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A JUSTIÇA SOCIAL BIDIMENSIONAL E O PAPEL DA EDUCAÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 1. Davi Nogueira Lopes 1 2. Alexandre Ávalo Santana 2 RESUMO: A democracia hoje é policêntrica, e a política deixa de ser domínio do Estado e ingressa na pluralidade dos grupos sociais. Para alguns grupos sociais, entretanto, a luta para fazer parte do jogo democrático é, ela mesma, uma aspiração. É preciso, antes, ser reconhecido como parte: a luta é pelo reconhecimento. A ideia de justiça social passa, assim, tanto por redistribuição quanto por reconhecimento, ganhando, portanto, uma dupla dimensão: a econômica e a cultural. O papel da educação jamais foi tão importante: se antes depositavam nela a esperança de uma igualdade, hoje ela também é o caminho para a alteridade. Palavras-chave: neoliberalismo, democracia, reconhecimento, educação, alteridade. 1. INTRODUÇÃO A “democracia moderna” nasceu unida ao liberalismo, destinada à emancipação da sociedade civil e à defesa da autonomia da pessoa humana (BOBBIO, 2015, p. 27). Hoje, a democracia é a expressão política de uma realidade social policêntrica (BOBBIO, 2015, p. 41), ditada por grupos de interesses, classes sociais, categorias de 1 Mestrando em Direitos Humanos (Linha Direitos Fundamentais, Democracia e Desenvolvimento Sustentável) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMS. Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP. Advogado em Mato Grosso do Sul. 2 Mestrando em Direitos Humanos (Linha Direitos Fundamentais, Democracia e Desenvolvimento Sustentável) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMS. Especialista em Direito Constitucional pela PUC/Rio. Especialista em Direito Processual Civil INPG/UCDB. Procurador-Geral do Município de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Advogado em Mato Grosso do Sul. Professor de Graduação e Pós- Graduação em Direito. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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A JUSTIÇA SOCIAL BIDIMENSIONAL E O PAPEL DA EDUCAÇÃO PARA A

CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NA SOCIEDADE NEOLIBERAL

1. Davi Nogueira Lopes1

2. Alexandre Ávalo Santana2

RESUMO:

A democracia hoje é policêntrica, e a política deixa de ser domínio do Estado e

ingressa na pluralidade dos grupos sociais. Para alguns grupos sociais, entretanto, a luta para

fazer parte do jogo democrático é, ela mesma, uma aspiração. É preciso, antes, ser

reconhecido como parte: a luta é pelo reconhecimento. A ideia de justiça social passa, assim,

tanto por redistribuição quanto por reconhecimento, ganhando, portanto, uma dupla

dimensão: a econômica e a cultural. O papel da educação jamais foi tão importante: se antes

depositavam nela a esperança de uma igualdade, hoje ela também é o caminho para a

alteridade.

Palavras-chave: neoliberalismo, democracia, reconhecimento, educação,

alteridade.

1. INTRODUÇÃO

A “democracia moderna” nasceu unida ao liberalismo, destinada à emancipação da

sociedade civil e à defesa da autonomia da pessoa humana (BOBBIO, 2015, p. 27).

Hoje, a democracia é a expressão política de uma realidade social policêntrica

(BOBBIO, 2015, p. 41), ditada por grupos de interesses, classes sociais, categorias de

1 Mestrando em Direitos Humanos (Linha Direitos Fundamentais, Democracia e Desenvolvimento

Sustentável) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Especialista em Direito Constitucional

pela PUC/SP. Advogado em Mato Grosso do Sul. 2 Mestrando em Direitos Humanos (Linha Direitos Fundamentais, Democracia e Desenvolvimento

Sustentável) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Especialista em Direito Constitucional

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pessoas, de tal forma que a política deixa de ser domínio do Estado e ingressa no espaço

social, na pluralidade dos grupos sociais (TOURAINE, 1994, p. 60).

A questão é: o neoliberalismo permanece unido à democracia? Ele ainda deseja a

emancipação da sociedade e a autonomia do indivíduo? Neste artigo, ver-se-á que para

importantes autores, a começar por Bobbio, hoje a relação entre neoliberalismo e democracia

é outra.

Ver-se-á, também, que a luta democrática na sociedade neoliberal é também uma

luta cultural, uma luta pelo pertencimento e pelo empoderamento. Para alguns grupos

sociais, entretanto, a luta para ser parte é, ela mesma, uma aspiração. É preciso, antes, ser

reconhecido, pelo alter, como parte da pluralidade social.

A justiça social assume, então, uma dupla dimensão: a dimensão econômica e a

dimensão cultural. A primeira demanda redistribuição de bens e igualdade de oportunidades;

a segunda, pede reconhecimento, pede aceitação, pede alteridade, pede diferenciação.

Nesse contexto, como se verá, a educação assume uma dupla função: uma voltada

para a igualdade, outra voltada para a diferenciação.

2. Emancipação no Liberalismo

A liberdade do indivíduo foi o grande valor dos filósofos liberais. Locke (1994, p.

93), por exemplo, dizia que...

Para compreender corretamente o poder político e traçar o curso de sua

primeira instituição, é preciso que examinemos a condição natural dos homens, ou

seja, um estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir suas ações,

dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem, dentro dos limites

do direito natural, sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender

de sua vontade.

O fato é que o Liberalismo nasceu não apenas para defender o indivíduo dos abusos

do Estado, mas também para dele emancipá-lo (BOBBIO, 2000, p. 22).

Ao Estado caberia, na visão de Adam Smith, apenas três grandes deveres: a defesa

da sociedade no plano internacional; a segurança individual; e a realização das obras públicas

que não estivessem ao alcance da iniciativa privada. Smith (1996, p. 438) defendia que a luta

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individual pela maximização da renda levaria a pessoa, “como que por mão invisível”, a

promover também o interesse público.

Nessa tessitura político-filosófica há uma outra característica para a qual Bobbio

dedica sua atenção: a “fecundidade do antagonismo” (BOBBIO, 2000, p. 28). No

Liberalismo, o antagonismo é visto como uma condição sine qua non do progresso técnico

e moral da humanidade, desde que, segundo o autor, se desenvolva no “debate das ideias

para a busca da verdade, na competição econômica para o alcance do maior bem-estar social,

na luta política para a seleção dos melhores governantes”. A emancipação dos vínculos das

tradições e de costumes centenários permitiu que o conflito advindo da multiplicidade dos

caráteres fosse para os homens uma oficina para seu próprio aperfeiçoamento. Daí a

afirmação de Bobbio (2000, p. 28-29) segundo a qual “sobre o significado não apenas

econômico, mas moral da sociedade antagônica contraposta à sociedade harmônica, Kant

formula um juízo que pode muito bem ser considerado como o núcleo essencial do

pensamento liberal”:

Sem a insocialidade, todos os talentos permaneceriam fechados numa

vida pastoral arcádia (...); sem ela os homens, tal como as boas ovelhas conduzidas

ao pastoreio, não dariam valor algum à existência.

Devemos, então, dar graças à natureza pela intratabilidade que gera, pela

invejosa emulação da vaidade, pela cupidez jamais satisfeita de possuir e de

dominar! Sem isso, todas as excelentes disposições naturais intrínsecas à

humanidade permaneceriam eternamente adormecidas em qualquer

desenvolvimento.

O texto retrata o paradoxo kantiano da “sociabilidade insociável”. Em Kant (1983,

p. 13), o progresso não reside no conforto, mas no desconforto, não é movido pelo

conformismo, mas pelo inconformismo, e não é filho da paz, mas do conflito. O que refreia

e administra o antagonismo universal de uma liberdade máxima entre os homens, para que

todos possam dela gozar, são as amarras que o direito impõe por meio da Constituição civil,

o que seria para Kant a mais elevada tarefa que a Natureza impôs ao gênero humano.

Em suma, o Liberalismo pretendeu não apenas a libertação, mas sobretudo a

emancipação do indivíduo. Ao mesmo tempo, ele é avesso à planificação, e confia que a

pluralidade dos desejos e os seus antagonismos e disputas sejam a mola do progresso social.

O Liberalismo é, em essência, individual e plural.

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3. EMANCIPAÇÃO NO NEOLIBERALISMO

O Neoliberalismo nasceu como uma reação ao Welfare State. Seu texto de origem

é “O Caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek (2010). David Harvey (2008, p. 31) lembra

que Hayek criou a Mont Pelerin Society em 1947, uma associação baseada na crença de que

a liberdade fundada na propriedade privada e no mercado competitivo era capaz de criar,

naturalmente, as condições do bem-estar humano.

Os pilares da doutrina neoliberal continuam fundados na estrutura clássica. De

forma resumida, Michael Sandel (2014, p. 79-80) leciona que ela rejeita três tipos de

interferências estatais: (i) o paternalismo, uma vez que o Estado não tem que defender o

indivíduo de si mesmo, obrigando-o, por exemplo, a utilizar o cinto de segurança; (ii) a

legislação moral, que impõe noções morais à sociedade, como a que proíbe a prostituição ou

discrimina a homossexualidade; (iii) a redistribuição de renda ou riqueza, sob o argumento

de que qualquer caridade deve ser voluntária, e que uma coerção estatal por meio de tributos

redistributivos não se distingue moralmente de um ladrão que rouba para distribuir o produto

do crime aos pobres.

No campo econômico, a doutrina neoliberal sustenta, na síntese de David Harvey

(2008, p. 12), práticas político-econômicas cuja proposta é que o bem-estar humano pode

ser melhor alcançado “liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais

no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade

privada, livres mercados e livre comércio”. O papel do Estado compreende não apenas

garantir uma estrutura institucional adequada para aquele fim como também agir no sentido

de forçar a criação de mercados – e nada além disso – em áreas como terra, água, instrução,

saúde, segurança nacional ou poluição ambiental.

O problema é que a voracidade do neoliberalismo é capaz não apenas de

condicionar ou limitar o tamanho do Estado, mas também de submeter a própria democracia

a seus propósitos político-econômicos. Isso, porque para a doutrina neoliberal a democracia

detém um valor meramente instrumental (BOBBIO, 2000, p. 87-88), como se vê em Hayek

(2010, p. 86):

Não temos, contudo, a intenção de converter a democracia em fetiche.

Talvez seja verdade que nossa geração fale e pense demais em democracia e muito

pouco nos valores a que ela serve. Não se pode dizer da democracia o que Lord

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Acton, com razão, disse da liberdade: que ela não é “um meio para a consecução

de um objetivo político superior. Ela própria é o supremo objetivo político. Ela

não se faz necessária em virtude de uma administração pública; visa, antes, a

assegurar a busca dos mais altos objetivos da sociedade civil e da vida privada”.

A democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para

salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. E, como tal, não é, de modo

algum, perfeita ou infalível.

Obviamente, a democracia não é, jamais foi, e nunca será perfeita e infalível. No

entanto, o perigo da instrumentalização reside no fato de que um instrumento, por sua própria

natureza, pode ser descartado se não for útil aos propósitos de quem tenha o poder de

descartá-lo.

Nessa lógica, o passo seguinte da doutrina neoliberal foi argumentar que a

democracia é insuficiente para dominar os conflitos na sociedade complexa, apontando para

o problema da “ingovernabilidade democrática” (BOBBIO, 2000, p. 94) Segundo Bobbio

(2000, p. 94) o argumento neoliberal da “ingovernabilidade democrática” é articulado em

três proposições. A primeira diz que a capacidade de resposta do sistema político é

insuficiente para atender à demanda crescente provinda da sociedade civil, ao que se chama

“sobrecarga democrática”. Essa sobrecarga seria facilitada, em primeiro lugar, pelo próprio

Liberalismo, que colocou o indivíduo em grau máximo de importância e o muniu de uma

série de institutos protetivos [aqui no Brasil um exemplo seria o extenso leque de direitos

subjetivos advindos das garantias Constitucionais individuais]; em segundo lugar, os

procedimentos de resposta estatal num regime democrático podem ser de tal ordem morosos

que o próprio objeto da demanda corre o risco de se perder.

A segunda proposição afirma que a conflituosidade social de uma sociedade

democrática – e por isso pluralista – impede o atendimento de todas as demandas. “Numa

miríade de conflitos menores corporativos, os interesses contrapostos são múltiplos, donde

não é possível satisfazer um deles sem ofender um outro, numa cadeia sem fim” (BOBBIO,

2000, p. 94).

Finalmente, a terceira proposição sustenta que nos regimes democráticos o poder é

policêntrico, ou difuso. E é tanto mais difuso quanto mais democráticas forem as “pequenas

oligarquias de poder” da sociedade civil. Isso tem um efeito colateral: a fragmentação do

poder em vários centros menores gera concorrência entre os centros de poder, daí surgindo

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o que Bobbio (2000, p. 94) chamou de “conflito à segunda potência”, ou seja, o conflito

entre os sujeitos que deveriam resolver os conflitos sociais.

Amartya Sen (2010, p. 53) seleciona, ainda, outras duas objeções que geralmente

são levantadas pelos neoliberalistas contra a democracia. A primeira se refere ao ceticismo

de que a democracia seja apropriada aos países pobres, porque nesses o governo autoritário

vem se mostrando mais adequado para a promoção do crescimento e desenvolvimento

econômicos. A outra objeção funda-se no argumento de que a democracia faz parte da

cultura ocidental, e por isso seria inadequada a outras sociedades. Confira-se, a esse respeito,

o seguinte registro feito por Sen (2010, p. 29):

Como tem ressaltado o empresário e investidor George Soros, os

interesses dos negócios internacionais têm forte preferência por trabalhar com

autocracias ordenadas e altamente organizadas em vez de democracias

participativas e menos regulamentadas, e isso pode ter uma influência regressiva

sobre o desenvolvimento igualitário. Além disso, empresas multinacionais podem

exercer influência na alocação de gastos públicos em países do Terceiro Mundo

para que se dê preferência à segurança e ao bem-estar dos administradores e altos

executivos e não ao combate ao analfabetismo, falta de assistência médica e outras

adversidades sofridas pelos pobres.

A despeito de tudo isso, Bobbio (2000, p. 96) defende que “a reação democrática

diante dos neoliberais consiste em exigir a extensão do direito de participar na tomada de

decisões coletivas para lugares diversos daqueles quem que se tomavam as decisões

políticas”, ou seja, em “conquistar novos espaços para a participação popular”, ingressando-

se na fase da “democracia de participação”, o que se afina com o pensamento de Amartya

Sen (2011, p. 129-130 e 358-361), para quem a justiça focada em realizações é oriunda de

um processo de escolha social fundamentado na democracia participativa.

A verdade é que, se o Liberalismo clássico algum dia idealizou a emancipação da

sociedade civil e a autonomia do indivíduo, isso veio se perdendo no curso da História. Hoje,

nas palavras de Amartya Sen (2010, p. 28), “o capitalismo global está muito mais

preocupado em expandir o domínio das relações de mercado do que, por exemplo, em

estabelecer a democracia, expandir a educação, ou incrementar as oportunidades sociais para

os pobres no mundo”.

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4. DEMOCRACIA E PLURALISMO

A democracia nasceu de uma concepção individualista de sociedade, em

contraposição à concepção orgânica, para a qual o todo precede as partes. Segundo Bobbio

(2015, p. 41), três eventos marcam a filosofia social moderna: a) “o contratualismo do

Seiscentos e do Setecentos”, fundamentado no direito natural e na associação entre

indivíduos livres e iguais da qual emerge um poder cuja função é garantir-lhes a vida, a

liberdade e a propriedade; b) o nascimento da economia política baseada na figura do homo

oeconumicus, ou seja, no maximizador racional que, na ideia de Smith, tenderia a fomentar

o bem comum ao perseguir o seu próprio interesse; e c) a filosofia utilitarista de Bentham a

Mill, fundada numa ética objetivista a partir da consideração de estados individuais, tal qual

o prazer e a dor, para se chegar a um conceito de bem comum a partir da soma dos bens

individuais.

No entanto, conforme Bobbio (2015, p. 42), “o que aconteceu nos estados

democráticos foi exatamente o oposto”. Os sujeitos politicamente relevantes passaram os

grupos, as corporações, os grandes sindicatos, partidos políticos, e cada vez menos os

indivíduos.

Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa

sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou a nação,

composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou

indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo como unidade ideal (ou

mística), mas apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e

concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do governo central (autonomia

que os indivíduos singulares perderam ou só tiveram num modelo ideal de governo

democrático sempre desmentido pelos fatos) (BOBBIO, 2015, p. 43).

Disso resultou uma “sociedade policêntrica”, cujas forças políticas estão

distribuídas em muitos “centros de poder”. A “democracia monocrática”, aquela em que há

um centro de poder, foi substituída pela “democracia policrática”, e suas vozes conflitantes

deixam para trás a ideia de uma sociedade monística, fundada numa única vontade popular

soberana. A democracia policrática é, nesse sentido, também pluralista (BOBBIO, 2015, p.

43).

Esse sistema social altera radicalmente o tipo de representação pensada na

“democracia moderna”, onde a representação estabelecia-se através de um mandato livre e

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independente, devendo o representante, uma vez eleito, buscar o bem comum. O mandato

livre foi transferido do poder monárquico para as assembleias democráticas como uma

norma característica do regime democrático, em oposição ao mandato imperativo.

Entretanto, na lição de Bobbio (2015, p. 45), “jamais uma norma constitucional foi mais

violada que a da proibição de mandato imperativo. Jamais um princípio foi mais

desconsiderado que o da representação política”.

O princípio sobre o qual se funda a representação política é a antítese

exata do princípio sobre o qual se funda a representação dos interesses, no qual o

representante, devendo perseguir os interesses particulares do representado, está

sujeito a um mandato vinculado (típico do contrato de direito privado que prevê a

revogação por excesso de mandato) (BOBBIO, 2015, p. 45).

Na sociedade policrática, os grupos sociais com relativa autonomia formam

pequenas oligarquias que lutam para impor seus interesses em contraposição a outras

pequenas oligarquias. Em tal dinâmica, a representação política cede lugar à representação

dos interesses (BOBBIO, 2015, p. 44-45).

Quem representa interesses particulares tem sempre um mandato

imperativo. E onde podemos encontrar um representante que não represente

interesses particulares? Certamente não nos sindicatos, dos quais entre outras

coisas depende a estipulação de acordos – como os acordos nacionais sobre a

organização e sobre o custo do trabalho – que têm enorme relevância política. No

parlamento? Mas o que representa a disciplina partidária se não uma aberta

violação da proibição de mandatos imperativos? (BOBBIO, 2015, p. 46).

Bobbio (2015, p. 46) enxergou a consolidação da representação de interesses a

partir da implantação de “um novo modelo de sistema social”, que chamou de modelo

neocorporativo, em que o Estado deixa de ter o papel central na representação política e

passa a figurar como um mediador nos conflitos estabelecidos entre os interesses das grandes

corporações, ou como garantidor do cumprimento do acordo entabulado entre elas.

Nesse contexto, o fórum da decisão democrática deixa de ser exclusividade do

espaço político e estende-se para os sistemas de poder da sociedade civil (BOBBIO, 2015,

p. 54). Daí a observação de Bobbio segundo a qual a extensão do processo de democratização

revela-se na passagem da democracia política para a democracia social, ou da

democratização do estado para a democratização da sociedade.

Em outros termos, quando se quer saber se houve um desenvolvimento

da democracia num dado país o certo é procurar perceber se aumentou não o

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número dos que têm direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito,

mas os espaços nos quais podem exercer este direito (BOBBIO, 2015, p. 54).

Assim, a ampliação da força democrática dentro de uma sociedade policrática,

pluralista ou policêntrica, localiza-se nos espaços sociais nos quais se exerce o poder de

tomar decisões coletivas, onde o indivíduo não é considerado como cidadão, mas sim na

figura do papel que ocupa na sociedade (BOBBIO, 2015, p. 90).

Com uma expressão sintética pode-se dizer que, se hoje se pode falar de

processo de democratização, ele consiste não tanto, como erroneamente muitas

vezes se diz, na passagem da democracia representativa para a democracia direta

quanto na passagem da democracia política em sentido estrito para a democracia

social, ou melhor, consiste na extensão do poder ascendente, que até agora havia

ocupado quase exclusivamente o campo da grande sociedade política (e das

pequenas, minúsculas, em geral politicamente irrelevantes associações

voluntárias), para o campo da sociedade civil nas suas várias articulações

(BOBBIO, 2015, p. 89-90).

Portanto, Bobbio viu a ampliação da esfera política para a sociedade civil – no

sentido de fórum deliberativo das decisões coletivas –, antes circunscrita ao do poder central.

Uma vez conquistada a democracia política, nos damos conta de que a

esfera política está por sua vez incluída numa esfera muito mais ampla que é a

esfera da sociedade no seu todo e que não existe decisão política que não seja

condicionada ou até mesmo determinada por aquilo que acontece na sociedade

civil. Percebemos que uma coisa é a democratização do Estado (ocorrida com a

instituição dos parlamentos), outra é a democratização da sociedade, donde se

conclui que pode muito bem existir um Estado democrático numa sociedade em

que a maior parte das instituições – da família à escola, da empresa à gestão dos

serviços públicos – não são governadas democraticamente (BOBBIO, 2015, p. 91-

92).

Para Bobbio (2015, p. 92), a questão crucial do desenvolvimento democrático

atualmente é: “é possível a sobrevivência de um estado democrático numa sociedade não

democrática? Noutros termos: “a democracia política foi e é até agora necessária para que

um povo não caia sob um regime despótico; mas ela é suficiente?”

Como já antecipado, a resposta é negativa. Uma sociedade marcada pelo pluralismo

econômico, político, ideológico, cultural, e assim vai, carece de uma democracia pluralista,

não centrada apenas no fórum político governamental. Bobbio (2015, p. 92-93) é bastante

enfático relativamente a essa questão:

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Hoje, se se quer apontar um índice do desenvolvimento democrático, este

não pode mais ser o direito de voto. Sintética mas eficazmente: para dar um juízo

sobre o estado da democratização num dado país o critério não deve mais ser o de

“quem” vota, mas o do “onde” se vota (e fique claro que aqui entendo o “votar”

como o ato típico e mais comum do participar, mas não pretendo de forma alguma

limitar a participação ao voto).

Democracia e pluralismo são, pois, conceitos distintos, mas complementares. A

democracia serve para garantir um poder ascendente, isto é, de baixo para cima, para

contrapor-se ao poder autocrático; e o pluralismo permite que esse poder esteja distribuído,

diluído na esfera social, para contrapor-se ao poder monocrático.

Em outras palavras, a democracia dos modernos é o estado no qual a luta contra o

abuso do poder é travada paralelamente em dois fronts – contra o poder que parte

do alto em nome do poder que vem de baixo, e contra o poder concentrado em

nome do poder distribuído (BOBBIO, 2015, p. 99).

Finalmente, se a democracia moderna é caracterizada pela formação de uma

pluralidade de oligarquias concorrentes, é fundamental que, pela democratização da

sociedade civil, elas tornem-se, internamente, “sempre menos oligárquicas, fazendo com que

o poder não seja apenas distribuído, mas também controlado” (BOBBIO, 2015, p. 100).

5. A LUTA PELO RECONHECIMENTO E A JUSTIÇA SOCIAL

BIDIMENSIONAL

A importância da participação da sociedade civil na democracia policêntrica põe

em voga uma outra questão crucial: para “ser parte” de um espaço social, ou na linguagem

de Bobbio, para instaurar-se um grupo forte o suficiente para lutar pelos seus direitos, em

contraposição a outros grupos, é preciso, antes, que seus membros sejam culturalmente

reconhecidos como partes integrantes da sociedade civil. Há, aqui, uma luta anterior à

dinâmica proposta por Bobbio, que é a luta pelo reconhecimento.

Trata-se a luta pelo reconhecimento de uma das principais temáticas dos direitos

humanos na atualidade, e se radica numa compreensão de justiça cultural ou simbólica.

Conforme Nancy Fraser, essa luta “está rapidamente se tornando a forma paradigmática de

conflito político no final do século XX”. “A dominação cultural suplanta a exploração como

a injustiça fundamental” (FRASER, 2006, p. 231). Dessa forma, essa nova gramática dos

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conflitos sociais aponta para um “ressurgimento maciço da política do estatuto”, em

contraposição a um declínio da política de classes (FRASER, 2002, p. 8).

Demandas por “reconhecimento da diferença” dão combustível às lutas de grupos

mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e sexualidade

(FRASER, 2006, p. 231).

Evidente, salienta Fraser, a luta pelo reconhecimento não pretende suplantar a luta

pela redistribuição, isto é, a luta por uma igualdade material entre as camadas sociais.

Lutas pelo reconhecimento ocorrem num mundo de exacerbada

desigualdade material – desigualdades de renda e propriedade; de acesso a

trabalho remunerado, educação, saúde e lazer; e também, mais cruamente, de

ingestão calórica e exposição à contaminação ambiental; portanto, de expectativa

de vida e de taxas de morbidade e mortalidade. A desigualdade material está em

alta na maioria dos países do mundo – nos EUA e na China, na Suécia e na Índia,

na Rússia e no Brasil. Ela também aumenta globalmente, de modo mais dramático,

do outro lado da linha que divide norte e sul (FRASER, 2006, p. 231).

Há, então, um duplo desafio a ser cumprido, que é sistematizar essas esferas de

disputa para que não haja uma certa concorrência ideológica, o que demanda a elaboração

de uma teoria crítica do reconhecimento. Segundo Fraser (2006, p. 231),

Ao invés de simplesmente endossar ou rejeitar o que é simplório na

política da identidade, devíamos nos dar conta de que temos pela frente uma nova

tarefa intelectual e prática: a de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento,

que identifique e assuma a defesa somente daquelas versões da política cultural da

diferença que possam ser combinadas coerentemente com a política social da

igualdade.

O ideário da justiça social assume, portanto, duas dimensões complementares uma

da outra, a primeira a continuar exigindo a justiça econômica, por meio da redistribuição e

igualdade de oportunidades, e outra que passa exigir também uma justiça cultural, o que se

dá pelo reconhecimento. Essa tarefa demanda um estudo sobre como a privação material e

o desrespeito cultural se relacionam e se sustentam, e isso exige, também, “esclarecer os

dilemas políticos que surgem quando tentamos combater as duas injustiças ao mesmo

tempo” (FRASER, 2006, p. 231).

A justiça econômica está radicada na estrutura político-econômica da sociedade, e

tem como exemplos a exploração e marginalização social pela expropriação do fruto do

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trabalho em benefício dos outros, ou mesmo pela falta de acesso a um trabalho remunerado,

bem como a falta de distribuição igualitária de bens sociais necessários a uma vida digna.

Teóricos igualitários empreenderam grande esforço para conceituar a

natureza dessas injustiças socioeconômicas. Suas concepções incluem a teoria de

Marx sobre a exploração capitalista; a concepção de justiça de Rawls, como justiça

na seleção dos princípios que regem a distribuição dos “bens primários”; a visão

de Amartya Sen, de que justiça implica “capacidades de função” iguais; e a de

Ronald Dworkin, de que justiça implica “igualdade de recursos (FRASER, 2006,

p. 233).

Fraser (2006, p. 232) não se vincula a nenhuma dessas ou de outra específica

doutrina sobre justiça econômica, abordando apenas uma “compreensão geral e rudimentar

da injustiça socioeconômica informada por um compromisso com o igualitarismo”,

avançando, então para o tema específico de sua análise, que é a violação da justiça cultural,

ou simbólica.

Segundo a autora, a violação da justiça cultural está vincada nos padrões sociais de

representação, interpretação e comunicação. São exemplos disso a submissão do indivíduo

a padrões de interpretação e comunicação de outra cultura, alheios ou hostis aos seus; o

ocultamento do indivíduo, tornando-o invisível por efeito das práticas comunicativas,

interpretativas e representacionais de sua própria cultura; e o desrespeito do indivíduo por

práticas difamatórias ou desqualificadoras rotineiras das representações culturais públicas

estereotipadas ou nas interações da vida cotidiana (FRASER, 2006, p. 232).

Fraser também salienta que enquanto as soluções para as injustiças econômicas

passam por uma reestruturação das políticas nessa área, englobando políticas de

redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, investimentos estratégicos

para geração de empregos, políticas públicas em direitos sociais, etc., a injustiça cultural

deve ser combatida por meio de uma “mudança cultural ou simbólica” que envolva a

valorização das identidades desrespeitadas e de seus produtos culturais, como, de forma mais

geral, a valorização da própria diversidade cultural (FRASER, 2006, p. 232).

Uma outra distinção que merece destaque consiste no tipo de influência que a luta

pelo reconhecimento e a luta pela redistribuição exercem sobre a agregação social. Isso

porque enquanto a luta pela redistribuição atua no sentido de diminuir as desigualdades

sociais, a luta pelo reconhecimento atua no sentido de promover uma diferenciação cultural

ou simbólica para fomentar o empoderamento de determinado grupo social. Essas direções

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opostas podem revelar-se um dilema na medida em que lutas por redistribuição e

reconhecimento exercem uma influência recíproca. A isso Fraser chama de “dilema da

redistribuição-reconhecimento”. Tal dilema fica bastante visível em situações nas quais

grupos sociais necessitam tanto de redistribuição quanto de reconhecimento, de modo que

sobre eles devem atuar tanto políticas igualitárias, quanto políticas de diferenciação.3 São

chamados por Fraser de “coletividades bivalentes”:

Coletividades bivalentes, em suma, podem sofrer da má distribuição

socioeconômica e da desconsideração cultural de forma que nenhuma dessas

injustiças seja um efeito indireto da outra, mas ambas primárias e co-originais.

Nesse caso, nem os remédios de redistribuição nem os de reconhecimento, por si

sós, são suficientes. Coletividades bivalentes necessitam dos dois (FRASER,

2006, p. 232).

Fraser (2002, p. 8) também leciona que a luta pelo reconhecimento surge como um

traço característico da globalização, gerando o fenômeno que ela denomina de “politização

generalizada da cultura”.

De facto, hoje em dia, a reivindicação de reconhecimento é a força

impulsionadora de muitos conflitos sociais, desde batalhas sobre o

multiculturalismo a lutas sobre as relações sociais de sexo e a sexualidade, desde

campanhas pela soberania nacional e autonomia subnacional a esforços para

construir organizações políticas transnacionais, desde a jihad fundamentalista aos

revivescentes movimentos internacionais de direitos humanos. É certo que estas

lutas são heterogêneas, situando-se numa escala que vai daquelas que são

claramente emancipatórias às que são absolutamente condenáveis (FRASER,

2006, p. 8).

Para ela, essa nova gramática social trazida pela globalização não só amplia a

contestação política, como gera um novo entendimento sobre justiça social. Ao lado da

questão socioeconômica da distribuição colocam-se agora as questões de representação,

identidade e diferença, todas ligadas ao problema da subordinação cultural (entre sexos,

“raças”, religiões, nacionalidades, etc.) (FRASER, 2002, p. 9).

Esse fenômeno, entretanto, não implica necessariamente num ganho de justiça

social. Ao contrário, Fraser (2002, p. 10) salienta que o neoliberalismo ascendente pode estar

contribuindo para o deslocamento da atenção antes focada na questão da distribuição, para

um culturalismo excessivo.

3 Ibid., op. cit., 2006, p. 233.

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Em vez de chegarmos a um paradigma mais amplo e rico, capaz de

abarcar tanto a redistribuição como o reconhecimento, estaremos a trocar um

paradigma truncado por outro: um economicismo truncado por um culturalismo

igualmente truncado. O resultado seria um exemplo clássico de desenvolvimento

combinado e desigual: as recentes conquistas notáveis no eixo do reconhecimento

corresponderiam a um progresso paralisado, se não mesmo a francas perdas, no

eixo da distribuição (FRASER, 2002, p. 10).

Por essa razão, Fraser (2006, p. 231-232) sustenta a necessidade de se desenvolver

uma teoria crítica do reconhecimento que possa identificar e assumir a defesa de uma política

cultural da diferença que combine com a política social da igualdade. Para a autora, “somente

integrando reconhecimento e redistribuição que chegaremos a um quadro conceitual

adequado às demandas de nossa era”.

A justiça social, em suma, passa a ser compreendida sob duas dimensões:

redistribuição e reconhecimento, que demandam, concomitantemente, igualdade e

diferenciação.

6. A EDUCAÇÃO PARA O DISSENSO ENTRE IGUAIS

A educação é fundamental para o alcance do que Amartya Sen (2010, p. 33) chamou

de liberdade substantiva.

Ter mais liberdade [substantiva] melhora o potencial das pessoas para

cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo, questões centrais para o processo

de desenvolvimento. A preocupação aqui relaciona-se ao que podemos chamar

(correndo o risco de simplificar demais) o “aspecto da condição de agente”

[agency aspect] do indivíduo (SEN, 2010, p. 33).

A condição de agente transforma o indivíduo em um “cidadão ativo”, o que por sua

vez aumenta o número das “opiniões políticas” da participação popular (input’s

democráticos). Quando o indivíduo alcança a condição de agente” ele passa a ser “membro

do público”, como também passa a participar de ações econômicas, sociais e políticas,

“interagindo no mercado e até mesmo envolvendo-se, direta ou indiretamente, em atividades

individuais ou conjuntas na esfera política ou em outras esferas” (SEN, 2010, p. 34).

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A cidadania ativa também incrementa a demanda de direitos frente ao Estado, exige

a transparência nas decisões políticas (diminui o “poder invisível”) e cobra a

responsabilização (accountability) dos governantes (BOBBIO, 2015, p. 51-54).

Mais que isso, a educação torna possível o diálogo onde há dissenso. Conforme o

pedagogo e antropólogo Prof. Antônio Hilário A. Urquiza (2014, p. 21-29), se é fato que a

diversidade está em todos cantos da vida moderna (mitos, contos, moedas, comércio, artes,

técnicas, instrumentos, línguas, ciências, religiões, povos, ideais, etc.), também é fato que

somente pela educação pode haver uma conformação democrática dos elementos plurais e

divergentes.

A liberdade de dissentir possibilita a sociedade pluralista, que, por sua vez, leva à

maior distribuição de poder na sociedade civil, que integra e alarga a democracia política

(BOBBIO, 2015, p. 100-104).

A educação é igualmente necessária para o reconhecimento da diferença. Em

verdade, ela está na base do problema que a diferença expõe: a questão antropológica do

pertencimento. O pensamento centralizado nas próprias referências culturais causa uma

dificuldade de lidar com as diferenças do outro. “Como o outro não pertence ao nosso grupo,

à nossa cultura, o problema é ele – o outro”. É aqui, aliás, que reside o perigo do

etnocentrismo (URQUIZA, 2014, p. 24). Nesse sentido, Fraser (2006, p. 232) leciona que a

proposta mais radical em prol de uma justiça cultural envolve “uma transformação

abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, de modo a

transformar o sentido do eu de todas as pessoas.

Conforme Alain Touraine (1994, p. 28) a cultura democrática só pode ser fruto de

uma combinação entre unidade e diversidade, liberdade e integração das individualidades.

Em resumo, a educação é o caminho para a construção de uma democracia

participativa, como também é absolutamente necessária, na expressão do professor Urquiza

(2014, p. 27), para “fragilizar e desvanecer as diferenças através da desconstrução dos

preconceitos”, tornando-a também uma democracia plural.

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7. CONCLUSÃO

Smith (1996, p. 438) queria ver o Estado longe do indivíduo, cumprindo-lhe apenas

as três funções acima citadas. Ele acreditava que a busca pelo indivíduo da maximização da

renda o levaria, “como que por mão invisível”, a promover também o interesse público. Não

deu certo.

O neoliberalismo está tentando a mesma receita, com talvez algumas diferenças

retóricas. De toda forma, ele retoma o núcleo do liberalismo clássico, ou seja, é baseado em

“sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio” (HARVEY, 2008,

p. 12).

Não está funcionando, de novo. Num debate realizado em 2015 em que

participaram os célebres economistas Paul Krugman, Joseph Stigliz e Thomas Piketty, os

dois primeiros argumentaram que não há qualquer justificação racional para que as mulheres

ainda percebam menores salários, e que isso é explicado pelo fato de que há outras forças

sociais, que não somente as econômicas, que movimentam o mercado (KRUGMAN, et. al.,

p. 37). Conforme Stigliz,

O que importa dizer é que não lidamos com as simples forças do mercado

em abstrato, mas com forças sociais efetivas, com os poderes que controlam os

mercados, com a exploração e a discriminação (KRUGMAN, et. al., p. 38).

Segundo Krugman, ilações baseadas em conceitos do livre mercado têm, no fundo,

componentes ideológicos que não se sustentam. Afirma, então, quanto à questão da

discriminação feminina no mercado de trabalho norte-americano, que...

Apesar de não ser difícil encontrar algum membro no Congresso que

sustente que, se as mulheres realmente trabalhassem tão bem como os homens,

seriam pagas como eles e teriam as mesmas oportunidades, porque a mão invisível

do mercado livre faria com que assim fosse, a verdade é que não é assim que as

coisas funcionam (KRUGMAN, et. al., p. 37).

Relativamente à questão redistributiva, o neoliberalismo e a globalização pioraram,

e muito, as desigualdades sociais no mundo, conforme o estudo encomendado pela ONU em

2007 e apresentado pelo livro “FLAT WORLD, BIG GAPS” (SUNDARAM; BAUDOT,

2007).

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Mais do que isso, o neoliberalismo ameaça a democracia com argumentos como o

da “ingovernabilidade democrática” (BOBBIO, 2000, p. 94), ou do ceticismo de que ela seja

adequada aos países pobres (SEN, 2010, p. 29).

A democracia, por sua vez, reage mediante a ampliação de sua esfera de decisão

para espaços da sociedade civil. Tais espaços são formados por grupos de interesses, classes

sociais, categorias de pessoas, etc.4, que buscam condicionar ou determinar a decisão política

(BOBBIO, 2015, p. 91).

Contudo, para fazer parte é preciso, antes, de reconhecimento. Essa é a luta de

muitos grupos organizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e

sexualidade (FRASER, 2006, p. 231-232).

As lutas pelo reconhecimento da diferença ampliam a noção de justiça social, antes

circunscrita à questão da redistribuição. Doravante, “somente integrando reconhecimento e

redistribuição que chegaremos a um quadro conceitual adequado às demandas de nossa era”.

A justiça social é bidimensional (FRASER, 2006, p. 231-232).

Chegamos, enfim, à questão da educação. Como dito, ela está na base de uma

cultura democrática pluralista, tanto para fomentar a cidadania ativa, quanto para possibilitar

o reconhecimento da diferença.

É preciso considerar que a grande maioria das pessoas privadas – material e/ou

culturalmente – de uma liberdade substantiva terão pouca ou nenhuma chance de, sem a

ajuda da sociedade, mudar seu destino para melhor.

Estamos acostumados a pensar a educação como um meio para o empoderamento,

o alcance da condição de agente, o exercício da cidadania plena. Esse é um ponto de vista

correto, mas não suficiente e nem necessariamente coincide com a percepção das pessoas

que sentem fome, frio, sede, que morrem por doenças banais, que não têm abrigo, que são

discriminadas, violentadas ou excluídas. Para elas, a educação de que necessitam é, antes de

tudo, a educação dos outros.

4 TOURAINE, op. cit., p. 60.

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