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A Justiça Agoniza - Luiz Fernando Cabeda

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AA JUSTIÇA

AGONIZAA JUSTIÇA

AGONIZA

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Um quarto de século namagistratura não produznenhuma realização pífia navida burocrática; não produz aconsternação pelo tempo desilêncio, ou de gritos roucos,para ouvidos moucos; essetempo não sepulta senão aquem no passar dele construiua sua sepultura.

Não é necessário que o temade A Morte de Ivan Ilitch sereproduza como se fosse amaldição de Leon Tolstoi paracada um e para todos os juízes.

Este é um livro para aquelesque se recusam a encontrar notrabalho pela busca da justiçao delírio da morte.

A JUSTIA JUSTIÇA

AGONIZAA JUSTIÇA

AGONIZA

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Luiz Fernando Cabeda

A JU STI Ç A AGON I ZAE n sa i o so b r e a p e r da do vigor, da função

e do s e n t ido da j u s t iça no Pod e r Judi c i á r io

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© Copyright: Luiz Fernando Cabeda, 1999

Edição: Gilberto Mariot e Mauricio Barreto

Revisão: Marcia Benjamim

Editoração eletrônica: Wander Camargo Silva

Capa: Paulo Manzi

ISBN 85-87293-10-9

Todos os direitos reservados à

Editora Esfera Ltda.Travessa Dona Paula, 11301239-050 – São Paulo – SPFone: (0XX11) 3120-4766www.editoraesfera.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cabeda, Luiz Fernando A Justiça Agoniza: ensaios sobre a perda do vigor, da

função e do sentido da justiça no poder judiciário / Luiz Fern a n-do Cabeda. - São Paulo: Editora Esfera, 1998.

1. Justiça - Administração - Brasil 2. Justiça e política -Brasil 3. Poder judiciário - BrasilI. Título.II. Título: Ensaios sobre a perda do vigor, da função e dosentido da justiça no poder judiciário.

99-4560 CDU-342.56(81)

Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Justiça : Poder judiciário : Direito constitucional342.56(81)

2. Brasil : Reforma do judiciário :Direito constitucional342.56(81)

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Conheço o meu destino. Sei que algum dia o meu nome se aliará, em recordação, a algo

de terrível, a uma crise como nunca ocorreu, à mais tremenda colisão de consciências, a uma

sentença definitiva, pronunciada contra tudo aquilo em que se acreditava, exigia e santificava até então. Eu não sou um homem; sou dinamite.

Friedrich Nietzsche

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ÍNDICE

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

I. Os Juriscidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

II. O Reverso da Crise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

III. O Controle Externo pelo General . . . . . . . . . 27

IV. A Outra Morte de Herzog . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

V. A Justiça Agoniza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

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APRESENTAÇÃO

Com o presente texto feito manifesto, Luiz FernandoCabeda, um i ns id e r que não perdeu a faculdade do olharestranhado, acode em boa hora para informar sobre umdebate confuso, não raramente preso a objetivos políticosde moldar o Estado, mas necessário sobre a reforma do Ju-diciário brasileiro. Perspectivas e níveis de abstração suce-dem-se com rapidez e desenvoltura que desnorteiam ape-nas na primeira leitura, revelando-se, posteriormente,como estratégia adequada para expor de múltiplas formasuma ferida aberta da nossa sociedade: um Judiciário ago-nizante que faz entrever a agonia da própria justiça.

A constatação dessa agonia é a idéia central a confe-rir unidade aos cinco ensaios. O leitor em busca de expli-cações sistemáticas irá diretamente ao ensaio mais longo,cujo título foi estendido ao livro. Os exemplos de “destro-çamento da carreira”, “deterioração da atividade judican-te”, “formação do magistrado”, “decadência da literaturajurídica”, “corrupção da linguagem jurídica”, “nepotismo”e do brasileiríssimo contraste de “espírito conservador” e“proclamações libertárias”, seguidas vezes apresentadosem estilo de qualidade literária, falam por si.

Erra quem pensa que a agonia deve ser apenas credi-tada ao Judiciário e às suas instituições pouco ajustadas à

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justiça. Concorrem para tal a própria sociedade e seu usodo Judiciário (“falsa cultura da litigância”), concorrem ain-da os “juriscidas” e o “controle externo pelo general”. Esteúltimo foi exposto no ensaio homônimo, uma instiganteanálise da “Lei Orgânica da Magistratura Nacional” (LO-MAN), de 1979, na qual o general Ernesto Geisel atentouduradouramente contra a construção de um Judiciárioque se possa afirmar como expressão do Estado Demo-crático de Direito.

O ensaio “A outra morte de Herzog” merece um re-gistro especial como radiografia de uma ignominiosa “fle-xão do Poder Judiciário”, manifesta no julgamento da sen-tença do juiz Márcio José de Moraes pelo Tribunal Federalde Recursos. O caso é didático e recente. Não se pode dis-cutir seriamente a reforma do Judiciário sem arrancá-lodo esquecimento.

Peter Naumann

7APRESENTAÇÃO �

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I

O S J U R I S C I D A S

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Das tantas coisas de que se fala ou especula a propósi-to do final do milênio, uma há que encerra mesmo toda anoção de perplexidade própria da idéia de fim, mas deum fim sem recomeço. Trata-se da resignação vaga com aidéia de morte ligada a situações humanas que sempre fo-ram tidas como fontes de revivescência, porque nelas seamparavam as ações para que a vida recobrasse seu vigor,e os homens direcionassem seu destino, estabelecendoum pouco, na medida precária de suas forças, as caracte-rísticas de um mundo em que queriam viver.

De um lado, o lado da morte, houve um recrudesci-mento de crimes raciais, com uma diversificação de perse-guidos que nunca foi imaginada, e não são mais necessá-rias as certezas a respeito de inferioridade, perigo ounocividade pública, sempre inventadas como pretexto pe-los totalitarismos, para que a repressão por ódio se instale.O genocídio bate de novo à porta da civilizada EuropaOcidental, e a guerra dos Balcãs mostrou isso nos julga-mentos — poucos, para a proporção dos fatos, — já reali-zados na Corte Internacional de Haia. Não bastassem es-ses crimes de grande envergadura, mata-se sem motivo, nocotidiano, por morte cruel e absurda, e há mesmo umabanalização do homicídio no ato continuado, aqui noBrasil, de colocar fogo em notívagos e ébrios por diversão,como no de jogar recém nascidos no lixo. As notícias sem-pre dramáticas, sobre isso, vêm como espasmos, de temp o s

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em tempos, e dão até a impressão de que têm efeito multi-p l i c a d o r, pois geram um surto e depois cessam, mas o si-lêncio que cai parece que apenas esconde um drama quecontinua. Até ecoar de novo.

Do lado da vida, as instituições que o homem criou— escolas, hospitais, penitenciárias, Judiciário — não con-seguem dar resposta a problemas que só mais recente-mente ganharam proporções de avalancha ou de enxurra-da, como o das drogas, da prostituição infantil e do crimeorganizado. O Código Penal está em vias de ser ampla-mente modificado e, sem dúvida, o será para pior. Indíciodisso é a gama de crimes que, na esteira da tortura quetraumatizou os brasileiros durante o regime imposto pelosmilitares, passaram a ser classificados como hediondos.Trata-se de uma qualificação legal que abandona a idéiade sistema jurídico, assim definido por conter uma har-monia de princípios e definições normativas. Cria-se umaespécie de exílio da regra punitiva, e ela passa a incidir co-mo se estivesse fora do sistema, convertendo-se numa am-pla exceção. A possibilidade de erro judiciário aumentou,desde que se raciocine com base em situações absoluta-mente plausíveis de ser alguém acusado injustamente docrime hediondo de racismo, estupro ou seqüestro. A pró-pria definição legal — hediondo — contém a carga absur-da de imputação que torna o acusado quase indefensável.Além disso, e por exemplo, o que é racismo? Os juízes nãosabem responder, porque também desconhecem os con-ceitos básicos da sociologia e da antropologia que o dife-rencia do preconceito racial, da segregação racial e da dis-criminação racial. Os magistrados, e os juristas em geral,não encontram em seu saber metodologia suficientemen-te apta para distinguir todas essas figuras, cujo traço dis-tintivo é tão marcante, mas que o Direito confunde comsuas disposições de caráter meramente normativo.

A par da falta de respostas, que deveriam advir do la-do da vida, há uma segunda morte a ser lamentada. É o

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particular fenecimento no âmbito do conhecimento jurí-dico da capacidade para captar os fatos pela via do seu re-lato, isto é, de fazer dos autos judiciais um documento fiel,pertinente, profundo em seu conteúdo, do acontecimen-to efetivamente havido.

Palavras novas precisam ser criadas para descreverrealidades que se impuseram antes que pudessem ser no-meadas por composição dos termos correntes, e exigiramsíntese que remetesse imediatamente ao sentido recémdescoberto. A segunda morte fez surgir um novo assassino.A palavra j ur i sc id a se impõe para reconhecimento daqueleque opera essa morte do Direito, daquele que o mata a ca-da dia, sistematicamente, porque não sabe reconhecê-lo,nem dele extrai nenhum valor, e também o banaliza comoutras formas fatais que já não suscitam revolta e dor aquem assiste. O j ur i sc id a entupiu o Judiciário com açõesdespropositadas, transformando-o numa grande catedralde papel, onde as palavras que sempre tiveram sentido, eforam inspiradoras da difícil construção de um poder po-lítico independente incumbido dos julgamentos, ficaramocas, e hoje s e nt im e nto de justiça, lealdade processual, lógican o rm a t i v a e outras expressões fundamentais para entendi-mento e aplicação do Direito são palavras ao vento. Pa-lavras, palavras, palavras... que os j ur i sc id a s a s s a s s i n a r a mcom a vulgaridade de seu trabalho aquém e além dos can-celos judiciais, sob togas, batas, becas, arminhos debrua-dos... Eis aí praticado, sem piedade, o crime com pompa,o crime arrogante.

Hoje, a pretexto de reparar situações supostamenteiníquas, os j ur i sc id a s jogam, a rodo, ações, denúncias, re-clamações aonde quer que exista um protocolo judiciárioe, por sua vez, obtêm a resposta necessariamente tardia naforma de julgados disparatados, oriundos de processostreslidos. A justiça assim praticada mata todo o esforço pa-ra elevá-la ao sentido próprio do termo. Pedir qualquercoisa, repetir fórmulas pré-impressas em computador, te-

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nham elas ou não pertinência com o caso em exame, é aprática que se mostra eficiente para assassinar o Direito.Diria o incauto que, se a injustiça está nas ruas, ela teriaque fluir para os tribunais. Não se trata disso; trata-se docontrário: de uma injustiça que está mal descrita ou carac-terizada, ou que não aconteceu, ou que não é injustiça emsi mesma (pois deriva de uma circunstância que não foipercebida por quem a denuncia sem base) ou, pior ainda,trata-se de uma injustiça nova, aquela que é exatamentebuscada pelos mesmos caminhos que só poderiam ser tri-lhados por quem procura a justiça... Essa injustiça em simesma é o fruto do trabalho do juriscida.

Há uma falsa cultura da litigância que faz com que,por exemplo, a Alemanha (que tem a metade da popula-ção e uma estrutura do Judiciário Trabalhista muito seme-lhante à do Brasil) registrasse cerca de 4.500 ações recla-matórias em 1998, enquanto que aqui foram interpostasaproximadamente 2.5000.000 no mesmo ano. O argumen-to a respeito de que faltam entre nós instâncias intermediá-rias não dá nenhuma resposta para essa desproporção e so-mente serve para expor mais nosso gradativo e inexorávelperecimento institucional.

Os tribunais brasileiros, e não foge a isso o SupremoTribunal Federal, procuram dar resposta à torrente deações efetivando julgamentos em massa (não menos dedez mil por ano naquela corte, composta por apenas onzeministros). O Tribunal Superior do Trabalho, no final de1998, provocou a edição mais volumosa de um jornal nomundo, ao publicar as intimações dos processos ali julga-dos, no Diário da Justiça. Trata-se de uma lógica da multi-plicação que ganhou o automatismo dos resultados acei-tos como se prescindissem de causa. Pelo absurdo, que aomenos se repetisse Unamuno: Contra el dolor, más dolor.

O que há de novo, como atitude, é a aceitação resig-nada dessa grosseira e brutal forma de morte. A noção definalidade da Justiça deve ser acessível a qualquer um,

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mesmo ao rústico e ao analfabeto, desde que os letradosentendam a necessidade dela, e usem as palavras que co-nhecem para alcançá-la concretamente, não para produ-zir seu engodo bem remunerado, nas catedrais de papeltransformadas em sucata, em regurgitamento e tédio dacivilização. Especialmente, não as usem em cumplicidadecom a mais letal dentre todas as formas de morte do D i r e i-to, que — esmagada pelo entulho — hoje é uma palavralançada ao degredo, corrompida pelo nada, desonradapelo seu emprego.

Os brasileiros numerosos que têm sua vida compro-metida pelos milhões de processos iníquos que tramitam,em ações de trânsito, de família, fiscais, trabalhistas, e quemorrem um pouco a cada vez que os atos processuaistranstornam suas existências, pois não querem formar umpovo conduzido pela aposta ou pelas transações menorese sempre frustrantes, têm agora o nome de um novo s er i a lk i l l e r, o j ur i sc id a. Sabem, sofridamente, que é preciso, e ur-gente, exterminá-lo antes de morrer em suas mãos.

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II

O REVERSO DA CRISE

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I – A C R Í T I C A S I S T E M AT I Z A D A

Aqueles que falam tão seguidamente sobre a crise doDireito, ou sobre a crise da Justiça, têm um débito paracom a sua própria memória, e o gosto pela repetição. Essetema já foi desenvolvido no país, com abordagens radicaise célebres. Retomá-lo é como buscar o efeito repristinató-rio das leis e, honestamente, não se pode mais falar emcrise, mas nos resultados dela, nos diagnósticos que foramfeitos. A análise que se impõe é outra, é a que busca mos-trar o reverso. É a que quer encontrar os marcos da críticadessa crise.

Os anos ‘50 assinalam no Brasil a revisão teórica dospostulados do Direito que não haviam dado cert o e que, emoutras palavras, continham-se nos limites de princípiosc o n s e rvadores. Todas as questões estavam postas de novoe os motivos justificadores dos institutos, fórmulas jurídi-cas e — especialmente — resultados obtidos pela jurisdi-ção passavam pelo crivo de críticas abrangentes, que repu-nham ou retiravam significados. Foi então que surgiu aobra-prima “A Crise do Direito” (São Paulo, Ed. MaxLimonad, 1955), raridade bibliográfica que nem mesmocostuma constar no extenso rol de publicações de seu au-tor, Orlando Gomes, e não foi reeditada.

Questionava-se então, e sobretudo, o Direito positivo e arelação com a re al id ade social e f et iv a, sua elaboração e suaaplicação frente a esta. Foi esse o tempo de “A Crise do Di-reito”. Orlando Gomes revisou o quadro de insuficiência ede descrença na legislação. Levantando a tese da decadên-cia do jurista francês Ripert, — e mais especialmente a ano-mia denunciada por Léon Duguit —, ele questionou ponto

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a ponto os temas da força geradora dos direitos; o declínioda interpretação imanente das normas (que sempre lhesatribuiu um certo sentido anímico e, assim, de fetiche); aformação de regras heterônomas em relação ao Estado,cuja efetividade era crescente; a falsa noção dos silogismosp e rfeitos e, por fim, mas principalmente, a desmoralizaçãoda teoria da autonomia da vontade, diante do molde docontrato de adesão (ou de outras formas em que a manifes-tação de vontade é acessória e não substantiva), de largoemprego. Questionamento tão amplo recolocou historica-mente o estudo do Direito, superando uma espécie de clas-sificação paleontológica que dele o positivismo fazia.

A elaboração dogmática do Direito recuperou corres-pondência com uma realidade histórica e podia ser tecni-camente considerada a existência de um Direito burguês,mas também que a expressão deste engendrava realidadesdiversas, e foi a partir destas, do fim para o começo, que oquestionamento da dogmática ganhou corpo. Finalmente,sem ser cientificamente blasfemo, podiam ser lembradas asmais amargas, candentes e radicais imputações a um Dire-ito insuficiente, dando-se curso a isso na própria elabora-ção da crítica, sem abandono da abordagem jurídica.

O mesmo Orlando Gomes havia tratado de formapioneira a questão dos direitos gerados pelas convençõescoletivas do trabalho. Identificava nelas a força da produ-ção de normas jurídicas paralelamente ao Estado, “comoum dos aspectos da transposição da luta de classes para oplano jurídico”, uma vez que tal normativismo produziaum d ire ito objetivo, à margem do d ire ito estatal. Quarenta equatro anos depois, ao retomar de certa forma o tema de“A Crise do Direito” no livro “Transformações Gerais doDireito das Obrigações”, mas agora numa reflexão nadairruptiva, Orlando Gomes confessou o cometimento deequívoco e, fundado principalmente na teoria do negóciojurídico de Emílio Betti, proclamou que a convenção cole-

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tiva, como negócio jurídico privado, não poderia fazersurtir direito objetivo.

A questão das convenções coletivas era cara àquelesque pretendiam desenvolver um estudo crítico do Direito,desde que sabido ter o Estado Novo antecipado conquistassociais como fruto da outorga estatal, sobrepondo-se aoaproveitamento delas como bandeira pelos movimentosrevolucionários dos anos ‘20 e ‘30. Evaristo de Moares(pai), que havia colaborado na implantação de um sistemade proteção ao trabalho de caráter corporativo, trazido nobojo da Revolução da Aliança Liberal, escreveu em seus“Apontamentos de Direito Operário” a observação de Gi-anturco de que “a questão social reside no Código Civil”.

Eis aí um ponto de difícil encaminhamento, pois se aautonomia da vontade não construía uma ordem socialharmônica, e mostrava-se seguidamente como um mito,por outro lado havia uma legislação protetiva abundante,que supostamente equalizava interesses. Acreditar, portan-to, que as convenções coletivas conteriam os elementosque a legislação estatal não suportava, equivalia a deduzirde esquemas interpretativos que, quanto ao Direito, comoquanto à Economia, à Filosofia e à Política, eram precá-rios como teoria, e negavam a verdade histórica tantas ve-zes buscada.

Foi o próprio Orlando Gomes que, por essa mesmaépoca (1959), publicou “Marx e Kelsen”, texto curto emque expôs — em nível descritivo — a interpretação mar-xista do Direito, de acordo com as versões de Stuchka,Pashukanis e Vichinsky, em contraposição à visão kelsenia-na da norma jurídica pura, vinculada unicamente ao Di-reito Positivo e analisada sem qualquer causação, configu-rando-se como a quintessência do Direito burguês. Naverdade, Stuchka encerrava as normas jurídicas dentrodas relações sociais, enquanto Pashukanis apresentavauma variação dessas relações que, estabelecidas com baseno interesse econômico, ganhavam f o rm a específica, so-

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brevalorizada na sociedade burguesa, mas tendente a de-saparecer com a construção do socialismo e a implantaçãode mecanismos sociais, de inspiração técnico-econômica,sobrevenientes ao “perecimento da superestrutura jurídi-ca em geral”. Andrei Vichinsky sustentou que as teoriasantecedentes impediam o desenvolvimento do estudo ju-rídico no mundo socialista e defendeu a idéia de aprovei-tamento do arcabouço jurídico burguês, como forma derepresentação útil, mas desmitificada. Tratou da verdadejudiciária, fruto da consideração pelo juiz das implicaçõesdo ato examinado, tendo em vista as instituições do Esta-do e da sociedade, de modo a não ficar fixado numa ver-dade só dos fatos, de caráter absoluto. Por exemplo, emmatéria de Direito Penal, isso queria dizer que as provascircunstanciais precediam as materiais em sua valoração, epor isso não havia a necessidade de definição anterior docrime e da pena. Como bem esclareceu Umberto Cerroni,a partir de 1954 (ano em que morreu Vichinsky), essasteorias entraram em desconcerto e a manifestação de ou-tros juristas, com apoio em decisões do Tribunal Supremoda URSS, indicava sua lógica de irrecusável ilegismo. Alémdisso, em especial a partir das denúncias de Khrustchevem 1956, a figura de Vichinsky ficou irremediavelmente li-gada aos chamados Processos de Moscou, em que atuoucomo Procurador-Geral da União Soviética, e sua teoriajurídica é, por ironia da representação que ele tanto caus-ticou no Direito burguês, expressão rala do stalinismo ede seus crimes.

Não fosse pelo esquematismo, seria difícil entenderporque Orlando Gomes, em 1959, apresentou idéias deVichinsky como representativas do marxismo. Ocorre quehavia um espírito de questionamento na época, e, comose sabe, as críticas prescindem de paternidade, valem peloque instabilizam.

O Estado Novo também havia construído um estigmapara a Velha República, que recaiu sobre Wa s h i n g t o n

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Luis. Coube por ironia a Evaristo de Moares Filho, não ce-dendo à tentação de celebrar a corrente a que se filiou seupai, demonstrar que o ideário reformista da Revolução de‘30, realizado no Estado Novo, serviu-se da tese de que “aquestão social é um caso de polícia”. A frase foi produzidapelo DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda. Ogoverno de Washington Luis teria primado pela soluçãonegociada dos conflitos sociais, criando mesmo câmarasde conciliação especial para reger os dissídios na área ru-ral. Todavia, é também verdade que as greves da décadade ‘20 foram encaradas como arruaças e a tônica naqueletempo foi a repressão e o desterro de trabalhadores imi-grantes. A frase fabricada pelo DIP está de acordo com ospronunciamentos que eram então corriqueiros, e serv i uàquele tempo como representativa dele, independente daintenção de um ou outro governante, pois a sociedadeque estava presa a um patriarcado patrimonialista nãoconseguia gerar Direito reformador.

Conquanto as críticas esbarrassem em verdades ementiras, como na confusão de umas com as outras, o es-sencial é que, a partir dos anos ‘50, principalmente, elaspuderam obter um grau de sistematização que não haviasido produzido antes. Há uma homenagem a prestar aosque erraram, mas criticaram. Dentre eles, com destaque,Orlando Gomes.

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II – A J U S T I Ç A D A C R I S E

Embora isso possa ser tido como uma interpretaçãomeramente funcionalista, a verdade é que o enfoque dacrise não está mais centrado no Direito, mas especialmen-te na Justiça. Há uma pródiga legislação que permite aoseu intérprete e aplicador plena desenvoltura para não fi-car prisioneiro da regra.

Erram os que supõem que o Judiciário passa por umacrise. O que há é a ausência de um efetivo poder organiza-do a partir dos elementos que lhe dão fisionomia, é umaJustiça da crise. Não é possível dizer que chegou-se a umponto de paroxismo porque a crítica do Direito não con-seguiu consumar uma síntese, ou seja, porque ela não ge-rou um Direito novo. Não há esse Direito novo. O Direitonovo é o Direito velho que foi reinterpretado por homensque viveram (ou vislumbraram) novos tempos.

A Justiça da crise é aquela do Judiciário precário emestado permanente, e se realiza e expressa no pequenoengajamento e no parco comando que os magistrados al-cançam nos atos de seu ofício. Não é por acaso que se falaem “crise de identidade que afeta aos operadores jurídi-cos e aos papéis de mediação institucional” (Pietro Barcel-lona e Giuseppe Cotturri). Segundo esses juristas italia-nos, “não se trata (...) de construir um novo m od el o,definido e acabado, de relações sociais, uma nova teoriageral do Direito ou um sistema de conceitos; tampouco deconfigurar os instrumentos adequados para garantir umaabstrata justificabilidade dos i nt ere sses excluídos; trata-se dedefinir as condições práticas e de elaborar os pressupostosteóricos necessários para eliminar os d e sv al ore s i m p l í c i t o s

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nos critérios de qualificação jurídica comumente empre-gados pela doutrina e a jurisprudência.”

Em resumo, o juiz não mais responde pelo Poder queintegra para justificá-lo. Deveria fazê-lo, em tese, pois é daessência desse Poder produzir a justificação; intervir nosinteresses e liberdades e expor o porquê, gerar os funda-mentos; divulgar a r at i o como um saber iluminista. Porém,o juiz integra o Poder para realizá-lo independente — e se-guidamente contra — os enunciados formais que dão con-torno à sua função. Para não ser segregado em seu ofício,em um compartimento do Estado, tem de reviver o que háde sábio no espírito humano, de integrador e de igualitá-rio. Todavia, é preciso saber distinguir essa ordem judican-te sempre libertária da ordem jurídica que nem sempre oé. Há práticas emancipatórias que têm de ser juridicamen-te desenvolvidas, e há um papel a ser assumido de garantiro Direito “frente a todas as contingências”. Porque abordarconflitos é proceder análise das relações existentes e daspossíveis, o juiz tem de viver sua liberdade ainda que nãoseja por escolha sua, pois não há outro modo de definir arespeito desses conflitos alguma ação concreta.

Estes são os princípios. Este é o tema desenvolvidoaté o ponto em que a crítica produz o seu reverso na for-ma de outro conhecimento. Os juízes têm sido realizado-res de uma Justiça da crise, oriunda desta e fabricada noseu bojo, e — na suposição errada de que se trata de umacrise da Justiça — não têm sabido superá-la. Para isso éfundamental a eliminação de procedimentos que consa-gram uma motorização alienada e disfuncional e, sobretu-do, embaraçam a retomada do saber heurístico, da desco-berta do significado dos preceitos, e da revelação danorma jurídica em sua aplicação mais efetiva. Quando forrestabelecida a noção da ars inveniendi, proposta por KarlEngisch, em lugar da ars judicandi apenas, será a hora denão só aceitar as premissas, mas também de inventá-las.

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III

O CONTROLE EXTERNOPELO GENERAL

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I – DOUTRINA E JUSTIFICAÇÃO

Não há doutrina jurídica que não seja transformadora.Muitas vezes, sob o nome de doutrina, trata-se da aplicaçãodas normas jurídicas. A análise que então se faz é a da juris-dição. Vale dizer, da jurisprudência que dela resulta. Mas s e , o enfoque for a respeito do modo como os preceitos le-gais se justificam ou fundamentam, trata-se da interpreta-ção. Isto é, da exegese do Direito. Em nenhum desses casoshá autêntica doutrina e, se os outros caminhos indicados,quer o da aplicação, quer o da interpretação das normasjurídicas, mostram-se acaso transformadores, trata-se aí deuma mudança que se realiza no plano dos fatos, na histó-ria, portanto que se re if ic a e se encerra. Já a doutrina é con-ceptiva por excelência, e as transformações que transportanão se concluem sem a sua superação por outra doutrina.

Por isso não há doutrinador que não perpasse sua w e l-t a n sc h a u u n g (concepção de mundo), ou que suprima o ca-ráter atributivo às normas legais com que aquela sua con-cepção procura entendê-las. Assim também não existejurisprudência que prescinda da força identificadora de taisnormas ao celebrar o julgamento como resultado delas.

Embora a palavra doutrina tenha a raiz etimológicaque aponte para a opinião dos doutores, ou dos doutos,ela é ao mesmo tempo uma ortodoxia e uma heterodoxia.Isso porque o Direito se transforma, como se aplica de va-riadas maneiras ao caso examinado, quando este se repete,e assim é um ramo do conhecimento sob teste permanen-te, sob verificação, e a doutrina não serviria para estabilizá-lo se não fosse direcionada para fins que superam o fato

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concreto apresentado, se não se posicionasse mais adiante,na hipótese abstrata da sua incidência.

A doutrina é, fundamentalmente, dirigida para o Di-reito que se nega, daí porque ela o complementa com aidéia de que há uma possibilidade lógica, sistemática, dog-mática, de que ele venha a ser superado. O Direito que seaplica não compõe o inventário da doutrina, mas o da his-tória. Por isso, uma boa dose de humildade é exigida aod o u t r i n a d o r, que não vê na sua vontade uma força inspira-dora de novas regras, mas sabe que ela é apenas seletivade fatos que, regidos sob novas circunstâncias, terão senti-do e efeitos que melhor se compadecem com a idéia deDireito. Não é por acaso que o mais célebre dos doutrina-dores brasileiros, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda,encerrou a última de suas numerosas obras (Comentáriosao Código de Processo Civil de 1973) invocando a inspira-ção de Konrad Hellwig, a quem tributou a mais marcanteinfluência no Direito moderno: p e ctus facit iurisconsultus.Se o coração faz o jurista, o desvio do Direito, a perda desua justificação, se apresenta também como um sentido.Um sentido morto.

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II – A D O U T R I N A NÃO PODE IGNORAR FAT O S

Há temas que têm de ser colhidos na história do Direi-to, como outros que precisam ser desalojados do catálog ode jurisprudência, para receber enfoque doutrinário, por-que continuam a produzir efeitos, ou conseqüência deseus efeitos, e a eles não se pode dar o que seria uma espé-cie de automatismo de resultado, vale dizer, não se lhes po-de atribuir uma influência inevitável, boa ou nefasta, so-mente porque foram gerados em um tempo já passado, eseu surgimento está consumado. Só a doutrina pode con-ceber uma transformação que abjure origens ou finalida-des que antes se perderam naquele tempo e verificar se de-veriam ter perecido nele. O trabalho doutrinário é, pornatureza, de jure condendo ou de lege fere n d a, e é isso o que sebusca aqui: e nc o ntrar no tempo passado, mas nele isolar, a forçajustificadora de um Direito que hoje não se sustenta, mas que —infelizmente — continua a gerar efeitos re p ressivos intoleráveis, eque a lei da inércia mental perpetua.

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III – A J U S T I Ç A NO MEIO DO CAMINHO DAD I S T E N S Ã O

O General Ernesto Geisel estava convencido em 1977de que seu projeto de d i st e nsão lenta, gradual e segura i n-cluía a internalização das funções repressivas no âmbitodo Judiciário. Por isso, quando a Câmara dos Deputadosrejeitou a reforma da Justiça que ele havia proposto, nãohesitou em fechar o Congresso Nacional, decretando oseu recesso e editando na mesma data a Emenda Constitu-cional nº 7, com base no Ato Institucional nº 5/68.

O AI-5 já vigorava por nove anos e foi o mais longo econtundente controle externo operado sobre o Judiciário,pois suspendia as garantias da magistratura, retirando opoder e a independência inerentes ao cargo para preser-var apenas as suas funções. O plano do General Geisel con-sistia em instituir um auto-regime para o Judiciário, trans-ferindo-lhe as atividades repressivas para a contenção doseu corpo funcional, o que dispensaria a aplicação das me-didas rev ol uc i on ár i a s. Segundo o programa da d i st e nsão len-ta, gradual e segura aquelas medidas perduravam como umapena virtual, como a espada de Dâmocles, e era preciso re-mover a necessidade da sua permanência, para que o refe-rido programa prosseguisse. Isso só era possível na medi-da em que a Justiça assumisse um papel de censor, deautocensor.

A reforma do Poder Judiciário foi completada em 14de março de 1979 (véspera da transmissão do cargo para ogeneral João Figueiredo), quando o General ErnestoGeisel publicou o último diploma legal de seu governo, aLei Orgânica da Magistratura Nacional, Lei Complemen-tar nº 35/79, conhecida por LOMAN.

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IV – O PENSAMENTO DA ESG — ESCOLASUPERIOR DE GUERRA ( A “ S O R B O N N EB R A S I L E I R A ” )

Pela Reforma Geisel, os juízes deixaram de ser vitalí-cios em virtude da investidura através de concurso públi-co, passando a adquirir tal garantia só ao cabo de doisanos de exercício. Desde então, e durante todo esse tem-po, podem ser desligados por decisão administrativa dostribunais. Até 1988, quando foi editada a Constituição vi-gente, a deliberação nem mesmo precisava ser explicita-mente motivada.

Os magistrados recrutados no Ministério Público ena advocacia perdiam sua origem, vale dizer, depois de in-tegrarem a magistratura poderiam ocupar vagas em ou-tros tribunais como se fossem juízes de carreira. Isso criousérios embaraços em Estados que tinham dois tribunais desegunda instância, o Tribunal de Alçada e o de Justiça, co-mo também desfigurou a complexa composição do Tr i-bunal Federal de Recursos, hoje Superior Tribunal deJustiça. Simplesmente, o quinto constitucional dos chama-dos juízes forâneos (provindos da advocacia e do Minis-tério Público) foi superado muitas vezes, em detrimentodos magistrados de carreira.

Os mandados de segurança (independente da matériasob exame) passaram à competência dos Tribunais no âm-bito dos quais foi praticado o ato imputado de abusivo aeles próprios, com o desaparecimento do juízo isento. Emmatéria disciplinar, os juízes tornaram-se os únicos serv i d o-res do Estado submetidos a julgamentos administrativos ir-recorríveis. Primeiro, porque a LOMAN não previu recur-

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so. Segundo, porque os mandados de segurança em buscade garantias legais teriam de ser interpostos perante os ór-gãos coatores. Terceiro, porque haveria o empecilho legalde incabimento desse tipo de ação diante de ato disciplinar.

O que se viu a partir de então guarda analogia com aclássica narrativa de Peter Gay sobre a d éb âcle da Repúblicade Weimar: o desfile do opróbrio, da perseguição rasteirapor motivos pessoais, da bajulação, das fidelidades maçô-nicas e do despropósito de toda a ordem, sob o comandodos arrivistas de sempre. Criaram-se tribunais de exceçãocom funções censórias (um dos quais foi dissolvido peloSupremo Tribunal Federal). Surgiram órgãos especiaiscom amplas atribuições administrativas, para concentrarpoder e exercê-lo arbitrariamente, mesmo em tribunaispequenos que não tinham sequer vinte e cinco juízes(q u oru m mínimo fixado como condição pela LOMAN pa-ra que fossem criados os referidos órgãos). A cúpula doJudiciário passou a contar com um número ínfimo de ma-gistrados de carreira, tendo em vista que os juízes forâ-neos perdiam a sua origem na classe onde haviam sido re-crutados, e passavam a ser também considerados comooriundos da mesma carreira.

É verdade que para essa d éb âc l e concorreu o fato deque muitos juízes, que eram contrários aos princípios in-formadores da LOMAN, se aposentaram massivamentequando ela entrou em vigor. Seu silêncio, infelizmente,não deixou memória, mas uma situação de abandono daresistência altiva que traz sua marca aos dias de hoje.

Esses últimos tópicos, que parecem ser apenas os deuma crônica, na verdade reapresentam um tema irresolvi-do, e é preciso buscar mais passado para esclarecê-lo.

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V – AS DEFORMAÇÕES CIRÚRGICAS

A crise institucional do Judiciário provém principal-mente do movimento militar da Revolução de 64, porquese caracterizou como uma insurreição a meio do cami-nho. Trouxe elementos reformistas do Estado, segundoum programa liberal-autoritário preconizado principal-mente pela União Democrática Nacional. Também tevecomponentes nitidamente fascistas, como as peregrina-ções por Deus, a família e a propriedade. Houve ainda omilitarismo ressentido que se frustrara com a impossibili-dade do desfecho no golpe em 1954, em face do suicídiode Getúlio Vargas e, mais recentemente, com a c a mp an h ada legalidade, que forçou a sucessão presidencial regularem 1961, quando renunciou Jânio Quadros. Como estenão é o momento para examinar todas as implicações ins-titucionais do movimento militar, basta repetir a inscriçãolapidar que encerra os vinte e seis anos vividos no Brasilde regime de exceção, atribuída a Tancredo Neves: “a Re-volução de 64 foi o Estado Novo da UDN”.

Ao tempo dos atos institucionais revolucionários juí-zes intimoratos chegaram a questionar a impossibilidadede realizar eleições ou desapropriações, pois as leis que re-gem essas matérias prevêem a atuação de magistrados ga-rantidos, e as garantias estavam suspensas. Os tribunais,onde o adesismo já se fazia convenientemente sentir, en-tenderam que aqueles atos jurisdicionais deveriam serpraticados, apesar das medidas de exceção, dando vez àpantomimas conhecidas. Em razão do colaboracionismocrescente, as situações de cruel tortura e de infração às

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próprias regras legais autoritárias que o movimento mili-tar impusera dificilmente foram impedidas ou reparadas.

Conquanto isso ocorresse, havia uma aura de últimoreduto cercando o Judiciário. O Marechal Castelo Brancoadotou as providências de controle que bem quis, querpor via de medidas de exceção, de lei e, mais adiante, daConstituição outorgada em 1967. Refundou a Justiça Fe-deral, provendo-lhe todos os cargos de juiz por indicaçõespolíticas, sem concurso. Introduziu na Justiça do Tr a b a l h oa participação do Ministério Público e dos advogados, porsobre a representação classista leiga, que permaneceu. Osjuízes adventícios, para preencher as novas vagas, tambémeram nomeados sem concurso ou indicação de suas clas-ses ou dos próprios tribunais. Aumentou a composição doSupremo Tribunal Federal de onze para quinze membros.Transferiu a competência para julgamento dos crimescontra o Estado e dos chamados delitos políticos para aJustiça Militar.

Após a edição do Ato Institucional nº 5/68, o Mare-chal Costa e Silva aposentou compulsoriamente três Mi-nistros do Supremo Tribunal Federal em 16 de janeiro de1969 (Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins eSilva), além de outros do Superior Tribunal Militar. Diasdepois, pelo AI-6, reduziu novamente a composição doSTF para onze juízes.

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VI – O LEGADO IRREMOVIDO

Realizada toda a liturgia de uma missa negra nos maisde onze anos em que vigorou o Ato Institucional nº 5, parao que interessa aqui, é bem de ver que ao tempo do gene-ral Geisel todas essas medidas estavam esgotadas como for-ma de controle. Havia uma espécie de recalcitrância com aqual os militares, parece, não sabiam lidar, de modo quesuas intervenções institucionais eram marcadas por idas evindas, e eles desfaziam e refaziam os seus atos. Definitiva-mente, era preciso que o Judiciário fosse o seu própriogendarme. Eis aí o nó Górdio cortado.

É surpreendente que ainda hoje se faça o debate sobrecontrole interno ou externo da Justiça sem atentar para es-ses episódios tão marcantes e, com muito mais percepção,para o fato de que os constituintes de 1988 conservaram in-teiramente a estrutura do Poder Judiciário que o generalGeisel idealizou. A pequena modificação feita, mais a títulode contornar a grande confusão jurídica criada, residiu nafixação da origem dos elementos forâneos, de modo a queintegrantes do Ministério Público e advogados ocupem ape-nas as vagas a eles destinadas e sejam selecionados em listasde suas corporações. Quanto ao mais, a Constituição vigen-te preservou esse cadáver insepulto que é o de uma Justiçaorganicamente autoritária, guardando-o no armário. Há si-nais iniludíveis de decomposição.

Onde estão os problemas do Judiciário? Estão na cú-pula que o administra dispondo sobre o orçamento, semcontudo prover os meios que eliminariam a pletora e a de-mora. Quem pratica o nepotismo, quem destina verbas

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para obras suntuosas, quem promove a classificação defuncionários em níveis incompatíveis com seus limitadosencargos legais, elevando os gastos à estratosfera?

Muitos tribunais adotaram um sistema de controle everificação para o vitaliciamento de magistrados que nãocompletaram ainda dois anos de serviço. Eis uma prova deque a ideologia da distensão continua a produzir seus efei-tos nefastos. A LOMAN prevê que a vitaliciedade seja ad-quirida ex facto temporis, isto é, em virtude exclusivamentedo decurso do tempo. Não há nenhum sistema de teste;não há nenhuma verificação, como se fora um estágio pro-batório. Via de regra, o juiz não vitalício exerce a mesmacompetência do juiz vitalício, observadas as exceções já re-feridas dos casos de desapropriação e da legislação eleito-ral. A aberração que os tribunais criaram com o processode vitaliciamento é o último suspiro de um sistema de con-trole morto, porque é exercido da cúpula para baixo, como propósito do mando vazio.

Estas são as questões verdadeiramente importantesque se apresentam. Respondê-las significa controlar simos desmandos, mas por um sistema que não é esse vigen-te, concebido para cumprir a ideologia da distensão, eque tem como destinatários somente os integrantes dacarreira judicial. Aos juízes preocupados com o bom fun-cionamento do Poder que integram, pouco importa se ocontrole será interno ou externo, conquanto ele seja efe-tivo e responsabilize todas as instâncias igualmente. Essaé a obra de defesa da cidadania, não a do corporativismor e s s e n t i d o .

É aqui, afinal, que se propõe a questão plantada noinício: sem a construção de uma doutrina que recupere osignificado da existência de estruturas operativas do Di-reito, como habilitação do Judiciário para alcançá-lo, aca-ba subsistindo uma situação de iniqüidade que foge a to-

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do esforço compreensivo. É preciso fazer as perguntascertas para apontar respostas aceitáveis, e isso não se con-segue sem enfrentar as mazelas da Justiça. Embora vul-garmente se designe como kafkiana tal situação de iniqüi-dade, na verdade o mundo sugerido por Kafka defronta oabsurdo como uma outra feição do sentido, antes que a faltadeste, e ela é espessa, contundente, irremediável, exata-mente porque nenhuma doutrina desafiou o mistério dasua persistência.

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IV

A OUTRA MORT EDE HERZOG

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I – PORQUE LEMBRAR

Quando Graciliano Ramos resolveu escrever as Me-mórias do Cárcere disse que o fazia por um só motivo: ha-viam passado cerca de vinte anos desde sua prisão em1935, as pessoas envolvidas no episódio em sua maioria es-tavam mortas e os fatos podiam ser revisitados com objeti-vidade, como se sua realidade só fosse revelada agora, es-tando porém perdidos no tempo. Tratou de fazer umainvenção do passado, e não de voltar a ele. O velho Graçavenceu a amargura que a lembrança trazia, pois não quisfazer um livro de recordações, como aquelas da Casa dosMortos, que martirizaram Dostoiewski. A comparação en-tre essas duas obras é inevitável. Porém, deve ser reconhe-cida a Graciliano essa vitória sobre o sofrimento, que an-tes resulta da compreensão dele, ainda quando sua faltade sentido seja uma espécie de mergulho, pois a gratuida-de e fortuidade de suas causas parecem comprometer emdefinitivo a ilusão de organizar e entender o mundo. Masquem diria que o mundo pode ser organizado e entendi-do, perguntaria Nelson Rodrigues aos “idiotas da objetivi-dade” pretensiosos que lidam com o conhecimento nor-mativo, seja ele a Gramática ou o Direito.

A descida ao inferno que é a repressão do Estado en-louquecido, desvairado, tem um episódio marcante em queconstam todos os ingredientes de sangue e sofrimento, enão poderia ser lembrado impunemente. Porém, tambémdeste outro fato passaram já mais de vinte anos e aqui nãose busca nenhuma expiação. É possível que todos os seuspersonagens possam ser tidos como inventados, segundo alição de Graciliano, e disso resulte um pouco do precárioentendimento que é tudo o que nos oferece o absurdo.

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Pois absurda era a existência nos anos ‘70 do Depar-tamento de Operações e Informações (DOI) do Centrode Operações de Defesa Interna (CODI), órgãos repressi-vos de um Estado possesso que havia perdido completa-mente o senso de justificação de seus atos. No pórtico dasede operativa principal do DOI/CODI, em São Paulo,poderia ser escrita a divisa que ainda consta no campo deconcentração de Buchenwald: Jedem das Seine! (A cada umo que merece!). Ao contrário dos outros campos de exter-mínio nazistas, onde costumava ser inscrita a exaltação A r-beit macht frei (O trabalho torna livre.), um verdadeiro de-boche à escravidão que era ali praticada, no campo deBuchenwald havia sido encontrada uma fórmula mais refi-nada, e mais sinistra, de dizer que a morte e o sofrimentoprogramados decorriam de um merecimento, a cada um avida que lhe cabe, numa transcrição mais literal, a cada um os e u. Dentre as frases de anúncio, sem dúvida essa é a maiscruel, pois vincula-se a um destino que, como tal, não po-de ou deve ser recusado. Para que se imagine aproximada-mente a idéia de desatinação irremediável, de imposiçãoabsoluta, basta comparar com o que Dante escreveu naentrada do Inferno: Qui se convien lasciare ogni sospetto / Og-ni viltà convien che sia mort a , e que Karl Marx propôs que fi-gurasse num imaginário pórtico de ingresso no mundo daCiência, pois na verdade se constitui em um desafio. Ouseja, o poeta italiano não foi além de desafiar o homemmesmo nos seus tormentos finais do castigo divino.

Porém, em Buchenwald, nas cercanias da culta We i-m a r, cidade que emprestou seu nome à República alemã,escolha de vida e túmulo de Goethe e Schiller, foi inscritauma verdade absoluta, sem desafio algum, pois ali estava ofim do fim, não se buscava mais nada. Nem o escárnio daredenção pelo trabalho tinha sentido como impostura sá-dica. Era apenas a proclamação do destino inexorável quecabia a cada um.

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No texto mais minucioso sobre a história de Buchen-wald (O Relatório Buchenwald, David Hackett) há uma es-peculação plausível de que a inscrição do pórtico fosseapenas uma transcrição, pelos incultos nazistas, de um dosconhecidos princípios de Ulpiano c u ique suum tribuere ( acada um o que é seu), que — ao lado de a lt erum non laedere(não fazer mal aos outros) e h on e ste vivere (viver honesta-mente) — dava conformação ao Direito como ars boni et ae-q u i (a arte do bom e do eqüitativo). Não há porque incur-sionar pelo tema da tradução, tarefa de especialistas, masexiste uma certa inadequação no acento da frase, que emlatim recai sobre o s u u m, como o que é próprio a cada um,inalienável como seu. A maior inadequação, obviamente, éa do lugar, a do sentido, a da advertência, conotações quetêm significado histórico e não lingüístico.

Essa digressão foi feita porque Jedem das Seine! p o d e r i aestar escrito no prédio do DOI/CODI, e certamente estavagravado na mente dos que ali trabalhavam, quer com o es-pírito de fazedores do destino alheio, quer com o da maisabsoluta impunidade pelo exercício de seus papéis. O es-critor espanhol Jorge Semprun, que sobreviveu emBuchenwald, escrevendo dois livros a respeito (A LongaViagem, A Escrita e a Vida), e teve o título de um terceirocolhido como inspiração para o deste ensaio (A SegundaMorte de Ramón Mercader) não aprovaria a comparaçãoaqui feita, mas apenas porque no DOI/CODI não havia ogrande sacrifício, a morte não era uma instituição, mas oacidente no ato de infundir o medo. Ele teria razão, poismorrer solitário num calabouço não tem a dimensão bes-tial de um holocausto; por outro lado não teria, uma vezque a comparação está sendo feita entre assassinos. Elesformam uma confraria em que todas as analogias são possí-veis, mesmo para que não se estabeleçam distinções con-formistas, não obstante brutais, entre a pequena morte e agrande morte.

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II – O QUE REDIVIVE

Em 25 de outubro de 1975, pela manhã, o jornalistaVladimir Herzog, funcionário da TV Cultura, apresen-tou-se na sede do DOI/CODI na rua Tomás Carvalhal, nº1.030, em São Paulo. Na tarde do mesmo dia foi distri-buída nota oficial: estava morto. Na véspera ele havia si-do procurado por agentes no local de trabalho para serconduzido, o que só não aconteceu por interf e r ê n c i ados diretores da TV Cultura, mas resultou no compro-misso de apresentação na manhã seguinte.

O Comandante do II Exército determinou a aberturade inquérito policial-militar para determinar as circuns-tâncias do s u ic íd i o, pré-definindo assim a ação que deucausa à morte. O laudo de necroscopia foi firmado pelosmédicos Arildo Viana e Harry Shibata, atestando a inexis-tência de sinais de tortura, bem como o óbito por enforca-mento, em virtude de suspensão parcial do corpo por umcinto igual ao do macacão usado por Herzog. Foi ainda sa-lientado pelos peritos (mostrando que havia uma preocu-pação prévia com isso) que as simulações são sempre pre-paradas com a suspensão total do corpo.

O inquérito foi arquivado pela Justiça Militar tendoem vista a conclusão pelo cometimento de suicídio.

Em abril de 1976, a viúva e os filhos de Vladimir Her-zog ingressaram com ação civil declaratória da responsabi-lidade da União pela morte do jornalista. Minuciosa-mente processada, com a participação de profissionais ei n t e rveniência de pessoas realmente honoráveis, ela foijulgada em outubro de 1978. Constituiu-se numa espéciede marco, numa superação da lei da inércia, que omitia

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respostas institucionais a situações notórias de quebra degarantias, por um regime de exceção que não mais con-trolava as regras que havia imposto para o seu própriofuncionamento. Isso porque a União foi declarada res-ponsável pela morte de Herzog, com o reconhecimentode uma relação jurídica entre ela e os autores da ação (aviúva e os dois filhos), consistindo na obrigação da primei-ra indenizar os últimos por danos materiais e morais de-correntes do óbito. Embora o dispositivo da sentença nãocontenha a palavra crime, sua fundamentação exclui a hi-pótese de suicídio e reconhece a prática do abuso de auto-ridade na forma de torturas em presos políticos.

Todas as informações relevantes estão transcritas nolivro “Caso Herzog — A Sentença” (Íntegra do ProcessoMovido por Clarice, Ivo e André Herzog contra a União,1978). Afora as informações do processo, existe um ricoa c e rvo de dados que poderiam ser trazidos, não fosse oobjeto específico deste ensaio, que é exatamente o de ana-lisar com minúcia a flexão do Poder Judiciário, que se ex-pressará adiante no exame do julgamento proferido emsegundo grau.

É importante registrar apenas que outra morte ocor-reu nas dependências do DOI/CODI pouco depois, em ja-neiro de 1976, do metalúrgico Manuel Fiel Filho, desenca-deando uma crise de autoridade no Governo Geisel, queresultou na exoneração do Comandante do II Exército di-retamente pelo Presidente da República. Houve uma reor-denação do esquema militar que se havia afirmado desde aedição do Ato Institucional nº 5/68, ganhando desenvoltu-ra durante o Governo Medici. A candidatura do generalSylvio Frota, Ministro do Exército, para o período presi-dencial seguinte, foi esvaziada e a “distensão lenta, graduale segura” ganhou vigor, cumprindo-a o general Geisel atéo final de seu mandato, quando foi revogado o AI-5. Issonão se fez suficiente para afastar recidivas do período deexceção, como mostra o episódio da bomba do Riocentro,

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já no período do general Figueiredo, também vergonhosa-mente mal resolvido pela Justiça Militar.

Esses dados todos tiveram uma importância crucialno Brasil, que se encontrava estagnado numa espécie deindignação paralisada de alguns, e o ceticismo que a onis-ciência das ditaduras duradouras provocam em muitos.Por isso foi dito que a sentença de primeiro grau no CasoHerzog foi um marco, sendo mesmo a primeira respostainstitucional havida depois da edição do AI-5 que, dentremuitas restrições, suspendeu as garantias da magistratura.Ela de fato instituiu uma sede para o “não”, dito sob a es-trutura do regime então vigente, pelas regras que o pró-prio regime havia estabelecido. Por exemplo, a lei que de-fine crimes de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65) foisancionada pelo marechal Castelo Branco (homem quevetara a regulamentação da profissão de sociólogo porconsiderá-la subversiva...), obviamente sem a previsão deque viesse a ser direcionada contra torturadores.

Antes de ser analisada a continuidade do processo ju-dicial do Caso Herzog, deve ser dito que a sentença doJuiz Márcio José de Moraes é contida no que poderiam seros seus enunciados afirmativos. A tortura era praticada deforma sistemática nas prisões políticas. Existiam órgãos pa-ramilitares atuando soltos, sem controle da autoridade deEstado, mas agindo como personificação dela. As verbasdestinadas à informação e repressão não continham espe-cificação no orçamento, tendo sido dado o caráter secretoao seu uso. O texto da sentença, contudo, não ultrapassa ametodologia usualmente empregada nos julgamentos,sendo pleno de referências doutrinárias, e foi escrito coma linguagem a que é afeito o mundo jurídico, que parece-rá engomada para os que não gostam de ler “outrossim”(palavra que Graciliano Ramos não admitia que pudesseser usada). Nada, porém, que comprometa a firme deter-minação de fazer incidir a ação da Justiça sobre o caso. Es-sa vontade está bem expressa exatamente em uma das pri-

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meiras citações ali feitas, de Roberto Lyra: “Extrair a sen-tença da própria cabeça com a lei e a prova — eis o que sechama julgar, para realidade e autenticidade da prestaçãojurisdicional.” Já no exame dos fatos, o julgamento profe-rido pelo Juiz Márcio José de Moraes é brilhante, nada lheescapou, ele estabeleceu todas as conexões. Não há situa-ções soltas ou indefinidas na análise do que foi colhido nainstrução, e não se deve ignorar que realizar provas plenasem uma situação de franca adversidade, dissimulação emedo, não constitui tarefa fácil.

Talvez o jovem magistrado de então tenha optadopor um texto que não pudesse sofrer ataque formal, poisafinal seguia o entendimento de grandes tratadistas, mui-tos deles figuras ilustres do Supremo Tribunal Federal emvárias épocas (inclusive na época do regime de exceção,como é o caso do Ministro Cordeiro Guerra, oriundo exa-tamente da promotoria junto à Justiça Militar). Se foi as-sim, ele teve a percepção aguda de que era preciso salva-guardar o conteúdo firmemente escolhido de rechaçar oarbítrio convertido em crime. Todavia, se o próprio textofosse denunciativo, e as bases de seu conhecimento esti-vessem também inspiradas em autores e obras que melhordão referência à humanidade, possivelmente não tería-mos hoje, vendo em retrospectiva, um marco daquelesanos de chumbo, mas também um selo dessas alianças quese estabelecem de tempos em tempos, e resistem como si-nais para todos o tempo inteiro, como o julgamento deGeorgi Dimitrov pelo incêndio do Reichstag.

Não é o caso de lamentar ocasiões perdidas; haverámais pelo que chorar, como o desfecho final do Caso Her-zog. Há uma tênue esperança de que a reversão perpetra-da no âmbito do Tribunal Federal de Recursos não seriatão acintosa se o vigor do texto de primeiro grau fosse detal modo irruptivo que não pudesse ser abafado sem es-cândalo. Possivelmente, porém, trata-se de uma ilusão.

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III – O QUE MORRE

O julgamento em segundo grau, de dois recursos in-terpostos pela União, não recebeu divulgação alguma. Édifícil mesmo conseguir acessá-lo. O texto do julgamentofoi publicado apenas por uma revista de circulação dirigi-da em janeiro de 1984, omitindo o nome de Herzog. Lon-gas transcrições têm de ser feitas, pois o acórdão é o obje-to principal do exame aqui proposto. A dificuldade deacesso, como as transcrições, encontram explicação no fa-to de que se trata de um julgamento a um só tempo pre-potente e envergonhado. Consta que o resultado final daação movida pela família de Herzog foi obra do MinistroLeitão de Abreu, que havia exercido a chefia da Casa Civilno Governo Medici, depois integrou o Supremo Tr i b u n a lFederal e, por fim, retornou nos anos ‘80 à Casa Civil, noGoverno Figueiredo. Ele havia sido uma espécie de apaga-dor de incêndios durante o mandato ufanista do GeneralMedici, negociando — por exemplo — a maioria dos ca-sos de seqüestro de agentes diplomáticos ou de passagei-ros de aviões, encontrando a fórmula do banimento dospresos políticos por quem eram trocados os reféns. Nãopoderia, é natural, ter êxito em tudo. Quando retornouao governo, certamente Leitão de Abreu sabia que não seatravessa o mesmo rio duas vezes, e não pôde encontraruma fórmula mais conseqüente para o atentado do Rio-centro, quando morreu um sargento e ficou ferido um ca-pitão do Exército surpreendidos pela explosão de umabomba. Não havia como negar que se tratava de um atoterrorista. A detonação ocorreu dentro do carro em queestavam os militares. Foi feito um inquérito policial-militar

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em bases demasiado inverossímeis, concluindo o coronelJob Lorena de Sant’Anna, seu presidente, que os militareshaviam na verdade sofrido ataque do terrorismo, disso re-sultando o arquivamento. Esse recrudescimento das açõesautônomas de forças repressivas que haviam vicejado du-rante o Governo Medici e na primeira parte do GovernoGeisel (até que as mortes de Vladimir Herzog e ManuelFiel Filho no DOI/CODI causaram um enfrentamentodentro do poder, com a vitória do projeto de distensão)foi a causa do afastamento do General Golbery do Couto eSilva da Casa Civil, sendo substituído por Leitão de Abreu.

Talvez este último tenha tentado retomar sua influên-cia como jurista, que sempre foi grande, especialmentenos governos dos militares, para ao menos por um pontofinal no Caso Herzog, já que melhor solução não encon-trou para o episódio do Riocentro, até hoje jacente, tendoem vista a completa desmoralização da tese anêmica doagora general Job, autor da pantomima que, sem exagero,merece talvez o epíteto de ser uma das maiores que já sedocumentou no Brasil.

Todavia, é comum que nos governos plenipotenciá-rios haja uma atribuição última de todas as decisões a umaeminência parda. Neste século que finda, o país pareceusempre estar em busca de um João das Regras, tendo-o en-contrado, com excelência, em Francisco Campos. Outroshouveram: Carlos Medeiros Silva, Vicente Rao, AdroaldoMesquita da Costa. Até mesmo, embora mais como umaimitação, o rancoroso e arrivista redator do AI-5, Luis An-tonio da Gama e Silva, o “Gaminha”, que também redigiuo decreto da pena de morte por fuzilamento em 1969(Vide: 1968, O Ano que Não Acabou, de Zuenir Ve n t u r a ) .Dada essa longa tradição, talvez, consta que Leitão deAbreu haveria dado o ponto final ao Caso Herzog. Não hácomo demonstrar isso, trata-se de um comentário insisten-te que perdurou, mas o prolator do voto no Tribunal Fe-deral de Recursos era seu parente.

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Ainda aqui é possível especular sobre esse ponto finale a “solução final” que assim foi chamada no curso do regi-me nazista, organizando o último p og ro m, orientado massi-vamente para o extermínio. Como mostram as transcriçõesa seguir, o julgamento de segundo grau no Caso Herzog es-tá pontuado de afirmações que até parecem anti-semitas,disfarçadas é verdade como compreensão e benevolênciafarisaicas, pois atribuem ao morto fraquezas ignóbeis e omergulho final num sentimento de culpa inexpiável. Nãohouve, portanto, despropósito em vincular o dístico na en-trada de Buchenwald à regra imaginária que jazia incrusta-da na testa dos que praticaram a tortura no DOI/CODI,como na de todos os que a acobertaram.

Seja inspirado por Leitão de Abreu ou não, o julga-mento do ponto final ao Caso Herzog fez primeiro umaconstrução doutrinária de Direito, mais especialmente deteoria do processo, no sentido de que os autores da açãotraziam embutida nela uma pretensão condenatória, enão somente declaratória de relação jurídica, esta no sen-tido de obter apenas o reconhecimento do encargo daUnião de indenizar. O Ministro Relator aproveitou as difi-culdades práticas defrontadas pelos requerentes, como otemor subjacente de represálias e os testemunhos apenasindiciários. Afinal, tratava-se de uma reconstrução de fatosque eram de conhecimento notório, as torturas praticadasnos órgãos de repressão, mas cuja demonstração em am-biente institucional era paradoxalmente (ou talvez muitopropriamente, em se tratando de regime de exceção hos-til) difícil. Com isso, o Ministro Relator transformou aação declaratória em ação ordinária condenatória, apa-rentemente dando alcance maior do que o pretendido pe-los requerentes, o que seria uma extensão em seu favor.Logo se verá com que finalidade. A análise foi feita comomostram os seguintes excertos:

“Na peça inaugural, arrimada em depoimento presta-do em escritório de advocacia por... (Rodolfo Osval-

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do Konder)... é dito que ‘nas dependências do DOI,submeteram...(Vladimir Herzog)... a torturas, quelhe foram infligidas, visando à colheita de informa-ções acerca de suas supostas atividades no PartidoComunista Brasileiro. Apenas depois de cruelmentetorturado, Vladimir redigiu a declaração, referida noi t e m . . . ’ ( f l s . 1 1 )E mais adiante: ‘Desgraçadamente não puderam os su-plicantes, até agora (o que não significa não possamfazê-lo, no futuro), produzir prova hábil a levar V. Exª.a compartilhar de sua convicção inabalável de que seumarido e pai não se suicidou, tendo, isto sim, sido as-sassinado por seus algozes, ou, pelo menos, morrido,em conseqüência das torturas de que foi vítima’(fls. 11e 12)Passa a inicial a dar os fundamentos de direito emque entendem os autores encontrar assento o pedidoe arrematam (fls. 17): ‘Diante do exposto, os supli-cantes propõem esta ação, para que V. Exª. declare aresponsabilidade da União Federal pela prisão arbi-trária de...(Vladimir Herzog)..., pelas torturas a quefoi submetido e por sua morte e a conseqüente o b r i g a-ção de indenizá-los, em decorrência dos danos morais ematerial que esses fatos lhes causaram.’Chego à conclusão de que a ação proposta não foi de-claratória, mas sim de natureza condenatória. E issoresulta dos termos do pedido, como dos termos daerudita sentença recorrida.”

Aqui cabe uma pequena observação a propósito doformato dado à sentença de primeiro grau. Foi dito atrásque referências mais gerais àqueles que são os elementa-res direitos humanos, e à rica doutrina sobre suas garan-tias, agregaria expressivo vigor ao exame dos fatos, estefeito com técnica e lucidez já reconhecidos. Talvez tenhaparecido ao leitor atendo uma censura injustificada. Sa-bem porém os profissionais da área que a erudição centra-da só no enfoque jurídico, em sentido estrito, é descartá-

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vel quando se sobrepõe uma concepção igual, firmada emoutras escolhas. Foi o que aconteceu. O trabalho de ouri-ves na coleta de elementos de convicção junto a uma ga-ma extremamente variada de juristas fragilizou a sentençarevisanda, ao contrário do que foi pretendido, obviamen-te fortalecê-la e dificultar sua reforma. Tudo foi descarta-do em uma frase. Os termos do julgado de primeiro grauforam mesmo invocados como fonte demonstrativa da te-se — completamente diversa — produzida em instânciasuperior.

Assim sendo, concluiu o acórdão do TFR:

“Propuseram-se os autores provar fatos, no que dizemcom sevícias, torturas e até assassinato. Ora, tais fatosjamais poderiam ser objeto de ação declaratória, nosprecisos termos da lei processual: ‘O interesse do au-tor pode limitar-se à d ec l ar aç ã o:......II — da autentici-dade ou falsidade de documento.’Os mestres na matéria, a uma voz, reconhecem que oúnico fato suscetível de apreciação em ação declarató-ria consiste na autenticidade ou falsidade de um do-cumento. E na presente ação argúem-se fatos os maisdiversos, todos inapreciáveis em ação declaratória, aqual, de resto, seria totalmente incabível no caso.”

Outro comentário é imprescindível, agora porque oacórdão é evidentemente capcioso na última passagemtranscrita. O pedido dos familiares de Herzog havia sidofeito com base no inciso I do artigo 4º, do Código de Pro-cesso Civil, que legitima a parte para obter declaração “daexistência ou da inexistência de relação jurídica”, bem co-mo no parágrafo único que diz ser “admissível a ação de-claratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito”.Portanto, o acórdão incorreu em distorção grosseira dofundamento legal, para apresentar a ação como mal pro-posta e, em seguida, afirmar que a inépcia somente é rejei-

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tada porque dos fatos narrados se depreende a pretensãocondenatória. Com a condenação desde logo da União se-ria alcançado prontamente o ponto final. E foi isso o queaconteceu, como se vê a seguir:

“Por tudo isso, e seria fastidioso trazer à colação maispronunciamentos de juristas e de tribunais, é eviden-te que a declaratória é incabível, o que poderia levar adecisão de que são os autores carecedores de ação,como pretendido pela ré.Entretanto, não chego a essa conclusão, à vista dosmotivos que passo a expor.Os autores foram bem explícitos no pedido. Articu-laram os fatos que se propunham provar e deram osmotivos pelos quais pretendiam responsabilizar a ré,dando remate à peça pedindo ‘a re sp o ns ab il id ad e d aUnião Federal pela prisão arbitrária de...(VladimirHerzog)..., pelas torturas a que foi submetido e porsua morte e a conseqüente o b r ig ação de indenizá-los, emdecorrência dos danos morais e materiais que esses fa-tos lhes causaram.Pouco importa, para deslinde da questão, o apelidoque tenham dado à ação. Batizaram-na de declaratória,mas na realidade a ação proposta foi de natureza con-denatória. E como tal, embora com outro epíteto, foijulgada, ao que se vê das conclusões da respeitável sen-tença recorrida: ‘Pelo exposto, julgo a presente açãoPROCEDENTE e o faço para, nos termos do art. 4º, in-ciso I, do Código de Processo Civil, declarar a existên-cia de relação jurídica entre os AA. e a R., consistentena o b r ig ação desta indenizar aqueles pelos danos materiais emorais decorrentes da morte do jornalista...’(fls. 621).(...)Todos os elementos integradores de uma ação conde-natória estão presentes, quer na inicial, quer no de-senvolvimento do pleito, quer na síntese judicial quese lhes seguiu.

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Tirando os fatos, inapreciáveis em ação declaratória,onde a incerteza? Na relação jurídica? Declarar oque? O óbvio, isto é, o dispositivo constitucional queestabelece que ‘as pessoas jurídicas de direito públicoresponderão pelos danos que seus funcionários, nessaqualidade, causaram a terceiros’?É evidente que se trata de ação condenatória e, comotal, deve ser apreciada pela Egrégia Turma.”

Diante dessas conclusões, o recurso foi julgado emseu mérito, resultando condenada a União ao pagamentode indenização aos familiares de Herzog, com base na res-ponsabilidade objetiva do Estado pela guarda de preso,em valores a apurar na liquidação da sentença.

Perpassa dos trechos transcritos que havia um firmedeterminação no sentido de colocar um ponto final. Elaera tão inabalável que se fez revelar até mesmo diante dacircunstância desse tópico:

“Dizem os autores que ‘não pretenderam qualquercondenação, salvo no tocante às verbas inerentes àsucumbência’. Não é tal. O que não pediram foiquantia certa. Tive oportunidade de ler nos periódi-cos declarações da primeira dos autores, pelas quaisdisse não lhe interessar indenização alguma, mas ape-nas a declaração judicial dos responsáveis pela mortede seu marido. Desvaliosa tal atitude, pois há interes-ses indisponíveis em jogo, quais sejam os dois filhosmenores.”

Há duas heresias cometidas nessa passagem.Primeiro, o julgador não pode trazer para os autos o co-nhecimento de fatos que obteve como cidadão, lendo jor-nais ou até observando pessoalmente algo de relevante. Seo faz, erradamente, não pode extrair conseqüência proces-sual contrária ao que o interessado disse nos autos. Segun-do, não pode ignorar a vontade manifesta, expressa con-

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forme a lei, por supor indisponibilidade de direitos quenão foram articulados por quem representa os titulares de-les. Não houve qualquer manifestação de renúncia. Ocor-reu apenas expressão volitiva de fazer e de não fazer, o quenão permite ao Estado adonar-se de uma vontade que en-tende coarcta, para satisfazê-la... como bem entende. De-mais disso, a representação do interesse de incapazes,quando imperfeita por parte de quem detém o pátrio po-d e r, cabe ao Ministério Público, e não consta que este hajarequerido qualquer providência.

Como quer que seja, o desfecho foi condenatório daUnião. Com isso, veio o almejado ponto final. Caso encer-rado. Sem culpas, sem responsabilidades pessoais.

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IV – O QUE MATA

A apreciação do pedido em fase recursal, já determi-nado que a ação continha pretensão de conteúdo conde-natório, consiste num exercício pródigo em voluntarismoe preconceito, este completamente indissimulado. A pri-meira investida desconstitutiva da sentença de primeirograu se expressa na desqualificação dos testemunhos:

“São mentirosas, segundo eles” (os autores) “as decla-rações prestadas em inquérito presidido por um oficialgeneral e em presença de um membro do MinistérioPúblico, pessoas contra cuja idoneidade nada foi argüi-do. Entretanto, são tomadas como verdadeiras e consti-tuem mesmo peça acusatória centra as declarações for-muladas por Konder num escritório particular.As acusações de Konder, Markum, Anthony e Wejs, sen-do que as três últimas prestaram depoimento em juízo,não afirmam que...(Herzog)... tenha sido torturado,embora tal afirmem relativamente a outras pessoas. Aúnica testemunha que declara ter sido...(Herzog)... ví-tima de maus tratos é a testemunha... (fls. 420), o qualnarra as torturas que ele próprio teria sofrido, afirman-do que ‘não viu, mas ouviu os gritos de...(Herzog)... naocasião em que o mesmo estava sendo torturado; que odepoente só teve certeza de que se tratava dos gritosde...(Herzog)... após o conhecimento de sua parte desua morte...’(fls. 420,v). Já pelos próprios termos, taltestemunho não merece crédito, pois teria imaginadose tratasse de...(Herzog)...É evidente o facciosismo que transparece nos depoi-mentos das já mencionadas testemunhas, todas elasirmanadas pelas mesmas idéias.”

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(...)“As declarações das já mencionadas testemunhas sãode molde a provar as afirmativas feitas no pedido ini-cial. Konder não se submeteu ao crivo do contraditó-rio. Markum, depois de detido, foi liberado por vintee quatro horas (fls. 418); Wejs disse que foi ameaçadode violências, mas que não as sofreu (fls. 430); Antho-ny nada esclarece e, quando prestou declarações noinquérito, se encontrava em liberdade (fls. 416).Estrada também nada esclarece, em relação a...(Her-zog)... (fls. 410/412). Isto sem falar que três dessastestemunhas, pelos menos, como...(Herzog)... se sub-metiam ou haviam se submetido a tratamento compsicanalistas.Podem, tais testemunhos, prevalecer sobre a afirmati-va de médicos legistas idôneos, que não constataramsinais de maus tratos? Sobre depoimento de..., quedeclarou no inquérito (fls. 165) que ‘passou a proce-d e r, com mais dois auxiliares e um amigo da famíliado morto à ‘tahara’, que ao proceder à ‘tahara’ —‘pôde verificar que o corpo de...(Herzog)... estavaisento de qualquer marca, equimose, que revelassemsinais de violência...?’Registre-se que esta testemunha é israelita, como oera...(Herzog)... Tais declarações são confirmadas pe-la testemunha Léo, contraparente de..., amigo da fa-mília (fls. 176).”

A desqualificação das testemunhas não toma os fatospor ela informados em confronto com outros, parte dasnarrativas para encontrar uma c o nd iç ã o que comprometa oseu teor. Essa condição é verificada sob três primas: (a) to-dos os envolvidos estavam irmanados das mesma crença:eram comunistas; (b) três das testemunhas arroladas pelosautores haviam-se submetido à psicanálise, o que tambémhavia ocorrido com Herzog, e nenhum esclarecimento éfeito sobre o que o acórdão chama de t r at am e nt o; (c) o rito

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judaico legitimaria a tese da inexistência de crime porque,sendo tão específica a situação do judeu, supostamenteele teria um poder verificador e revelador das mentirasatribuídas às testemunhas. A leviandade disso tudo nãoprecisa ser salientada.

Em seguida, o acórdão envereda pela desqualificaçãodo próprio morto, por suas fraquezas, temores exageradose sentimento de culpa.

Houve a reconstituição de uma folha rasgada em queperícia grafotécnica identificou a letra de Herzog. O textorecuperado, não obstante, dá mostra de ter sido encomen-dado, copiado ou até ditado. Não há nexo entre ele e acondição do preso. Por coincidência, o escrito, que atépoderia existir como uma mensagem de suicida, provi-dencialmente contém referência aos outros presos, quevieram a testemunhar. Na verdade, essas contradições sãoexploradas contra a integridade de caráter do morto:

“Ao que se vê das declarações escritas pelo infortuna-do...(Herzog)..., as quais rasgou e foram reconstituí-das, documento que não mereceu contestação, escre-veu ele: ‘admito ser militante do PCB desde 1971 ou1972, tendo sido a l ic i ad o p o r..., meus contatos com oPCB eram feitos através de meus colegas...’. E entreoutros arrola também os nomes das testemunhasMarkum, Anthony e Wejs (fls. 70 dos autos do inqué-rito). E termina seu escrito com as seguintes palavras:‘Relutei em admitir neste órgão minha militância,mas após acareações e diante das evidências, confes-sei todo o meu envolvimento e afirmo não estar inte-ressado mais em participar de qualquer militância po-lítico-partidária.’

Do referido documento se conclui, como aliás das de-clarações das próprias testemunhas já referidas, queforam elas, a primeira pelo aliciamento e outras porterem apontado... (Herzog)... como componente do

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grupo, os responsáveis pela situação em que se encon-trava o desafortunado jornalista. Naquelas declara-ções há um ressaibo de desencanto.(...)Enfim, muitos elementos existem que levam à convic-ção de que...(Herzog)... não foi maltratado e que, efe-tivamente, praticou o suicídio.Aliás, nem havia predisposição contra...(Herzog)..,tanto que, quando procurado, teve sua oitiva adiada,a pedido de um colega, tendo comparecido à sede doDOI-CODI no dia seguinte, acompanhado somentede..., seu companheiro de trabalho (fls. 133 e 429).Todos os elementos sérios apurados levam à conclusãode que...(Herzog)... pôs termo à vida. Que motivos oteriam levado a esse gesto de desespero? Torna-se difí-cil a resposta, mas não se pode esquecer que o desafor-tunado jornalista, em tenra idade ainda, sofrera, comsua família, o trauma da perseguição nazista. Subme-tia-se, certamente por ser um neurótico, a tratamentomédico. Deve ter-se sentido profundamente abaladopor ter sido delatado por quem o aliciou e por seuscompanheiros de credo político. Além disso, ficou de-tido por mais tempo do que, certamente, pensara. To-das essas circunstâncias, aliadas, podem perf e i t a m e n t eexplicar seu extremo e lamentável gesto.(...)De culpa exclusiva da vítima não se pode cogitar nocaso. Tratava-se de pessoa neurótica. Ficou detido porlargas horas, o que estabelece nexo entre essa deten-ção e o desenlace fatal.”

Há uma apreciação pastosa, entre uma moral austeraque perdoa e lamenta, e um veredito sóbrio, que vê namorte de Herzog a expressão de sua fraqueza e culpa,quanto a si próprio e quanto à sua militância.

Em primeiro lugar, nenhum participante de qual-quer movimento político declara que foi a l ic i ad o. Esse é

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um termo apreciativo, com conotação de juízo de valor eautoria, que somente pode ser formulado depois do levan-tamento de um fato, por quem o relata, e não por quemparticipa dele. Em segundo lugar, se Herzog foi acareadocom alguém, nada seria mais fácil do que identificar e ou-vir o outro acareado sobre as condições que apresentava opreso, e aquelas em que se deu a acareação. Não constanos textos reproduzidos dos autos que isso tenha aconteci-do. Logo, Herzog teria produzido uma mentira escrita,sem nenhum nexo com a realidade, ou sob coação sofri-da, ou para obter uma pausa nela (ao afirmar no bilheteque resolveu confessar em virtude das acareações). Emterceiro lugar, o acórdão aponta o fato de que Herzog te-ria inculpado alguns conhecidos (entre os quais três teste-munhas), atribuindo-lhe veladamente um surto de arre-pendimento e autocastigo. Entretanto, deduz daí que eleé quem havia sido delatado por militantes do seu partido,o que gerou seu desencanto. Eis desmontada toda a lógicaargumentativa do julgamento.

Por fim, o acórdão se firma no terceiro elemento deanálise da prova, o laudo pericial:

“Procuram os autores tornar imprestável o laudo queconcluiu pelo enforcamento, inclusive atacando rude-mente o perito doutor Shibata.A propósito dessa peça, buscam inutilizá-la diante daafirmativa daquele técnico de que não procedeu aexame no cadáver, o que foi feito por outro colega.Assim, o laudo não teria valor porque o exame forafeito por um só perito, quando são indispensáveis, pe-lo menos, dois expertos.Não procede a alegação. A invocada Súmula 361 dizrespeito a peritos não oficiais. É inaplicável a mencio-nada Súmula quando se trata de perito oficial (...).Improcedentes também os ataques à honorabilidadedo perito doutor Shibata. Este dissera (fls. 414), lisa-mente, que o segundo perito, quando atua na assina-

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tura de um laudo, não participa necessariamente doexame do corpo de delito; entretanto, há obrigatorie-dade de rever o relatório, analisar e discutir e se nadativer a objetar ao que está escrito, subscreve, como se-gundo perito.Nada há de censurável no procedimento do doutorShibata. É sabido que tais laudos resultam de examesexterno e interno, sendo registrados os elementosmateriais encontrados. Após, seguem-se a discussão ea conclusão.O doutor Shibata, pois, em face das constatações fei-tas no cadáver por seu colega, chegou à mesma con-clusão do último. E nada há de errado nisso. Não foitrazido um argumento sério contra a lisura do pro-nunciamento dos peritos.”

Não há exagero em dizer que o acórdão do TFR ma-tou Vladimir Herzog uma outra vez. O mundo do mortoera ignominioso. Como extrair dele um gesto reto, de re-sistência política até o perecimento? Como infirmar atosinvestigados por um general de exército perante membrodo Ministério Público, e atacar ilibado legista?

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V – PORQUE NÃO ESQUECER

É muito difícil pretender avaliar as razões de um si-lêncio sepulcral sobre o julgamento definitivo do CasoHerzog. O que poderiam fazer os autores da ação, sem ex-por ainda mais a memória do desaparecido a juízos de va-lor, de que foi tão pródigo o acórdão?

Hoje se sabe, certeza documentada com nomes e de-talhes, que houve a tortura do jornalista (pois até um dosseus algozes foi identificado e entrevistado pela revista Ve-ja) e que ela está relacionada diretamente à morte. É umacerteza que atende apenas aos incréus, pois atesta o quesempre foi sabido pelas pessoas de espírito aberto. Herzogenvergava um macacão recém vestido, ainda com as mar-cas da dobra, o que aparece na foto tirada pelas própriasautoridades. O cinto que amarrava seu pescoço não eradado aos presos, os quais eram despojados mesmo doscordões de seus sapatos. O legista Harry Shibata chegou aperder seu registro de médico e enfrentou repetidas acu-sações de coonestar atos de lesão e morte de presos políti-cos. De que adiantou a Justiça ignorar fatos tão evidentese, como de um pedestal, tentar despojar o morto de umamemória digna a que tinha direito?

Ainda que Vladimir Herzog houvesse praticado o sui-cídio não determinado por fatores externos, e se sobre is-so não houvesse qualquer dúvida possível, não mereceriaser vitimado de novo pelo preconceito acintoso que, con-tra ele, se expressou como uma indissimulada defesa doregime de exceção.

É de ser lembrado que suicídios como o de SalvadorAllende e, no Brasil, de Getúlio Vargas, foram atos políti-

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cos em que o sacrifício individual foi pontuado por aconte-cimentos mais amplos, como reação a eles. Por muito tem-po vigorou uma interpretação rústica de que suicidar- s ecorresponde a um tipo de abdicação. Não é por acaso que,contra todas as evidências, divulgou-se por muitos anosque Allende havia caído na luta. Imagem romântica deuma América Latina ainda primitiva em seus mitos. Na ver-dade, o presidente do Chile havia anunciado, e isto constaem entrevista a Régis Debray, que repetiria o ato do almi-rante Balmaceda, que havia ocupado o mesmo cargo noinício deste século, no caso de uma deposição. No Brasil,Getúlio Vargas retardou por dez anos o movimento militarque por fim veio a ser vitorioso em 1964, pois seu gesto ex-tremo paralisou o golpe que então já havia triunfado.

Contudo, Vladimir Herzog não se irmanou em gestocom esses grandes mortos. A morte que lhe foi infligidanum calabouço esteve seguida de outra, astuciosa e igual-mente cruel, de oficializar para sempre seu suicídio comolimite de fraqueza e desespero. A verdade já foi suficiente-mente restabelecida no âmbito da sociedade civil. AJustiça será caudatária, para sempre, guardando-a em seusarquivos seculares, da mentira.

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V

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“J’ai vous aimé vraiment quand vous étiezvivants...”

(Personagem do ator Jean Marais no filmeBeleza Roubada, de Bernardo Bertolucci)

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I – INTRODUÇÃO

O tema da crise aqui é recorrente. Na verdade, nãoexiste crise acerca da i d é i a de justiça, que transcende o as-sunto jurídico, pois ela própria se constrói em torno dacrise do homem, suas limitações, destino errático, serv i-dão às suas paixões e obscurecimento de seus sentidos.Não se pode dizer que tal idéia resulte do aperf e i ç o a m e n-to da razão, pois a própria razão pode obcecar o espírito et r a n s f o r m a r-se em objeto de culto e, com isso, produzir anoção de justiça redentorista, como se fosse a certeza pos-sível ao homem de saber incerto.

Há uma indagação da filosofia, portanto, que prece-de sempre esse tema. Demócrito de Abdera, por exemplo,propôs que f azer justiça é fazer o que é pre c i s o . Situou desdelogo essa idéia num plano de devir contínuo, que é o fa-z e r, e estabeleceu o motivo do reconhecimento incessan-te, que é a necessidade. Apenas isso serviria para derrubarséculos de glosa acadêmica puramente retórica acerca deformalidades, idealismos, visões místicas da natureza dohomem e preceitos sociais que se confinam em progra-mas, ora inspirados nas religiões de Deus, ora em religiãodo próprio homem. O jusnaturalismo e o positivismo, in-corporando a escolástica, tornaram-se abordagens de con-trole, não de exsurgência da idéia de justiça.

É indispensável um grande esforço de humildade aosjuristas que desejam preservar o saber heurístico (da des-coberta), pois têm de reconhecer que a justiça não secompreende apenas no Direito, nem mesmo forma o ob-jeto principal de seu saber. A construção do Direito signifi-ca a sistematização de vários temas: assim como o da justi-

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ça, também o da liberdade, o das regras de convivência econtrole da força, com o seu uso para preservar bens e re-lações sociais. Portanto, para que houvesse a busca e aaplicação da justiça, e se obtivesse o seu reconhecimento,fez-se necessário erigir regras operativas para codificarseus sinais e eleger seus cânones lógicos.

Quem apreendeu bem e sintetizou essa dispersão foiainda um filósofo, Miguel de Unamuno, que cunhou a ex-pressão t e ol og i a a b og ad e sc a p ara expressar os limites daepistemologia jurídica nestes termos, em resumo perfeito:

Una falacia lógica puede expresarse m ore scholasticocon este silogismo: Yo no comprendo este hecho sinodándole esta explicación; es así que tengo que com-prenderlo, luego esta tiene que ser su explicación. Ome quedo sin comprenderlo. La verdadera cienciaenseña, ante todo, a dudar y a ignorar; la abogacia noduda ni cree que ignora. Necesita de una solución.(Del Sentimiento Trágico de la Vida)

Não se pode falar em crise na concepção da justiçaporque ela própria é uma concepção crítica. As idéias ini-ciais do f az e r e da n ec e ss id ad e têm de enfrentar, exatamenteno campo do Direito, onde o conhecimento sistematizadoprocurou instrumentalizar aquela concepção, os limites dat e ol ogia abogadesca. A ciência jurídica é a expressão da crisede insuficiência de seu método para reconhecer o que énecessário fazer. Por isso, o mais conhecido juiz america-no, Oliver Wendel Holmes, cunhou a célebre frase (umpouco presa à idéia já viciada de linguagem elegante):quem conhece só o D i reito, nem Direito conhece. O glosador Bár-tolo, na rudeza medieval, havia sido mais duro: I meri leggis-ti sono puri asini.

Este texto trata, portanto, de uma outra face da justi-ça, aquela que é escrita com letra maiúscula, por ser o no-me de um corpo institucional, e este sim amarga uma do-

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lorosa decadência. A crise da Justiça já ganhou dimensõesredundantes. Nos anos ‘60 ainda criticava-se no Judiciárioa incapacidade para produzir outra mudança operativaalém da introdução da máquina de escrever. O bolor, alentidão, as formalidades, as castas de burocratas, a cor-rupção já foram vituperados demais, com razão. A sobrevi-vência desses vícios, depois que o Judiciário passou a con-tar com seu orçamento e se dinamizou, adotando toda atecnologia disponível, pondo-se em dia com o século,mostra que a idéia de crise tornou-se insuficiente paraconceber tais vícios renitentes. Ela não pode identificaruma situação permanente, crônica, que não produz pen-samento dialético. Ao invés de enfocar a crise da Justiça jáfoi proposta a concepção de Justiça da crise, nestes ter-mos: a deterioração é crescente, mas todos os recursos in-dispensáveis já estão alocados. O Poder Judiciário é políti-ca e financeiramente independente. Não obstante, o quedeclina é a autoridade judicial. Se os atos jurisdicionaistendem a ser m ot or iz ad o s (expressão cunhada por CarlShmitt), eles não desvendam nenhuma realidade nova,deixam de superar a situação que seria propriamente críti-ca, mas mergulham nela, e isso precisaria ser reconhecidocomo Justiça da crise. O saber heurístico feneceu. A idéiade justiça haurida da filosofia não se contém mais, salvocomo mera figuração, na de justiça jurisdicional.

Dentre muitos outros, de melhor escola, Henry -Bernard Lévy (As Aventuras da Liberdade) situa o surgi-mento do intelectual, com a aura que lhe reconheceu oSéculo XX, no âmago das crises vividas pelo povo francêsdiante da necessidade de reidentificação da idéia de justiçanos atos da Justiça. Aponta o Caso Dreyfus como o paradig-ma mais conhecido, a suscitar a noção de c a us a, papel sociale v al ore s como descritiva do intelectual, no seu destino decombate e compromisso. Não surgiu chez nous essa grande-za. Teríamos tido nosso paradigma, por exemplo, na revol-ta da chibata, mas esse episódio — sem dúvida muito signi-

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ficativo — ficou sepultado, sem despertar a paixão que me-receria, na retórica forense e indignação parnasiana daépoca. As polainas abafaram o eco da chibata.

Como há o cultivo do barroco no mundo forense, deum barroco de duvidoso gosto, diria alguém que fizesse odiagnóstico em uma sessão do Instituto Histórico e Geo-gráfico ou da Academia de Letras da Província: o corpoinerme e agonizante de um aparelho judiciário desvirtua-do e exangue não encontrou até o fim deste século, no co-nhecimento das necessidades vitais e da ação para supri-las, resposta intelectual para sua superação...etc, etc.

Em frase direta, para os mortais: o gordo comensaldas verbas e esperanças públicas perdeu sua paixão e nãopensa mais sobre seu estado lastimável e sobre as funçõesque esqueceu. Como num conto de Julio Cortázar, o né-dio infame quer apenas sua sobremesa, seu c h âteau sang-n a n t. Não é sem motivo que se assista a um mergulho mís-tico acerca de perspectivas para o próximo milênio, comose a simples passagem dos anos revertesse o quadro, ou co-mo se houvesse um marco no calendário para que algumadignidade fosse reposta. Milenarismo jurídico... é doloro-so ter de usar essa locução, por ser ela um contra-sensoque já contém a idéia de agonia. Os males da Justiça sãoconfundidos com os males do século, e acabarão com es-t e . . .C o rru m p e re et corrumpi saeculum vocatur, como propôsTácito. É claro que o misticismo não se confunde com ogrito dos que vêem definhar a idéia de justiça, e não que-rem que o século seja a sua sepultura. Porém, o que pen-sar de juristas que, por exemplo, deslocam-se até um paíslatino-americano com graves problemas institucionais pa-ra ali, onde nem mesmo direitos civis e eleitorais têm livrecurso e reconhecimento, discutirem um tema etéreo co-mo Derecho y Justicia en el 3er. Milenio?

Há uma espécie de comiseração inevitável quando sedefronta o quadro que, mal descrito, é em geral tido co-mo de crise da Justiça. Na verdade, há um estado de ago-

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nia já agora indissimulado, e até mesmo a mística acodeaos juristas como acode aos que assistem a moribundos.Por certo nenhuma revelação salvadora será trazida pelofuturo, simplesmente pelo fato de que ele é o tempo quevai chegar.

Essa agonia tem de ser admitida e administrada deum ponto de vista mais refinado do que aquele dos diag-nósticos empíricos, só de evidências. É certamente preten-sioso querer que um certo surrealismo alimente os primei-ros passos com seu ânimo que é o do instinto atévoluptuoso, mas não há consciência que tenha seu partosem paixão. Com sua leveza de espírito, talvez o líricoMário Quintana, que gostava de incursionar pelo humorfantástico, tenha indicado exatamente o primeiro dos pri-meiros passos a dar:

“E os velhos jurisconsultos viram fetos...Esses fetos que a gente olha, meio desconfiado, nosbocais de vidro... e que, no silêncio dos laboratórios,oscilando gravemente as cabeças fenomenais, elucu-bram anteprojetos, orações de paraninfo, reformas daconstituição...Sempre que puderes, crava um punhal, um garfo, umprego, no miolo mole desses fetos.”(Metamorfoses)

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II – DESTROÇAMENTO DA C A R R E I R A

Nos dias em que começou a ser escrito este texto oJuiz de Direito da 2ª Vara Cível de Boa Vista havia deferidomedida requerida pela promotoria em ação civil pública,determinando o desligamento no Poder Judiciário de Ro-raima dos parentes de desembargadores. Sobreveio a cas-sação, ditada no âmbito do próprio Tribunal de Justiça da-quele Estado. Em outro lugar será examinado o fenômenodo nepotismo no Judiciário. Por enquanto vale salientaraqui a insegurança funcional do magistrado que reconhe-ceu e coibiu a irregularidade, desde que ele podia ser afas-tado do cargo administrativamente, tão logo a corte de se-gundo grau quisesse imputar-lhe algum tipo de infraçãoou excesso. A par disso, o exercício probo e intimorato dajudicatura tornou-se o fato mais apto para o destroçamen-to da carreira, dadas as represálias, preterições e vetos.Desse modo, o único inimigo temível pelo juiz — numquadro de democracia formal efetivamente praticada noâmbito das instituições do Estado — é o juiz. Não há maiorestado de risco e solidão pessoal no Brasil — nem mesmono meio dos conflitos por terra, nas rebeliões de presos ouna violência das periferias de grandes cidades brasileiras —do que aquele de um juiz que assume o encargo, no seuofício jurisdicional, de enfrentar irregularidades existentesdentro do Poder Judiciário. As lutas sociais mencionadas,ao menos, costumam despertar intensa solidariedade. Ojuiz é esmagado só. Quando das solenidades de devoluçãodo terreno onde ficava o prédio na União Nacional dos Es-tudantes, no Rio de Janeiro, durante o Governo ItamarFranco, faltou significativamente a homenagem ao corajo-

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so e íntegro Juiz Federal que, concedendo nos anos ‘80 su-cessivas liminares contra a demolição do prédio sede da-quela entidade, teve sua carreira destruída pelo antigo Tr i-bunal Federal de Recursos. A falta de qualquer reparaçãopossível ao magistrado é um componente consideradoquando ele assume o encargo de, efetivamente, cumprirseu juramento de defender e garantir a ordem legal nopaís. Não se trata de opção moral, trata-se de uma condi-ção de vida, que é incorporada como dado contingente.Abatido em silêncio, o Juiz Federal referido — a par de suaintegridade — quando menos pouparia a União da vultosadespesa de desapropriar o imóvel, para restituí-lo à UNE.

O Ministro Aliomar Baleeiro, quando estava tramitan-do o projeto da LOMAN, numa declaração que certamen-te procurava espantar o pânico com a graça rústica, comoera de seu estilo, disse que nada havia a temer, pois “lobonão come lobo”. Referia-se às medidas disciplinares conce-didas a tribunais plenipotenciários. Todavia, levando acomparação ao fim de todas as implicações, nem todos sãolobos, e os que o são pertencem a famílias diversas, e há osmais fortes e dominadores como os débeis... estes tambémse unem para derrotar o espécime mais nobre... Por fim, selobo não come lobo, expulsa-o e fere, concedendo ao maisfraco o exílio, que pode significar a morte.

O tema das desgarantias da magistratura independen-te tem sido tratado com leviandade, seguidamente. Os juí-zes têm dificuldade em se fazer representar. As entidadesassociativas mostram-se muito seguidamente corporativis-tas, e apenas isso. Até mesmo a eleição direta para a esco-lha dos representantes dos magistrados veio em undécimahora, só acontecendo em virtude do movimento popularirreprimível em favor delas para a presidência da Repúbli-ca. As entidades confundem representação funcional comatividade associativa. Fotografar e divulgar seus bailes doHawaii, seus encontros da terceira idade, suas sedes compiscinas... tudo isso depõe contra os magistrados (a come-

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ç a r, esteticamente...), expondo-os às sátiras de costumes(Erasmo, Gil Vicente, Swift), com razão. Não há maior fa-tor de estraneidade para um juiz do que a leitura de notaspublicadas em nome da “classe”, isto é, em seu nome.

A par da deficiência de representação legítima, exis-tem entidades clandestinas, de que são bom exemplo oscolégios de Corregedores Regionais e Presidentes de Tr i-bunais Regionais do Trabalho, ou de Corregedores e, se-paradamente, de Presidentes de Tribunais de Justiça. Ta i sórgãos não pertencem ao Poder Judiciário. Os juízes ad-ministradores de tribunais não foram eleitos por seu parespara formarem colégios que falam em nome da Justiça co-mo se formassem um cabido incumbido de gerenciá-la emconjunto. Igualmente não receberam nenhuma delega-ção dos magistrados.

Constituindo-se como sociedades civis, os colégios depresidentes e corregedores são entidades nocivas, cujaexistência clama pela implantação de um Conselho daMagistratura. Se as administrações de tribunais são órgãosautônomos e suficientes, e é desnecessário criar um conse-lho unificado de controle administrativo, para que exis-tem os colégios? A cada reunião destes são divulgadas no-tas com proclamações inócuas, que confundem apopulação. Por exemplo: em 15 de março de 1997 foi di-vulgada a “Carta do Espírito Santo” pelo Colégio dos Cor-regedores-Gerais da Justiça dos Estados e do Distrito Fe-deral, onde se lê o seguinte tópico, na alínea “d”:

O Poder Judiciário, na sua independência e na sua su-blime missão de bem distribuir justiça, reivindica ofortalecimento do estado de direito capaz de oferecera proteção jurídica, idealizada pelas legítimas aspira-ções do povo, devendo, pois, as leis refletirem a vonta-de da sociedade civil.

Qual é o significado disso? Nenhum. Nada ali foi ditosem que antes o tivesse sido, com idéias e linguagem me-

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lhores. O Colégio que publicou a nota não está autorizadoa invocar o nome do Poder Judiciário, pois não o integraou representa. É surpreendente que os seus componentesdeixem suas jurisdições, mediante pagamento de polpu-das diárias pelos cofres públicos, para produzirem suas l e t-ters at world desautorizadas.

Tautologia, truísmos, non sense destituído de humor,vácuo. Eis o conteúdo — ou não conteúdo — desses textos.

Outra entidade clandestina com propósitos impers-crutáveis é o Forum Permanente Para Defesa da Justiça doTrabalho, existente no Rio Grande do Sul, e formado porassociações profissionais de juízes, advogados, leiloeiros,peritos, representantes classistas e funcionários. Não exis-te nenhum tipo de documento de interesse institucionalque os magistrados, em sua condição de investidura política,possam assinar com leiloeiros, por exemplo, que são co-merciantes. O Forum Permanente, portanto, é entidadeque somente se manifestará no sentido corporativo, noque este tem de mais nocivo, de reserva dos interesses es-tamentais. Além disso, a Justiça do Trabalho não precisade “defesa”, salvo se estiver funcionando mal. Já aí estaráatrás de expiação. É o Congresso e os corpos de represen-tação política da sociedade que devem decidir sobre suamanutenção. Na Espanha ela foi extinta; na Alemanha,p r e s e rvada, dentro da mesma União Européia. Não é aexistência de uma Justiça Especializada que garante a prá-tica da justiça. Pode-se defender doutrinária e historica-mente a existência de uma Justiça do Trabalho, mas nãose pode fazê-lo, sem desvirtuar os propósitos da carreirajudicial, com o uso do nome desta, como se coubesse àJustiça do Trabalho preservar a Justiça do Trabalho.

Como cidadãos, façam os juízes e leiloeiros as decla-rações que quiserem, mas não há nada que os autorize afalar conjuntamente em nome de seus ofícios.

Recentemente, a Medida Provisória 1523/96, conver-tida na Lei 9.528 em 10.11.97, revogou a Lei Ari Campista,

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que concedia o privilégio aos representantes classistas dese aposentar pelo Tesouro Nacional (Lei nº 6.903, de30/04/1981). Desde então declinou o tráfico de influênciaque se fazia solto na escolha e recondução daqueles repre-sentantes, que se transformavam em juízes por um simplesato singular de escolha. O edito legal veio ao encontro depostulações reiteradas dos magistrados. No entanto, ne-nhuma manifestação de apoio foi feita e, obviamente, elanão poderia advir do Forum Permanente existente no RioGrande do Sul. Pouco importa que a feição do texto legaltenha sido a de medida provisória. A ordem constitucionalvigente a prevê, e esse era um caso que clamava corretivo.

Com relação à Lei Ari Campista é digno de nota queas entidades da magistratura nunca hajam proposto ouprovocado declaração de inconstitucionalidade, quando éacessível que: (1º) não pode haver aposentadoria de quemnão exerce cargo público, mas apenas função. A aposenta-doria implicaria em criar, sem lei, cargo referencial parainativo, que não existe no serviço ativo; (2º) a Constitui-ção trata de representação temporária. Porém, uma vezaposentado, o representante classista torna-se titular vitalí-cio do título funcional de juiz e beneficiário permanentedos proventos da jubilação. A isso o Tribunal de Contas daUnião, agindo erradamente como ordenador de despesas(e não no seu mister, de controlador delas), determinou ainclusão de adicionais de tempo de serviço no cálculo daaposentadoria de classistas. Os tribunais trabalhistas, porsua vez, já haviam abolido o sistema de j et o n para seus inte-grantes leigos, embora vigente norma nesse sentido naC LT, artigo 689. Aí foi plantada a semente da corrupçãopor ato e interesse i nt e rna corporis. A interpretação tortuo-sa para justificar a irregularidade estava no fato de que asleis que sucessivamente dispuseram sobre vencimentosnão repetiram a regra consolidada. É acessível a um neófi-to que os textos sobre salários tinham conteúdo geral enão detalhavam situações funcionais de origem. Foi esta-belecido, portanto, o privilégio ilegal, numa equiparação

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simulatória em detrimento do Tesouro, de remunerar orepresentante classista como se fosse juiz togado.

Nunca, em tempo algum, em que pesem notas retóri-cas em forma de cartas para o mundo, nenhuma iniciativaprática foi tomada, diante dos tribunais ou do Congresso,para sanar os atentados sistemáticos contra a carreira damagistratura. Quando veio a medida provisória sustando oabuso perpetrado há mais de década, tudo o que se fez,no seio mesmo da magistratura, foi um constrangido si-lêncio. Só mais tarde as associações de juízes passaramprogressivamente a tomar posição ostensiva contra a re-presentação classista, mas muitas vezes o fizeram ao modode uma cruzada, talvez em virtude das muitas ocasiões an-tes perdidas para a proposição de um exame crítico, inclu-sive autocrítico. Quando tal cruzada começou, então veioà tona uma profunda carga de ressentimentos e a pergun-ta que alguém do povo faria aos juízes denunciantes dasiniqüidades agora vistas na representação classista não se-ria muito diferente daquela formulada a NikitaK h r u s t c h e v, por um militante anônimo do PCUS, quandoele denunciou os crimes do stalinismo: enquanto tudo is-so acontecia, tavárich, onde é que você estava?

As entidades associativas dos magistrados, se realmen-te estivessem preocupadas em exercer sua representação,que é legítima, já deveriam ter requerido ao MinistérioPúblico a iniciativa para dissolver os colégios de Correge-dores e Presidentes de Tribunais, pela usurpação que em-preendem e onerosidade que impõem ao Tesouro. Porém,elas próprias promovem seguidamente encontros tão inó-cuos, a pretexto de estudos, conferências, etc, mas que ser-vem ao turismo e compras, como se o tédio houvesse inva-dido irremediavelmente a alma dos juízes, de modo queprecisassem se reunir para trivialidades, consumo de pe-quena burguesia, confraternizações algo paroquiais pelomenos duas vezes por mês, pois essa é a média dos encon-tros realizados em âmbito nacional. Como há juízes que

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comparecem a todos, ou quase todos, seria o caso de inda-gar como será vencida a pletora do Judiciário...

A completa falta de necessidade institucional dessesencontros, e às vezes até de seriedade, ensejaria o comentá-rio irônico de um Eça de Queirós de que brilham apenasas calvas, e salienta-se a consistência dos ventres. Real-mente, essa prática desbordou todos os limites. É um ócio,é um vício, é uma grandiloqüência vazia, é uma presençaostensiva demais, fútil demais, inconseqüente demais paraque a sociedade civil (invocada sem legitimidade na notaantes transcrita) os suporte sem censura. Os juízes, definiti-vamente, perderam a sobriedade. É preciso um corte radi-cal para recuperá-la. Ministros sabidamente assoberbados,queixando-se das centenas ou milhares de processos paraj u l g a r, comparecem a congressos de juízes aposentados...Há conferencistas contumazes que repetem suas preleçõesseguidamente, de encontro em encontro (numa perdacompleta do gosto pela descoberta do novo), conhecidoscomo enfadonhos impenitentes. Há o universo das frasesfeitas, a perda irremediável do estilo, e os papa-coquetéisno universo gastronômico, que sempre passearam commais desenvoltura pelos pratos, embustindo os incautos deque o fizeram pelos livros. As saudações louvaminhas dãoum toque de prazer servil a esse universo, cuja feição defolclore retirou-lhe em definitivo a autenticidade.

Há uma fundada desconfiança da população em tor-no das jornadas, seminários, proclamações, manifestos eparalisações empreendidas pelos juízes. As razões nuncaestão muito claras. O móvel costuma ser o interesse corpo-rativo. Os magistrados sem processos atrasados não sãoaqueles que estão costumeiramente em simpósios.

Nesse quadro de dissolução, deve ser analisada a pos-sibilidade de reerguer a carreira. Isso adviria pela açãocorretiva das Corregedorias e pela edição de um verdadei-ro estatuto.

O que temos no entanto? Corregedorias demiurgasque descumprem acintosamente a Constituição Federal.

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Esta, em seu artigo 93, inciso I, alínea “b”, dispõe que a ati-vidade correicional é privativa dos tribunais, que devem ve-lar para que seja exercida em s ec ret arias e serviços auxiliare s.Todavia, corregedores imperiais intervêm na atividade ju-risdicional dos magistrados, editam regras administrativasque atentam contra suas garantias e carreiras. Em Tr i-bunais de Justiça é comum que os Corregedores-Gerais re-crutem juízes corregedores auxiliares, afastando-os da ju-risdição em prejuízo do povo e investindo-os de um poderinquisitório que não receberam por concurso ou mandato.Não raro, criam-se ali grupos de disputa e o arrivismo é fér-til. Foi perdida a noção crítica, a ser recuperada com ur-gência, de que esse espírito demiurgo das Corregedoriastem origem em uma suposta prestação de contas às autori-dades de outros Poderes (não à população), ou aos paresdo mesmo tribunal, para o fim de angariar prestígio e no-vas comissões para outros cargos de administração, ou ain-da para acesso aos Tribunais Superiores. Bom exemplo dis-so são os casos de verdadeira devassa relatados no livro, deresto medíocre, Da Função Corregedora, de Barata Silva.

As Corregedorias converteram-se em órgãos de inter-venção na atividade jurisdicional, à margem da Constitui-ção, e exercem seu arbítrio sob o jugo do poder de inicia-tiva disciplinar que se outorgaram. Elas hoje guardam afeição de agentes de um rei que não existe, como se atuas-sem na Colônia. Ao mesmo tempo, mostram-se totalmen-te incapazes de cumprir seu encargo mais nobre, conferi-do pela Carta Magna, de coletar dados objetivamente etransmiti-los aos integrantes dos tribunais sobre a s eg ur a n-ç a e r ap id e z nas deliberações judiciais, como sobre o aper-feiçoamento técnico dos juízes, matéria que informa o cri-tério objetivo que deveria ser obedecido (e não o é) nosprocessos de promoção. As Corregedorias funcionam co-mo órgãos de dissolução interna. Se atuassem para resol-ver distorções, estas não seriam tão gritantes. No quadrode desvirtuamento da sua competência, não poderia serdiferente. A função de corregedor é seguidamente atri-

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buída a quem, por sua história na judicatura, estaria com-pletamente impedido de exercê-la. Basta ver quantos re-lapsos, sem nenhum currículo de exação, a tem exercido.

Trata-se nesse caso apenas do poder de mandar quedecorre de um princípio muito bem formulado por Han-nah Arendt como sendo red u ctio ad Hitleru m, isto é, umprincípio que consagra o autoritário pela submissão.

Quanto à edição de um autêntico estatuto garanti-d o r, não há o que esperar. Haverá, tanto como hoje jáexiste, muito contra o que resistir. O constituinte errou aocometer a iniciativa da lei estatutária ao Supremo Tr i-bunal Federal, incorrendo em duas distorções. Primeiro,o STF conta apenas com um Ministro que ingressou nacarreira da magistratura por concurso, seguindo-a em to-dos os seus passos (Sydney Sanches). Os outros dez Minis-tros realizaram carreiras diversas, afins ou não, e muitoscarecem da vivência das tensões e desgarantias que infir-mam a independência judicial desde a instância inicial.Essa observação se estende àqueles que, tendo sido embo-ra nomeados juízes de primeiro grau, não se submeterama concurso público e, portanto, gozaram desde o início depatrocínio, a começar para a própria nomeação. Para aCorte Suprema não há nenhum prejuízo no recrutamentohavido para formar seu quadro, desde que o Brasil destoados outros modelos, até mesmo dos Estados Unidos daAmérica, tomado como paradigma inicial, onde chega aser majoritária a presença de juízes de carreira, em algu-mas composições. Obviamente, também os Ministros daSuprema Corte são juristas de escol e podem avaliar aque-las situações de ofensa a garantias de juízes que lhes che-gam para exame. Todavia, aqui se trata de outra coisa, deexperiência pessoal. Já se foi o tempo de padres celibatá-rios ministrarem regras de comportamento em matéria desexo. O ex-ministro Francisco Rezek, por exemplo, ingres-sou no Supremo duas vezes, uma no Governo Figueiredopara substituir Leitão de Abreu, seu patrocinador desdeos tempos em que servia fielmente o Poder Executivo, in-

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clusive no período de exceção constitucional. Outra, du-rante o Governo Collor, ao qual igualmente serviu de umaforma constrangedora, pois havia deixado o STF quandodetinha a condição de Presidente do TSE, e havia presidi-do as eleições que, por exato, resultaram na formação da-quele Governo. Seu retorno ao Supremo, como se detives-se uma vaga cativa, previamente acertada, causou tantoconstrangimento como a saída anterior, pela motivaçãocom que se deu. Aliás, na arte do constrangimento o ex-ministro Rezek dificilmente será superado, pois sua idapara a Corte de Haia também resultou de um arranjo queatendia a interesses convergentes, tanto para que deixasseo STF como para que ali abrisse rapidamente uma vaga,permitindo ao Governo Fernando Henrique fazer sua pri-meira indicação.

A par de declarações extremamente infelizes (porexemplo, “o Supremo Tribunal Federal não é o últimograu na carreira da magistratura”), o ex-ministro Rezeksempre demonstrou uma profunda dificuldade em lidarcom os temas funcionais dos juízes, como mostra o acór-dão do Mandado de Segurança 21.517-8, SP (Lex 185,pág. 172 e seguintes), de que foi relator, onde confundeconceitos como acesso e promoção, sustentando posiçõesestranhas como a de que devam ser motivadas as delibera-ções dos tribunais que resultem em preterição de magis-trados, mas sem que isso implique em fundamentação devoto... Tal confusão de conceitos, difícil de entenderquando se trata de um integrante da Corte Constitucionalque temos, resulta antes do preconceito indissimuladocom relação aos juízes concursados que seguiram a carrei-ra passo a passo.

O projeto que tramita no Congresso, preparado noS T F, é confuso e não emancipa de nenhuma das situaçõesde premência já examinadas. Por exemplo, outorga o títulode magistrados aos representantes classistas. Não dá poderesao Conselho Superior de Justiça para reparar atos de arbí-trio cometidos na administração judiciária. Determina queescolas da magistratura ensinem obrigatoriamente deonto-

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logia jurídica aos juízes. Se aqueles que ingressam na judica-tura não têm exata noção da natureza e singularidade deseu papel já na investidura, não adianta simular um ensinoque não foi nem nunca será aprendido. Lutar pela Justiçacomo ela pode ser, eis a única deontologia que importa.

A segunda distorção praticada pelo constituinte aor e s e rvar a iniciativa do estatuto ao STF se expressa pelaimpossibilidade de julgamento, por aquela Corte, dasquestões de inconstitucionalidade que o texto originalsuscite. Se a norma estatutária foi estabelecida pelo Supre-mo, tendo o Congresso aperfeiçoado apenas esse processolegislativo singularizado pela reserva de iniciativa, não épossível a interposição de ação direta, pelo absoluto impe-dimento de o autor julgar sua obra.

A Constituição de 1988 trouxe ainda o aumento verti-ginoso do l o b b y p ara a indicação dos adventícios da advo-cacia e Ministério Público. As três etapas da escolha (Colé-gio de Procuradores ou Conselho da OAB; Plenos dosTribunais e Chefe do Poder Executivo) tornaram-se umacorrida de obstáculos que também fecunda o arrivismo etumultua a composição do Judiciário. O TRT da 12ªRegião, que é um Tribunal problemático, está com a vagado Ministério Público aberta há vários anos, pois não háinteressado — em todo o Brasil — em integrá-lo, em quepese haver-se aberto inscrição já por cinco vezes.

A carreira é hoje um fosso. Do rés do chão, os magis-trados olham para as estrelas e perpetram declaraçõesinócuas, como sonetos de mau gosto, e deixam-se usurparpor entidades clandestinas que falam em seu nome, co-mo se distraem de seus objetivos junto ao povo, quandoos representantes legítimos perdem rumos em atividadesd i v e r s i o n i s t a s .

É preciso resistir, ou abdicar mais claramente de pa-péis que são reivindicados, para não serem exercidos, nu-ma simulação que os cidadãos não compreendem, masd e p l o r a m .

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III – DETERIORAÇÃO DA ATIVIDADE J U D I C A N T E

Os tribunais costumam realizar sessões públicas e de-liberações secretas. Isso no resto do mundo. A reserva nasdecisões tem por objetivo preservar as cortes da transmis-são da idéia verdadeira de insegurança, que os debates de-liberatórios ensejam. Admitem os votos vencidos comomanifestação de outro entendimento, ele também expos-to linearmente, como alternativa de interpretação. Quan-do os tribunais julgam, o edito é do corpo judicante, co-mo conjunto.

Os duelos de vaidades a que se assiste amiúde noBrasil decorrem da deliberação pública de nossos tribu-nais. A publicidade, que seria garantia de transparência,transforma-se em desvirtuamento da finalidade, que é jul-gar com exação e objetividade, aplicando o Direito ao ca-so em exame, resguardando garantias, impondo os valoressociais que foram desconcertados. No pórtico da SupremaCorte americana lê-se a divisa: L i b e rty and Justice under Law.É tudo. Em nossas casas de julgamento talvez fosse pró-prio anotar a advertência: Aqui a roda da fortuna preside odestino. A vaidade pre s e rva a sorte e infunde o medo. Só ao finalvocê saberá se escapou.. Essa é a leitura que faz o leigo doque ele vê em nosso aparelho judiciário.

É voz corrente dentre os que exercem carreiras jurídi-cas que o espírito do sortilégio forma a alma da nossaJustiça. O sentimento de jogo é aceito, pois as perdas são su-cedidas por compensações e, ainda que pelo aleatório, hásempre casos marcantes em que os julgamentos preserv a ma liberdade e a justiça, tal como se propõem os norte-ameri-canos, estes de modo sistemático, não pela lei do acaso.

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Num país que não tem religião oficial, sendo laica aestrutura do Estado, os juízes impõem a imagem daPaixão, colocando cruzes nas salas de julgamento. Esseapelo a Deus é significativo, tanto mais quando, sob umaaparente inspiração cristã, o que se vê é a prática de hábi-tos que não seriam tolerados em sociedades teológicas, alimesmo onde pende a cruz. Os brasileiros ciganos, judeus,muçulmanos, ateus, agnósticos devem curv a r-se ao precei-to de liturgia antidemocrática anunciada pelo crucifixo.Abaixo dele, todavia, homens de preto negam seguida-mente, na prática, o espírito compassivo de irmadade queadviria daquele símbolo. Porém, essa é uma segunda ne-gação, eis que a primeira advém da hostilidade ao próprioDireito, que não pode ter inspiração religiosa.

Assim, de nossas mazelas tão extensas, de uma nãonos livraremos jamais, a dos duelos de vaidades nos julga-mentos, pois há uma desconfiança pública fundada nasdeliberações a huis clos. A liturgia de saudação a Cristo,por mais que isso seja anticristão, faz parte do d éc o r a quese afeiçoaram nossos juízes, numa espécie de apresenta-ção ao público de todos os paramentos de que estão reves-tidos. As partes devem suportar os longos julgamentos dedebates rarefeitos, com superfetação acentuada e o ônusda ansiada espera, como passos perdidos de sua desventu-ra pelos labirintos da lei. Isso poderia ser considerado co-mo ainda melhor do que as deliberações a portas fecha-das, diante de tribunais que não assumem sequer suacondição de órgãos laicos, não fossem traços marcantes dadeterioração da atividade judicial, que não resguardam aninguém sequer pela tese do mal menor.

O artigo 98 da Constituição Federal estabelece q u o-rum e composição próprios para declarar inconstituciona-lidade de lei. O Código de Processo Civil também deter-mina a uniformização da jurisprudência dos tribunais.Como esta constitui causa necessária para a interposiçãode recursos como o de Revista para o TST e o Especial pa-

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ra o STJ, desde que colidam as interpretações de tribunaisdiferentes, tem-se a obrigatoriedade lógica de que as cor-tes eliminem internamente suas divergências interpretati-vas, quer pela declaração de inconstitucionalidade, querpela uniformização jurisprudencial.

Porém, o que existe é o caos. Nas revistas dos tribu-nais encontram-se julgamentos contraditórios contempo-râneos, lado a lado, para todos os gostos. Existem revistasde alguns tribunais que são procuradas apenas por consti-tuírem um repositório de contradições, o que permite rá-pida busca para a multiplicação de recursos. No meio fo-rense sabe-se a respeito do tortuoso caminho que seguemos processos, caso distribuídos para turmas ou câmarasque singularizem suas interpretações, em que pese o es-cárnio ao jurisdicionado que vê órgão congênere delibe-rar em contrário. Tudo isso é feito com a maior desenvol-tura. Comum é defrontar argumento que — traduzidopara o cidadão titular de um direito — é do tipo “eu nãome rendo ao óbvio”. Je ne pers pas mon panache. O brocardofiat justitia, pereat mundus perdeu o sentido, capturado poroutro que poderia ter esta formulação: fiat voluntas mea,pereat jus.

No célebre e duradouro episódio dos julgamentosacerca de diferenças salariais decorrentes de URP e IPC, apantomima que desfigurou o conceito de direito adquiri-do manifestou-se no paradoxo: as leis salariais não eramcumpridas, sob o pretexto de que feriam direito constitu-cional, mas os tribunais não declaravam sua inconstitucio-nalidade...

Isto significa a dissolução no éter da idéia de justiça,ao mesmo tempo que multiplicação feérica dos vírus queestão matando, mas também morrendo, na tentativa de es-capar à lógica inexorável que sua própria ação produz.

Os tribunais inviabilizaram, ao ponto da contradiçãode termos, a fonte formal da jurisprudência. Exemplochocante está neste dado: quando escrito este texto, o nú-

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mero de súmulas do Supremo Tribunal Federal, do Supe-rior Tribunal de Justiça (incluindo o antigo Tribunal Fe-deral de Recursos) e do Tribunal Superior do Tr a b a l h oera 1.397. O tópico com maior número de enunciados era“competência”, com 137. Ora, não é possível considerarque exista um regime minimamente claro a respeito dacompetência jurisdicional, isto é, da determinação sobrequem deva julgar, se as Cortes Superiores foram obrigadasa editar um décimo de todos os seus pronunciamentos es-tratificados somente sobre esse tema. Para formulaçãodesses enunciados certamente foram examinados muitosmilhares de processos onde a errância das partes levou-asà provação da espera por causa de incidentes que nada ti-nha a ver com o mérito de seus direitos.

Outro aspecto da deterioração é o regime legal im-posto aos recursos extraordinário e especial, que devemter interposição conjunta, embora seus pressupostos se-jam totalmente diversos, perante os Tribunais de Justiça eRegionais Federais. Isso implica em esforço postulatórioextênue, com custos de trabalho técnico e financeiros difí-ceis de suportar. A história do direito processual brasilei-ro, de recursos sucessivos, foi contrariada por legislaçãoiníqua, que obsta decididamente o exercício pleno da ga-rantia de uso dos “recursos inerentes”, conforme mencio-na a Constituição.

Como já visto, os mandados de segurança contra deli-beração administrativa ou jurisdicional constituem verda-deira roda viva, desde que a LOMAN fixou a competênciapara os tribunais os julgarem, quando interpostos contraseus próprios atos. Onde subsiste a noção de juízo isento?Onde se garante a distribuição da competência em razãoda matéria, pela definição do tema decidendo? Essa desga-rantia permitiu fosse estentida ao grau superlativo a arbitra-riedade de tribunais, quer em deliberações disciplinares,quer para cobertura do nepotismo e outras irregularidadesfuncionais. Regimentos internos, resoluções, provimentos,

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enfim, normas pretorianas de administração judiciária, pas-saram a ter efetividade plena à sombra da falência da garan-tia que adviria do mandado de segurança, para reparar ca-sos de abuso de poder e coação.

Hoje a maior fonte de inconstitucionalidade em nos-sa ordem jurídica não são medidas provisórias, ou atosnormativos do Poder Executivo, mas os regimentos inter-nos dos tribunais, que contemplam disposições absurdas edifusas, e extrapolam a autorização constitucional, que ésimples e exata: c o mp ete privativamente aos tribunais elaborarseus regimentos internos, com observância das normas de pro c e s s oe das garantias processuais das partes, dispondo sobre a compe-tência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais ea d m i n i s t r a t i v o s . Ao invés de dar cumprimento à Constitui-ção, muitos regimentos internos constituíram-se em in-trincadas e cabalísticas bíblias, contendo dispositivos con-flitantes com a lei, criando singularidades absolutamentedespropositadas, que complicam a prestação jurisdicional.Não raro se estendem por mais duzentos e cinqüenta arti-gos (ultrapassando o texto da Constituição, que já é exten-so) de disposições metajurídicas, com um roteiro de pro-cedimentos que parece reservado somente aos iniciados,desvirtuando aqui e de novo o conceito do a m icus curiae.Este passou a ser o experto no Regimento.

Os juízes não têm lutado contra esses fatores aparen-temente exteriores à sua carreira, mas que lhes são impos-tos pelo exercício da própria atividade e, ao invés disso,repetem modismos treslidos de textos, ainda que valiosos,produzidos em outros países, diante de realidades diferen-tes. Mostra disso é o Direito Alternativo, que propunha so-brepor aos preceitos positivistas uma ordem de princípiosgerais, o que permitiria ao juiz buscar em regra diversa amelhor adequação ao caso. O positivismo jurídico haviatratado disso sem ruptura do sistema, pela analogia l eg i s ej ur i s, os princípios gerais do direito, a ficção, a interpreta-ção extensiva e as presunções h om in i s, j uris tantum e juris et

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de jure, além de exclusões, inincidências ou não tipifica-ções. Os copiadores do Direito Alternativo fizeram aquiloque o escritor Milan Kundera (A Lentidão) chama de vo-lúpia do dançarino, o amor pelo gesto de ensaio, como sefossem os únicos a interpretar ao palco. O resultado foiuma formidável revanche conservadora pela qual a alter-natividade esteve reivindicada também por quem preten-dia defender a ordem, na ótica peculiar em que a via, semos desgastes de buscar coerência nela. O Direito Alternati-vo serviu, assim, como cumplicidade aos atentados contrao sistema de justificação, que é o verdadeiro conteúdo deexpressão do Direito. Enxergando uma ordem burguesaortodoxa onde ela não existia, os partidários alternativosviram-se defronte a quem estava tão disposto a remanejara suposta ortodoxia quanto eles.

É acessível que o verdadeiro questionamento a insti-tutos jurídicos superados ocorre pelo desdobramento deoutras noções sistemáticas. Hoje o modismo está desmora-lizado, mas a atividade jurisdicional em que ele incursio-nou, também.

A inoperância dos órgãos judicantes não se deve so-mente ao regime legal contraditório, nem só à infraçãodesse regime legal. Ela também decorre da perda de pres-supostos elementares como a idéia de atividade-meio con-traposta à de atividade-fim. Simplesmente, o Judiciáriodescura de sua finalidade elementar: prestar a jurisdição.O gigantismo no Estado de São Paulo mostra isso. Na Jus-tiça Estadual contam-se em várias centenas os juízes de se-gundo grau e desembargadores, em número muito maiordo que o existente em países como a Espanha, Itália eFrança, todos com população bem superior aos trinta eseis milhões de habitantes de São Paulo. Com uma estru-tura gigantesca, o Estado mais rico e moderno do Brasilnão conseguiu ainda implantar plenamente os juizados es-peciais, destinados a julgar causas menores criminais, cria-dos por lei há vários anos. Há explicação para isso? So-

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mente na decadência, o único estágio da vida social que seexplica por si próprio.

O Estado do Rio Grande do Sul unificou os Tr i b u n a i sde Alçada e Justiça, criando uma grande corte com centoe vinte e cinco desembargadores. Destes, vinte e cinco sãoestranhos à carreira, ingressando já no segundo grau, pro-vindos da advocacia e do Ministério Público. É o mesmoquinto que existe nos outros Tribunais, porém — em faceda hipertrofia — o número percentual converteu-se emum contingente absoluto que altera completamente op e rfil dos órgãos fracionários (Câmaras, Turmas, Grupos,Seções), tanto que eles podem ser compostos inteiramen-te ou majoritariamente por juízes oriundos do MinistérioPúblico, por exemplo, criando uma idiossincrasia que de-riva da formação inquisitória, incompatível com o direitosubjetivo do cidadão de ser julgado por quem tenha for-mação prática como juiz. Além disso, o gigantismo fica re-velado nesta comparação: o Rio Grande do Sul passou acontar com os cento e vinte e cinco desembargadoresmencionados, tendo o Estado uma população de dez mi-lhões de habitantes, grosso modo. Já Santa Catarina é ha-bitada por cinco milhões de pessoas e seu Tribunal deJustiça tem vinte e sete desembargadores.

Os Tribunais de Alçada foram criados em cinco Esta-dos (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e RioGrande do Sul) por iniciativa do próprio Poder Judiciário,que os apontava há três décadas como a solução para ocongestionamento de processos na segunda instância.Não foi seu fracasso que determinou as fusões como a queo Estado gaúcho promoveu; foram os interesses corporati-vos, a megalomania e, principalmente, a vontade férrea demanter privilégios — como o nepotismo — mais dispersos(e assim perpetuados), sem a verificação de visu que tribu-nais menores permitiam. Afora isso, como confiar em umPoder que não tem segurança quanto à sua estrutura?Que interesses verdadeiros promovem uma reforma carís-

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sima, implantando Tribunais de Alçada, e poucas décadasdepois — gerando distorções óbvias — os absorvem nosTribunais de Justiça?

A distribuição de funcionários mostra que, em mui-tos tribunais, a atividade-meio roubou os objetivos de pres-tar justiça. Em prédios onde não se conceberia a presençade quinhentas pessoas estão lotadas mil, mil e quinhentas,duas mil... e as ocupações predominantes são aquelas rela-cionadas com assuntos de pessoal, auto-assistência, serv i-ços auxiliares, enfim, burocracia. Enquanto isso no f ro n t,na frente de trabalho junto ao público, as defecções sãoconhecidas.

Aproveitando a expectativa em torno da reformaagrária, enquanto a Constituinte estava reunida, pois ha-via a pregação para que se criasse a Justiça Agrária, o anti-go Tribunal Federal de Recursos propôs a interiorizaçãoda Justiça Federal, o que veio a acontecer, preserv a n d osua competência para exame das desapropriações. A inte-riorização logo mostrou-se irracional e hoje, por exemplo,ninguém saberá dizer porque a cidade de Joaçaba, nomeio-oeste catarinense, conta com uma vara. Se a JustiçaFederal tratasse restritamente dos casos definidos comode sua competência na sede constitucional, teria de sercompactada e não expandida.

Sem tergiversar: essa perda de finalidade respondepelo nome de autofagia. A Justiça come a justiça.

Na área específica do Direito Penal duas observ a ç õ e sse impõem. Há um erro de enfoque quanto à dimensãodas penas. Ao contrário do trato comum, só as penas pe-quenas têm efeito educativo. Ao invés de dispensá-las, naesperança de que a negligência punitiva do Estado sejacompreendida como generosidade, e alimente a regene-ração, elas deveriam ser aplicadas como efetivo meio dis-suasório. Todos os países que venceram ou ainda comba-tem com maior eficácia atos de vandalismo, práticas

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sociais destrutivas, atentados a bens públicos, etc., prati-cam as pequenas penas com interdições e clausura tempo-rária. São as sociedades democráticas que ensejam os ex-cessos, o regurgitamento da atividade desregrada comoestereótipo da liberdade, pois as ditaduras, como as socie-dades primitivas, têm meios, institucionais ou não, de esta-belecer uma ordem que esteja acima das vontades e i n i c i a-tivas individuais, atribuída a totens arcaicos ou novos.Entretanto, como efetivar as penas pequenas? Os presídiosbrasileiros são um traço da vergonha nacional. É absurdoaceitar essa mazela pelo determinismo da superlotação,que é antes um mito explicativo. No Estado do Ceará, porexemplo, não há o excesso de internações como se verifi-ca em outras unidades federativas. Pelo Censo Peniten-ciário de 1997, do Ministério da Justiça, é onde há a me-nor proporção no d ef ic i t, dentre os Estados maiores, que éde 463 vagas para presos. Para comparar, a carência no Es-tado de São Paulo é de 43.564 vagas. Todavia, nem mesmono Ceará pôde ser desenvolvida, por exemplo, a atividadeeducacional e já ocorreram rebeliões, como a que resul-tou no seqüestro do Bispo Aluisio Lorscheider. Enquantoisso, no Judiciário criam-se fundos de reaparelhamento,como o que existe em Santa Catarina, em proveito daJustiça Estadual, com provisões advindas dos negóciosimobiliários, numa taxação indireta. A Justiça funcionariamelhor se propusesse fundos para aqueles que, afinal, sãodestinatários também de sua atividade, e fundar presídiosadaptados a seus fins parece mais próprio do que simples-mente erigir prédios forenses para atribuir-lhes nomes dedesembargadores obscuros, como se a Justiça lhes devesseo cultivo da memória só pela lembrança de um nome, quecai no vazio, já que em geral se trata de pessoas que nãosouberam dar à posteridade a permanência de seus atos.

Além disso, há o escárnio. Eis um texto, na RevistaVeja, 14 de maio de 1997:

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“Crime premiadoO juiz (...) acaba de receber uma homenagem. Seunome foi usado para batizar o prédio novo do fórumdo município de (...), na região metropolitana de Sal-v a d o r, Bahia. Nada mau para quem há sete meses pro-tagonizou um episódio pouco elegante para um ma-gistrado. Dirigindo bêbado, (...) congestionou otrânsito ao estacionar em local proibido para conver-sar com um conhecido e foi repreendido por um poli-cial. Para se livrar da multa, além de usar o velho ‘sa-be com quem está falando?’, ele ameaçou o PM deprisão. O tenente que deu o azar de cruzar com o juizfoi punido e obrigado por seus superiores a pedir des-culpa a (...), filho do presidente do Tribunal deJustiça da Bahia. A homenagem transgride a Consti-tuição baiana, que proíbe que pessoas vivas dêem no-me a prédios e logradouros públicos.”

Morre uma retórica de denúncias inócuas a cada vezque se propaga, agora só entre incautos, que temos umajustiça para negros, prostitutas e paisanos, todos pobres. Éverdade, pelo censo carcerário de 1994, que 85% dos pre-sos são pobres no sentido legal, mas há outros dados ex-pressivos: 53% são jovens, com menos de trinta anos; 97%têm escolaridade inferior à conclusão de primeiro grau.Para os que relevam dados raciais: a maioria é branca,57%. O Censo Penitenciário de 1997 não alterou esses da-dos e acrescentou outro, que desmente um mito: 80% dosapenados não são reincidentes em prisões. Portanto, o per-fil majoritário do preso brasileiro é jovem, pobre e seminstrução. Em contraste com isso apregoam-se conceitosapartados dos fatos e eles, na prática da ação jurisdicionale administrativa, inibem ações que poderiam ser estabele-cidas como programas para atividade profissional e educa-cional. Tais conceitos respondem por uma espécie deconsciência aplastada, que elege mitos para a formulaçãode denúncias, sabendo que elas nunca resgatam culpaspessoais.

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Rebelados ou em silêncio, os 170.602 presos adultosno Brasil, contados pelo censo penitenciário de 1997, sãoos partícipes do outro lado dessa história de um Judiciárioclaudicante, e a eles se somam os menores infratores in-ternados, aos milhares, em número nunca levantado exa-tamente. Todos com um só destino: provar que a civiliza-ção regride.

A par disso, a Justiça se mostra incapaz de enfrentarsituações gravíssimas relacionadas com o crime organiza-do, com as redes de drogas e prostituição infantil. Os Esta-dos de Alagoas e do Piauí, onde sabidamente existem ma-tadores de aluguel disseminados, apresentam o menoríndice do país na relação de presos por grupo de 100.000habitantes, respectivamente 18,11 e 12,94. Comparativa-mente: Minas Gerais 87,88; Rio Grande do Sul 118,43, Dis-trito Federal 145,67.

O espírito mais panglossiano que se possa imaginarconcluiria que prende-se mal no Brasil, a esmo e sem fina-lidade escolhida. A prisão não é assumida em todas as suasconseqüências. Cadeias superlotadas, com uma percenta-gem alta de presos por número de habitantes em algunsEstados, contrastam com a ausência de perseguição penalsistemática naqueles em que o crime de encomenda geramesmo a profissão de matador.

A prisão civil (por alimentos ou de depositário infiel)é um anacronismo do encarceramento por dívidas, quesubsiste sem razão, quando se sabe que a perda da liberda-de não resgata patrimônio de ninguém. Tanto mais emum país que, tendo sido realmente fundado por degreda-dos e não por fidalgos, deveria manter presente a idéia deque os caminhos difíceis não são exatamente escolhidos,mas trilhados pelos que têm necessidade dele. Magistra-dos insensíveis não lutam contra isso; ao invés, despejamnas cadeias superlotadas devedores muitas vezes involun-tários, que tiveram suas vidas arruinadas por revezes sofri-dos. Outras vezes a demora nos processos, e falta de acom-

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panhamento da evolução dos fatos no curso deles, fazcom que a medida extrema desabe de repente como emdies irae. Isso, obviamente, não é justiça, é vingança.

A expressão síntese da deterioração da atividade judi-cante é o surgimento, volumoso e duradouro, dos juízesque não fazem sentenças. Felizes em seu ócio de simula-ção, mandam funcionários elaborar suas arengas, por re-dação destes mesmos, ou por cópia de tópicos retiradosde arquivos, que obviamente não foram escritos tendo emvista o caso específico em exame. Além do empobreci-mento, já por si desastroso, a atividade judicante passa àalienação mais completa. O jurisdicionado perde sua ga-rantia básica de obter sentença prolatada por juiz natural.Esse direito foi erradicado da realidade judiciária do país.Doloroso que seja admitir, tanto mais pelos magistradosque redigem cada linha de seus julgados, o princípio do juiznatural é uma contrafação no Brasil.

Através de convocações irregulares, são os própriospretórios brasileiros que vêm, seguidamente, constituindotribunais de exceção. A Lei Orgânica da Magistratura abo-liu os juízes substitutos de segunda instância, exatamenteporque os titulares dos cargos ali permaneciam sem judicar,ou atuando de forma bissexta. Entretanto vários Tr i b u n a i sde Justiça (o de Santa Catarina, por exemplo) reintroduzi-ram contra a lei a função abolida. Outros, como o Tr i b u n a lSuperior do Trabalho, constituem turmas especiais forma-das por magistrados convocados, atribuindo-lhes a compe-tência de julgar processos estocados, que obviamente nãodetêm. Por fim, há ainda o caso de tribunais que convocamjuízes de primeiro grau ad nutum, desrespeitando o artigo118 da LOMAN, inciso V, que admite apenas a convocaçãodos magistrados da sede do Tribunal, exatamente para im-pedir a formação de juízos direcionados.

Está implantada, portanto, uma prática nefasta e sur-realista, que seria incompreensível aos olhos de um juristaestrangeiro minimamente informado dos princípios: os tri-

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bunais regulares do Brasil criam tribunais de exceção, vul-nerando preceito constitucional expresso, elaborado preci-samente para protegê-los e resguardar sua independência...

No belo prédio do Foro da Justiça Federal em Sal-v a d o r, Bahia, encontra-se vistoso entalhe em homenagema Castelo Branco, identificado ali como quem recriou aJustiça Federal. Castelo Branco foi um ditador que ultra-jou a justiça e o Judiciário. Promoveu milhares de demis-sões e cassações de mandatos populares. Suprimiu o con-trole jurisdicional. Na ante véspera de transmitir o cargo,há trinta anos, divulgou derradeira lista com dezenas decidadãos demitidos do serviço público, concluindo um ci-clo de três anos de arbítrio sistemático, sem implantar or-dem legal alguma (pois não pode ser considerada comoinstituidora dela a Constituição descosida e outorgada em1967, que logo feneceu). Sem dúvida, desencadeou todoo processo que, prescindindo de qualquer justificação, emseguida (após a edição do AI-5, em ‘68, já pela mão deCosta e Silva) redundou na aposentadoria compulsória detrês ministros do Supremo Tribunal Federal, único episó-dio do gênero em nossa acidentada história de malogrodas instituições. Para prover os cargos de Juiz Federal emtodo o país loteou as nomeações dentre os partidos políti-cos adesistas do Golpe de 64. No Rio Grande do Sul, porexemplo, concedeu as primeiras quatro vagas para o Par-tido Libertador, a União Democrática Nacional, o PartidoSocial Democrata e o Partido Democrata Cristão, os quaisindicaram os juízes que foram investidos sem concurso.Homenagens assim, desmemoriadas e arrogantes, consti-tuem o revés da pena imposta a cada um dos presos destepaís, a quem é reservado o destino do lodo, da dissoluçãodos valores em nome dos quais eles deveriam entender osentido de uma ordem legal superior àquela do escárnio.Efetivamente, a deterioração da atividade judicante só ex-pressa a morte que advém do resultado dela.

A Justiça no Brasil mata. Mata a sensibilidade, mata aconsciência, mata o compromisso de lutar pela justiça.

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IV – FORMAÇÃO DO MAGISTRADO

Há dois sistemas de recrutamento de magistrados.Ou eles são admitidos por concurso público de habilita-ção e ingressam já para o exercício, demonstrando desdelogo a formação recebida na academia e na atividade pro-fissional prévia, ou são recebidos como alunos em escolade formação, só passando à judicatura quando considera-dos habilitados.

Os dois sistemas têm vantagens e inconvenientes, as-sim como ocorre em temas como parlamentarismo e presi-dencialismo, ou voto proporcional e voto distrital. Não cabediscutir aqui, pois isso fica para teorizadores desocupados,as insuficiências do recrutamento por concurso. Onde háescolas também se presencia a ditadura pedagógica, e osmestres se arrogam o direito de falar pelo Estado acerca dequem deva ser juiz ou não e, como dentre eles existem não-juízes, ou maus juízes que ali estão para fugir à dura lida dajurisdição, seguidamente erram nos seus procedimentos se-letivos. O que importa é ter o Brasil optado pelo recruta-mento direto, assim como — na esfera da representaçãopolítica — também escolheu o presidencialismo.

A verdadeira formação de nosso magistrado, portan-to, ocorre pelo exercício da sua função, ou seja, é ali queele realiza os atos que formam a sua carreira. É esta quedeve ser assistida (pelos órgãos de administração judiciá-ria, inclusive Corregedorias), apoiada (materialmente,pois não há Justiça sem meios) e, principalmente, garanti-da (contra os atentados que a transformam na medíocrecontagem do tempo para aposentadoria). Isso é tudo o deque precisa o juiz. O resto é desempenho dele próprio.

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A Constituição trata apenas de cursos de aperf e i ç o a-mento dos magistrados e, portanto, supõe a criação de es-colas unicamente com esse fim. Todavia, pululam as autodenominadas escolas da magistratura que funcionam co-mo cursos caça-níqueis, preparatórios de concursos públi-cos. Nelas se vê a promiscuidade de integrantes de bancasexaminadoras ministrando aulas, ora para auferir umcomplemento remuneratório, ora para vender seus livrosencalhados, ora para praticar tráfico de influência. Há in-tegrantes de tribunais que acumulam indevidamente car-gos no magistério (quando só é compatível com a magis-tratura apenas um cargo de professor), com terceiraatividade — vedada na Constituição — de professores decursos preparatórios, em escolas ou como autônomos. Hátamanha degradação que os jornais chegam a publicaranúncios, muitas vezes indicando que se trata do juiz tal,ou do desembargador qual. Trata-se aqui de um tráfico deinfluência descarado, constrangedor para os que o vêemp r o l i f e r a r. Como ficou dito atrás, impor que as escolas dea p e rfeiçoamento lecionem obrigatoriamente deontologia— diante desse quadro — é colaborar para a simulação.

A perda de medida do mau relacionamento Escola eJudiciário pode ser avaliada por este episódio. A École Na-tionale de la Magistrature da França, Section Intern a t i o n a l e, re-cebeu anos atrás um documento enviado por tribunal bra-sileiro. Com o característico senso de exação próprio deum órgão que preserva a seriedade, rapidamente foi re-crutado um tradutor. Transcrito o texto, verificou-se quese tratava do discurso de posse do presidente de uma dasnossas cortes, para espanto dos destinatários. É precisoum desvalor intenso, uma desmedida sem pudor para queseja perpetrada sandice desse porte. Um megalômanoconsiderou que falava para o mundo e que a sede de seuconhecimento retórico era a velha L u t e t i a , onde reencon-traria os ícones da construção do saber jurídico pintadosno teto da Cour de Cassation, Constantino, Justiniano, Car-

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los Magno e Napoleão... Ignorava o parvo que sua b o ut ad epareceria demasiado rústica e pretensiosa à soberba fran-cesa e teria o destino do completo esquecimento, maispróprio aos atos da esperança inútil que o tempo conso-me na Galerie des pas perdues...

Não é a existência de escolas de aperf e i ç o a m e n t oque nos trará outros Pedro Lessa. Pedro Lessa não cursouescola de aperfeiçoamento. As escolas que ministram cur-sos preparatórios têm de ser extintas, pois usurpam a titu-lação que as vincula à magistratura, sem que nada tenhama ver com esta. Os juízes que contam moedas passandofórmulas de aprovação a candidatos em concurso públicodevem ser afastados dos Tribunais, antes que passem a fa-zê-lo dentro deles.

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V – DECADÊNCIA D A L I T E R AT U R A J U R Í D I C A

Já foi citado no prólogo, não é demasia reproduziruma observação de Nietzsche:

“O douto que, no fundo, não faz mais do que mistu-rar livros — um filólogo de aptidões medíocres cercade duzentos por dia — acaba perdendo completa-mente a faculdade de pensar por si mesmo. Se não seempanturra com os livros, não pensa. Quando pensa,atende ele a um estímulo — o pensamento escrito;enfim, não faz mais do que reagir. O douto emprega asua força em dizer “sim” ou “não”, em criticar o que jáfoi pensado por outros; quanto a ele, todavia, nãopensa mais...”

A crítica à literal cristalização do saber livresco foi fei-ta também por Cervantes em “O Licenciado Vidraça”, nasNovelas Exemplares. Tal saber levara o personagem a viverem delírio e incorporar a fragilidade do vidro, até queprecisou “valer-se da força de seus braços para ganhar avida, já que nenhuma coisa podia esperar do seu talento.”Há muitos exemplos na literatura da fetichização estérildo conhecimento dos juristas. Graciliano Ramos descreveum juiz interiorano: “ D r. França possuía um espírito, semdúvida, espírito redigido em circunlóquios, dividido emcapítulos, títulos, artigos e parágrafos. E o que se distan-ciava desses parágrafos, artigos, títulos e capítulos não ocomovia, porque Dr. França estava livre dos tormentos daimaginação.”

Com toda essa carga de sarcasmo, num rol que é ex-tenso acerca de um pedantismo solene que parece procla-

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mar a si mesmo nec plus ultra, com tudo isso, são lançadosa rodo livros jurídicos como se fossem especializados emespecialidades inexistentes. Qual é a especificidade quetem o mandado de segurança na Justiça do Trabalho? Amesma do Habeas Corpus na Justiça Militar, ou a das açõescautelares na Justiça Federal. Isto é, nenhuma. Trata-se deuma fraude de objeto. A par disso, os cursos do tipo Cen-tro de Convenções Rebouças de dois ou três dias consti-tuem uma divulgação cara de novidades jurídicas, querelas aconteçam ou não, como se o sistema fosse fugidio, erecomposto a cada momento pelas edições do Diário Ofi-cial. Assim, divulgam-se sandices como o fim da liquidaçãopor cálculos na Justiça do Trabalho, quando a alteraçãohavida no Código de Processo Civil copiou do processotrabalhista seu modelo pré-executório.

Na verdade, foi descoberto um grande negócio que éindicar qual é o Direito aplicável, no desconcerto da or-dem jurídica nacional, para o que os principais guardiãesdessa ordem — que são os juízes — colaboram com asconfusões que fazem, e impõem sob o F ü h re r p r i n z i p. Coin-cidentemente ou não, partem logo para divulgar suas te-ses raquíticas que duram um verão, o suficiente para algu-mas conferências em cursos de fim de semana, ondeincautos neófitos pensam receber os cânones de Moisés.

Se é verdade que ainda agora se escrevem livros co-mo “A Revogação da Sentença”, de Moacyr Lobo da Cos-ta, obra-referência pela erudição e síntese objetiva, tam-bém é verdade que eles se salientam pelo contraste comos usuais. Enquanto isso, a pompa dos acadêmicos — poispululam as academias cuja inutilidade é proporcional-mente inversa a tudo quando se possa entender por méri-to — rivaliza com o verdadeiro despejo de comendas quealguns tribunais, como o TST, faz a esmo todos os anos,encontrando grã-cavaleiros aqui, destinatários de grã-cruzali, de modo que, constrangida dentre tantos honrados,quem tudo perde é a palavra honra; sua distinção, seu sen-

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tido. Um mínimo de comedimento faria lembrar a respos-ta dada por Capistrano de Abreu ao convite feito por Ma-chado de Assis para que constituísse a Academia Brasileirade Letras: a única sociedade que integro é a humana, enão precisei ser consultado para fazer parte dela.

Predomina, portanto, uma impostura metodológica,expressa em discurso infindável, uma espécie de glosa mo-derna completamente deteriorada. Os glosadores clássicoscumpriram função útil ao Direito porque integravam re-gras dispersas, de origem vária, e compunham a lógica dosprincípios informadores. O grande Bartolo, por exemplo,ao cunhar a regra rebus sic stantibus modificou os princí-pios, reverteu o enfoque a respeito das obrigações, quandos u p e rveniente efeito modificativo que não estava previstoquando elas foram contraídas.

Hoje, certamente, não se encontra paralelo no mun-do em que uma literatura jurídica tão abundante, como anacional, consiga informar tão pouco o Direito que é efe-tivamente praticado, ao passo que se mostra capaz de pro-vocar o resultado de um conhecimento miúdo, inseguropor falta de referências. As confusões interpretativas proli-feram. Não há uma visão de sistema, mas a apreciação deleis ao modo factual, uma espécie de discurso jornalísticosobre elas, como se fossem também fatos. A par disso, há obizantinismo redivivo. Conjecturas as mais desproposita-das provocam ilações delirantes, como se todas as incur-sões contra a lógica buscassem uma nova ortodoxia. Oscomentadores de plantão saem qual em cavalaria ligeira aexplicar o óbvio, ou a complicá-lo, tão logo seja implanta-da reforma legal. No seu mundo não há lugar para o afo-rismo. Nunca ouviram falar em Wittgenstein, mas perse-guem o paradoxo inextrincável, porque praticado poruma suposta lógica ensandecida, da qual resulta uma fór-mula de superação aleatória, que logo será substituída poroutra, e outra, e... O esforço criativo do homem para im-plantar regras é convulsionado, e os novos bizantinos de

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algibeira têm nas mais de dez mil leis existentes no Brasilo seu repasto.

Aqueles que são mestres têm hoje um duro encargosuplementar: afastar os aprendizes das fraudes impressas,sob respeitáveis títulos e conspícuas capas. Com a autori-dade de seu saber têm, mais que isso, de fazer profissão defé para que os doutos não embaralhem os mais novos comseus títulos editados, suas participações em academias deelogio mútuo... e, principalmente, para que, ao fim dessafiguração pomposa, dessa impostura, não neguem grossei-ramente o Direito como quem nega o pão.

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VI – CORRUPÇÃO DA LINGUAGEM JURÍDICA

Em concurso realizado para preencher cargos de Juizdo Trabalho Presidente Substituto, num dos mais respeita-dos tribunais do país, o TRT da 2ª Região, foi apresentadauma questão que tratava os depósitos do Fundo de Garan-tia como Direito Fundiário. Não é o riso que deve ser conti-do, é a lágrima. Esse erro brutal, que resulta da ignorânciaetimológica, o uso de f u nd u s no direito antigo como o redu-to da terra, tornou-se corriqueiro. Mas não precisava ser co-metido em uma prova de concurso para juiz. Ninguém di-ria, em Direito Comercial que, por existir um fundo decomércio, trata-se ali de Direito Fundiário...

Novamente os pedantes inventaram de tratar atospraticados por juiz singular como “juízo monocrático”. Sedevesse ser composta palavra com o sufixo grego, mono-cracia apontaria para o governo de um, ou a vontade deum, numa alusão ao que é despótico, absolutista. Obvia-mente, a deliberação do juiz singular é democrática, postoque tem ele investidura legítima e pratica ato de ofícioque deve ser necessariamente fundamentado. Logo, atri-buir papel monocrático (palavra que não consta do voca-bulário ortográfico da língua portuguesa) ao juiz é, defini-tivamente, uma bobagem. Repetida ad nauseam. Tal como“multa moratória”, outra conjugação de palavras que nãotêm sentido juntas. Multa por mora é a penalidade pecu-niária decorrente do atraso no cumprimento de uma obri-gação. Moratória é prazo ou dilação concedidos para res-gatar dívida.

Esses são exemplos do grau de desenvoltura com quese corrompe a terminologia jurídica. O Direito colheu da

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linguagem comum a expressão “conflito entre capital etrabalho”, o que é apenas um jargão, pois o interesse deganho com o capital (na forma de lucro ou juro) contras-ta com o salário, que para aquele é contabilizado comocusto. Já o trabalho, na acepção comum de esforço produ-tivo humano, tem sua contra-parte na administração ougerência dos recursos e da tecnologia. Portanto, para di-zer coisas claras e com mais adequação, pode-se falar emconflito de interesses entre empregado e empregador, ouem antinomia entre capital e salário. Noções elementaresde Economia Política não fazem mal, e bem fariam aos re-petidores de jargões.

Dentre os pecados menores, mas eles decorrem dapreguiça ou da tediosa conformidade, continuam a ser fei-tas sentenças que iniciam com “Vistos, etc.” quando é sabi-do que os juízes usavam expressões do tipo “vistos e exami-nados estes autos, bem analisada a prova, cheguei àsseguintes considerações:” ao tempo em que não era impo-sitivo fazer relatório, e os julgados tinham a forma de c o ns i-d er a nd a. Mas isso foi antes do Código de Processo Civil de1939 e do Código de Processo Penal de 1941... As cortes ju-diciais também criam confusões conceituais, com efeitosnefastos. O antigo Tribunal Federal de Recursos editou sú-mula sustentando descaber a contribuição previdenciáriasobre o aviso prévio não trabalhado por iniciativa patronal,sob o argumento de que se tratava de indenização. En-quanto isso a CLT é expressa: devem ser pagos o s s al ár i o sdo período, seja ele trabalhado ou não (art. 487,ß 1º e ß2º). Como o tempo de aviso integra o de serviço, a súmulaaludida implicou em um prejuízo monumental para a Pre-vidência, obrigada a reconhecer um direito, sem custeio.Além disso, chamar salário de indenização significa im-plantar uma fobia do sentido... E por falar em sentido, hájulgados, como um do TRT da 9ª Região, que trata de d i ss í-d i a, estranha aglutinação de desídia com dissídio, e não éerro de grafia, pois a palavra consta repetida.

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Há juízes que, sentenciando, dizem que estão deci-dindo. Outros confundem despachos com decisões. L e g e mh a b e m u s, malgrado (Código de Processo Civil, art. 162). AsCorregedorias poderiam exercer funções úteis e necessá-rias, mas delas abdicaram. Porém, a rigor, poderiam mes-mo exercê-las? Um juiz corregedor referiu-se em despa-cho a magistrado dizendo que ele era o bj eto de acusação[sic], mostrando que não sabia distinguir o que é objetodo pedido, ou objeto do processo, nem que o objeto deuma acusação é seu conteúdo imputativo, e que se alguémé parte não pode ser objeto.

Vivemos no mais puro psitacismo (termo que constano dicionário gramatical como derivado de p s i t a k o s, papa-gaio), forma corrompida da linguagem pela qual são ditaspalavras que não têm sentido de contexto. Isso é dramáti-co quando se trata do Direito, e quando os destinatáriosde sua tutela dependem exatamente do sentido que nelaspossa ser apreendido, como através delas — as palavras —deva ser explicado. Os papagaios estão soltos e, desgraça-damente, os pavões também. Eis assim revisitada a rude fá-bula, com sua fauna e sua prosopopéia.

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VII – O NEPOTISMO

A Associação dos Magistrados do Trabalho da 4ªRegião é uma entidade respeitada e combativa. De seusquadros saíram representantes expressivos para atuaçãoem âmbito nacional. Ninguém negará seu caráter aguerri-do. Pois no átrio do prédio sede da AMATRA-IV existeuma placa austera e bela em homenagem a José Linhares,que foi Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federale, por tal condição, Presidente da República entre o golpemilitar que depôs Getúlio Vargas em 29 de outubro de1945 e a posse de Eurico Gaspar Dutra em 31 de janeirode 1946.

Por ocasião do golpe militar já haviam sido convoca-das eleições para 2 de dezembro de 1945, em virtude daelaboração do Código Eleitoral que colocou na práticaum fecho ao Estado Novo. Linhares havia trabalhado nacomissão codificadora. Entretanto, o movimento q u erem i s-t a, assim nominado em virtude da palavra de ordem q u ere-mos Constituinte com Getúlio, com o apoio político da es-querda, ganhava força, e a conspiração se efetivou, sob ocomando dos Generais Góes Monteiro e Gaspar Dutra. Otemor e o pretexto eram os de que Getúlio Vargas viesse ac a n d i d a t a r-se, ganhando certamente as eleições, permane-cendo no poder.

Nessa época José Linhares presidia o STF por ter sidoescolhido pelo Presidente da República (não foi eleito)como Vice-Presidente daquela Corte, inclusive com a pre-terição de Ministro mais antigo. Subiu à presidência emvirtude da aposentadoria de Eduardo Espíndola. Já entãopraticava o nepotismo, inclusive em sentido textual, pois o

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Secretário da Presidência do Supremo era seu sobrinhoJosé Alves Linhares, com quem os militares golpistas enta-bularam os primeiros contados para a investidura do tio.O historiador Hélio Silva detalhou esses fatos (História daRepública Brasileira).

Nos curtos três meses em que permaneceu na Pre-sidência de República José Linhares adotou providênciascertamente difíceis e muito controvertidas do ponto devista administrativo. Deu início à venda de boa parte doouro das reservas nacionais, deflagrando um processo dedilapidação que foi completado no Governo Dutra, pois oBrasil saiu da guerra como credor internacional e ao fimde alguns anos transformou-se em devedor. Todavia, o fa-to que mais notabilizou o Governo Linhares foi o empre-go massivo de seus parentes, em tal volume e com tama-nho despropósito que a população (desta vez certamenteestupefata, bestializada mesmo, como escreveu um cronis-ta sem muita razão a respeito da proclamação da Repúbli-ca) criou o trocadilho: não são Linhares, são milhares...,(fato trazido à memória pelo jornal Folha de S. Paulo,sendo responsáveis os jornalistas Jomar Morais e Marta Sa-lomon, em 16.04.95).

O advogado Hugo Mósca escreveu um livro laudató-rio do STF, enaltecendo ministros mortos e vivos (OSupremo Tribunal Federal, Ontem e Hoje, 1986). A cadaum dos incensados dedicou variada louvação. Do MinistroJosé Linhares destacou o sorriso...

A pergunta que se impõe é esta: qual a razão da ho-menagem? É bem verdade que se trata de uma placa cu-nhada pela Associação dos Magistrados Brasileiros. Ta n tp i re . . .t a nto pior. A pergunta subsiste, com mais força. Oúnico magistrado que, em razão do cargo, assumiu a Pre-sidência da República, o fez subtraindo-se pessoalmenteà confiança depositada por quem o escolheu para dirigiro STF. Colocou-se no bojo de um golpe militar. Apro-

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veitou-se do cargo para locupletar a parentela. Uma in-dagação a fazer: alguém conhece a obra de jurisconsultode José Linhares?

Todos os propósitos aguerridos da AMATRA-IV signi-ficam uma falácia que prostra a luta da magistratura autên-tica contra o nepotismo. Esse “roubo da cidadania”, comoo chamou muito propriamente o antropólogo Roberto DaMatta, é um abuso de poder, uma reserva ao arbítrio emproveito próprio, uma quebra de finalidade na adminis-tração da coisa pública e, por fim, a formação de f am ig l i ano sentido pejorativo, mafioso, como grupo de interessepredador.

O Judiciário é presa desse predador. Quem o defen-de contra os ataques da horda é esmagado. Um respeitadoe íntegro Desembargador desencadeou a elaboração deum regime legal que veda o nepotismo no Estado do RioGrande do Sul, mas teve de esperar sua aposentadoria pa-ra expor fatos vexatórios publicamente e, assim mesmo,foi pessoalmente vilipendiado por obscuros algozes, orga-nizados como um grupo repressivo que defendesse direitopróprio e potestativo.

Com tudo isso, se as associações de magistrados ho-menageiam o êmulo daqueles papas que corrompiam co-légios cardinalícios com a introdução de seus sobrinhos,para fazerem sucessores (daí o termo nepotismo, derivadode sobrinho, em italiano), eis onde o verdadeiro respeito,a guarda da dignidade como valor, termina.

Sem examinar mérito de uma notícia da imprensa,vale transcrever nota da revista Veja (Edição 1487, 03/97):

“Depois de seis meses dormindo na gaveta do procu-r a d o r-geral da República (...), o processo que implicao julgamento de sete juízes do Tribunal Regional doTrabalho da Paraíba por crimes de formação de qua-drilha, corrupção, prevaricação, nepotismo e apro-priação indébita será julgado pelo Supremo Tr i b u n a l

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Federal. Dos oito juízes do TRT, seis são afilhados po-líticos do senador (...).”

O único comentário a fazer é este: ainda que nenhumdos dados transcritos fosse verdadeiro, a notícia bem cir-cunstanciada mostra a exposição a que se acha submetidoo Judiciário, e desmoralização pública dessa envergaduranão ocorre por acidente, erro ou acaso.

A placa de homenagem... a nota da imprensa... eis aío d el irium morbus, o delírio da agonia. Há uma percepçãode morte sempre presente. Miasmas efluem.

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VIII – ESPÍRITO CONSERVADOR; PROCLAMAÇÕES LIBERT Á R I A S

É preciso, por fim, depois de tantas palavras de desas-sossego, uma busca pela História. A agonia presente daJustiça tem raízes em frustrações continuadas para organi-zar um Judiciário democrático e representativo.

Os juízes carregam uma herança de participação naordem legal que forma um mundo de espectros, e não épossível afugentá-los com proclamações libertárias, quesão tão comuns, e por isso banais. Há críticas ao PoderExecutivo? Lá estão os magistrados a distribuir notas a res-peito de sua hipertrofia. A maioria das vezes trata-se deuma cantilena, algo que foi dito e ouvido antes, mas pare-ce que a presença supostamente crítica precisa ser marca-da. Na verdade, são os espectros da própria judicatura quese constituem no alvo dos temores e do exorcismo. Eisaqui alguns traços da herança.

Em pleno Século das Luzes, o Provedor-Geral To m á sAntônio Gonzaga escreveu o Tratado de Direito Natural,que reivindicava como sendo o primeiro texto sobre o te-ma em língua portuguesa. Ali sustentou a soberania pordireito divino, em que “o homem aparece ou como criatu-ra de Deus ou como súdito do monarca”, como mostraLourival Gomes Machado (Tomás Antônio Gonzaga e oDireito Natural).

O ano de 1789 marcou a coincidência da RevoluçãoFrancesa e da Inconfidência Mineira. Seria difícil com-preender a contradição entre as idéias pregadas por Gon-zaga, com a jactância de apresentar-se como pioneiro, emcomparação com os textos já muito conhecidos de Vo l t a i r e ,

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Rousseau e Montesquieu que — guardadas singularidadesimportantes — buscavam no Direito Natural razões com-pletamente opostas. Para estes, era o homem, por sua con-dição fundamental, quem estava ali resguardado, não ha-vendo uma ordem de Deus, ou do monarca, apta a imporrestrições à sua liberdade e gozo de direitos fundamentais.

A contradição e, por fim, o mergulho das idéias deGonzaga na mais completa obscuridade, tornam-se com-preensíveis diante de sua inserção na ordem legal, comouma espécie de desembargador, e na própria Inconfidên-cia, como revolucionário reticente. Voltaire não pode serdesvinculado de suas sátiras, Rousseau de seu orgulho eMontesquieu do refinado espírito de desconstrução da or-dem vigente. Para eles era o Direito Natural que erigiafontes emancipadoras.

A integração de magistrados no quadro da elite, comoagentes justificadores do sistema de poder legal (confun-dindo-o com o Direito) perpassou o Império. Em 1833,após a abdicação de Pedro I, houve a tentativa de democra-tizar a Coroa e, então, chegou a ser veiculada campanhacontra os juízes porque “possuíam espírito de classe e cor-poração” e “queriam tudo a favor de sua ordem”. É bemverdade que a esperança na formação de júris populareseleitos feneceu logo. José Murilo de Carvalho (A Cons-trução da Ordem) documenta a participação de magistra-dos, concomitantemente à judicatura, no sistema de repre-sentação política. Na legislatura de 1831, 52,76% dossenadores eram juízes, enquanto que na Câmara de Depu-tados eles atingiram a 38,74% em 1850. Somente com aaprovação do Projeto do Marquês do Paraná, em 1855, es-sa participação declinou. “A aprovação do projeto foi o pri-meiro grande golpe no poder dos magistrados. A reformajudiciária de 1871 continuaria o esforço profissionalizanteafastando os juízes mais e mais de tarefas não diretamentevinculadas ao cargo.”

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Não é difícil entender que o sistema operativo do Ju-diciário era também de justificação e participação no daordem legal do poder. Por isso, um texto de ficção deRubem Fonseca, documentado em jornais da época, des-creve bem o modo de sentir e fazer sentir a lei:

“Neste dia 26 de agosto de 1855, em Macaé, na praçado Rocio, sob a presidência do juiz municipal substitu-to Dr. José Maria Velho da Silva, o carrasco executa, emnome da lei, os condenados Motta Coqueiro, Florenti-no da Silva, Faustino Pereira e o escravo Domingos.Ao enforcar o sentenciado Motta Coqueiro, que até oúltimo instante diz ser inocente do crime que lhe im-putam, a corda arrebenta e o réprobo cai no chão. Ocarrasco, para levar a cabo sua tarefa, agarra o conde-nado pelo pescoço para matá-lo por esganadura. O S r.D r. juiz percebe que o verdugo encontra dificuldadespara levar a termo a execução, pois não passa de umincompetente. Um carniceiro faria o serviço melhormas os carniceiros continuam se recusando a desem-penhar essa tarefa. O Sr. Dr. juiz substituto manda en-tão que encham de terra a boca do criminoso, o que éfeito. Não se vê mais a boca, nem se vê o nariz, não sevêem os dentes, nem os olhos arregalados do conde-nado, agora cobertos de terra. Mas não há dúvida deque cumpriu-se a pena de morte, sendo obedecidosos ditames da lei e da justiça.”(A Recusa dos Carniceiros)

Não há estranheza, pois, no fato da República havercassado imediatamente à proclamação, através do Decretonº 25, de 30 de novembro de 1889, os títulos de senhoria ede majestade atribuídos aos tribunais (O Juiz e a FunçãoJurisdicional, Mário Guimarães). Tais títulos serviam auma nobreza estamental cuja ambição de mandar não po-dia ser revestida da dignidade que não tinha. É preciso co-ser informações dispersas, inclusive as que foram colhidas

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por quem não concordaria com o enfoque que ensejam,pois é o conjunto delas que permite entender o exorcis-mo que as freqüentes proclamações dos magistrados, cujaretórica é sempre irruptiva, na verdade buscam. A Justiçade fato agoniza, mas ela morreu a cada vez em que desvir-tuou o Direito, confundindo-o com a ordem legal impera-tiva. Na construção desta os juízes foram partícipes ativose qualificados pelo ofício.

A palavra final de sossego, pois, é a de que a mortenão chega por nossas mãos, dos contemporâneos. So-mente não conseguimos, e isso já é bastante doloroso, reti-rar o moribundo do seu leito pétreo.

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Post scriptum

Este texto será lido com ocasional tolerância por aque-les que dele não precisam tirar proveito. Já os que necessita-riam ler o escrito para mudar, para os quais ele é um verda-deiro repto, sentirão nos olhos o fogo que na verdade nãobrota daqui, e retribuirão com a costumeira censura e vio-lência. Talvez o juiz probo dissesse sinceramente: que meseja dado o direito de errar por todos os motivos, sob todasas circunstâncias, exceto naqueles casos e situações que es-tão reportados aqui. Ele, por fim, poderia serenamente dis-pensar o perdão, mesmo a condescendência, e repetirJonatham Swift: Não escrevi para que me aceitassem. Escrevi paraque se corr i g i s s e m .

SALA FALCONE-BORSELLINO1998 — Centenário do “J’Accuse...”

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Por que o Judiciário se transformou em umacatedral de papel do século XX?

Por que os cidadãos devem aceitar passivamentea existência do serial killer das esperanças najustiça, o juriscida?

Por que a democracia restaurada no Brasil,depois de vinte e um anos do regime de exceção,preservou o modelo do Judiciário concebidosob um controle externo exercido por generais?

Por que foi preciso vilipendiar a memória de ummorto para dar sobrevida ao modus operandi doJudiciário, sustentando a brutal justificação doscrimes cometidos contra os direitos humanos?

Por que juízes perdem a identificação de seupapel institucional preponderante envolvidos empráticas que causam ojeriza pública?