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7/23/2019 A Linguagem Escravizada http://slidepdf.com/reader/full/a-linguagem-escravizada 1/15 20/10/2015 A Linguagem Escravizada http://www.espacoacademico.com.br/022/22cmaestri.htm 1/15  A Linguagem Escravizada  Por FLORENCE CARBONI* & MÁRIO MAESTRI** *Ítalo-belga, é doutora em Liguística pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, e professora do Curso de Letras da UPF, RS, Brasil; **Professor do Programa de Pós- Graduação em História da UPF, RS.   “A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe também para os outros homens, que existe, portanto, também primeiro para mim mesmo e, exatamente como consciência, a linguagem só aparece com a carência, com a necessidade dos intercâmbios entre os homens.” MARX & ENGELS.  A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 26. I. Língua, História e Poder  Afirma-se comumente que a linguagem verbal constitui fenômeno social. O próprio Curso de lingüística geral, que pretende apresentar a visão de Ferdinand de Saussure sobre a língua, reitera diversas vezes tal afirmação. Porém, o consenso entre os cientistas da linguagem interrompe-se quando da definição do alcance, prioridade e implicações do proposto caráter social da língua. Dizer que a “língua é um produto social” não impediu que, num claro paradoxo, a Lingüística estruturalista transformasse a linguagem humana em objeto abstrato ideal – langue –, se interessasse nela apenas enquanto sistema sincrônico homogêneo e rejeitasse suas manifestações concretas –  parole –, supostamente impossíveis de serem apreendidas cientificamente. [SAUSSURE: 1995, 17] Para Ferdinand de Saussure e os lingüistas estruturalistas, hegemônicos durante todo o século 20, os signos lingüísticos que conformam a língua – langue – são associações “ratificadas pelo consentimento coletivo” que têm sua sede no cérebro de cada um dos falantes dessa língua. [SAUSSURE: 1995, 23.] Portanto, apesar de ser “social por natureza”, o signo seria um ente arbitrário, escapando “sempre, em certa medida, à vontade individual ou social, estando nisso o seu caráter essencial”. [SAUSSURE: 1995, 25] Assim definido, o signo lingüístico surge como algo essencialmente estranho e autônomo à prática social. Língua, poder e sociedade  A superação desse paradoxo encontra-se na apreensão do sentido dado por Saussure e pelos estruturalistas ao adjetivo “social” . Para eles, o conceito tem um conteúdo vago, genérico, ideal, quase abstrato, que evoca a união harmoniosa de indivíduos. A língua seria uma espécie de consciência coletiva unificadora dos indivíduos de uma comunidade lingüística.  A teoria do signo elaborada por Ferdinand de Saussure e seus epígonos opera uma ocultação permanente dos fatos sociais e ideológicos. Em ruptura com ela, o lingüista soviético Mikhail Bakhtine e outros estudiosos interpretaram a linguagem humana como patrimônio comunitário em constante construção, que materializa conteúdos determinados socialmente no espaço e no tempo. [BAKHTINE: 1977.]  A crítica lingüística de Mikhail Bakhtine dissolveu as propostas sobre o caráter arbitrário e, portanto, neutro do signo lingüístico. Visão já corroída pelo fato das línguas, produtos de sociedades heterogêneas e em conflito, não serem nem patrimônios inteiramente comuns nem espaços neutros de comunicação, mas meios de interação verbal, atinentes às esferas do exercício do poder. Mikhail Bakhtine lembra que “todas as linguagens do plurilinguismo [...] são pontos de vista específicos do mundo, formas de sua interpretação verbal, perspectivas referenciais, semânticas e axiológicas.” Portanto, a “linguagem não é um meio neutro”, jamais. [BAKHTINE: 1999, 113-4.] Os signos lingüísticos forjam-se no contexto de práticas sócio-comunicativas sempre prenhes de determinações ideológicas, que se manifestam nos próprios signos. Nesse processo, os signos lingüísticos arrastam consigo as determinações e conteúdos de sua gênese e de seu devir, em geral

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A Linguagem Escravizada

Por FLORENCECARBONI* & MÁRIOMAESTRI***Ítalo-belga, é doutoraem Liguí st ica pelaUniversité Catholiquede Louvain, Bélgica,e professora doCurso de Letras daUPF, RS, Brasil;**Prof essor doPrograma de Pós-Graduação em

H istória da U PF, R S.

“A linguagem é tão antiga quanto a consciência– a linguagem é a consciência real, prática,que existe também para os outros homens,que existe, portanto, também primeiro paramim mesmo e, exatamente como consciência,a linguagem só aparece com a carência, com anecessidade dos intercâmbios entre oshomens.”

MARX & ENGELS. A ideologia alemã. SãoPaulo: Martins Fontes, 1989. p. 26.

I. Língua, História e Poder

Af irma-se comument e que a linguagemverbal const it ui f enômeno social. Opróprio Curso de lingüística geral, quepretende apresentar a visão de Ferdinandde Saussure sobre a língua, reiteradiversas vezes t al af irmação. Porém, o

consenso entre os cientistas da linguagem interrompe-se quando da definição do alcance, prioridade eimplicações do propost o carát er social da língua.

Dizer que a “língua é um produto social” não impediu que, num claro paradoxo, a Lingüísticaestruturalista transformasse a linguagem humana em objeto abstrato ideal – langue –, se int eressassenela apenas enquant o sist ema sincrônico homogêneo e rejeit asse suas manif est ações concret as –

parole –, supost ament e impossí v eis de serem apreendidas cient if icament e. [ SAUSSURE: 1995, 17]

Para Ferdinand de Saussure e os lingüist as est rut uralist as, hegemônicos durant e t odo o século 20, ossignos lingüí st icos que conf ormam a lí ngua – langue – são associações “rat if icadas peloconsent iment o colet ivo” que t êm sua sede no cérebro de cada um dos f alant es dessa lí ngua.[ SAUSSURE: 1995, 23. ]

Portanto, apesar de ser “social por natureza”, o signo seria um ente arbitrário, escapando “sempre, emcert a medida, à vont ade individual ou social, est ando nisso o seu carát er essencial”. [ SAUSSURE:1995, 25] Assim def inido, o signo lingüí st ico surge como algo essencialment e est ranho e aut ônomo àprát ica social.

Língua, poder e sociedade

A superação desse paradoxo encont ra-se na apreensão do sent ido dado por Saussure e pelosest rut uralist as ao adjet ivo “social” . Para eles, o conceit o tem um conteúdo vago, genérico, ideal,

quase abstrato, que evoca a união harmoniosa de indivíduos. A língua seria uma espécie deconsciência coletiva unif icadora dos indiví duos de uma comunidade lingüí st ica.

A t eoria do signo elaborada por Ferdinand de Saussure e seus epí gonos opera uma ocult açãopermanent e dos f at os sociais e ideológicos. Em rupt ura com ela, o lingüist a soviét ico Mikhail Bakht inee outros estudiosos interpretaram a linguagem humana como patrimônio comunitário em constanteconst rução, que mat erializa cont eúdos det erminados socialment e no espaço e no t empo. [ BAKHTI NE:1977.]

A crí t ic a lingüí st ica de Mikhail Bakht ine dissolveu as propost as sobre o carát er arbit rário e, port ant o,neut ro do signo lingüí st ico. Visão já corroí da pelo f at o das lí nguas, produt os de sociedadesheterogêneas e em conflito, não serem nem patrimônios inteiramente comuns nem espaços neutrosde comunicação, mas meios de int eração verbal, at inent es às esf eras do exercí cio do poder.

Mikhail Bakht ine lembra que “t odas as linguagens do plurilinguismo [ . . . ] são pont os de vist aespecí f icos do mundo, f ormas de sua int erpret ação verbal, perspect ivas ref erenciais, semânt icas eaxiológicas. ” Port ant o, a “linguagem não é um meio neut ro”, jamais. [ BAKHTI NE: 1999, 113-4. ]

Os signos lingüí st icos f orjam-se no cont ext o de prát icas sócio-comunicat ivas sempre prenhes dedet erminações ideológicas, que se manifestam nos próprios signos. Nesse processo, os signoslingüí st icos arrast am consigo as det erminações e cont eúdos de sua gênese e de seu devir, em geral

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mais ou menos desconhecidos dos locutores que deles se servem. Como não há linguagem neutra,não há igualmente linguagem única.

Continuidade e ruptura

“A categoria da linguagem única” – lembra Mikhail Bakht ine – “é express ão teórica dos proces soshist óricos de unif icação e de cent ralização lingüí st ica, f orças cent rí pet as da linguagem. A linguagemúnica não é ‘dada’, mas, posé en principe e, em t odos os moment os da vida da linguagem, ela seopõem ao plurilinguismo. ” [ BAKHTI NE: 1999, 95. ] No mesmo sent ido, no plano hist órico, Eric J .Hobsbawm lembra que “as linguagem nacionais est andardizadas, sejam escrit as, sejam f aladas, nãot eriam podido impor-se com est a especif icidade, ant es da imprensa, da alf abet ização em larga escalae, conseqüent e, da educação em massa. ” [ HOMBSBAW M: 1991, 12. ]

Mais do que f at o objet ivo e hist órico, a linguagem única é projet o social excludent e. “A cada épocahist órica da vida ideológica e verbal, cada geração, em cada uma de suas camadas sociais, possuisua linguagem; além disso, cada idade t em seu ‘f alar’, seu vocabulário, seu sist ema de acent uaçãopart icular, que, por sua vez, variam com a classe social, com o est abeleciment o escolar e segundoout ros f at ores de est rat if icação. ” [ BAKHTI NE: 1999, 112. ]

A linguagem é prof undament e det erminada pelo moment o hist órico, pelas cont radições sociais e pelosconf lit os ideológicos – de classe, de gerações, de gênero, de grupos ét nicos et c. Ela é produt oinconscient e, semi-conscient e e conscient e dessas cont radições. Sua f unção comunicat iva possuit ambém uma import ant e inst ância de int egração e de ocult ação das cont radições sociais.

Domínio da ilusão

O aparente caráter supra-histórico e supra-social do signo lingüístico surge em grande parte da relaçãoaparentemente unívoca exist ent e ent re seu aspect o sonoro e sua vert ent e conceit ual. Tant o hojecomo no moment o de sua est abilização, os signos lingüí st icos – por exemplo, homem, morrer e dor –expressariam cont eúdos essencialment e invariáveis, regist ro neutro da consciência subjet ivacomunitária de realidades objetivas dadas.

Por além das aparências, os signos lingüí st icos, prof undament e det erminados pelos cont eúdossociais que os engendraram, ao perseverarem at ravés da hist ória, assumem inevit avelment e novosconteúdos e determinações, permanecendo, entretanto, mais ou menos prenhes dos sentidosensejados pelas realidades sociais que os produziram, mesmo quando est as últ imas f oramdef init ivament e superadas.

A f unção da linguagem como inst ância subjet ivament e int egradora de comunidades locut orasobjetivamente em contradição constrói-se também sobre a suposta esterilidade-neutralidadeideológico-social de um signo lingüí st ico, aparent ement e sem gênese datada nem devir hist óricocondicionado , propost a pelas leit uras est rut uralist as da lí ngua.

O processo de compreensão da palavra do “outro” como “nossa” consubstancia a determinação denossa consciência pelos cont eúdos imanent es a ela. “[ . . . ] a palavra do out ro não é uma inf ormação,uma indicação, uma regra, um modelo, et c. , ela procura def inir as próprias bases do nossocomport ament o e de nossa at it ude diant e do mundo [ . . . ] . ”[ BAKHTI NE: 1999, 161. ]

Sexo e língua

A dupla esf era do signo lingüí st ico mat erializa-se em cont ext o sócio-hist órico det erminado. At ravésdos anos, sua inst ância signif icant e prossegue a jornada, assumindo e ampliando signif icados, ao

mesmo tempo que mantém conteúdos mais ou menos latentes, produzidos quando de sua origem econsolidação inicial. O signo lingüí st ico possuí espécie de pat rimônio genét ico que resist e ametamorfosear-se plenamente.

Em uma sociedade patriarcal, a língua assume aparência e conteúdo pat riarcal. Em A origem dafamília, da propriedade e do Estado, Friedrich Engels lembra que, antes mesmo da gênese dasociedade classista, a primeira forma de opressão que surgiu na face da terra foi a do homem sobre amulher. [ENGELS: 1981]

Apesar do crit ério sexual ser part e int egrant e de out ras variáveis sociais – class e, idade, prof issão,et c. –, a origem pat riarcal da maioria das civilizações humanas deixou marcas concret as, prof undas emultifacetadas na estrutura e no uso da grande maioria das línguas do mundo.

Na maioria das línguas, o gênero feminino dissolve-se por detrás do masculino, expressando

ideologicament e a ocult ação pat riarcal objet iva da mulher pelo homem. Assim, naturalizado no usocost umeiro, o conceit o lingüí st ico, at ravés do carát er aparent ement e abrangent e, sint ét ico e neut ro dogênero masculino, impõe sua essência social, ref orçando as relações de dominação pat riarcal domundo real.

A costela de Adão

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Causa de muit as dif iculdades e ambigüidades comunicat ivas, a absorção do gênero gramat icalf eminino pelo masculino não const it ui f enômeno lingüí st ico lógico, nat ural e universal, ainda queassim se apresent e para a consciência da imensa maioria dos locut ores. O carát er quase geral dessefenômeno é apenas um dos elementos mais visíveis da dominação geral e milenar das mulherespelos homens.

O próprio modo como os gramát icos e lexicógraf os explicam o f uncionament o das lí nguas const it uiprocesso ideológico que ref let e a ideologia dominant e sexist a. Para Joaquim Mat t oso Câmara Jr. , “omasculino e o singular se caract erizam pela ausência das marcas de f eminino e de plural,respect ivament e [ . . . ] ambos [ sendo] assinalados por um morf ema gramat ical zero”. [ CAMARA: 1970,81.]

Na Gênese [2, 21-25], a mulher formou-se do homem. “O Senhor Deus fez com que o homemadormecesse [ . . . ] . Durant e o sono, t irou-lhe uma das cost elas [ . . . ] . Da cost ela que t inha t irado [ . . . ] , oSenhor Deus fez a mulher e apresentou-a ao homem e este declarou: “[...] aqui está alguém feito dosmeus próprios ossos e da minha própria carne. Vai chamar-se mulher; porque foi formado do homem.”

Do mesmo modo que, no mit o bí blico, a mulher se f ez dos ossos e da carne do homem, na narrat ivagramat ical de Câmara Jr. , o masculino conf undiria-se com o radical, essência da lí ngua, que seflex ionaria – “curva-se” – para gerar o feminino, negando-se a este último a possibili dade de estar integrado no estado original da língua.

Simétricos e assimétricos

A lí ngua evolui mais lent ament e que o mundo social. Apesar da discriminação sexual est ar emprocesso de regressão relat iva nas sociedades mais desenvolvidas, a maioria das lí nguas cont inuaapresent ando as marcas lingüí st icas dessa opressão social e, assim o f azendo, f ort alecendo-ainexoravelmente.

Marx e Engels pensavam t ambém nas mulheres ao conclamarem os “Proletários de todo o mundo” aunirem-se. Se o chamament o f osse “Prolet árias e prolet ários de t odo o mundo, uni-vos! ”, cert ament eexerceria influência mais profunda, por mínima que fosse, na organização das mulheres e na lutacontra o sexismo no interior e no exterior do mundo do trabalho.

São marcas grit ant es do sexismo lingüí st ico as dissimet rias ent re os gêneros masculino e f eminino“que se escondem no sent ido de palavras aparent ement e simét ricas”. [ YAGUELLO: 141 et passim]Em muit as “grandes” lí nguas – é o caso do f rancês –, t ermos relat ivos à prof issão, f unções públicas,cargos, et c. não possuem f emininos. E quando possuem, em geral masculino e f eminino são

conot ados diversament e.Os grandes dicionários do português do Brasil ensinam que a costureira é a “mulher que costuraamadorí st ica ou prof issionalment e, especialment e roupas sociais”, enquant o que o cost ureiro é“aquele que atua profissionalmente na costura” ou “que dirige confecção de alta costura, criandoroupas e acessórios exclusivos e originais, expost os por modelos em desf iles, geralment eglamorosos, cobert os pela imprensa mundial”. A mesma dissimet ria envolve a dupla lexicalcozinheira-cozinheiro. [HOUAISS 2001: 855, 860]

Revolucionar a língua

Em muitos casos, a derivação de gênero feminino apresenta mais de uma forma, para contemplar quer o cargo ocupado por mulher quer a posição de esposa do homem que ocupa o dito cargo. Sãofreqüentes as ambigüidades provocadas pela dupla derivação genérica de algumas palavras

masculinas, t ais como embaixador ou imperador , por exemplo.

Como ocorre com outros fenômenos sociais e ideológicos, a sociedade organizada pode e deveintervir para suprimir e corrigir as desigualdades lingüísticas. Em 1994, o Conselho Superior da LínguaFrancesa da Comunidade Francesa da Bélgica – país trilingüe: francês, holandês e alemão –f eminizaram 1. 500 nomes de prof issão. [ CARBONI 1994. ]

A progressist a ref orma lingüí st ica não f oi acat ada pela Academia Francesa, da França, que aconsiderou “abusiva e chocant e”, sem encont rar cont radição em que se prossiga, no f rancês padrãodaquela nação, denominando-se essencialment e com t ermos masculinos prof issões crescent ement eocupadas por mulheres – cirurgião, escrit or, médico, prof essor, sociólogo, et c.

Const it uí t ambém vest í gio exemplar da cont radição social ent re homens e mulheres a f alsa simet riaent re os próprios conceit os de homem e de mulher. Em t odas as lí nguas românicas, o t ermo usado

para designar o ser humano de sexo masculino – vir em lat im – passou a ser ident if icado com ovocábulo que designava a espécie humana (homo).

Língua e ideologia

Nos dicionários, a palavra “homem”, no sent ido de “ser humano do sexo masculino”, cost uma ser

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conot ado com t raços humanos f ort ement e valorizados – coragem; det erminação; vigor sexual; f orçafísica e moral, etc. O termo raramente é associada à união com a mulher. Para tal, a língua dispõe deum outro signo: “marido”.

Ao cont rário, o t ermo “mulher” é f ort ement e polissêmico, servindo t ant o para ref erir-se ao ser biológico – no qual são cent rais as caract erí st ic as ligadas à reprodução da espécie –, quant o à “companheira

conjugal” ou “amante” do homem, assumindo parte de sua significação no contexto derelação/dependência ao seu termo oposto – o homem.

As conot ações habit uais e os campos semânt icos aos quais o vocábulo “mulher ” é associadorelacionam-se sobret udo com sexo, beleza f í sica e t raços humanos pouco valorizados – f raqueza,leviandade, etc. [HOUAISS:1975] Nesse sentido, a língua encobre o fato de que a mulher foisubmetida pelo homem devido à capacidade produtiva e reprodutiva, e não a uma pretensainferioridade natural. [MEILLASSOUX: 1976, 47-60.]

O homem faz sua história tendo consciência quando muito apenas parcial de como e porque a faz. Nomesmo sentido, ele produz a linguagem com um grau de consciência muito limitado de suaconst rução e dos sent idos de seu cont eúdo. Nos f at os, se a essência e a aparência dos f enômenossociais coincidissem, as ciências sociais seriam desnecessárias. Apenas at ravés da crí t ica racional ecient í f ica pode-se desvelar, mais e mais, os signif icados e os cont eúdos prof undos dos f enômenos dopassado e do presente.

Velho e Novo

No mesmo sentido, o mergulho na língua permite desvelar tendencialmente os segredos internos desua f ormação. I nst rument o de expressão da consciência, a lí ngua é essencial nas ciências sociais,em geral, e na historiografia, em partic ular. Na desc rição do mundo não importa apenas o que se diz,mas t ambém, e muit o, como se diz. Nos f at os, o próprio dizer encerra e det ermina, poderosament e, odit o.

Michel Löwy lembra que “o conjunt o do processo de conheciment o cient í f ico-social desde af ormulação das hipót eses at é a conclusão t eórica, passando pela observação, seleção e est udo dosf at os [ . . . ] é at ravessado, impregnado, ‘colorido’ por valores, opções ideológicas [ . . . ] e visões sociaisde mundo.” [LÖWY: 1994, 199, 203]

Nas ciências sociais, as opções ideológicas condicionam a escolha do objet o, a argument açãocient í f ica e o valor cognit ivo do discurso. E, como assinalado, lí ngua e ideologia nut rem-sereciprocamente, em um contexto em que a primeira representa o principal veículo da segunda, que, a

sua vez, se mat erializa na e se aliment a incessant ement e da lí ngua.Para além das cat egorias analí t icas criadas especif icament e para as necessidades cient í f icas, muit osdos conceit os essenciais que as ciências sociais em geral e a hist oriograf ia em part icular ut ilizam naanálise do mundo social const it uem signos lingüí st icos criados no processo hist órico que t êm out iveram ampla dif usão e circulação pré e não-cient í f icas.

O novo e o novo

Forjados em cont ext o comunicat ivo det erminado, os signos lingüí st icos possuem signif icados queref let em recort es da realidade. Port ant o, encont ram-se marcados, hist órica, social e ideologicament e,como já assinalado. É comum que esses signos regist rem arqueologicament e as relações de f orçaexist ent es nas sociedades que os geraram.

Referindo-se à interação dialética entre forma e conteúdo na arte, Ernest Fischer lembrava que osurgiment o do novo expressa as t endências e necessidades emergent es det erminadas pelasuperação do velho. Que o novo não se determina plenamente enquanto não supera, também, a velhaforma.

"O que chamamos de forma é o relativo estado de equilíbrio de uma determinada organização, numadeterminada disposição da matéria; é a expressão da tendência fundamental conservadora, daest abilização t emporária de condições mat eriais. ” “O cont eúdo incessant ement e se t ransf orma: àsvezes impercept ivelment e, às vezes em ação violent a. O cont eúdo ent ra em conf lit o com a f orma, f á-la explodir, e criar novas f ormas nas quais o cont eúdo t ransf ormado encont ra, por sua vez, a nova et emporária expressão est ável. " [ FI SCHER: 1967, 143. ]

Unidade dialética

No seu ensaio “O problema do conteúdo, do material e da forma na obra literária”, Mikhail Bakhtinechama a atenção para a unidade e oposição dialética entre forma e conteúdo, ao propor que “oconteúdo e a forma interpenetram-se e são inseparáveis ”, nem que seja porque a express ão docont eúdo dá-se at ravés da f orma que, por sua vez, objet iva e det ermina seu cont eúdo. [ BAKTHI NE:1999, 47.]

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Ao descrever novos ref erent es, com vocábulos prenhes de sons, vozes e det erminações passadas,as ciências sociais velam e consolidam, nem que seja parcialment e, as cont radições sociais quef undiram esses signos lingüí st icos, ao invés de desvelá-las, como é seu papel precí puo.

Com a ut ilização de signos lingüí st icos nascidos das t ensões sociais que se quer crit icar, prest a-set ribut o aos próprios cont eúdos crit icados. Na int eração dialét ica ent re cont eúdo e f orma, essência eaparência, signif icant e e signif icado, novos cont eúdos exigem novos ou mais precisos signos parasua explicit ação essencial.

2. O Novo e o Velho: O “Índio” e o “Americano”

As prát icas escravizadoras e colonialist as européias ensejaram visões class ist as preconceit uosasdas sociedades americanas. Mesmo quando dominou a colaboração relativa, não foi neutro o olhar e,portanto, a produção lingüística européia sobre o Novo Mundo e suas comunidades.

Os colonizadores lusit anos, espanhóis, f ranceses, et c. est avam inseridos em t radição cult uralclassist a, expansionist a e mercant ilist a que f azia tabula rasa das cult uras e civilizações com queent ravam em cont at o. Essa visão do mundo det erminou os signos lingüí st icos criados oudeterminados na exploração do Novo Mundo.

A palavra “í ndio” é exemplo paradigmát ico. I nicialment e, ela designou o habit ant e de t errit óriosconsiderados erroneament e como as cost as ext remo‑orient ais das Í ndias. Port ant o, nasceu comosubstantivo pátrio gerado pelos enganos e ilusões geográficas de Cristóvão Colombo [1451-1506] e deseus companheiros de t ravessia.

Os navegant es e colonizadores port ugueses jamais part iciparam dos desat inos geográf icos deColombo. Sabiam que o navegador genovês não chegara na América, mesmo quando ainda nãosabiam onde havia chegado. Portanto, inicialmente, não se serviram do termo “índio” para referirem-seaos habitantes do Novo Mundo. [ MAESTRI : 1995, 15-20; 35-40. ]

Índios do Brasil

Na sua célebre cart a ao soberano, escrit a no lit oral do at ual Brasil, o escrivão real Pero Vaz deCaminha ut iliza quase exclusivament e os t ermos “homens” [ 11] e “gent e” [ 5] para designar os t upi-guaranis com os quais se deparou. Ao se ref erir depreciat ivament e aos nat ivos, sugeriu serem “gent ebestial e de pouco saber”. Não havia ainda termo que integrasse ao homem americano adesqualif icação que começava a ser objet o. [ GARCI A: 1983, 263. ]

Seis décadas mais t arde, a consolidação da ocupação do lit oral do at ual Brasil e a produçãoaçucareira, baseadas sobretudo na exploração escravista da mão-de-obra americana, haviamensejado uma nova denominação do autóctone pelo colonizador. O novo denominativo desqualificavao primeiro e elevava o segundo.

O humanista, gramático e latinista Pero de Magalhães de Gândavo viveu no Brasil em inícios dos anos1560. Seu Tratado da Província do Brasil foi um esboço à História da província de Santa Cruz , tida comoa primeira obra de cunho historiográfico sobre o Brasil. Quando de sua possível estada nas capitanias daBahia, Ilhéus e São Vicente, dominava ainda indiscutivelmente a escravização dos americanos que, nosanos seguintes, seria superada, nas mais ricas capitanias açucareiras, pela feitorização de negro-africanos . [RODRIGUES:1979, 425-433.]

Sem vacilações, no Tratado da Província do Brasil , Gândavo refere-se ao americano como “índio”, por mais de quarenta vezes. Tão comum parece ter sido a denominação que, ao servir-se dela, por primeira

vez, não se sentiu obrigado a explicar a significação: “Não há pela terra adentro povoações deportugueses por causa dos índios que não no consentem [...] .” No mesmo livro, “gentio” surge, quatrovezes, como sinônimo de “índio”. [GÂNDAVO: 1979, 65.]

Escravos por natureza

Em geral, Gândavo descreve o “índio” como possuidor de essência quase inumana. “Finalmente quesão est es í ndios mui desumanos e cruéis não se movem a nenhuma piedade. Vivem como brut osanimais sem ordem nem consert o de homens. São mui desonest os e dados à sensualidade eent regam-se aos ví cios como se neles não houvera razão de humanos: [ . . . ] . Todos comem carnehumana [ . . . ] . ” [ GANDAVO: 1979, 208-7]

O mundo f eudal crist ão de ent ão ret omara as visões plat ônicas e arist ot élicas apologét icas de que aspret ensas qualidades sub-humanas de povos incivis – viver como animas; não t er governo; não t er razão; prat icar a ant ropof agia, et c. – just if icavam sua escravização, devido suas pret ensas essênciassub-humanas. Para Gândovo, o feitoramento do americano era questão que não merecia discussão ouexplicação. Como lembrava Marx, naturalização ideológica produzida pela fortaleza das relaçõessociais de produção dominant es “São f ormas de pensament o socialment e válidas, port ant o objet ivas,para as relações de produção deste modo de produção social hist oricamente determinado [...[ .”[ MARX: 1994, 108.

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Na sua f orma erudit a, o conceit o “escravo”, ut ilizado por Gândovo em f orma isolada onze vezes,descreve em f orma uní voca o americano escravizado. Porém, ao ut ilizar por primeira vez o t ermo, oaut or assinala que se t rat a de “escravos í ndios”. Na época, em Port ugal, já dominava a escravizaçãodo negro-africano. Gânavo enfatiza essa realidade, uma outra vez, ao referir-se ao “escravo índio daterra”. [GÂNDAVO: 1979, 71; 135.]

Seis vezes, o t ermo cat ivo é ut ilizado para assinalar os nat ivos aprisionados pelas comunidadest upinambás. Regist rando a expansão em curso da escravização de negro-af ricanos na Américalusitana, o texto refere-se aos “muitos escravos de Guiné” que o autor propunha serem “mais segurosdo que os índios da terra porque nunca fogem nem tem para onde”. Não há utilização da palavra“negro” como sinônimo de escravo. [GÂNDAVO: 1975, 133.]

Nome de gente

Gândavo designa os colonizadores europeus pelos nomes próprios – Tomé de Sousa, VascoFernandes Coutinho, etc. –; pela nacionalidade – português –; pelo status – pobre –; pela f unção –bispo, capit ão, governador, ouvidor geral, padre, et c. –; por conceit os gerais – “crist ão”, “gent e”,“homem”, “morador”, “pessoa” e “vizinhos”, etc. Uma pluralidade de nominações que enriquece aessência do colonizador referido.

O termo “homem” é utilizado doze vezes para designar o europeu e duas para nominar o americano.Uma, para realçar o gênero masculino, em oposição ao feminino – “Algumas índias se acham nestaspart es que juram e promet em cast idade e assim não casam nem conhecem homem [ . . . ] . ” –; a out ra,

segundo parece, devido a deslize humanizador do aut or – “[ . . . ] parece cousa est ranha ver dois ou t rêsmil homens nus duma part e e dout ra com grandes assobios [ . . . ] . ” [ GÂNDAVO: 1979, 215, 189. ]

Vimos que, ao contrário do conceito “homem”, “mulher” não descreve a espécie humana em geral,mas apenas os seres pert encent es ao gênero f eminino, socialment e subordinado. No t ext o, o conceit oaparece uma vez relacionado à mulher européia e seis outras, à americana. Na época, raras européiasviviam na cost a. [ GÂNDAVO: 1979, 67 et passim. ]

O conceito “gente” é utilizado dezoito vezes, sobretudo para designar o português, ainda que surja,aqui e ali, com sent ido indet erminado ou como sinônimo de “í ndio”. “Est es í ndios vivem muidescansados, não têm cuidado de cousa alguma se não de comer e beber e de matar gente [...].”“Gent e é est a mui at revida e que t eme muit o pouco a mort e [ . . . ] . ” [ GÂNDAVO: 1979, 217, 191. ]

Brasis gentis

O termo gentio originou-se possivelment e do lat imgenetîvus ou genitîvus – ‘da t erra’. No século 13, jásignif icava caract erí st icas cult urais desprest igiadas ou condenáveis pelos europeus, como a condiçãode “selvagem” ou “pagão”. [HOUAISS 2001] O termo gentio aparece quat ro vezes em Tratado daProvíncia do Brasil.

Os nat ivos nomeavam e dif erenciavam perf eit ament e as diversas comunidades do lit oral —t upinambás, t upiniquins, caet és, et c. Porém, a nomeação e dif erenciação eram t idas como at ribut odos ‘homem civilizado’. É radical a simplif icação et nográf ica das populações americanas realizada por Gândavo. [ NEVES, 1978: 45. ]

Para Gândavo, “índio” era sinônimo de tupinambá/tupi-guarani, apesar de jamais utilizar esses termos.O “aimoré” é a única comunidade singularizada. E isso porque é apresentada como singularmentedesqualif icada. “Vivem ent re os mat os como brut os animais [ . . . ] . ” “Est es aimorés são mui f eros ecruéis, não se pode com palavras encarecer a dureza desta gente.” [GÂNDAVO: 1979, 95, 101.]

A designação lusit ana dos habit ant es da cost a com t ermos genéricos europeus – brasis, índio,gentio, e t c . – regist rou o desprezo para com as comunidades aut óct ones, descrit as em geral comof ormadas por seres humanos incomplet os. Os t ermos que os colonizadores f undiram ou se serviramno processo colonial foram profundamente determinados pela ideologia colonizadora.

Ato de criação

No alvorecer da civilização, enquanto vivia ainda o processo de separação plena entre o sujeito e oobjeto, entre o ser e o conceito, o homem confundia o ato de nomear com o de criar. Herança dessepassado, desde a Ant igüidade, os moviment os de expansão colonial realizaram-se no cont ext o dereorganização t axionômica dos povos conquist ados.

A generalização lingüí st ica européia dissolvia as ricas e incômodas diversidades e individualidadesobjet ivas das comunidades americanas. Ou seja, reconst ruí a-se a realidade, at ravés da linguagem.

Essas prát icas ideológicas e lingüí st icas apoiaram e cont ribuí ram à lut a dos colonizadores pelocont role do lit oral brasí lico.

Na América, o direito de nomear levou os ingleses a batizarem o povo leni-lenapes – ‘povo do iní cio’ –como delawere, em honra de um herói britânico, Lord de La Ware. Da recriação das comunidadesamericanas, at ravés de sua denominação, os colonizadores deduziam direit os de posse sobre elas.[CALVET 1988: 81-82]

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Paradoxalment e, as cat egorias “í ndio”, “selví cola” e “selvagem” f oram comument e ret omadas pelahist oriograf ia e pelas ciências sociais, mesmo quando procuravam conf ront ar e dissolver explicit ament e as razões e narrat ivas que deram origem às conot ações negat ivas expressas nessest ermos.

Civis e incivis

No Brasil, com os anos, os designat ivos “brasil” e “gent io” caí ram em desuso, ult rapassados peloconceito “índio”, com o sentido de homem pré-moderno, atrasado, ingênuo e preguiçoso. Menoscomument e, “selvagem” e “selví cola” f oram t ambém ut ilizados para circunscrever o americano.

Nas últ imas décadas, devido a sua conot ação explicit ament e pejorat iva, o t ermo “selvagem” caiu emdesuso nas ciências s ociais c omo designat ivo do homem americano, permanecendo, ao cont rário, ouso das cat egorias “selví cola” e, sobret udo, “í ndio”.

“Selví cola” e “selvagem” são t ermos t ardios, gerados pelos habit ant es da “urbs” – civilizado – paradesignar os “habit ant es da selva” – não civilizados. Apesar de possuir diversa origem, o conceit o“índio” absorveu os cont eúdos de “selví cola” e “selvagem”, já que descreve, sobret udo, o homemvivendo na “floresta” ou na “selva”.

A cat egoria “í ndio” surgiu de equí voco geográf ico e homogeneizou a pluralidade e diversidade dascomunidades americanas. Ela é igualmente imprópria como designação de comunidades domésticasaldeãs – como as t upis – nas quais a hort icult ura possuí a carát er dominant e. [ MEI LLASSOUX, 1977:64.]

Índios europeus

A cat egoria “í ndio”, como vimos, int imament e associada à condição de “selvagem”, ressalt a asprát icas caçadoras, guerreiras e nômades do ser abstrato que sugere, em detrimento das atividadeshort icult oras, e port ant o t ransf ormadoras da nat ureza, que dominavam seres concret os ehist oricament e det erminados como os t upis, pert encent es a comunidades produt oras de aliment os.

O t ermo est abelece analogia aut omát ica e inconscient e ent re os at os humanos dos “í ndios” e aagressividade, o padrão de deslocament o e as prát icas caçadoras dos animais predadores. Tant o o“í ndio” como a “f era” são “selvagens”, ou seja, habit ant es das selvas. É igualment e comum que aosubst ant ivo “í ndio” agreguem-se os adjet ivos “f eroz” e “selvagem”.

Apresent ando‑se o “tupi” como “índio”, dilui‑se igualmente o fato de que ele era, sobretudo, um

morador e um produtor aldeão, portanto, um ser eminentemente social. Que, como acabamos deassinalar, o at o produt ivo conscient e era o principal mediador de suas relações com a nat ureza e comos seus semelhant es.

Ant es do iní cio de nossa era, comunidades germânicas assent aram essencialment e sua subsist ênciamaterial em uma horticultura itinerante muito semelhante à conhecida pelos tupinambás. [CHILDE,1964: 71.] No entanto, a historiografia européia escandalizaria-se se tratássemos as populaçõeshort icult oras britânicas, gaulesas, germânicas, etc. como “índios” europeus. Indignação que,paradoxalmente, não nasceria da evidente incorreção geográfica, mas da pretensa impropriedadeanalógica essencial.

Impropriedade conceitual

Com a categoria “índio” nivelou-se indiscriminadamente o homem americano: o aimoré, o tupi, o

mapuche, o inca, et c. Ou seja, o caçador ‑colet or, o hort icult or de plant ação‑enxert ia e, at é mesmo, oagricult or cerealí f ero que const ruiu Tenoxt it lan, de igual ní vel civilizat ório que as comunidades da

Ant igüidade medit errânea.

Como já assinalado, as ciências sociais — sobret udo a Ant ropologia —apropriaram ‑se de muitosconceit os f usionados em épocas coloniais e imperialist as, apesar das det erminações inerent es aosmesmos, para const ruir, com eles, part e do aparat o cat egorial ut ilizado no est udo das sociedadespré‑c l a s s i s t a s n ã o‑européias.

Devido aos seus signif icados e cont eúdos (des)valorat ivos, o uso de cat egorias como “t ribo” e “í ndio”compromet em os próprios cont eúdos essenciais das narrat ivas cont emporâneas sobre ascomunidades domést icas aldeãs americanas.

Nesse sent ido, por exemplo, ao designamos genericament e os habit ant es nat ivos das Américas como“americanos” e não com “í ndios”, ef et uamos import ant e deslocament o semânt ico. Com essadenominação, por um lado, superamos os cont eúdos subjet ivos desumanizadores incrust ados nacategoria “índio”. Por outro, enfatiz amos a unidade hist órica do gênero humano, ao diferenciar apenasgeograficamente o “americano” do “europeu”, do “asiát ico”, et c. E, f inalment e, remarcamos o f at ohist órico objet ivo, que as narrat ivas coloniais procurar enfraquecer , do ser referido ter sido os primeiro

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habitante da América.

3. O Novo e o Velho: o Negro e o Trabalhador Escravizado

Mais comument e, as classes escravist as coloniais aut o-denominavam-se de “amos”, “senhores” ou“propriet ários”. Por sua vez, os t rabalhadores escravizados eram chamados de “escravos”, “pret os”,“negros” e “cat ivos”. Essas denominações t êm sido ret omadas acrit icament e por prat icament e t oda ahistoriografia contemporânea.

Esse procediment o acrí t ico é compreensí vel no caso de hist oriadores com ví nculos ideológico-cult urais com as classes escravizadoras do passado. Ele não o é, def init ivament e, no de cient ist associais que procuram int erpret ar as sociedades escravist as a part ir de ót ica que permit a ult rapassar suas aparências f enomenais.

Como vimos, o processo de desvelament o essencial do passado compromet e-se nem que sejaparcialment e com a ut ilização de cat egorias prenhes de signif icações que se procura superar. Acompreensão crescent ement e essencial do passado passa t ambém pela art iculação do real at ravésdas palavras. [ CALVET 1988: 82]

O sentido profundo da palavra “escravo” [oikeus → servus →escravo] plasmou-se em t orno da visãoarist ot élica da escravidão. No século quart o ant es de nossa era, pensadores como Plat ão e

Arist ót eles abordaram a quest ão servil em suas obras, sem dedicar nenhum de seus escrit osespecif icament e à quest ão.

Um escravo é um escravo

Nos fatos, mesmo quando se referiram à instituição, não abordaram a questão do aspecto moral esoc ial da servidão plena. Numa época em que a escravi dão consolidara-se como uma das basesessenciais das relações de dominação, sua existência era compreendida como parte da ordem naturaldas coisas.

Ao explicar a incapacidade de Arist ót eles de apreender o valor das mercadorias como expressão dotrabalho humano, Marx lembrava que a incompreensão do grande pensador não se devia a lapsoindividual mas sim a barreiras sócio-hist óricas, na época int ransponí vel.

Marx assinalava que “a sociedade grega apoiava-se no trabalho servil e portanto tinha como basenatural a desigualdade dos homens e da força-trabalho”. Ass im sendo, as represent ações senhoriaisnat uralizavam as desigualdades sócio-objet ivas que sust ent avam a sociedade de classes. [ MARX:1994, 92.]

Que um senhor fosse um senhor, e um escravo, um escravo, eram realidades que não exigiam

discussão ou just if icat iva, no mundo grego escravist a. Porém, nos limit es det erminados pela hist ória,mesmo discut indo t angencialment e a escravidão, Plat ão e Arist ót eles inf luenciaram prof undament e opensamento feudal, moderno e contemporâneo sobre a escravidão.

Gregos e bárbaros

Plat ão [ c. 428- c. 347] olhava com maus olhos a servidão dos helenos e considerava normal a reduçãoplena do estrangeiro ao escravizador grego. Na sua república ideal, o liberto – infamado pelaesc ravidão – jamais s e tornaria um cidadão. Deveria, portanto, após algum tempo, abandonar aRepública. Para ele, a escravidão de um indivíduo ou de um povo devia-se a incapacidade de auto-governar-se, por f alt a de discerniment o int elect ual, cult ural e moral, qualidade que via como exclusivado mundo helênico. Porém, Plat ão jamais se colocou a quest ão da origem últ ima da escravidão.

Para Platão, “aqueles que são comprados ou obtidos em forma semelhante, devemosincont est avelment e chamar-lhes de escravos”. Ou seja, o escravo legalment e obt ido, era propriedadegarant ida pela lei. [ PLATÃO, Polit ico, 289 d.] Sobretudo, ele examina a relação do esc raviz ador com

o escravizado, que propõe como necessariamente autoritária. Na República, defende que o homem“educado perf eit ament e despreza seus escravos”. [ Plat ão, Político, I 13.12604-7.]

A t eoria plat ônica da superioridade da alma sobre o corpo já expressava a propost a da submissãonecessária do súdit o ao soberano, da mulher ao homem, do escravizado ao escravizador. A leit uraplat ônica da escravidão aliment ava-se da visão de mundo dos escravist as em uma época em que seexplorava cat ivos provenient es do mundo bárbaro e, em menor números, do mundo grego periférico.

Sobretudo na Política, Arist ót eles [ 384-322] ret omou, desenvolveu, aprof undou e superou as visõesplat ônicas da escravidão. Sua racionalização das visões dos escravizadores sobre o f enômeno t eriagrande impact o cult ural, ao ser recuperada e reelaborada, séculos mais t arde, pelos escravist as daI dade Média e dos Tempos Modernos. Ela f undou a visão ocident al da escravidão.

Escravo por natureza

Para Arist ót eles, os homens associam-se à procura de um bem. Nesse processo, a reunião dediversas f amí lias f ormava um burgo e a associação de diversos pequenos burgos, a cidade, ou seja, asociedade política. Tal associação era determinada pela própria natureza, que compelia a “todos oshomens a se associarem”, na procura do “verdadeiro f im das coisas”. Ou seja, a f elicidade.[ ARI STÓTELES: 1957, I 1]

Segundo o filósofo, a família, núcleo de base da ordem social, seria formada, quando “completa”, por

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homens liv res e por homens escraviz ados. Porém, para ele, a escravidão não nasceria da lei, nem aart e do senhor de mandar nos cat ivos seria uma “ciência”, como muit os haviam propost oant eriorment e. [ ARI STÓTELES: 1957, I I 1, 3]

Arist ót eles rompia com a t ese plat ônica da escravidão baseada na lei. Para ele, era inaceit ável queum homem f osse submet ido a out ro apenas pela f orça e que a submissão se mant ivesse apenas pelaforça, conforme a interpretação tradicional na Grécia Homérica e presente em sua época.Logicamente, um direito mantido pela força podia, moral e legalmente, ser questionado, através daf orça.

Arist ót eles ref orçou a ideologia escravis t a ao propor raí zes nat urais e, port ant o, genét ico-racial aoescravismo. Segundo ele, a nat ureza criara as coisas dif erent es, na procura da especialização, já queo melhor “instrumento” era o que serve para “apenas” um “mister”, e não para muitos. Assim, seres deessências diversas complementam-se, cada qual desempenhando a função para a qual era criado,pela nat ureza, na consecução de f ins que lhes eram comuns. Ou seja, a escravidão garant ia af elicidade do amo e do cat ivo. [ ARI STÓTELES: 1957, I 5]

Desigualdade Natural

Port ant o, a hierarquização social dos seres nascia e obedecia a nat ureza. Assim sendo, os seresnaturalmente mais elevados comandavam os natural e objetivamente menos perfeitos. “A autoridade ea obediência não só são cousas necessárias, mas ainda [ . . . ] út eis. Alguns seres, ao nascer, se vêemdest inados a obedecer; out ros, a mandar. ” [ ARI STÓTELES: 1957, I I 8]

Eram determinações da natureza que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo.“[ . . . ] e a t odos os animais é út il viver sob a dependência do homem. Os animais são machos ef êmeas. O macho é mais perf eit o e governa; a f êmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplicanat uralment e a t odos os homens. ” [ ARI STÓTELES: 1957, I I 1 2]

Refutando o direito da servidão nascida da força, em prol da servidão originada na inferioridade naturaldo ser escravizado, Arist ót eles consolidava poderosament e a ordem escravist a, negando o direit o àescravização do grego e a validade do bárbaro de lançar mão à violência para emancipar-se pelaf orça. O escravo que se rebelava contra o senhor rebelava-se contra a sua natureza e a ordem dasc o i s a s .

Arist ót eles racionalizava a escravidão, ao hierarquizar o desenvolviment o humano. “Há t ambém, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece.Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de

chef e; o que nada mais possui além da f orça f í sica para execut ar, deve, f orçosament e obedecer eservir – e, pois, o int eresse do senhor é o mesmo que o do escravo. ” [ ARI STÓTELES: 1957, I 4. ]

Signori si nasce

A inf erioridade dos “animais domést icos”, que serviriam com “sua f orça f í sic a” aos escravizadores nas“necessidades quot idianas”, mat erializaria-se nos seus próprios corpos de brut os. “Há na espéciehumana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem;são os homens nos quais o emprego da f orça f í sica é o melhor que deles se obt ém. [ . . . ] t aisindiví duos são dest inados à escravidão [ . . . ] . ” [ ARI STÓTELES: 1957, I I 13]

Para Arist ót eles, a nat ureza escrava, espelho da alma, expressaria-se na nat ureza f í sica do cat ivo: “Aprópria nat ureza parece querer dot ar de caract erí st icos dif erent es os corpos dos homens livres e dosescravos. Uns, com ef eit o, são f ort es para o t rabalho ao qual se dest inam; os out ros são

perf eit ament e inút eis para serviços semelhant es, mas são út eis para a vida civil, que assim se acharepartidas entre os trabalhos da guerra e os da paz.” [ARIS TÓTELES : 1957, I 12]

Coerente com sua naturalização da dominação, Aristóteles opunha-se a Platão, para quem a arte demandar no escravizado era uma “ciência do amo”, que devia ser aprendida. Para ele, essa arte erainata, já que o “instinto de mando” cons tit uía a própria essênc ia na natureza senhorial: “O poder doamo não se ensina; é t al como a nat ureza o f ez [ . . . ] . ”[ ARI STÓTELES: 1957, . I , 5; I I . 22]

A escravidão decorria da ordem das coisas. A nat ureza de homem livre proibia sua redução àescravidão, mesmo na guerra. Ao cont rário, a escravidão era o status ideal do bárbaro, em geral,naturalmente incapaz de governar-se. Era a natureza, e não a contingência, que definia o status socialdo homem que nasc ia com o destino de comandar ou ser comandado. [ARIS TÓTELES : 1957, I, 5,1-11]

Guerra justa

Nesse cont ext o geral, a submissão de homens inf eriores just if icava a própria violência, já queenquadrava a desordem social à ordem natural. “[...] porque a arte da caça é apenas uma das suaspartes, aquela da qual se serve o homem contra as feras ou contra outros homens que, destinadospor natureza a obedecer, recusam submeter-se; assim, a própria natureza desculpa a guerra.” Aviolência seria a reposição do equilíbrio natural ameaçado pela existências de homens vivendo em

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liberdade sem condições para t al. [ ARI ST TELES: 1957, I I I 8]

A alt a qualidade nat ural do grego e a baixa qualidade essencial do bárbaro, t ransmit idas dos pais aosf ilhos, reproduzia ad eternam as classes em quest ão. E quando a “nat ureza” não alcançava a impor essa reprodução de qualidades, por ela desejada, os raros casos desviant es podiam ser solucionadoscom uma emancipação do ser escravizado que rest abelecia a ordem escravist a, desequilibrada pelaexceção à regra.

Arist ót eles abria espaço para a cont radição singular ent re a nat ureza servil do homem inf erior e ostatus servil, no qual podia cair um homem superior, ao lembrar que “as palavras escravidão eescravo” eram “tomadas em sentido diferentes. Segundo a lei” haveria “escravo e homem reduzido àescravidão”. O primeiro, seriam cat ivo por natureza, ou seja, escravo; o segundo, seriam apenas umhomem escravizado, devido à derrot a na guerra. [ A RI STÓTELES: 1957, I I 16]

A int erpret ação arist ot élica da nat ureza “escrava”, que se apoiava na visão unit ária, mas nãoigualit ária, da espécie humana, assinalada por Marx, expressava a visão senhorial de sua época. Elaconsolidou-se na Idade Média e, sobretudo, nos Tempos Modernos, quando os escravizadoresdepararam-se com um homem/ mulher que ‘comprovava’ – na cor, f eições, cult ura, et c. – sua nat uralinf erior e dest ino à escravidão. Esse era, na acepção da palavra, “escravos” e não “homensescravizados”.

Linguagem senhorial

Não apenas nesse sent ido o t ermo “escravo” é pouco pert inent e como cat egoria cient í f ica, aodenominar um ser de essência servil. Em verdade, essa denominação, de origem essencialment esenhorial, era t ambém pouco usada pelos t rabalhadores escravizados que, at é onde nós é possí velperceber, no mundo luso-brasileiro, se aut o-denominavam, mais comument e, como cat ivos.

Mesmo que muit as das aut o-denominações dos t rabalhadores escravizados no Brasil est ejampossivelmene perdidas para sempre, uma pesquisa de suas formas de auto-nominação certamentedesvelará conceit os mais ou menos desconhecidos, como “pai”, “mãe”, “malungo”, et c. , que serviampara os objetos da escravidão resgat arem-se como sujeitos sociais. Na escravidão, o t ermo“pai/mãe” era ut ilizado comument e para apelidar as pessoas mais idosas, como é habit ual nassociedades domést icas af ricanas, onde esses t ermos ref erem-se aos próprios genit ores e a t odos desua geração. Os af ricanos embarcados na cost a angolana chamavam de malungo – camarada,companheiro, parceiro –, em geral, os companheiros de viagem e, em particular, aqueles junto aosquais vinham acorrentados.

Esse termo pode estar ligada ao quimbundu ulungu [embarcação]; ou ao quimbundu maluga[camarada]. Propõe-se também que derive da mescla de termos bantus: malunga [plural de lunga –‘homem’, ‘marido’] ; malungu [plural de lungu – ‘sof riment o’] emadungu – ‘pessoa desconhecida’.[HOUAISS 2001]

Palavra nova

A cat egoria “escravo” é de int rodução recent e nas lí nguas européias. Na Ant igüidade romana, ohomem e a mulher escravizados eram denominados de “servus”, “ancilla”, “mancipia”, “criat io”,“homines”. A primeira f orma era, de longe, a dominant e.

Na Europa, após a crise do Mundo Antigo, foi tão lenta a metamorfose do trabalhador escravizado emtrabalhador feudal que não se plasmou nova categoria para descrever a nova forma de subordinação.O produtor direto adstrito à gleba, gozando de direitos de uso sobre ela e de certos graus de liberdade

diante do explorador, prosseguiu sendo denominado de “servus”.

Também não houve modif icação no apelat ivo das classes exploradoras. Na Ant igüidade e nos t emposmedievais , elas se auto-denominavam sobretudo de “senhor” e de “amo”. “Senhor” originou-se de“senĭ or”, comparat ivo de “sĕnex” – ‘velho’. Originariament e, esse subst ant ivo opunha-se a “junĭ or” ecunhava a idéia de autoridade nascida da prevalência e antigüidade nas relações parentais oulinhageiras.

Vimos que Aristóteles propunha que o poder do pai, sobre os filhos, era um “poder real”, nascido daautoridade natural do “ser mais velho e mais perfeito” sobre o “ser incompleto e mais jovem”.[ ARI STÓTELES: 1957, iv, 7. ] Na Europa, at é o século XI , devido ao peso da lí ngua lat ina e do direit oromano, o trabalhador doméstico escravizado continuou sendo designado por nomes originados dasapelações lat inas, sobret udo de “servus”. O que não deixava de causar graves conf usões.

A força da necessidade

Sem grandes variações, os vocábulos de origem latina “amo” e “senhor” também geraram vocábuloscorrespondent es nas diversas lí nguas neolat inas, sem causar grandes conf usões semânt icas, já quesignif icavam, como no passado, posse, domí nio, propriedade, sobre homens e bens mat eriais. Emf ins do século 10, esse processo de t ransição realizara-se plenament e.

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No ano 1000, as relações escravistas, subordinadas, reforçaram-se, determinando a falta dedenominação que expressasse a subordinação plena do produtor, descrita no passado com acategoria “servus”, que agora referia o produtor feudal hegemônico, o “servo”. [DOCKÈS : 1979, 19.]

A chegada, em grande número, nas cidades crist ãs do Medit errâneo, de homens e mulheresescravizados, capt urados ou comprados em paí ses longí nquos, generalizou o uso do nome ét nicocomo t ermo genérico de designação da condição de cat ivo. Mesmo se, por muit o t empo, os t ermoslat inos cont inuassem sendo ut ilizados, perpet uando a ambigüidade ent re a servidão domést icamedieval e a servidão plena romana. [HEERS 1981: 16]

Sobret udo nas lí nguas ibéricas, o f at o de que, na maioria dos casos, o “escravo” f osse um prisioneirocapturado durante uma guerra, determinou que o termo latino “captiva-captivus” – “catiau” em latimvulgar – foi comumente usado para designar o homem-mulher sujeito à servidão plena. [HEERS 1981:24]

Escravos escravizados

Os et nônimos que serviam para designar esses cat ivos variavam em f unção da nacionalidade dospaíses europeus que praticavam a captura e a submissão de homens e mulheres através da guerra eda pirat aria. Nas pení nsulas ibérica, os muçulmanos escravizados eram chamados de “maurus” , nait álica, de “sarracenus” .

No entanto, foi uma outra apelação que se consolidou como sinônimo de “servus” na maioria daslí nguas. As guerras de Ot ão I , o Grande [ 912-973] , duque da Saxônia, inundaram a Europa – a I t áliasobret udo e mais especif icament e o Vênet o – com cat ivos t razidos da Esclavônia [ nos Balcãos, nasregiões da Sérvia], com a denominação étnica de sclavu(m).

Com os anos, o termo sclavu(m) – “escravo” – perdeu o sentido nacional original e, por antonomásia,passou a denominar todos os seres submetidos à servidão plena, denominado de “servus” na

Ant igüidade e na I dade Média.

Na Lusit ânia, o uso do designat ivo “escravo” f oi mais t ardio que em out ros paí ses da Europa. Para oscrist ãos ibéricos, o “mouro” era o habitante da Mauritânia, ou seja, das regiões do Saara Ocidental deonde chegaram grande parte das tropas que invadiram a Península Ibérica em 711. A seguir, oapelat ivo f oi est endida aos muçulmanos, originários ou não da Áf rica.

Uso tardio

Com a guerra da Reconquista, o homem e a mulher escravizados por “senhores” ibéricos foramdesignados de “mouro” e “moura”. Tamanha foi a dominância da feitorização do “mouro” na penínsulaibérica que o termo passou a descrever genericamente o ser reduzido ao cativeiro. Essa denominaçãooriginou o vocábulo “mourejar” ou “moirejar” – trabalhar como um “mouro”, isto é, como “cativo”.

Tamanha foi essa impregnação semântica que o muçulmano livre, alforriado ou cativo eramdesignados como “mouro livre”, “mouro forro” e “mouro cativo”. Como assinalado, sem adjetivo,“mouro” designava sobretudo o indivíduo sujeito ao cativeiro. Quanto aos primeiros negro-africanosdesembarcados em Portugal, eles foram denominados de “mouros negros”.

Se a impropriedade da designação dos negro-africanos como “mouros negros” era profunda quandoeles chegavam da Áf rica Negra não islamizada, ela crescia quando se convert iam ao crist ianismo.Ent ão, eles eram designados de “mouros”, apesar de serem crist ãos, sem jamais t erem sidomuçulmanos, e de não provirem da Mauritânia!

Em Portugal, no século 15, “negro” designava “de forma genérica, todos os tipos raciais de pelemorena” Originalmente, também os mouros foram designados de negros. Designativo que se explicapelo caráter normando – ou pretensamente normando – de boa parte da aristocracia feudal quepartici pou e se locuplet ou da Reconquist a. [TINHORÃO: 1997, 47 et seq]

Negros e pretos

Quando multidões de negro-africanos começaram a chegar a Portugal, eles foram denominados de“homens pretos” e “mulheres pretas” e, a seguir, simplesmente de “pretos” e “pretas” devido à cor “negra” mais intensa, em relação aos mouros. Como todos os “pretos” e “pretas” que chegavam aPort ugal eram cat ivos, oo designat ivo passou a descrever o af ro-descendent e escravizado.

Ao que t udo parece, at é mesmo na pení nsula it álica, onde o cat ivo provenient e da Áf rica negra

permaneceu uma exceção, os termos “negro”, “preto” ou “mouro preto” remetem genericamente àescravidão. Os af ricanos e af ro-descendent es não sujeit os ao t rabalho compulsório eram designadoscomo “preto livre” e “preto forro”. [TINHORÃO: 1997, 77 et seq] .

Versada em linguagem erudita, as Ordenações Afonsinas foram coligidas no reino de dom Afonso V[1446-1481], quando os negro-africanos escravizados começavam a sar abundantemente

Nota:

* A redação dopresente texto recebeu oapoio do bolsista PIBICCNPq 2000 CássioLuciano de Meneses

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desembarcados em Port ugal. Elas legislam sobre os “mouros” – muçulmanos liv res viv endo no Reino – e sobre os “mouros cat ivos ”. [ AFONSI NAS: 1984]

Em 1514 e 1525, a subst ancial ampliação das Ordenações Afonsinas resultou na copilação dasOrdenações Manuelinas que se expandiram com as Leis estravagantes, at é 1569. Nesses livros, numregistro da evolução ocorrida em Portual no respeito à dominância da mão-de-obra, o negro-africanoescravizado é denominado de “escravo” e a palavra “mouro” volta a ser sinônimo de muçulmano.[SAUNDERS: 1982, 158.].

Escravos em geral

Com a decrescente importância da escravidão moura, “negro” tornou-se crescentemente sinônimo det rabalhador escravizado. Assim sendo, nos primeiros anos após a ocupação t errit orial da Américalusit ana, os nat ivos americanos escravizados, apesar de sua cor, eram denominados de negros daterra. [ MONTEI RO: 1994. ]

Em Portugal, não houve abrupta ruptura de continuidade ou de qualidade entre o cativeiro do “mouro” edo “negro-africano”. Ao contrário, por longo tempo, mouro da península ibérica ou na África e negro-af ricanos conviveram como t rabalhadores escravizados.

Concluída em meados do século 16, a transição da dominância da escravidão moura para a negro-africana processou-se devido à maior oferta de negro-africanos, que começaram a ser trazidos desdeas cost as ocident ais da Áf rica, a part ir de 1444.

Secundariamente, a dominância do cativo “negro-africano” deveu-se à maior f acilidade da submissão

relativa. O “mouro” encont rava-se mais próximo dos seus “t errit órios nacionais”, para onde cost umavaf ugir, e possuí a complexo religioso-cult ural concorrent e ao luso-crist ão, no qual apoiava suaresist ência passiva e at iva. [ BRAGA: 1999. ]

A representação e o signo

Ao cont rário, o cat ivo negro-af ricano encont rava-se muit o longe de sua t erra nat al e possuí a ní velcivilizat ório relat ivament e menos desenvolvido. Mais ainda, sua cor dif erenciava-o f acilment e dolusit ano, f acilit ando seu cont role policial e, sobret udo, ensejava discursos just if icat ivos sobre suasubmissão apoiados no princí pio arist ot élico da inf erioridade objet iva e na diversidade f í s ica do“escravo” por natureza.

O primeiro registro escrito do termo “escravo” teria ocorrido nos anos 1450. Porém, por longo tempo,ele constituíria forma erudita. Quando de uso corrente, o termo “escravo” passaria a significar “apenas

posição servil [ plena] , sem qualquer conot ação religiosa” ou racial. Em oposição aos “escravos pret os”ou “negros”, os “escravos mouros” passaram t ambém a ser designados de “escravos brancos”.[ PI MENTEL: 20; SOUNDERS: 1994, 13. ]

Em 1781, lia-se em document o of icial lusit ano: “Eu El-Rei f aço saber aos que est e alvará virem quesendo-me present es os insult os, que no Brasil comet em os escravos fugidos, a que vulgarmentechamam calhambolas, passando a f azer o excesso de se junt arem em quilombos, e sendo precisoacudir com remédios que evitem esta desordem: [...].” [MACHADO FILHO: 1964, X. Destacamos.]

A análise hist órica e linguí st ica assinala que as cat egorias sociais, engendradas pelos dominadores,nascem prenhes de signif icados just if icat iv os que se aderem, em menor ou maior grau, aosrespect ivos signif icant es, mesmo quando já se perdeu a consciência de sua gênese, jamais neut ra epací f ica.

Manuel Querino

Ainda que marginal, é ant iga a consciência nas ciências sociais brasileiras da necessidade de superar o conteúdo historicamente determinado da linguagem categorial para descrever, desvelar e explicar osref erent es essenciais que det erminaram o nasciment o ou o condicionament o dos signos lingüí st icos.Manuel Querino foi um dos pioneiros dessa investigação.

Manuel Raimundo Querino nasceu em julho de 1851, na Bahia, morrendo aos 72 anos, em Salvador.Descendente de cativos, foi voluntário na Guerra do Paraguai, e, entre outras funções, desempenhou-se como pint or de paredes, est udant e, jornalist a, prof essor de desenho geomét rico, f uncionáriopúblico. [CASCUDO: SD, 547]

Em 1918, Manuel Querino, registrou no ensaio O colono preto como fator de civilização brasileira a

impossibilidade de apresent ar uma crí t ica essencial da realidade hist órica, servindo-se de cat egoriasgeradas no próprio processo de exploração que se procura superar teoricamente. [QUERINO: 1954,12.]

O colono preto como fator de civilização brasileira const it ui uma t ent at iva de sí nt ese sociológica, emdiversos pont os revolucionária, sobre o passado escravist a brasileiro. Nesse breve t rabalho, ManuelQuerino aponta o luso-brasileiro como um ser parasitário, desorganizado para o trabalho, vivendo às

Silva

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cust as do esf orço do af ricano escravizado.

À procura do conceito

Seu ensaio constitui um elogio permanente da qualidade laborativa e civilizadora do africano,apresentado como “herói do trabalho”, verdadeiro construtor da nacionalidade brasileira. Para o autor, a“confiança no trabalho próprio” teria sido igualmente o grande caminho seguido pelo cativo paralibertar-se, no seio da própria escravidão.

A análise do escravismo colonial brasileiro de Querino objet iva sobret udo cont ribuir ao resgat e do af ro-descendente de sua época, em geral, e do operário negro, em especial. O pensador negro voltou-sesobre o negro-af ricano escravizado com os olhos f ixos no seu descendent e, o af ro-brasileiro.

No ensaio de Querino, destaca-se a permanente procura, não estabilizada, de categorias descritivascapazes de desvelarem e circunscreverem a verdadeira essência do “negro” e do “escravo” enquantot rabalhadores produt ivos, criadores de riquezas, das quais part icipavam apenas muit o parcialment e.

Manuel Querino designa correta e repetidamente o habitante da África como “africano”, e não se referea ele anacrônica e ideologicament e como “negro”, conceit o que ut iliza apenas cinco vezes em t oda asua obra.

Solução verbal

Poucas décadas ant es, o t ermo “af ricano” era sinônimos habit ual de “escravo”. Para designar o

t rabalhador escravizado no Brasil, o aut or serve-se comument e da cat egoria “af ricano”, que ut iliza, aot odo, quat orze vezes. Ao cont rário, usa menos f reqüent ement e o conceit o “af ricano escravo” [ 3] e“af ricano escravizado” [ 1] .

Manuel Querino lança mão apenas cinco vezes à categoria “escravo”, em forma isolada, para referir-se ao trabalhador africano ou afro-descendente feitorizado. Porém, usa normalmente o termo para falar do “escravo” romano e grego. Em geral, para substituir o termo “escravo”, serve-se da categoria“colono negro” ou “colono preto” [4] e ainda “herói do trabalho” [3]. Usa também os termos “negro” ou“preto” [6].

“Colono preto” é solução pertinente para a antagonização que propõe do produtor direto africano e afro-descendente ao “parasita” explorador, o “colono branco”. Possui igual funcionalidade ao aproximar aotrabalho criador do negro-africano escravizado do colono europeu, objeto da retória apologética racistada época.

Porém, a categoria “colono preto” possui o handicap negat ivo de não expressar a f orma hist oricament edada da opressão que aquele produt or diret o sof ria – a escravização. E, assim o f azendo, permit e aconfusão entre o trabalhador escravizado de origem africana com o camponês negro livre, de antes ede após 1888.

Na África não há negros

Criativamente, Manuel Querino serve-se do particípio passado para descrever o homem e a mulher submet idos à escravidão – “af ricano escravizado” [ 3] ou “escravizado” [ 7] . Assim f azendo, dilui anatureza servil sugerida pela subst ant ização ou adjet ivação, como ocorre, parcialment e, nas f ormasaristotélicas “negro escravo” e “africano escravo” e, plenamente, no palavra “escravo”.

Manuel Querino compreendia que a utilização da categoria “negro” e “preto” enfatizava a cor “negra” e

“preta” da pele dos trabalhadores africanos e afro-descendentes feitorizados, ideológica e socialmentedesvalorizada, em relação a uma cor “branca”, ideológica e socialmente prestigiada.

Intuía certamente que a forma “negro” obliterava o fato de que, na África, até a chegada dos europeus,não havia “negros” e “pret os”, mas af ricanos de múlt iplas e variadas t radições cult urais. Os af ricanos,de múltiplas cores, tornaram-se “negros” apenas em relação aos europeus dominadores.

Ef et ivament e, os designat ivos “negro” e “pret o”, para designar o cat ivo, most ram-se t ambém poucof uncional ao enf at izarem caract erí st ic as ét nicas s uperf iciais do t rabalhador escravizado do passado.

Ainda que, desde meados do século 18, a af ro-descendência, ainda que dist ant e, f osse condiçãonecessária para que um homem ou uma mulher vivesem na escravidão, havia multidões de afro-descendent es livres e, at é mesmo, af ro-descendent es propriet ários de cat ivos.

Ser ou não ser

Nos f at os, as designações “negro” ou “escravo” dadas ao trabalhador hegemônico do escravismocolonial dilui sua essência últ ima, ou seja, a de ser um t rabalhador f eit orizado, dif icult ando acompreensão de que seu descendente sociológico atual é o trabalhador contemporâneo, nãoimportando a cor de sua pele ou sua origem nacional – japonesa, italiana, portuguesa, africana, etc.

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Vimos que a categoria “escravo” não é neutra, pelo sobretudo se comparada ao designativo “cativo”,segundo parece, auto-designação mais comum do trabalhador escravizado. Em verdade, as duascategorias pert encem a campos semânt icos diversos. Cativo expressa uma sit uação t ransit ória,social, nulament e nat ural. As pessoas estão cat ivas, não são cat ivas. Um ser est á no cat iveiroe,portanto, pode sair dele.

Parra que alguém seja cativado, deve haver o agente e o ato de aprisionamento, o “ cativador” . Acategoria estabelece relação de desigualdade, nascida de ato fortuito e singular. Sobretudo a fundaçãodas relações escravist as na violência arbit rária do escravizador est abelece a possibilidade e alegalidade ant agônicas de sua dissolução t ravés do at o de violência do escravizado.

Perdida a evocação et imológica original, o t ermo “escravo” ressemant izou-se, absorvendo o sent idoaristotélico originário dos termos grego e romano. Ou seja, de um ser submetido à servidão plenadevido exclusivament e a sua nat ureza diversa e inf erior. Uma nat uralização das relações escravist asque det ermina que a opressão do escravizado pelo escravizador, produt o de relações sociais ent rehomens, seja apreendida como nascida da natureza do próprio “escravo”, dissolvendo o “escravizador”como agent e at ivo do processo de escravização.

Sempre trabalho

Ainda que o t ermo “cat ivo” sugira, com mais propriedade, uma condição nascida da violência social,prossegue sendo categoria alienada e alienante, ao não expressar a natureza profunda da relação deprodução que enseja e justifica a própria dominação do homem pelo homem.

Ao enf at izar a violência do at o de subordinação plena, a cat egoria “cat ivo” apresent a uma rupt uraont ológica ent re essa e as f ormas post eriores de t rabalho. Sugere uma dif erença essencial ent re ocat ivo – sem direit os civis – e o t rabalhador livre – com direit os civis –, diluindo a unidade prof undaentre os diversos produtores de riquezas e de sobre-trabalho.

O cativo era essencialmente um produtor direto obrigado a entregar o produto de seu trabalho a umescravizador. O objet ivo essencial da relação social escravist a era a apropriação da f orça de t rabalhopara extração de renda escravista, forma historicamente determinada de produção de sobretrabalho,fenômeno que a interpretação aristotélica não podia elucidar, sem quebrar, no mundo dasrepresent ações, a pedra mest ra da sociedade escravist a.

O “escravo” era um “t rabalhador escravizado”. Essa explicit ação cat egorial da essência do t rabalhador escravizado desnuda igualmente a impertinência das formas apologéticas de auto-denominaçãout ilizadas pelas classes opressoras no passado e ret omadas pelas ciências sociais no present e.

Escravista & escravizador

As cat egorias “senhor” e “amo” possuem sentido genérico. Se é “senhor” ou “amo” no escravismopat riarcal, no escravismo pequeno-mercant il, no escravismo colonial, et c. Como vimos, essascat egorias possuem evocações et imológicas e sent idos semânt icos clarament e apologét icos.

O ensaio de Manuel Querino de superar a linguagem herdada da escravidão já assinalava a função deocult ação ou velament o das cont radições sociais permit idas pelas f ormas nominais e f lexõesvocabulares. “Escravizador” é a denominação que explicit a em f orma mais perf eit a a essência doexplorador de trabalhador escravizado na produção escravista.

Nesse sent ido, como os designat ivo “escravo” e “escravizado”, t ambém as f ormas “escravocrat a”,“escravist a” e “escravizador” possuem diversas insinuações semânt icas. At ravés do suf ixo “ist a”, o

nominat ivo “escravist a” descreve um ser f avorável à escravidão, como inst it uição, e não agent e at ivode consecução daquela ordem, através da submissão violenta e exploração do trabalhador escravizado.

A subst it uição de “negro”, “pret o”, “escravo” por “t rabalhador escraviz ado”, de “amo”, “senhor-de-escravos”, “escravist a”, et c. , por “escravizador”, rest abelece plenament e a conexão hist órica ent reaquela forma e as formas anteriores e posteriores do produtor direto e de seu explorador. Recompõe ofio de Ariadne que une, na diversidade, todas as f ormas de trabalho e de sua exploração.

4. Conclusão – Desescravizar a linguagem

O caráter social e historicamente determinado da palavra é a base do caráter contraditório, a principalfonte da riqueza e o motor da transformação da linguagem. Mikhail Bakhtine lembrava que o sucessodo romancist a depende precisament e de sua capacidade const ruir sua narrat iva at ravés da expressão

da complexa polifonia do mundo social que procura representar.

Est e amálgama das diversas vozes “no seio de um mesmo enunciado é um procediment o lit eráriointencional” que coloca na boca de cada locutor a linguagem que lhe corresponde, social ehist oricament e. Processo em c ont radição com a “hibridação” involunt ária e “inconscient e, “um dosprincipais modos de exist ência hist órica e do devir das lí nguas”. [ BAKHTI NE: 1999, 176. ]

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Na medida em que a lí ngua é a consciência real e prát ica do ser social, est e últ imo assume crescent econsciência de suas necessidades hist óricas at ravés t ambém at ravés do crescent e reconheciment oda det erminação hist órica e social de sua voz.

Reconheciment o que se dá, inevit avelment e, no processo de oposição e dif erenciação da voz do ser social em relação às vozes que lhe são essencialment e idênt icas, próximas, diversas e ant agônicas.Nesse cont ext o, a linguagem do outro deve surgir quando se fala ou se faz o outro falar, e nãoat ravés de uma locução que apenas consideramos nossa .

O hoje e o ontem

O confronto lingüístico realiza-se no plano do presente e do passado. “O diálogo das linguagens não éapenas aquele das f orças sociais na est at icidade de sua coexist ência, mas t ambém o diálogo dost empos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce: nest e plano, a coexist ência e aevolução são f undidas, junt as, na unidade concret a e indissolúvel de uma diversidade cont radit ória emlinguagens diversas. ” [ BAKHTI NE: 1999, 176. ]

A superação na esf era lingüí st ica desse “hibridismo” inconscient e, desse “obscuro e aut omát icoamálgama de línguas” não é um momento superior, cronologicamente conclusivo que concretiza aess ência do fenômeno, após sua penetração, na fundação do novo conceit o. A palavra não se fundeapós o conceit o.

A superação da linguagem escravizada const it ui processo solidário à liberação do próprio conceit o, jáque o processo de crí t ica do mundo social e nat ural dá-se at ravés de ampliação da consciênciaapenas possí v el de ser organizada, processada e expressada lingüist icament e.

O processo de descrição de um mundo social e nat ural que se desencant a diant e da razão crí t icaexige correspondente e contemporâneo processo de desencantamento do caráter aparentementenatural da língua que funde os conteúdos superiores obtidos em linguagem que se superet endencialment e da escravidão impost a pelos preconceit os nascidos e gerados pela sociedade dec l a s s e s .

FLORENCE CARBONI & MÁRIO MAESTRI

QUERINO, Manuel. Oafricano comocolonizador. Salvador:Progresso, 1954.

QUERINO, Manuel. Oafricano comocolonizador. Salvador:Progresso, 1954. p. 12.

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