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A LEGISLAÇÃO E OS INSTRUMENTOS DE INTERPRETAÇÃO DO BEM ARQUITETÔNICO NA PAISAGEM: O caso da área urbana de São Lourenço do Sul-RS LUCKOW, DANIELE BEHLING. (1); OLIVEIRA, ANA LÚCIA COSTA DE. (2) 1. Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Católica de Pelotas. Arquitetura e Urbanismo Rua Félix da Cunha, 412 Caixa Postal 402. CEP 96010-000 Centro Pelotas RS - Brasil [email protected] 2. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pelotas. Núcleo de Estudos em Arquitetura Brasileira (NEAB) Rua Benjamin Constant, 1359. CEP 96010-020Porto Pelotas RS - Brasil [email protected] RESUMO O inventário é configurado como forma de proteção pela Constituição Federal de 1988 e confere uma maior liberdade para a intervenção do bem na paisagem cultural. O cadastro, geralmente também denominado inventário, permite identificar, caracterizar, reconhecer e mapear as informações de um sítio relevante para a cultura de uma comunidade. A junção dessas duas formas de entendimento, por sua vez, possibilita a interpretação e proteção de um bem a partir de critérios de análise, capazes de, com a incorporação da informação, refletir as particularidades locais nos tipos de itens a serem inseridos e pelos resultados obtidos. Ou seja, pode alimentar formas de proteção gerais com critérios específicos e contextualizados. A experiência com trabalhos de cadastramento levou à identificação de três aspectos essenciais de um bem cultural arquitetônico: a arquitetura em si, a sua ambiência e a situação atual. A combinação destes três gera ainda um quarto aspecto, uma síntese da leitura que é o nível de preservação. Portanto, o objetivo deste trabalho é o de discutir como esses três aspectos contribuíram para a construção da legislação municipal de proteção em São Lourenço do Sul-RS, utilizando o instrumento do inventário nos moldes indicados na Constituição Federal de 1988. O município de São Lourenço do Sul, localizado no extremo-sul do Rio Grande do Sul, nas margens da

A LEGISLAÇÃO E OS INSTRUMENTOS DE INTERPRETAÇÃO … · 11/10/2009 · A LEGISLAÇÃO E OS INSTRUMENTOS DE INTERPRETAÇÃO DO BEM ARQUITETÔNICO NA PAISAGEM: O caso da área urbana

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A LEGISLAÇÃO E OS INSTRUMENTOS DE INTERPRETAÇÃO DO

BEM ARQUITETÔNICO NA PAISAGEM: O caso da área urbana de

São Lourenço do Sul-RS

LUCKOW, DANIELE BEHLING. (1); OLIVEIRA, ANA LÚCIA COSTA DE. (2)

1. Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Católica de Pelotas. Arquitetura e

Urbanismo

Rua Félix da Cunha, 412 – Caixa Postal 402. CEP 96010-000 – Centro – Pelotas – RS - Brasil

[email protected]

2. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pelotas. Núcleo de

Estudos em Arquitetura Brasileira (NEAB)

Rua Benjamin Constant, 1359. CEP 96010-020– Porto – Pelotas – RS - Brasil

[email protected]

RESUMO O inventário é configurado como forma de proteção pela Constituição Federal de 1988 e confere uma maior liberdade para a intervenção do bem na paisagem cultural. O cadastro, geralmente também denominado inventário, permite identificar, caracterizar, reconhecer e mapear as informações de um sítio relevante para a cultura de uma comunidade. A junção dessas duas formas de entendimento, por sua vez, possibilita a interpretação e proteção de um bem a partir de critérios de análise, capazes de, com a incorporação da informação, refletir as particularidades locais nos tipos de itens a serem inseridos e pelos resultados obtidos. Ou seja, pode alimentar formas de proteção gerais com critérios específicos e contextualizados. A experiência com trabalhos de cadastramento levou à identificação de três aspectos essenciais de um bem cultural arquitetônico: a arquitetura em si, a sua ambiência e a situação atual. A combinação destes três gera ainda um quarto aspecto, uma síntese da leitura que é o nível de preservação. Portanto, o objetivo deste trabalho é o de discutir como esses três aspectos contribuíram para a construção da legislação municipal de proteção em São Lourenço do Sul-RS, utilizando o instrumento do inventário nos moldes indicados na Constituição Federal de 1988. O município de São Lourenço do Sul, localizado no extremo-sul do Rio Grande do Sul, nas margens da

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Laguna dos Patos, foi formado no século XIX, inicialmente, por imigrantes portugueses e, posteriormente, por germânicos, o que configurou um caráter peculiar para o sítio urbano. Onde os povos germânicos colonizaram o interior e produziam alimentos que escoavam pelo arroio São Lourenço no povoado costeiro loteado em um traçado reticulado (1884) pelos portugueses mesmo existindo um povoado anterior na zona rural. A busca por ações preservação no município inicia com um inventário da área urbana (2007), que serviu de base para a dissertação de mestrado sobre arquitetura urbana e inventário (2010), a solicitação por parte da prefeitura municipal de laudos técnicos e diretrizes de preservação (2014-15) para, recentemente, levar a aprovação da lei n° 3677/2016 que institui o inventário do patrimônio histórico. Esta legislação contempla um determinado número de edificações selecionadas pela comunidade local e ainda que com enfoque apenas no bem isolado, sem uma abordagem em escala urbana, atua como forma de garantir um ponto de partida para ações de preservação oficiais. Os três aspectos destacados, a arquitetura em si, a ambiência e a situação atual permearam o levantamento de reconhecimento, as diretrizes posteriores e a legislação proposta para o local permitindo uma reflexão sobre a metodologia adotada e a validade desses aspectos como critérios de caracterização e de preservação em uma aplicação real. Com destaque para dois pontos: as possibilidades de ampliação da lista de bens e a transformação dos aspectos em referências para ações de intervenção (conservação e restauro). A futura resposta à legislação, sua compreensão e assimilação pelo poder público e demais atores envolvidos (arquitetos, proprietários, etc.), também vai permitir a análise da abrangência dos critérios e a possibilidade de serem adotados aspectos gerais, que permitam a leitura do contexto local. Palavras-chave: Legislação; Inventário; Patrimônio arquitetônico.

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Introdução

Este texto aborda a experiência das ações de preservação na ultima década em São

Lourenço do Sul que culminaram com a aprovação da Lei n° 3677/2006 que institui o

inventário do patrimônio cultural arquitetônico do município. A consultoria dos cursos de

Arquitetura e Urbanismo das Universidades Federal e Católica de Pelotas, aliada a vontade

política das administrações municipais e a vontade da população tornou possível o

estabelecimento de instrumentos de preservação para o município. A legislação proposta

tomou como objeto somente a zona urbana, embora os estudos desenvolvidos pelas

universidades tenham construído bases para um instrumento amplo que permite abranger o

patrimônio cultural tanto da zona urbana como rural.

Será apresentada uma contextualização do inventário, como ferramenta de cadastro e análise

e como instrumento de proteção, assim como, o estabelecimento de critérios de interpretação

do patrimônio arquitetônico cultural, desenvolvidos com a reflexão teórica e a experiência

prática na aplicação dos inventários. Para a seguir abordá-los no objeto de estudo, o

patrimônio urbano arquitetônico de São Lourenço do Sul-RS e uma avaliação do processo

durante esta década e dos produtos alcançados.

A figura do inventário: Cadastro e legislação.

O inventário é considerado pelos documentos internacionais como uma ferramenta

apropriada de cadastramento dos bens de interesse cultural, simultaneamente, a Constituição

Federal brasileira vigente guinda ele a um status de instrumento legislador de preservação.

Como ferramenta é o primeiro passo para a conservação, meio pelo qual podem ser

reconhecidos, identificados e estudados os bens culturais; sendo aplicável em todas as suas

categorias. Para Paulo Ormindo Azevedo, além de servir de base para estudos sistemáticos e

aprofundados do patrimônio edificado, tem efeitos conscientizadores e legitimadores muito

importantes, como abrir espaços para a discussão com lideranças locais e proprietários,

publicar o material para embasamento aos setores da administração pública e privada e

divulgar ao grande público. (AZEVEDO, 1998)

Ainda neste enfoque está amparado nas diversas cartas, recomendações e resoluções dos

órgãos internacionais e do IPHAN. Dentre estes documentos pode-se destacar, ao nível

internacional: a Carta de Atenas (1931), com a proposição de inventários nacionais; a

Recomendação de Nairóbi (1976), com trabalhos voltados a estudos dos conjuntos históricos;

na Europa, a Declaração de Amsterdã, que destaca o valor do inventário, pois “[...] fornecerá

uma base realista para conservação, no que diz respeito ao elemento qualitativo fundamental

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para a administração dos espaços.” (CONGRESSO DO PATRIMÔNIO EUROPEU, 1975,

p.4). Ao nível nacional, destacam-se a Compromisso de Salvador (1971), com a sugestão de

convênios para a realização de trabalhos; e a Carta de Petrópolis (1987), com a colocação do

instrumento como parte dos procedimentos de análise e compreensão dos sítios históricos

urbanos.

Como instrumento legislador foi instituído no Artigo 216 da Constituição de 1988 como uma

forma proteção distinta do tombamento, ainda que sem uma legislação nacional

regulamentando os efeitos decorrentes do inventário. Independente da ausência da lei

entende-se que os órgãos públicos de proteção devem realizar esse trabalho, pois é com o

inventário que consequências jurídicas incidem no proprietário do bem (desde que ciente do

ato) e os estados (art. 24, VII da Constituição Federal) e municípios (art. 30, I, II e IX) podem

legislar sobre o assunto.

No Rio Grande do Sul, a Lei Estadual nº 10.116, de 1994, já trata do inventário como

instrumento de preservação do patrimônio cultural. Em resumo, existem efeitos jurídicos que

advêm do ato formal de inventariar. Os bens listados devem ser conservados adequadamente

por seus proprietários, já que ficam submetidos ao regime jurídico específico de bens culturais

protegidos. Somente poderão ser destruídos, inutilizados, deteriorados ou alterados mediante

prévia autorização do órgão responsável. As restrições resultantes desta ferramenta se

relacionam com o princípio da função sociocultural da propriedade, previsto na Constituição

Federal e no Código Civil (art. 1228, § 1º).

Com isso, os inventários mostram-se uma alternativa interessante para a proteção do

patrimônio cultural, com efeitos jurídicos mais brandos que outras formas como, por exemplo,

o tombamento e possibilitam um processo mais rápido. Pela sua abrangência, pode vir a ser

utilizado para a salvaguarda de bens culturais que devem ser conservados por sua

exemplaridade, como representativos da nação em sua evolução, ou de minorias

marginalizadas.

A junção da ferramenta e do instrumento permite uma melhor gestão do processo, pois a

legislação legitima o conhecimento acumulado pelo cadastro. Através de critérios de análise

estabelecidos é possível na lei, qualificar os aspectos essenciais a serem preservados e

quantificar, em valores mensuráveis, esses aspectos no que tange à sua execução.

Os critérios de interpretação a partir dos inventários

A identificação de aspectos essenciais a serem tratados no âmbito da preservação do

patrimônio cultural, no caso a arquitetura, possibilita definir uma organização metodológica

básica, buscando relacionar o cadastro à proteção. A partir de uma revisão teórica de estudos

sobre o inventário e sua metodologia e das cartas e recomendações internacionais buscou-se

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caracterizar alguns pontos relevantes na abordagem da arquitetura enquanto patrimônio

cultural.

A UNESCO em seu manual voltado aos trabalhos de inventário “Manual on Systems of

inventorying immovable cultural property. Museums and monuments”, ao estudar as fichas

utilizadas nos diferentes levantamentos ao longo do mundo reúne uma série de questões

comumente abordadas (SYKES, 1984, p.99-137). Nessa sintetização do final do século XX,

em um enfoque voltado a estabelecer critérios de cadastro e proteção dois aspectos se

destacam: A valoração do objeto em si, através de sua significância e descrição, e o estado

atual, pela preservação e caracterização. Em uma abordagem mais contemporânea outro

aspecto vem sendo incorporado, a leitura do entorno como a ambiência onde está inserido o

bem cultural. A combinação destes três gera ainda um quarto aspecto, uma síntese da leitura

que pode ser denominado nível de preservação, que se configura no elo entre o cadastro e a

legislação.

O primeiro aspecto, a valoração do objeto em si, conforme a Carta de Veneza representa “o

testemunho de uma civilização particular, evolução significativa ou de um acontecimento

histórico [...] que tenham adquirido com o tempo, uma significação cultural”. (CONGRESSO

INTERNACIONAL DE ARQUITETOS E TÉCNICOS DOS MONUMENTOS HISTÓRICOS,

1964, p.1) Ou seja, o objeto tem um valor próprio como uma manifestação tangível de um

modo de fazer, de uma realidade, amparado na sua significância e características

independente da sua situação.

Nesta leitura a arquitetura é valorada pela sua significância dentro do contexto histórico e, sua

materialidade se mostra nas suas características formais, funcionais e técnicas. Estas

representam a conformação de uma linguagem e uma tipologia e, podem indicar uma

adaptação à realidade local ou a inserção em um contexto nacional ou internacional. Dessa

forma o valor arquitetônico de uma obra estaria na forma como materializa as suas

características em relação à realidade local e/ou a modelos e estruturas de referência. Como,

por exemplo, uma arquitetura exemplar de um modelo formal erudito, uma adaptação ou

variação local de um modelo ou ainda um tipo característico local são testemunhos de um

significado cultural particular. Em termos práticos, quanto à legislação, o valor arquitetônico

auxilia na conformação do tipo de proteção e critérios de intervenção.

O segundo aspecto, o estado atual de um bem patrimonial, esta presente nas recomendações

internacionais através preocupação com as transformações inevitáveis ao longo dos anos

(ICOMOS, 2011a) e a inserção e adequação do patrimônio a vida contemporânea (UNESCO,

1976). Evidenciando a necessidade de sua correta caracterização tanto no objeto em si, no

caso arquitetônico, com de seu entorno para uma melhor resposta de planejamento e gestão.

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Refere-se à identificação do estado de preservação e de conservação de um bem patrimonial

procurando distinguir as ações responsáveis por cada um. No primeiro, a preservação, é

identificado o grau de integridade do objeto, relacionado às ações de intervenções que

resultam “[...] de acréscimos supérfluos e de transformações abusivas ou desprovidas de

sensibilidade que atentam contra sua autenticidade [...]”. No segundo, a conservação, o grau

de manutenção relacionado à deterioração fruto “[...] de uma utilização imprópria, [...] assim

como as provocadas por qualquer forma de poluição [...]”. (UNESCO, 1976, p.3).

Com base nas ações procura-se estabelecer critérios que auxiliem a quantificar as

interferências, para assim configurar categorias ou graus de preservação e de conservação. O

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) adota quatro categorias de

preservação (integro, pouco alterado, muito alterado e descaracterizado) e quatro de

conservação (Bem conservado, precário, em arruinamento e ruína), mas não caracteriza a

que tipo de ação corresponde cada uma.

Em termos de importância o estado de preservação é o mais relevante, pois pode alterar

significativamente a linguagem e a tipologia da arquitetura, interferindo desta forma no valor

do bem como patrimônio. Em uma paisagem um somatório dos graus de preservação

desfavoráveis pode desvalorizar a ambiência e os bens inseridos nela. Pode-se dizer que o

estado atual, no que se refere principalmente à preservação, exerce uma grande influência na

valorização, na interpretação e nos parâmetros gerenciamento das intervenções. É o estado

identificado no momento do cadastramento ou da inserção em uma legislação de preservação

que auxilia na determinação do ponto de partida da forma de preservação, indicando a

necessidade de conservação ou restauração e se ainda é possível alguma delas.

O terceiro aspecto seria o entorno com destaque para a necessidade de reconhecimento da

contribuição do entorno e da compreensão, documentação e interpretação do mesmo

conforme a declaração de Xian (ICOMOS, 2005), pela abordagem de princípios para a

interpretação de sítios (ICOMOS, 2008), e da sua salvaguarda e gestão (ICOMOS, 2011b). A

própria noção de entorno, em relação ao patrimônio cultural, trabalha atualmente com

conceitos abrangentes e não mais apenas na definição da preservação da visibilidade do

bem. (FONSECA, 1998) Para o ICOMOS o entorno é “o meio característico, seja de natureza

reduzida ou extensa, que forma parte de – ou contribui para –seu significado e caráter

distintivo.” (ICOMOS, 2005, p.2). Cabe destacar também outras leituras complementares ao

entorno como a ambiência e o espírito do lugar. A primeira segundo a recomendação de

Nairóbi, em referencia a conjuntos é “o quadro natural ou construído que influi na percepção

estática ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no espaço,

ou por laços sociais, econômicos ou culturais” (UNESCO, 1976, p.3). A segunda conforme

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declaração de Foz do Iguaçu “[...] expressa tal identidade, resultado da relação entre uma

determinada cultura e o sítio em que se desenvolve”. (ICOMOS, 2008, p.1).

Assim o entorno, em uma conceituação contemporânea, corresponde a uma leitura do meio

para a identificação da ambiência, quadro natural e construído que influi e é influenciado pelos

bens inseridos nele; da identidade cultural, fruto da relação com o espaço, e do espírito do

lugar. O entorno e os bens são um todo coerente cujo caráter é formado pela síntese dos

elementos o compõem como o meio natural (o relevo, a vegetação e as águas), o construído

(as implantações, as alturas, as conformações e as características), as atividades humanas

(os usos e as circulações) e a estrutura espacial (a morfologia urbana e o parcelamento do

solo). A interpretação deve abordar esses itens e relacionar o valor de cada um na

caracterização do local e do bem nele inserido para possibilitar a delimitação áreas de

ambiências em comum, visando definir critérios de planejamento específicos, e auxiliar na

valoração do bem, pela leitura da sua inserção no ambiente.

O quarto aspecto destacado, o nível de preservação, é em suma à busca de uma síntese

capaz de caracterizar o bem e indicar formas de preservação específicas para cada caso. A

combinação entre a leitura da arquitetura, do entorno e da situação atual (preservação e

conservação) tem por objetivo atribuir um valor mensurável a atributos de natureza

predominantemente qualitativa, para assim configurar um nível específico. Ainda se faz

necessária a inclusão de um critério não mensurável para capturar os valores simbólicos e

culturais de determinado local passível e ser identificado através da interpretação do contexto

histórico e cultural. Por definição o nível de preservação seria uma leitura combinada de

atributos que podem ser mensuradas (arquitetura, entorno e situação atual) e atributos não

mensurados com objetivo de definir uma classificação do bem.

O estudo da metodologia e a aplicação prática dos inventários têm configurado está

classificação em três níveis. O primeiro nível seria atribuído às edificações de relevância,

histórico, artística e cultural, onde o valor não mensurável pode se sobrepor ao mesurável

(relação arquitetura-entorno-situação atual) como, por exemplo, no caso de ruínas. Neste

grupo as intervenções seriam de caráter mais restritivo. O segundo nível seria atribuído às

edificações de valor arquitetônico em situação de integridade ou com poucas alterações

localizadas em entornos com ambiências preservadas e relevantes. Em termos de

intervenções as restrições seriam para preservar a sua leitura como arquitetura no contexto

em que esta inserida. O terceiro nível seria atribuído às edificações de valor arquitetônico

passíveis da combinação de duas situações: construções alteradas em entorno relevantes ou

construções pouco alteradas em entornos descaracterizados ou de ocupação recente. Em

termos de intervenções as restrições podem buscar manter o seu valor arquitetônico ou a

leitura da paisagem.

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Essa classificação e a leitura desses aspectos combinados pode possibilitar o

estabelecimento também de níveis de intervenção, com a indicação de ações especificas de

conservação e restauro conforme a realidade local e do grupo de bens. Neste intuito o

trabalho realizado em São Lourenço do Sul reflete uma experiência prática na tentativa de

considerar os aspectos essenciais e os níveis de preservação dentro da ferramenta do

inventário como suporte para o instrumento inventário como legislação.

O caso de São Lourenço do Sul: inventário como cadastro e legislação

A cidade de São Lourenço do Sul, localizado na região sul do estado do Rio Grande do Sul

(Figura 01), às margens da Laguna dos Patos tem sua fundação como município datada de

1884, tendo sido, a atual área urbana, inicialmente pertencente a duas estâncias (fazendas),

uma em cada margem do Arroio São Lourenço. O posterior desenvolvimento do município

conferiu certas particularidades ao sítio: a existência de um povoado anterior ao costeiro,

conhecido como Boqueirão, a colonização do interior do município por povos germânicos, em

meados do século XIX na Serra dos Tapes, e a proposta de um traçado reticulado para a atual

área urbana desde a sua fundação. O povoado no Boqueirão relaciona-se à área urbana atual

através disputas políticas e econômicas pela sede administrativa do município e a colonização

no interior pelo desenvolvimento de uma rota de produtos coloniais via porto estabelecido às

margens do Arroio São Lourenço. O traçado proposto em 1884, para a área urbana merece

destaque, primeiro, pois na época de sua concepção o sítio não era a sede do município e

segundo pela extensão da área proposta que somente recentemente foi extrapolada pela

atual conformação urbana (Figura 02).

Figura 01: Mapa de localização do município e da área urbana.

Fonte: Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente, Prefeitura Municipal de São Lourenço do Sul.

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Quanto à caracterização da evolução urbana surge como período mais significativo o que

corresponde ao da atividade portuária no auge da navegação lacustre comercial, entre os

anos de 1870 e 1945, transportando os produtos produzidos na colônia germânica no interior

do município para todo o estado. A presença de um sítio inicial deslocado do atual centro

comercial, representando a transferência das funções do antigo para o novo, deixa uma área

antes bastante ativa em estado de abandono, mas que de certa forma permite ainda a

preservação de alguns remanescentes, que não vieram a sofrer grandes intervenções de

modernização. Configurando assim uma área, correspondente a do antigo porto e arredores,

e algumas edificações, relacionadas a esse cenário, como representativas da realidade

cultural local (Figura 02).

Figura 02: Mapa com o existente em 1884 na conformação urbana atual e vista área da cidade. Fonte: Mapa base da Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente e imagem área da Prefeitura

Municipal de São Lourenço do Sul, informações da Planta da Freguesia de São Lourenço de 1884.

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A busca por ações preservação mais efetivas de identificação e caracterização do acervo no

município tem início em 2007 a partir de um convênio entre a Prefeitura Municipal e a

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas para a elaboração

de um inventário de reconhecimento do acervo do patrimônio arquitetônico da área urbana

que identificou em torno de 450 edificações. Em continuidade à política de preservação, o

executivo municipal, solicitou um estudo aprofundado de bens arquitetônicos selecionados,

dentre os identificados no inventário de reconhecimento, pelos atores locais (executivos,

conselho da cultura, secretarias) através da elaboração de laudos técnicos das edificações e

da indicação de diretrizes de intervenção (LUCKOW; OLIVEIRA, 2015). Diretrizes que

embasaram a lei n° 3677/2016 que institui o inventário do patrimônio cultural arquitetônico.

Todo esse processo tem possibilitado uma reflexão prática e teórica, sobre o inventário como

ferramenta e instrumento no referente à preservação patrimônio. Inicialmente, como

ferramenta aplicada para o registro de características da arquitetura de um determinado sítio

desenvolvida na dissertação de mestrado “Arquitetura urbana e inventário: São Lourenço do

Sul” (LUCKOW, 2010). E recentemente na sua aplicabilidade como ferramenta de subsídio

para a elaboração de critérios de leitura e interpretação para o embasamento dos laudos

técnicos, das diretrizes e no papel de instrumento como legislação.

Portanto partindo da reflexão teórica, a concepção dos critérios de interpretação adotados

para São Lourenço do Sul, desde a organização do levantamento até as diretrizes, considera

que um bem arquitetônico, enquanto patrimônio apresenta três dimensões: a arquitetura em

si, o estado atual (preservação e conservação) e o entorno. Entendendo que a arquitetura

trata do bem pelo seu valor intrínseco; o entorno reflete o contexto mais amplo (como as

relações, as configurações e a significância da edificação) e a situação atual se refere às

intervenções do meio sobre as duas anteriores. A combinação dos três é complementada pelo

valor simbólico e a contextualização histórica para atribuir um nível de preservação às

edificações e uma ambiência ao entorno. Essa estrutura que busca a partir de aspectos gerais

contemplar uma leitura das particularidades locais possibilitou a caracterização do contexto e

do patrimônio arquitetônico urbano da cidade de forma a identificação de agrupamentos

semelhantes em cada aspecto (arquitetura, estado atual e entorno) e uma visão geral de cada

um.

Para a arquitetura, tomando como referencial a tipologia, a maioria das construções se

enquadrada nos tipos tradicionais, que, de certa forma, correspondem à configuração das

áreas do porto e central, representativa da organização arquitetônica da cidade em seu

período áureo, até aproximadamente a década de 1950. Na leitura das linguagens

arquitetônicas, adotaram-se algumas denominações de referência para interpretar as

diferentes propostas arquitetônicas significativas do período de maior desenvolvimento da

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cidade. No quadro abaixo estão indicadas as principais linguagens, suas características

gerais e sua relação com o contexto histórico cultural (Quadro 01).

Quadro 01: Resumo das linguagens arquitetônicas.

Fonte: Recomendações para diretrizes de intervenção das construções históricas, artísticas e culturais da área urbana de São Lourenço do Sul.

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De forma geral, as edificações apresentam características simplificadas, com a ornamentação

usualmente composta por apenas um tipo elemento. Assim, a estrutura compositiva se mostra

pouco complexa, com as fachadas apresentando basicamente a divisão horizontal elementar

(base, corpo e coroamento), com os itens do acabamento da fachada reforçando esta

marcação ou acrescentando uma divisão vertical. Quanto à volumetria chama a atenção à

adoção de coberturas em duas ou quatro águas, independente das soluções de implantação e

de organização tipológica e estilística. Tem destaque também a presença significativa de

coberturas em quatro águas, muitas vezes simultânea à presença de platibanda e com

inclinações consideráveis. Assim na leitura da arquitetura considerando a linguagem, a

tipologia e os elementos arquitetônicos foi possível a classificação das construções em três

grupos baseados na relação entre linguagem e contexto e, na sua aproximação a esta relação

como modelo representativo (Quadro 02).

Quadro 02: Classificação dos grupos arquitetônicos.

Fonte: Recomendações para diretrizes de intervenção das construções históricas, artísticas e culturais da área urbana de São Lourenço do Sul.

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Para o estado atual a classificação das construções nos graus de preservação e de

conservação adotou a terminologia do IPHAN, com pequenas adaptações na conservação.

No caso da preservação as construções podem ser integras, quando não apresentam

intervenções; pouco alteradas, quando possuem alterações superficiais e reversíveis (nas

esquadrias e revestimento); muito alteradas, com alterações que podem prejudicar a leitura

da tipologia ou linguagem (nos vãos e na cobertura) e por último, descaracterizadas,

apresentando alterações profundas na tipologia e linguagem (volumetria com acréscimo de

pavimentos e alteração na inclinação da cobertura). (Figura 03)

Figura 03: Graus de preservação.

Fonte: Elaborado pelas autoras, baseado na classificação do IPHAN.

Os exemplares são interpretados através da preservação global, ou seja, da edificação como

um todo e a partir de suas intervenções pontuais, em partes específicas, como a volumetria,

cobertura, vãos, ritmos, esquadrias, revestimentos, pintura etc. Pontualmente, as maiores

intervenções ocorrem nas esquadrias, principalmente com a substituição por modelos mais

contemporâneos e a colocação de portas de garagem. Também é significativa a presença de

elementos descaracterizantes, em especial grades e aparelhos de ar condicionado.

Na conservação as construções podem ser classificadas1 em bem conservadas, quando não

possuem problemas de manutenção, conservadas, quando apresentam problemas leves de

conservação (pintura ou reboco descascando e esquadrias quebradas), precárias, quando

apresentam situações que prejudicam a sua estabilidade (danos estruturais na cobertura e na

alvenaria) sem a perda da leitura das características da edificação e por último a ruína, onde

restam apenas vestígios da construção. As edificações de forma geral se encontram

conservadas, apresentando problemas basicamente na pintura e manutenção das

esquadrias. Algumas precárias e ruínas são encontradas na beira do Arroio São Lourenço,

nas proximidades do antigo porto. (Figura 04)

1 Foram realizadas adaptações na nomenclatura do IPHAN, “conservado”, substituindo o precário e o

termo precário transferido para substituir a expressão “em arruinamento”.

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Figura 04: Graus de conservação.

Fonte: Elaborado pelas autoras, baseado na classificação do IPHAN.

Quanto à questão do entorno a paisagem da área urbana de São Lourenço do Sul, levando

em conta o sítio físico e a morfologia urbana, configura-se com um sítio com um ambiente

relativamente homogêneo, com traçado extremamente reticulado e largura das vias pouco

diferenciadas. Essa concernente monotonia só é quebrada pela sinuosidade do arroio São

Lourenço e pela avenida de mesmo nome que o margeia. Contudo, em uma análise mais

apurada e relacionada ao contexto histórico cultural, é possível estabelecer algumas

ambiências especificas: a área de ocupação inicial, a área de transição e uma área de

ocupação recente. (Figura 05)

Figura 05: Mapa com as ambiências e as construções inventariadas.

Fonte: Mapa base da Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente, Prefeitura Municipal de São Lourenço do Sul. Editado pelas autoras.

A área de ocupação inicial corresponde basicamente à Zona de Ocupação Inicial (ZOI)

delimitada no Plano Diretor do Município (Lei n° 2839/2006). Historicamente é a região da

ocupação inicial, abarcando os locais das principais atividades comerciais e fabris que

propiciaram o desenvolvimento econômico entre os anos de 1870 e 1945. Configura-se em

um ambiente pitoresco, com o sítio físico bastante arborizado, marcado por um desnível mais

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acentuado na ligação com a área central e pela sinuosidade do Arroio São Lourenço, que

confere um traçado levemente irregular à conformação urbana próxima. Na arquitetura

apresenta predomínio de tipologias tradicionais, com implantação no alinhamento predial e

concentra os principais remanescentes dos exemplares arquitetônicos das linguagens

luso-brasileira e eclética.

A área de transição é historicamente a região da expansão da cidade para além do porto

formado pela área central e arredores. Inicialmente, configurava-se numa complementação as

atividades do porto, mas com o gradativo abandono da navegação lacustre, passa a assumir a

função de centro comercial. Configura-se em um ambiente urbanizado com um desenho

reticulado formando quarteirões regulares, com o sítio físico é levemente mais elevado que o

restante da cidade, mas praticamente plano. Na arquitetura, predominam as construções no

alinhamento e conta com um expressivo número de representantes da linguagem eclética,

protomoderna e neocolonial compondo de certa forma um ambiente misto.

E por último, a área de ocupação recente configura-se como um ambiente urbanizado com um

desenho reticulado também formado de quarteirões regulares e com o sítio físico

praticamente plano, com elevação semelhante ao centro comercial e contando com

significativa arborização. Na arquitetura que aparece a maior diferenciação onde predominam

formas de implantação diferenciadas, compondo faces recortadas e descontínuas e as de

linguagens mais antiga como a eclética e a protomoderna são raras, compondo um ambiente

de ocupação intensiva mais recente.

Como síntese, no cruzamento dos três aspectos (arquitetura, estado atual e entorno) aliado

ao contexto histórico cultural foi possível caracterizar o nível de preservação das construções

a partir das três classes indicadas na metodologia. Ao primeiro nível corresponderiam às

edificações relacionadas ao contexto histórico cultural formador da cidade que configurem um

modelo típico ou com fator histórico relevante, independente de sua localização ou

integridade. Ao segundo nível, as edificações exemplares ou com elementos característicos,

integras ou pouco alteradas localizadas na área de ocupação inicial ou na área de transição.

E, ao terceiro nível, as edificações alteradas localizadas na área de ocupação inicial ou de

transição ou edificações pouco alteradas localizadas na área de ocupação recente. (Figura

06)

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Figura 06: Exemplos de edificações em cada nível.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A necessidade de estabelecer níveis de preservação, configurar as ações de intervenção

(conservação e restauração) levaram a se organizar nas diretrizes também níveis de

intervenções para cada construção, em função da arquitetura, situação atual, entorno do

próprio nível de preservação. Estes níveis foram incorporados à legislação estabelecida

recentemente e conferem um ponto de destaque, para o instrumento e de avanço para a

ferramenta do inventário.

A criação de uma legislação voltada à proteção dos bens culturais de São Lourenço tem como

primeira tentativa a Lei n° 1731/1991 que institui a proteção ao patrimônio histórico, artístico e

cultural do município e indica o tombamento como instrumento de proteção, mas sem haver

ainda uma lista de bens e sítios a serem protegidos. Isso acaba levando a que em 2005 o

Decreto n° 2655 institua a obrigatoriedade de solicitação da autorização de reformas e

demolições, incluindo parecer do Conselho Municipal de Cultural, para edificações com mais

de 60 anos enquanto não houver nenhum bem protegido. A partir do trabalho de levantamento

iniciado em 2007, já destacado no texto, configura-se um corpo de bens, ainda que apenas

arquitetônicos a serem considerados patrimônio cultural, culminando com a Lei n° 3677/2016

que institui o inventário do patrimônio cultural arquitetônico. Esta lei, que usa o inventário

como instrumento, lista determinado número de edificações selecionadas pela comunidade

local e indica níveis de preservação, níveis de intervenção e penalidades ao não cumprimento

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da legislação. E é sobre os níveis de intervenção, incorporados na legislação através do

estudo proposto pelas diretrizes que cabe uma análise e caracterização.

Os níveis de intervenção foram configurados a partir de uma combinação entre os critérios de

interpretação (a arquitetura, o entorno, a situação atual e os níveis de preservação), com o

objetivo de tornar mensuráveis as informações capturadas na realidade local. Foi considerado

para cada um dos critérios um peso dentre da estrutura de análise e também para cada um a

classificação identificada nas diretrizes. Assim na arquitetura têm-se as três categorias, no

entorno as diferentes ambiências e sua importância no contexto local, no estado atual os

graus de preservação e conservação e por último nos níveis de preservação as suas

categorias. (Quadro 03)

ARQUITETURA (25%)

ENTORNO (25%)

SITUAÇÃO ATUAL NÍVEL DE

PRESERVAÇÃO (10%)

CONSERVAÇÃO (20%)

PRESERVAÇÃO (20%)

Exemplar (25%) Característico

(25%) Bem conservado

(20%) Integro (20%) Nível 1 (10%)

Elementos representativos (20%)

Transição (20%)

Conservado (15%)

Pouco Alterado (15%)

Nível 2 (7,5%)

Resquícios representativos (15%)

Recente (15%)

Precário /Ruína (10%)

Muito Alterado (10%)

Nível 3 (5%)

Quadro 03: Classificação dos critérios de interpretação para São Lourenço do Sul. Fonte: Elaborado pelas autoras

A arquitetura e o entorno representam metade do valor da obra, pela sua representatividade

como objeto em si e o ambiente, pois nestes influem as questões do contexto

histórico-cultural. A construção que sofreu modificações ao longo do tempo tem um peso

importante na tomada de decisões quanto a que tipo de ações de intervenção a serem

tomadas, mas podem perder relevância em função da arquitetura e do entorno em que estão

inseridos. Os níveis de preservação representam a inserção das características não

mensuráveis no processo. Esta estrutura de leitura levou à classificação das intervenções em

três grupos considerando a soma de cada critério para cada edificação. O Nível de

intervenção leve para as construções que somem entre 85 e 100%, intermediário, às

construções que somem entre 70 e 84% e profunda às construções que somem entre 55 e

69%. (Quadro 04)

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Nível de intervenção

Conservação Restauração Usos

Leve

(85 -100%)

Manutenção

Consolidação

Reparação

Volumetria: Anexos em volume separados.

Vãos e esquadrias: alteração de nas esquadrias (5%)

Elementos: 50 a 70% da fachada

Manutenção do uso respeitando os critérios da restauração.

Reciclagem respeitando os critérios da restauração.

Moderado

(70-84%)

Manutenção

Consolidação

Reparação

Volumetria: Anexos em volume separados.

Vãos e esquadrias: Alterações e substituições

de esquadrias (20%).

Elementos: 50 a 70% da fachada

Manutenção do uso respeitando os critérios da restauração.

Reciclagem respeitando os critérios da restauração.

Reabilitação respeitando os critérios da restauração.

Profundo

(55-69%)

Manutenção

Consolidação

Reparação

Volumetria: Anexos integrados ao volume. Alteração de cobertura.

Vãos e esquadrias: possibilidade de alteração

(40%).

Elementos: Granulometria

Manutenção do uso respeitando os critérios da restauração.

Reciclagem respeitando os critérios da restauração.

Reabilitação respeitando os critérios da restauração.

Quadro 04: Intervenções possíveis em cada nível. Fonte: Anexo II, Lei n°3677/2016.

Para cada um dos níveis de intervenção a legislação indica uma lista de ações de intervenção

possíveis de serem realizadas destacando três grupos básicos: as ações de conservação, as

de restauração e o uso. Assim conceitualmente a legislação considera a conservação e a

restauração como práticas distintas e que, portanto correspondem a ações em diferentes

estágios de intervenção. Para conservação são destacadas ações que não impliquem em

intervenção direta sobre a obra conforme a Carta de Restauro (MIP, 1972), como a

manutenção, reparação e consolidação. Para o restauro são indicadas ações pontuais e

gerais com o objetivo de manter a autenticidade da obra e o funcionamento para o beneficio

da comunidade. O uso ganha destaque como fator que diferencia a arquitetura das outras

formas de arte. Toda edificação tem uma função, portanto a manutenção, a alteração ou até

mesmo a recuperação desta implica diretamente na sua preservação, podendo auxiliar ou

prejudicar a sua conservação, para isso a manutenção, a reciclagem e a reabilitação do uso

foram consideradas ações de gerenciamento de uso.

Todas as edificações listadas na legislação estão classificadas a partir de cada um dos

aspectos, nos níveis de preservação e nos níveis de intervenção. De forma a trabalhar uma

reflexão metodológica do inventário como ferramenta e instrumento para a criação,

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embasamento e organização de critérios mais claros e precisos gestão. Buscando facilitar o

diálogo entre os diversos interessados na preservação, proprietários, gestores públicos,

conselhos e judiciário.

As reflexões sobre a legislação: possiblidades e limitações do instrumento

aplicado.

As consultorias das Universidades abordaram a questão da preservação como um todo,

considerando a paisagem na interpretação e nas recomendações constantes nas diretrizes

solicitadas. Porém o instrumento de preservação proposto pela Prefeitura Municipal de São

Lourenço do Sul traz consigo alguns contrassensos como separar a avaliação da intervenção

no que diz respeito à paisagem e ao destacar um número limitado de edificações do inventário

de reconhecimento. Para paisagem a lei considera o entorno como critério de caracterização

do bem arquitetônico, mas não estabelece uma proteção ou diretrizes de intervenção para a

paisagem deste bem. No caso dos bens selecionados da lista inicial foram considerados

aproximadamente 10% do total, mas sem considerar a representatividade no todo.

Parte da contradição é reflexo dessa legislação ser uma das primeiras medidas protetivas

mais efetiva no que se refere ao patrimônio arquitetônico. A premência na criação da lei levou

a que se considerassem os pontos de maior consenso da proposta, o que não impossibilitam

futuras complementações a lei. Além disso, ela apresenta alguns aspectos dignos de

destaque: o estabelecimento de níveis de intervenção e a possibilidade de inclusão de outras

construções. Os níveis de intervenção, tratados no texto, são um avanço para a qualificação

do bem e também para melhorar a comunicação entre os diversos agentes envolvidos no

processo. Pois procura estabelecer ações objetivas que consideram toda a reflexão teórica e

caracterização do objeto. A possibilidade de inclusão é amparada nos critérios de

interpretação, destacados no texto, que permitem a inserção e classificação dos bens nos

mesmos moldes dos constantes na lista.

Assim esta ação, ainda inicial e com algumas limitações, não impede que se pense a

preservação do sítio histórico como um todo, ela é mais um passo que levará a

questionamentos e posicionamento da população sobre sua identidade cultural, que soma à

cultura nacional a influência da miscigenação das culturas portuguesa e alemã na

contribuição da casa brasileira. Bem como a resposta à legislação virá pela compreensão e

assimilação, permitindo a continuidade da avaliação do inventário pelo poder público e dos

demais atores envolvidos.

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