido agora paravocê.

No sitewww.thesevensistersseries.com,você poderá ler mais sobre aconstelação das Plêiades e amitologia ligada a ela, além deencontrar informações sobreGrieg e sua obra-prima ¬– a suítePeer Gynt –, o Conservatório deMúsica de Leipzig, a regataFastnet e a orquestra mais antigado mundo: a Filarmônica deBergen.

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Por fim, muito obrigada porse interessar pela história deAlly. Sei que ela é longa, mas sóposso concluir uma narrativaquando o personagem me diz queela terminou – por enquanto...

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Perguntas eRespostas

1) O que a fez escolher aNoruega e a músicacomposta por Griegpara a peça Peer Gyntcomo ambientação paraA irmã da tempestade?

Eu tinha 5 anos quando meupai voltou de uma viagem àNoruega trazendo consigoum long-play em vinil dasuíte Peer Gynt, de Grieg.Essa ode à beleza do país e

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aos seus magníficos fiordesse tornou o fundo musical daminha infância. Meu pai medisse que no futuro, se eutivesse oportunidade, tinhade ir vê-los com meuspróprios olhos. Porcoincidência, pouco depoisdo falecimento dele, fuiconvidada para minhaprimeira sessão deautógrafos no exterior,justamente na Noruega.Lembro-me ter ficado comos olhos marejados noavião, voando em direção aolugar que ele chamava de“topo do mundo”. Assim

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como Ally, eu também sentiaque estava seguindo asinstruções de meu falecidopai. Depois dessa primeiravisita, estive na Noruegamuitas vezes e, assim comomeu pai, também meapaixonei por ela. Portanto,havia poucas dúvidas emrelação a qual seria aambientação do segundolivro da série.2) Que tipo de desafios

você teve de enfrentarao escrever o segundovolume de uma série desete livros? Em queisso foi diferente da

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redação do primeirolivro, As sete irmãs?

Foi só quando comecei atrabalhar na história de Allyque de fato me dei conta dodesafio que havia imposto amim mesma com aelaboração de uma série tãovasta e complexa. Além deescrever a história modernade Maia e Ally e realizar apesquisa exigida pelasseções históricas de cadalivro, tive que me certificarde que a cronologia seencaixasse de forma exatacom os movimentos da irmã

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anterior. Por exemplo, seAlly tivesse conversado comuma das irmãs em Atlantis,cada lugar e cada palavracitados precisavam serverificados para garantir otiming e a exatidãoperfeitos.

Isso sem falar em nãoperder o fio da meada datrama oculta que perpassa oslivros... ou nas referênciasalegóricas gregas eanagramas que servem debase à série. É mais oumenos como montar um cubomágico: uma linha seencaixa, mas aí outra sai do

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lugar. A série exigiu muitoda minha criatividade.Quero também que cadaromance possa se sustentarsozinho, de modo que tive deinventar justificativasinteressantes para explicaraos novos leitores a tramaprincipal de como Pa Saltadotou todas as meninas semser repetitiva demais paraquem já tivesse lido ahistória da primeira irmã.3) Como foi pesquisar os

acontecimentoshistóricos e culturais,além das figurasimportantes da Noruega

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que aparecem em Airmã da tempestade?

A irmã da tempestade ébaseado em personagensreais, como Edvard Grieg eHenrik Ibsen, embora aminha caracterização de suaspersonalidades nos livrosseja puro fruto da minhaimaginação e não se apoieem fatos verdadeiros. Astrajetórias de meuspersonagens fictícios (nessecaso, Anna e Jens) seentrelaçam com fatosrealmente ocorridos.

Os amigos da Cappelen

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Damm, minha editora, foramfundamentais para meapresentar à pessoas comquem eu precisava falar. Ena verdade boa parte dajornada fictícia de Ally embusca de seu passado tevepor base minha jornadanorueguesa de descoberta dahistória da peça Peer Gynt edo próprio Grieg. Algumasdas pessoas que conheciaparecem no livro como elaspróprias, e agradeço porpermitirem que eu usasseseus nomes reais.

Erik Edvardson, doMuseu Ibsen, foi meu

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primeiro interlocutor. Foiele quem me contou queIbsen tinha pedido a Griegque compusesse uma músicaincidental para seu poema equem me mostrou asfotografias originais daprimeira montagem de PeerGynt. Ele então me contousobre a “voz fantasma” deSolveig, cuja verdadeiraidentidade permanecedesconhecida até hoje. Issome deu a chave para ahistória “do passado”. Todaa perspectiva histórica davida na Noruega durante adécada de 1870 veio de Lars

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Roede, do Museu de Oslo.Estive em Bergen duas

vezes. Visitei o MuseuGrieg, em Troldhaugen, casaem que o compositor viveu,e tive até permissão para mesentar diante de seu piano decauda! Como sempreacontece ao descreverpessoas que de fatoexistiram, dei o melhor demim para lhes fazer justiça,sobretudo no caso de alguémtão importante para aNoruega e para o resto domundo como Edvard Grieg.

Em Bergen, tive ogrande prazer de conversar

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com o professor Erling Dahl,maior especialista em Griege detentor do Prêmio Grieg,que me guiou pelo MuseuEdvard Grieg, emTroldhaugen. Li o máximoque pude sobre o compositore seus contemporâneos eestudei os detalhes daprimeira montagem de PeerGynt. Por sorte, Grieg eraprolífico nas anotações emseu diário e nascorrespondências – e não hánada melhor do que ler aspalavras escritas por seuspróprios personagens; essa éa melhor janela que existe

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para sua alma. Além disso,preciso me lembrar semprede que sou em primeirolugar uma contadora dehistórias, não umahistoriadora.

Encontrei-me tambémcom Henning Malsnes, daOrquestra Filarmônica deBergen, que me explicoucomo se administra umaorquestra e me contoutambém o que haviaacontecido com o grupodurante a guerra. Estive, porfim, com o renomadocompositor norueguês KnutVaage, que me explicou o

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processo de composiçãosegundo uma perspectivahistórica.4) Agora, no segundo

volume da série, seusplanos para a conclusãodela mudaram ou vocêainda vê o mesmodesfecho?

O fim está planejado desde oinício. Os segredos queacabarão por ser reveladosestão todos na minha cabeça.Essa trama oculta perpassa asérie inteira como um fioinvisível, e preciso garantirque seja sutil e consistente

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ao longo de todos osvolumes. Só meu maridoconhece a trama do últimolivro, embora recentementetenha me dito que jáesqueceu!5) Não vemos só a Noruega,

mas também somoslevados à musicalLeipzig, na Alemanha.Você também esteve láfazendo pesquisas?

Estive. É uma cidade linda esua antiga glória está aospoucos sendo restaurada. AAlemanha é um dos meuspaíses preferidos, e estive lá

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muitas vezes para encontrarmeus leitores. Além disso, éclaro, Grieg passou três anoslá estudando e a Peters,editora de suas músicas e naépoca administrada por umamigo íntimo seu chamadoMax Abrahams, ainda temsede lá. Muitas vezes,quando estou escrevendo,estranhas coincidências meacontecem. CarolineSchatke, uma velha amiga,entrou em contato comigopara dizer que acabara dedeixar a Universidade deCambridge para trabalharem uma editora em Leipzig

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chamada Peters. Mandou-meum e-mail dizendo queestava sentada no mesmoprédio sobre o qual euescrevia na época. Essaeditora vem publicando asmúsicas de Edvard Griegdesde que elas foramcompostas, mais de cemanos atrás.6) Neste livro, você aborda

os horrores da SegundaGuerra Mundial, comojá fez em obrasanteriores. Por queconsidera esse umassunto tão importante aser explorado na sua

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obra?

A Segunda Guerra Mundialaconteceu menos de oitentaanos atrás. A maioria daspessoas hoje temantepassados que foram dealgum modo afetados porela. Esse conflito foi umaruptura terrível na históriado mundo e afeta qualquerromance ambientado emqualquer país entre 1938 e1945. Pesquisei a história deLeipzig e o sofrimento desua população judaica esinto que a destruição daestátua de Felix

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Mendelssohn foi um divisorde águas, algo marcantedemais para a cidade. Sabero que aconteceu na Noruegatambém me abriu os olhos,uma vez que se trata de umpalco da guerra raramenteestudado nas salas de aula.7) Você sempre teve

interesse por músicaclássica? E como issoinfluenciou suasdescrições no romance?

Pratiquei balé clássico dos 3aos 16 anos, de modo que fuicriada com música clássica.A suíte Peer Gynt, de Grieg,

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sempre foi uma das minhaspeças preferidas; tanto o“Amanhecer” quanto “Nosalão do rei da montanha”são verdadeiros símbolos damúsica. Essas melodiasestão tão enraizadas nacultura popular que todos asreconheceriam se asescutassem, pois já foramusadas (e abusadas) eminúmeros programas de TV,filmes, comerciais e atémesmo em parquestemáticos.8) Qual é sua melhor

lembrança da Noruega?Você descobriu alguma

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coisa que a fez mudaros planos iniciais parao livro?

Amei subir até Trondheim ever do avião os fiordes emontanhas de picos geladoslá embaixo. Meu objetivo éum dia, quando tiver tempo,fazer um cruzeiro por essaregião. Mas acima de tudogostei das pessoas queencontrei lá. Elas forammuito calorosas, muitoacolhedoras, e voltar àNoruega é sempre um prazer.9) Como Ally se compara à

sua equivalente

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histórica? Que aspectosdela você modernizou?

Na mitologia grega, Alcíone,a segunda irmã, eraconhecida como “A Líder”,e sua estrela é uma das maisbrilhantes da constelação.Sua homônima gregaprotegia o Mediterrâneo,tornando-o um mar calmo eseguro para os marinheiros.Para refletir isso para umpúblico moderno, fiz de Allyuma mulher corajosa e forte,que sabe o que quer e é umalíder nata. Ela ama o mar ese destaca como velejadora,

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mas também se apaixonaprofundamente por TheoFalys-Kings, que é umanagrama do rei da Tessália,amante de Astérope namitologia grega. O colar do“olho grego” que Theo lhecompra de presentesimboliza o fato de ela serprotetora dos marinheiros. Eé quando ela é forçada a seseparar do seu amado que atragédia acontece, assimcomo no mito grego.10) Neste livro, ficamos

sabendo um pouco maissobre o misterioso PaSalt. Tem sido um

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desafio guardar segredosobre o fim? E o quevocê achou dasespeculações de seusfãs sobre#QuemEhPaSalt?

Gosto de ler as diferentesteorias que as pessoasinventam, e às vezes riobastante com elas. Ficoentusiasmada que a sérietenha cativado tanto os meusleitores e que eles estejamfazendo tantas especulaçõesnas mídias sociais. É claroque ninguém exceto euconhece a verdade (eu e meu

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marido, se ele um diaconseguir se lembrar), e nãotem sido nenhum desafioguardar o segredo; tem sidomuito divertido.11) No final de A irmã da

tempestade, temos umbreve vislumbre doponto de vista deEstrela, a terceira irmã.Pode nos dar uma pistade como será suajornada?

Estrela é uma personagemfascinante e enigmática, eestou gostando de ir mais afundo em seu ponto de vista.

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Ainda estou escrevendo suanarrativa, ambientada naInglaterra. Explorar ahistória do meu próprio paíse suas diversas paisagens foiuma mudança. Além disso,significou que pude trabalharde casa, pois sempre precisopassar um tempinho morandono país sobre o qualescrevo. A história deEstrela vai nos levar dasflorestas da Cúmbria e dabeleza selvagem do Distritodos Lagos aos excessos e àroda-viva social da Londresda Era eduardiana.12) O que você gostaria que

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os leitores tirassem daleitura de A irmã datempestade?

Gostaria que meus leitoresse inspirassem na força e napositividade de Ally. Elapassa por muita coisa em Airmã da tempestade. Não seinem dizer quanto choreidurante as cenas da regataFastnet e principalmente nofuneral de Theo. Ally temuma determinaçãoinacreditável e, apesar detoda a tristeza que éobrigada a suportar,consegue encontrar uma

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nova fonte de criatividade,um novo lar e uma novafamília na qual criar seufilho. Justo como as últimaspalavras de Pa Salt para elapreviram: “Em momentos defraqueza, você vai encontrarsua maior força”. Esperoque isso seja verdade paratodos nós.

Visitewww.thesevensistersseries.compara mais informações sobre asérie e conhecer as referênciashistóricas e mitológicas usadasem cada livro.

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Sobre a autora

© Astrid Waller

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LUCINDA RILEY nasceu na

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Irlanda e, durante a infância,viajou muito, sobretudo para oExtremo Oriente, para visitar opai. Radicada em Londres, foiatriz de teatro, cinema etelevisão. Aos 24 anos, publicouseu primeiro livro, baseado emsuas experiências com adramaturgia. Sua paixão pelotema a levou a escrever váriosromances históricos quealcançaram os primeiros lugaresdas listas de mais vendidos.Atualmente vive entre a costabritânica e o Sul da França com omarido e os quatro filhos.

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www.lucindariley.com

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Bibliografia

A irmã da tempestade é umaobra de ficção com fundohistórico. As fontes usadas parapesquisar a época e os detalhesdas vidas dos personagens estãolistadas abaixo.

Henrik Ibsen. Peer Gynt,Penguin Classics,Londres, 1970.

William H. Halverson.

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Edvard Grieg: Lettersto Colleagues andFriends (Cartas acolegas e amigos), PeerGynt Press, Columbus,2001.

William H. Halverson.Edvard Grieg: Diaries,Articles and Speeches(Diários, artigos ediscursos), Peer GyntPress, Columbus, 2001.

Erling Dahl Jr. My Grieg: APersonal Introduction

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to Edvard Grieg’s Lifeand Music (Meu Grieg:Uma introdução pessoalà vida e à música deEdvard Grieg),Vigmostad & Bjoerke,Bergen, 2007.

Robert Ferguson. HenrikIbsen: A NewBiography (HenrikIbsen: Uma novabiografia), Faber &Faber, Londres, 2010.

M. C. Gillington. A Day with

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Edvard Grieg (Um diacom Edvard Grieg),Hodder & Stoughton,Londres, 1886.

David Monrad-Johansen.Edvard Grieg,Princeton UniversityPress, Princeton, 1938.

Rudolf Rasmussen. Rulle:De andre. Minner ogmeninger om livet påscene og podium (Osoutros: Memórias eopiniões sobre a vida

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no palco e no pódio),Classica Antikvariat,Oslo, 1936.

Museu Judaico de Oslo.What Happened inNorway? Shoah andthe Norwegian Jews (Oque aconteceu naNoruega? O holocaustoe os judeus daNoruega), Oslo, 2013.

Robert Graves. Greek Myths(Mitos gregos),Penguin, Londres, 2011.

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Robert Graves. A deusabranca, BertrandBrasil, Rio de Janeiro,2003.

Munya Andrews. The SevenSisters of the Pleiades(As Sete Irmãs dasPlêiades), SpinifexPress, Melbourne,2004.

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