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A literatura não tem de partir dos clássicos Há mais de dez anos, ao mediar uma oficina de leitura e escrita, um voraz leitor de Harry Potter me perguntou: “Qual é o autor menos chato: Machado de Assis ou José de Alencar?” A questão me intrigou: o que acontecia nas aulas de literatura daqueles estudantes para que os dois autores fossem considerados “chatos”? Durante oito anos investiguei, por meio de questionários e entrevistas com mais de 80 professores e 290 alunos, suas práticas de leitura literária. O cenário é preocupante. Na maioria das aulas, o trabalho com o texto é substituído pela memorização dos períodos históricos literários e das características de época. Além disso, a leitura dos clássicos, difícil sem uma mediação adequada, dá lugar à leitura de resumos, que obviamente não dão conta dos romances estudados. Por outro lado, a pesquisa constatou que os alunos leem! Talvez não aquilo que seus professores gostariam, mas o que lhes interessa: livros de aventura, cheios de ação, que dão origem a seriados, filmes e videogames e livros românticos, que as meninas devoram rapidamente. Essa “literatura de entretenimento” fica fora da sala de aula, sem direito a discussão ou reflexão.

A Literatura Não Tem de Partir Dos Clássicos

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A literatura no tem de partir dos clssicosH mais de dez anos, ao mediar uma oficina de leitura e escrita, um voraz leitor de Harry Potter me perguntou: Qual o autor menos chato: Machado de Assis ou Jos de Alencar? A questo me intrigou: o que acontecia nas aulas de literatura daqueles estudantes para que os dois autores fossem considerados chatos? Durante oito anos investiguei, por meio de questionrios e entrevistas com mais de 80 professores e 290 alunos, suas prticas de leitura literria.O cenrio preocupante. Na maioria das aulas, o trabalho com o texto substitudo pela memorizao dos perodos histricos literrios e das caractersticas de poca. Alm disso, a leitura dos clssicos, difcil sem uma mediao adequada, d lugar leitura de resumos, que obviamente no do conta dos romances estudados.Por outro lado, a pesquisa constatou que os alunos leem! Talvez no aquilo que seus professores gostariam, mas o que lhes interessa: livros de aventura, cheios de ao, que do origem a seriados, filmes e videogames e livros romnticos, que as meninas devoram rapidamente. Essa literatura de entretenimento fica fora da sala de aula, sem direito a discusso ou reflexo.

UM PRIMEIRO PASSO PARA FORMAR LEITORES CRTICOS TRAZER ESSA LITERATURA DE ENTRETENIMENTO DOS ALUNOS PARA DENTRO DAS SALAS DE AULA (FOTO: NIK NEVES/ EDITORA GLOBO)Um primeiro passo para formar leitores crticos seria trazer a literatura de entretenimento para dentro da sala de aula. Trabalhar com o relato dessas leituras, debater a estrutura das narrativas, discutir seu apelo e sua recepo. preciso partir do que os alunos leem para construir um repertrio em comum.Depois disso, o segundo passo seria tomar espao durante as aulas de portugus para a leitura de textos literrios do cnone escolar. Ao contrrio do que pensam muitos professores, ler em sala no significa perda de tempo. Diversas pesquisas indicam que a prtica da leitura tanto a conjunta, em voz alta, como a silenciosa e solitria incentivam a formao de jovens leitores. Quando professor e alunos planejam e preparam a leitura de um livro, desvendando um texto, uma interpretao coletiva construda e uma comunidade de leitores pode surgir. Essas comunidades so a base para o alargamento dos horizontes de seus integrantes. Talvez a Machado e Alencar possam deixar de ser chatos...Ao pensar sobre o ensino como uma prtica da leitura literria, poderemos garantir a nossos alunos uma porta de entrada para a leitura de textos mais complexos e para essa nossa grande herana, o mundo da cultura escrita.*** GABRIELA RODELLA DOUTORA EM EDUCAO PELA USP E AUTORA DA TESE AS PRTICAS DE LEITURA LITERRIA DE ADOLESCENTES E A ESCOLA: TENSES E INFLUNCIASDisponvel em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2014/07/literatura-nao-tem-de-partir-dos-classicos.html