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 Queria começar por agradecer o convite para estar hoje aqui com vocês. E dizer que espero que seja possível  transformar esse encontro num bate-papo, numa conversa, ou seja, eu gostaria que vocês colocassem questões. Quando me apresentaram esse convite, eu fui seduzido primeiro pelo título, Fronteira s em movimento, em primeiro lugar pelas Fronteiras , depois pelo movimento, e depois pelas Fronteiras em movimento, que acho bonito. “Fronteiras” foi sempre algo que me fascinou. Eu tenho, inclusive, um livro chamado Fronteiras perdidas. “Fronteiras perdidas” já é uma expressão muito curiosa, que existe em Angola para designar as pessoas de raça indenida (Não sei se em Moçambique também é assim. Acho que não existe essa expressão.). Ou seja, alguém que tem descendência europeia passa por negro, alguém que  tem descendência africana passa por branco, são fronteiras perdidas. A mim interessa esse espaço da ambiguidade, esse misto na literatura, interessa a minha vida, o meu cotidiano. Daí o título desse livro que foi também um título de uma crônica que mantive durante muito tempo num jornal português. E depois me interessa o tema especíco dessa mesa, que, não citando as fronteiras, passa por elas também, que  tem a ver com a violência e com o silêncio. Eu venho de um  território de conito. A vida inteira, eu cresci com a guerra como um pano de fundo. Nasci em 1960, e a guerra em  Angola, a guerra anticolonial, a guerra contra o colonialismo português, começou nessa altura. As minhas memórias de infância são sempre também memórias de guerra, de  violências. As primei ras memór ias que eu tenho são memórias de soldados... O meu pai dava aulas aos trabalhadores ao longo da linha de trem, e eu viajava muito com ele. Nós passávamos as férias, eu e a minha irmã, viajando com meu pai. A memória que eu tenho desse tempo é dos soldados ao longo da linha, do comboio sofrendo descarrilamentos e isso sempre. Essa  guerra, felizmente, terminou com a Revolução de Abril, em Portugal, lá em 1974. Mas pouco depois começou a guerra civil em Angola, uma guerra que só terminou há dez anos. Então, realmente é um país que sofreu longos anos de conito, e essa A li teratura angolana e a representação da guerra pela independência, da guerra civil e da violência ur bana José Eduardo Agualusa 1 1 Escritor ang olano, membro da União d os Escritores Angolanos. Seus livros estão traduzidos para mais de vinte idiomas. Entre eles, destacam-se os premiados: Nação crioula  (Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. 160 p. Romance. Grande Prémio de Literatura RTP.), Fronteiras perdidas, contos para viajar  (Lisboa: Dom Quixote, 1999. 118 p. Contos. Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco da Associação Portuguesa de Escritores.) e O vendedor de passados  (Rio de Janeiro: Gryphus, 2004. 231 p. Romance. Prêmio de Ficção Estrangeira do The Independent .). Outras obras publicadas no Brasil são: O ano em que Zumbi tomou o Rio  (Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. 295 p. Romance.),  As mulheres de meu pai  (Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007. 552 p. Romance.) e Um estranho em Goa  (Rio de Janeiro: Gryphus, 2010. 159 p. Romance.).

A Literatura Angolana e a Representação Da Guerra Pela Independência, Da Guerra Civil e Da Violência Urbana

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  • Queria comear por agradecer o convite para estar hoje aqui com vocs. E dizer que espero que seja possvel transformar esse encontro num bate-papo, numa conversa, ou seja, eu gostaria que vocs colocassem questes. Quando me apresentaram esse convite, eu fui seduzido primeiro pelo ttulo, Fronteiras em movimento, em primeiro lugar pelas Fronteiras, depois pelo movimento, e depois pelas Fronteiras em movimento, que acho bonito. Fronteiras foi sempre algo que me fascinou. Eu tenho, inclusive, um livro chamado Fronteiras perdidas. Fronteiras perdidas j uma expresso muito curiosa, que existe em Angola para designar as pessoas de raa indefinida (No sei se em Moambique tambm assim. Acho que no existe essa expresso.). Ou seja, algum que tem descendncia europeia passa por negro, algum que tem descendncia africana passa por branco, so fronteiras perdidas. A mim interessa esse espao da ambiguidade, esse misto na literatura, interessa a minha vida, o meu cotidiano. Da o ttulo desse livro que foi tambm um ttulo de uma crnica que mantive durante muito tempo num jornal portugus.

    E depois me interessa o tema especfico dessa mesa, que, no citando as fronteiras, passa por elas tambm, que tem a ver com a violncia e com o silncio. Eu venho de um territrio de conflito. A vida inteira, eu cresci com a guerra como um pano de fundo. Nasci em 1960, e a guerra em Angola, a guerra anticolonial, a guerra contra o colonialismo portugus, comeou nessa altura. As minhas memrias de infncia so sempre tambm memrias de guerra, de violncias. As primeiras memrias que eu tenho so memrias de soldados... O meu pai dava aulas aos trabalhadores ao longo da linha de trem, e eu viajava muito com ele. Ns passvamos as frias, eu e a minha irm, viajando com meu pai. A memria que eu tenho desse tempo dos soldados ao longo da linha, do comboio sofrendo descarrilamentos e isso sempre. Essa guerra, felizmente, terminou com a Revoluo de Abril, em Portugal, l em 1974. Mas pouco depois comeou a guerra civil em Angola, uma guerra que s terminou h dez anos. Ento, realmente um pas que sofreu longos anos de conflito, e essa

    A literatura angolana e a representao

    da guerra pela independncia, da guerra civil e da violncia urbana

    Jos Eduardo Agualusa1

    1 Escritor angolano, membro da Unio dos Escritores Angolanos. Seus livros esto traduzidos para mais de vinte idiomas. Entre eles, destacam-se os premiados: Nao crioula (Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. 160 p. Romance. Grande Prmio de Literatura RTP.), Fronteiras perdidas, contos para viajar (Lisboa: Dom Quixote, 1999. 118 p. Contos. Grande Prmio de Conto Camilo Castelo Branco da Associao Portuguesa de Escritores.) e O vendedor de passados (Rio de Janeiro: Gryphus, 2004. 231 p. Romance. Prmio de Fico Estrangeira do The Independent.). Outras obras publicadas no Brasil so: O ano em que Zumbi tomou o Rio (Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. 295 p. Romance.), As mulheres de meu pai (Rio de Janeiro: Lngua Geral, 2007. 552 p. Romance.) e Um estranho em Goa (Rio de Janeiro: Gryphus, 2010. 159 p. Romance.).

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    guerra est hoje dentro das pessoas, continua a habitar as pessoas. O pas, nos ltimos dez anos, sofreu uma reconstruo grande, mas ainda h fragmentos dessa guerra visveis. Mais do que tudo, so as pessoas que no percebem que tem essa destruio dentro de si.

    Eu creio que h duas maneiras de lidar com isso, duas estratgias. H uma estratgia de esquecimento e h uma estratgia de recordao, de trabalhar a lembrana, a memria. O Mia Couto, escritor moambicano, um grande amigo e uma pessoa muito importante para minha formao, inclusive como escritor, tem defendido o esquecimento. Inclusive, faz isso nos livros dele. Essencialmente, o que ele diz que o trauma to pesado, to profundo que a estratgia das pessoas esquecer, fingir que no houve, e a partir dali reconstruir. Eu acabo de publicar um livro em Portugal, que ser publicado aqui em novembro, que se chama Teoria geral do esquecimento (Lisboa: Dom Quixote, 2012. 248 p. Romance.). Ele foi apresentado juntamente com o livro do Mia, o Mia apresentou este e eu apresentei o do Mia, e que uma reflexo tambm sobre isso. um livro no qual os personagens pretendem ser esquecidos como forma de recriar uma identidade algo que j estava um pouco presente em um outro livro que eu escrevi, O vendedor de passados (Lisboa: Dom Quixote; Rio de Janeiro: Gryphus, 2004. 231 p. Romance.) , ou personagens que foram esquecidos. Contudo, eu no defendo o esquecimento. Eu defendo o contrrio, defendo que necessrio trabalhar a memria, que necessrio que as pessoas se juntem, e recordem, e chorem juntas, e faam juntas o seu luto.

    um pouco isso que se fez na frica do Sul com os tribunais, com as comisses de verdade e reconciliao. Essas comisses de verdade e reconciliao, para quem no esteja enfim muito familiarizado, embora creio que aqui quase toda a gente est, pretenderam e, creio, com muito sucesso refletir sobre os anos do Apartheid, sobre a violncia que foi o Apartheid, mas fizeram de uma forma muito particular porque nesses comits toda gente era ouvida. Ou seja, as violncias de todos os lados eram escutadas e trabalhadas, e as pessoas tinham a possibilidade de ir a essas comisses, quem praticou a violncia, pedir perdo... No justificar, mas de apresentar a sua verso e pedir perdo. Creio que muitas vezes o que nos falta nos nossos pases. Eu no acredito que seja possvel reconstruir um pas, num quadro democrtico, num quadro mais de liberdade completa, sem primeiro fazer esse luto, sem que primeiro as pessoas tenham essa possibilidade de chorarem em conjunto, de fazer esse luto em conjunto. O que me parece que s vezes esse esquecimento, aquilo que parece ser um esquecimento um falso esquecimento, as mgoas continuam dentro das pessoas e explodem, mais tarde ou mais cedo acabam por explodir. s vezes, quando no estamos espera que acontea, essa exploso acontece.

    Ento, para dizer isso, para dizer que no. Sendo muito amigo do Mia, temos felizmente muitos pontos de discrdia, o que timo porque podemos conversar e discutir, e temos temas que no estamos de acordo. E um dos nossos desacordos esse. No, eu realmente no acredito nas virtudes do esquecimento. Ao contrrio, eu penso que o importante que as pessoas recordem e acho que a

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    literatura tem tambm esse papel. Em pases como Angola e Moambique, que so pases ainda por cima onde a esmagadora maioria das pessoas no tem a possibilidade de fazer ouvir a sua voz, onde no h mecanismos que permitam a generalidade da populao de fazer ouvir a sua voz, acho que o escritor ainda tem esse papel, a literatura ainda deve ser isso, a literatura deve ser um lugar, um espao, um territrio de debate, um territrio de pensamento, um territrio de ideias... E deve tentar fazer isso. Infelizmente, nos nossos pases, a guerra ainda no tema central. s vezes , mas no de forma evidente na literatura. Eu acho que ainda h muito a fazer nesse aspecto. Todos ns precisamos fazer esse esforo conjunto de refletir sobre a violncia que foram os anos da guerra.

    Mais uma vez, isso provou, agora para ir questo das fronteiras, tem tudo a ver tambm com fronteiras, fronteiras que no so necessariamente fronteiras polticas, so muitas vezes fronteiras imaginrias, mais imaginrias ainda que as fronteiras polticas. Para fazer uma guerra, necessrio quase sempre diabolizar o outro. Primeiro, comeas por retirar o outro do direto nacionalidade, no caso da Angola isso fez, no caso de Moambique imagino que tambm isso tenha sido feito. Na maior parte das guerras civis, a primeira coisa tentar duvidar da nacionalidade do outro: Ele no to angolano como ns., Ele no to moambicano como ns.. E depois chega um momento em que se comea a duvidar da humanidade do outro: Ele no verdadeiramente humano.... A literatura tambm deve fazer isso, deve mostrar que ns todos somos muito mais iguais uns aos outros do que essas fronteiras nos pretenderam fazer crer.

    Eu vou ser muito breve. Pensei em terminar lendo um conto que tem a ver com fronteiras, que tem a ver com isso. Depois teria aberta s vossas questes e poderia tentar aprofundar uma ou outra questo. Ento, o conto que eu queria ler um divertimento, mas vocs vo perceber que tem a ver com isso. Chama-se:

    A ltima fronteiraO polcia de fronteiras no compreendeu logo que tinha morrido. Aconteceu durante o sono. Ele

    sonhava intensamente com qualquer coisa (Camila Pitanga, ovos moles de Aveiro, um veleiro deslizando sobre um mar de esmeralda, pouco importa) quando, de sbito, deu por si numa fila de gente espera para passar uma fronteira. Sups sem susto que fosse ainda o mesmo sonho num desdobramento imprevisto. A morte, afinal, como os sonhos, mas em maior.

    Ao polcia de fronteiras pareceu-lhe natural sonhar com fronteiras. Filas de gente. Passaportes. Carimbos. Um sujeito curvo postado numa guarita. Procurou o passaporte. No o trazia consigo. Isso provocou nele uma certa angstia.

    apenas um sonho., murmurou para com os seus botes. Mau, tambm no tinha botes. Estava nu, ele e a restante escumalha parada na fila. Reparou a seguir que o sujeito na guarita trazia presas

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    s costas um enorme par de asas muito brancas. Todo ele, alis, era de um branco implausvel. Um anjo inato, como os das gravuras piedosas da sua velha tia.

    Que porra de sonho!, pensou, e logo se arrependeu do palavro, ao ver que o anjo erguia o liso rosto transparente, e o fixava franzindo o sobrolho. Tambm a escumalha, sua frente, o olhava num firme rancor, velhos e velhas, e um ou outro jovem com muito mau aspecto.

    Havia de ser eu na guarita, voltou a pensar: e estes tipos no se safavam. Repatriava-os a todos..

    Finalmente chegou a sua vez.

    Os seus sentimentos, por favor..., requereu o anjo, num olhar distrado, as costas dobradas ao peso das asas.

    No sentimentos, imbecil! do-cu-men-tos....

    O polcia de fronteiras irritava-se com facilidade. O problema no era dele, como insistia em explicar aos chefes, de cada vez que algum viajante, ofendido, reclamava, o problema era do fgado. Em criana contrara hepatite por duas vezes e o fgado nunca mais recuperara. Inclusive nos ltimos dias vinha passando muito mal. Um cansao invencvel, o branco dos olhos no to branco assim, como uma camisa encardida, a pele igualmente baa e amarela, a urina espessa. Ah! E aquela irritabilidade que lhe trazia tantos dissabores.

    O anjo sacudiu as asas num rpido aoite, o que nele devia ser um sinal de extremo desagrado.

    Perdo?.

    Disse aquilo no esplendoroso idioma de que os anjos se servem para comunicar com os gentios, mas foi como se o tivesse dito, em ingls, um aristocrata ingls da mais alta estirpe:

    I beg your pardon?!.

    Com mais esplendor, portanto, e ainda mais panache. O polcia de fronteiras estremeceu:

    Desculpe, foi sem inteno. O meu fgado, sabe?, sofro do fgado..

    Sofria., retorquiu o anjo impassvel. Agora no sofre mais..

    O polcia de fronteiras voltou a estremecer.

    Mau, mas que porra de sonho. E escusa voc de franzir o sobrolho, senhor anjo de guarda, e vocs tambm, maldita escumalha, no me assusta o vosso horror. Que porra de sonho, sim, que porra de sonho! Quero acordar e sair daqui.. Fechou os olhos e beliscou-se, com o polegar e o indicador da

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    mo direita, no brao esquerdo. Quando abriu os olhos o anjo ainda estava diante dele, mas parecia agora mais concreto, mais verosmil, do que alguma vez lhe parecera um polcia de fronteiras em qualquer pas.

    E ento, posso ver os seus sentimentos?.

    O polcia de fronteiras sentiu uma imensa vontade de chorar. Percebeu, com violenta lucidez, que no acordaria mais e veio-lhe uma saudade funda das longas filas no aeroporto, do cheiro a suor, do medo no rosto dos caipiras, da pancada seca dos carimbos nos passaportes.

    um bom sistema o vosso., disse ao anjo. No o disse com ironia e nem tampouco para lisonjear o outro. Estava a ser sincero: um bom sistema, isto de os passageiros se apresentarem todos nus..

    Os seus sentimentos, por favor....

    O polcia de fronteiras olhou para o anjo em silncio. Um pouco nervoso. A suar. No era que estivesse a esconder os seus sentimentos. Era que no sabia onde diabo os colocara. O anjo voltou a franzir o sobrolho. Anotou qualquer coisa num enorme caderno de capa branca.

    O cavalheiro vai ter de aguardar na sala ao lado., disse numa voz sem remorsos: Os restantes podem passar..

    ***

    Queria s dizer isto: evidentemente, o que nos define no so os dados no passaporte. Eu posso dizer que nasci em 1960 em Angola, no planalto central, posso dizer que tenho 1,78 m de altura, mas vocs no ficam a saber mais sobre mim por causa disso. Ficam a saber se vou mostrar os meus sentimentos.