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Hipertextus (www.hipertextus.net), n.4, Jan.2010
A LITERATURA POTENCIAL e os “objetos narrativos mutantes” da atualidade
Ermelinda Maria Araújo Ferreira Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
RESUMO: Este ensaio discute brevemente o funcionamento de dois exemplos do que chamamos “objetos
narrativos mutantes” – artefatos que apresentam grande potencialidade de gerar narrativas, apesar de
conterem poucas palavras – e suas semelhanças estruturais com alguns aspectos das narrativas geradas
em meio eletrônico.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura eletrônica; Literatura potencial; Jogos; Objetos narrativos mutantes; Istvan
Banyai; Ely Raman
ABSTRACT: This essay briefly discusses the narrative potentiality of the so-called “mutant narrative
objects”, artifacts that have few words and are in some aspects structurally similar to digital born narratives.
KEYWORDS: Eletronic literature; Potential literature; Games; Mutant narrative objects; Istvan Banyai; Ely
Raman
A narratividade como potência na literatura
O grupo OuLiPo – Ouvroir de Littérature Potentielle ou Oficina de Literatura em
Potencial – fundado em Paris em 1960, reuniu vários escritores e cientistas interessados na
intersecção da literatura e da matemática, no que concerne à investigação de princípios
combinatórios na estrutura dos textos, capazes de gerar poesia e ficção segundo algoritmos e
procedimentos formalizados. De certo modo, os membros do OuLiPo criaram uma literatura
computacional antes dos instrumentos informáticos que permitiriam explorar de forma
automática algumas das suas idéias. Talvez por isso, grande parte das pesquisas do OuLiPo
tenham sido direcionadas à ciberliteratura desde a criação, em 1981, de um novo grupo: o
ALAMO – Atelier de Littérature Assistée par la Mathématique et les Ordinateurs (Oficina de
Literatura Assistida pela Matemática e pelos Computadores), que se dedica exclusivamente à
literatura e à informática.
Deve-se a Raymond Queneau, escritor interessado em análise combinatória, e ao seu
amigo François Le Lionnais, matemático amante da literatura, a criação do OuLiPo, cujo
objetivo nos anos 60 era atingir a universalidade potencial da matemática, fugindo à
efemeridade das vanguardas – de suas teleologias, hierarquias, sectarismos e pretensões a
uma originalidade radical. As ambições e as práticas do OuLiPo evidenciaram, desde o início, o
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caráter lúdico e bem-humorado de um grupo que não pretendia ser nem um movimento literário,
nem uma escola científica, nem uma fábrica de literatura “aleatória”. Sem um a priori estético, o
objetivo era o de inventar regras de tipo formal que pudessem ser propostas a amadores
desejosos de produzir textos. Revigorando técnicas da antiga retórica, capazes de romper com
a crença na inspiração, no gênio ou no subconsciente como motores da criação, queriam
principalmente encontrar estruturas inéditas e promover pesquisas sobre as potencialidades da
linguagem, estabelecendo relações entre a literatura e a matemática.
O princípio do jogo foi muito utilizado pela literatura oulipiana. No livro Exercícios de
estilo, por exemplo, Queneau conta uma história simples de 99 maneiras diferentes, mostrando
a enorme variedade de estilos que pode existir na construção de um texto e as várias
interpretações que podem suscitar no leitor. No romance La disparition, de Georges Pérec, a
letra “e”, vogal mais freqüente no francês, não aparece. Ítalo Calvino também é um inspirado
praticante deste tipo de literatura, em obras como Se um viajante numa noite de inverno e O
castelo dos destinos cruzados. Referências ao xadrez, aos quebra-cabeças, às cartas e a
outros jogos são freqüentes nas obras dos oulipianos, e serviram de inspiração para muitos
escritores na América Latina e mesmo no Brasil, como Julio Cortázar, com o Jogo da
amarelinha; Jorge Luis Borges, com o “Jardim dos caminhos que se bifurcam” do livro Ficções;
e Osman Lins, com o quadrado mágico palindrômico em Avalovara. Sem dispor dos
sofisticados recursos tecnológicos de hoje, os oulipianos criaram em suas obras, por princípio,
mais do que literatura: máquinas de fazer literatura.
A rigorosa estruturação estética que preside este tipo de criação opõe-se frontalmente
aos procedimentos aleatórios da escola surrealista, de onde alguns de seus participantes
emergiram. Enquanto o Surrealismo pregava a noção da escrita automática e do cadavre
exquis, a literatura potencial investia na ciência e apostava na racionalidade, acreditando que
nem a linguagem nem o inconsciente funcionam arbitrariamente. A metodologia oulipiana é,
portanto, dogmática: parte do princípio da imposição de restrições (contraintes) à criação
literária. O caráter potencial desta literatura tem como base operações lógicas, como repetir e
distribuir elementos, deslocar unidades semânticas num sentido diferente do habitual e
permutar determinadas unidades. Vários artifícios lingüísticos resultam dessas práticas: o
Abecedário – onde cada palavra do texto deve ser iniciada por uma letra diferente na
seqüência do alfabeto; o Lipograma – onde alguma letra do texto deve ser suprimida; o S+7 –
onde cada substantivo do texto deve ser substituído pelo sétimo que aparece após ele no
dicionário; o Bola de Neve – em que os versos de um poema devem conter uma só palavra, e
cada palavra uma letra a mais a cada verso, etc.
O conceito de literatura potencial eletrônica surge mais recentemente, em
concomitância com outras designações, e propõe-se a utilizar as competências do computador
como máquina criativa para o desenvolvimento de estruturas textuais, em estado virtual,
atualizando-as até ao infinito. Alain Vuillemin, no seu livro Littérature et informatique, propôs na
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França o termo LGO (sigla francesa de LGC: Literatura Gerada por Computador) para designar
globalmente este novo tipo de criação literária. Na verdade, o procedimento textual usado cria
uma cisão entre algoritmo criativo e os textos gerados ou a gerar, daí o seu caráter virtual.
Trata-se de literatura programada em que o algoritmo gera um padrão textual (texto-matriz) e o
computador explora o infinito campo de possíveis aberto potencialmente por essa estrutura
literária. Daí que outras designações, em diferentes países, concorram para identificar um
procedimento literário similar: literatura potencial, infoliteratura, ciberliteratura, literatura
algorítmica, literatura eletrônica e literatura ergódica. A literatura potencial cibernética é o ramo
da LGC mais diretamente filiado aos sonhos iniciais da inteligência artificial, promovendo a
criação assistida por computador através de uma simbiose entre o artista e a máquina.
Neste tipo de literatura, o computador é utilizado de forma criativa como manipulador
de signos verbais e não-verbais, e não apenas como armazenador e transmissor de
informações. O ato criativo de um “texto informático” divide-se em dois momentos: o da
concepção (humana) e o da execução (maquínica). O artista concebe o modelo da obra a
realizar (programa), a máquina desenvolve e executa as múltiplas realizações concretas desse
modelo dentro de um campo de possíveis textuais. Como a maioria dessas produções são
acentuadamente interativas, a recepção (humana) desta obra criada a partir da máquina
acrescenta um componente imprevisto ao sistema, resultante da inclusão do olhar do
observador e de sua ação interventora na obra, cuja característica é o inacabamento e o
dialogismo, o apagamento das fronteiras entre produtor/receptor e a ampliação do
entendimento do “texto” para limites inconcebíveis na era do livro impresso.
Neste ensaio, investigaremos brevemente algumas estruturas que subjazem à idéia da
literatura potencial eletrônica: a do livro-jogo e a do jogo-livro. Utilizaremos como exemplos o
que chamamos de “objetos narrativos mutantes”. Criados em meio impresso e sob formatos
variados, tais artefatos não são resultantes da ação facilitadora do computador e não se
desenvolvem em meio eletrônico. Apesar disso, sua caracterização ontológica é imprecisa, pois
não podem ser compreendidos nem como livros nem como jogos, estabelecendo para com o
leitor/usuário uma relação movediça, na qual a narratividade se impõe como potência, em
franca relação com a natureza dos textos gerados, executados ou percebidos por meio da
inteligência artificial.
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O livro-jogo
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Istvan Banyai. Zoom. Rio de Janeiro: Brinque-Book, 1995.
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As cenas acima, retiradas do livro catalogado como “infanto-juvenil” pela editora
Brinque-Book, são construídas segundo o princípio da narrativa potencial. Istvan Banyai,
nascido em 1945 na Hungria e atualmente residente nos Estados Unidos, formou-se em Artes
e tornou-se conhecido pela incomum visão filosófica e iconoclasta que imprime às suas
ilustrações e animações. É autor, entre outros, dos livros Zoom; Re-Zoom; The Other Side;
REM: Rapid Eye Movement; e Minus Equal Plus, traduzidos para vários idiomas. O fato de
Zoom ser um livro praticamente sem palavras aguça o caráter virtual das múltiplas histórias
sugeridas pelas imagens, as quais, apesar de parecerem aleatórias, seguem um princípio
estruturador, ao produzir uma simulação do recurso zoom das câmeras fotográficas e
filmadoras, que permite a aproximação das imagens distantes. Nesta obra, o leitor pode optar
por começar da frente para trás ou de trás para diante, entendendo-se esses termos como
simplesmente convencionais, estabelecidos pela forma como o livro foi impresso. A rigor, não
há “frente” nem “trás”, “começo” nem “fim” para essa seqüência de imagens.
O título Zoom assinala, portanto, o princípio estruturador da obra, vinculado a uma
estética do olhar, cabendo ao autor selecionar qual o elemento da cena que será destacado e
ampliado para estabelecer um elo com a cena seguinte. Composto por 31 páginas, o livro
percorre locações completamente distintas: o “primeiro” cenário é de uma fazenda, que
rapidamente se converte nas peças de um joguinho de armar manipulado por uma criança. A
palavra “Toys”, no canto superior de um dos quadros que retratam a menina arrumando sua
fazendinha de brinquedo, no entanto, revela que não estamos diante de uma cena real, mas de
uma ilustração posta na página de uma revista. Nas cinco imagens seguintes o cenário muda:
focaliza uma viagem num transatlântico, e a cena anterior passa às mãos de uma publicação
que um garoto adormecido segura, sentado numa espreguiçadeira sob o sol, em frente à
piscina do navio. As próximas imagens nos revelam que também este cenário é figurado, pois a
cena sugestiva das férias em alto-mar transforma-se no imenso cartaz de propaganda turística
da empresa “California Cruise Line”, posto na lateral de um ônibus que atravessa um
engarrafado cruzamento urbano num dia de trabalho, na hora do rush.
Embora não reproduzida acima, a seqüência continua no livro. Nas imagens a seguir
descobrimos que a cena urbana não é real, mas a imagem de um filme que passa na tela de
um pequeno aparelho de televisão, assistido por um suposto cowboy (com um rabo de cavalo
indígena), sentado em meio a um cenário desértico. Mas a veracidade desta cena também é
provisória, pois na imagem seguinte nos deparamos com a palavra: “Arizona”, e descobrimos
que a cena nada mais é que uma imagem impressa num selo colado numa carta endereçada
ao chefe tribal “Mr. Taumata Tafia”, em “Solomon Island”, uma ilha paradisíaca na Austrália.
Quatro outras imagens transformam este cenário na paisagem contemplada por um aviador
num pequeno aeroplano que sobrevoa o oceano. Nas quatro imagens seguintes, somos
transportados para uma perspectiva cósmica, observando o aeroplano desaparecer numa
confusão de ondas azuis e brancas da atmosfera terrestre, depois na imagem da esfera do
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planeta visto à distância, depois num pequeno ponto na página negra do universo, que se
confunde com a última (primeira?) página do livro.
Nada é inteiramente real, nada é inteiramente irreal nesta seqüência. Os espaços
“interior” e “exterior”, “social” e “psicológico” são explorados numa vasta gama de
possibilidades, permitindo a criação de histórias as mais diversas, sugeridas pelos diferentes
tipos de locação: rural, urbano, desértico, litorâneo, sideral, e todos convergem
irremediavelmente para o plano da representação: a fotografia, o filme, a pintura, o selo, a
escrita, a página. A responsabilidade do “autor” reside na concepção da estrutura: em imaginar
o conceito e o funcionamento do objeto, e em criar as condições para a sua utilização (no caso,
selecionar a idéia do dispositivo zoom como acionador da seqüência, conceber as cenas e
identificar, em cada uma, o elemento de conexão com a próxima, ampliando-o). O papel do
leitor, contudo, é fundamental para a efetivação de uma qualquer história. Trata-se, portanto,
de um livro eminentemente interativo, uma vez que os enredos (caso se admita a necessidade
deles) tornam-se responsabilidade dos leitores, tanto do ponto de vista temático quanto
discursivo. Consideramos este livro um repositório de narrativas potenciais, exatamente porque
as histórias sobrevivem em potência nas imagens, como a promessa da árvore nas sementes.
São histórias virtuais, portanto, podendo vir a existir ou não, na dependência do uso que o leitor
fizer do objeto. Um livro desta espécie é um curioso e mutante objeto, distante do livro
tradicional, embora não inteiramente identificado com um jogo: lacrado à noção de
“interpretação”, ele é construído segundo o princípio pragmático do “uso”, mas ainda se
apresenta, convencionalmente, como “obra literária”, sendo publicado, divulgado, analisado e
comercializado como tal.
Zoom, no entanto, também funciona sem enredos: neste caso, aproxima-se mais, do
ponto de vista ontológico, de um “jogo” do que de um “livro”. Um jogo visual de reconfiguração
de imagens, que evoca a estrutura de um puzzle em perspectiva. Em geral, as peças dos
puzzles fraturam uma figura no plano bidimensional, ou mesmo tridimensional (como os
quebra-cabeças 3-D, em madeira ou papelão, feitos para a reconfiguração no espaço, em
escala infinitamente menor, de construções arquitetônicas famosas). Mas no caso de Zoom, a
fratura opera sobre um sistema abissal: a mise en abyme, que inclui um aspecto tridimensional
– especular ou metalingüístico – posto nas cenas reais que se transformam em cenas figuradas
e referenciais nos cenários que as incorporam; e até mesmo quadridimensional, na medida em
que inclui a temporalidade necessária para a exibição das imagens em seqüência, como num
cinematógrafo. Seria algo como um puzzle concebido não mais sobre uma imagem única e
estática, mas sobre uma seqüência de imagens em movimento.
A recepção proposta para este objeto, portanto, fala mais a favor de sua definição
como “jogo” do que como “livro”. Os livros são feitos para serem lidos e interpretados; os jogos
para serem usados e fruídos. Usufruídos. Tradicionalmente, as obras literárias, mesmo as mais
abertas, não são feitas para serem usadas, e sim interpretadas, como defende ardentemente o
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semioticista Umberto Eco em Interpretação e superinterpretação. 5 Da mesma forma, os
puzzles não são feitos para serem interpretados, mesmo os mais complexos, e sim montados.
A graça dos puzzles reside na habilidade do jogador de reconstituir a totalidade da imagem
original fragmentada, recuperando-a como resultado de sua ação ou intervenção sobre os
fragmentos. A graça de Zoom, por exemplo, está em perceber que as imagens não coexistem
gratuitamente na obra, mas constituem fragmentos de um todo; e que todas as possíveis
histórias nelas contidas e não contadas convergem para uma intenção maior: comunicar a
infinitude micro e macroscópica da representação do real.
Entendido mais como jogo do que como livro, este “objeto narrativo mutante” atua no
sentido de promover não a atualização, mas a virtualização de suas histórias. Não se trataria,
pois, de um objeto aprioristicamente virtual, à espera de uma atualização que o faria migrar
para o espaço-tempo do real. Isso aconteceria se a concepção do livro estivesse voltada para a
interpretação de suas possibilidades não-ditas. Mas se o encaramos como um jogo, o seu
movimento é oposto: consiste em escapar estrategicamente ao impulso da atualização no
momento mesmo em que a virtualidade de um enredo é apresentada ao leitor. Por isso, os
espaços vão sendo vertiginosamente incorporados uns pelos outros, de maneira abissal,
vetando ao leitor a possibilidade de acesso ao gesto mimético. Como não há real possível, uma
vez que cada cena é rapidamente reapresentada como um simulacro, as possibilidades
virtualizadas se volatilizam, impossibilitando a atualização de uma qualquer história. Como diz
Pierre Lévy, a virtualização pode ser definida como o movimento inverso ao da atualização:
Consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma elevação à potência da entidade considerada. A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade, a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático. Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular. (p. 18)
Pode-se dizer que Zoom eleva a narratividade à potência do jogo, fazendo o leitor
perceber e reconhecer diversas possibilidades de esquemas de histórias com os quais
provavelmente já está familiarizado, mas impedindo que ele proceda à ação atualizadora de
qualquer um deles. Desviado do movimento habitual da recepção dos livros de ficção, a saber,
5 “Em 1962, escrevi minha Obra Aberta. Nesse livro eu defendia o papel ativo do intérprete da leitura de textos dotados de valor estético. Quando aquelas páginas foram escritas, meus leitores focalizaram principalmente o lado aberto de toda a questão, subestimando o fato de que a leitura aberta que eu defendia era uma atividade provocada por uma obra e visando sua interpretação. Eu estava estudando a dialética entre os direitos dos textos e os direitos de seus intérpretes. Tenho a impressão de que, no decorrer das últimas décadas, os direitos dos intérpretes foram exagerados. ... Algumas teorias da crítica contemporânea afirmam que a única leitura confiável de um texto é uma leitura equivocada, que a existência de um texto só é dada pela cadeia de respostas que evoca e que um texto é apenas um piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido.”
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o reconhecimento da representação do real no objeto e a sua exegese, a atenção do agora
jogador volta-se para a reconfiguração e percepção da estrutura e da proposta funcional da
obra enquanto objeto mutante, o que o leva a partilhar a interrogação do texto e a usufruí-la,
esteticamente, de maneira inusitada.
O jogo-livro
OH Cards. Caixa com 88 cartas ilustradas e 88 cartas de palavras, 7.744 combinações possíveis.
Autor: Ely Raman. Editor: Moritz Egetmeyer (1975).
Outro curioso artefato concebido segundo o princípio da narrativa potencial é o jogo de
cartas associativas conhecido como OH Cards, definido pelos editores como um “cruzamento
de jogo e livro”. Trata-se de um “objeto narrativo mutante”, por assim dizer, que mistura
palavras e imagens. Acondicionadas em elegantes caixas de papelão no formato e tamanho de
um livro de bolso, e hoje traduzidas em mais de 20 idiomas, as cartas são produzidas por
artistas plásticos, escritores e psicólogos e abordam diversos temas, com múltiplos usos em
diferentes áreas do conhecimento. O primeiro objeto da coleção, criado por Ely Raman,
professor aposentado de Artes na Rutgers University of New Jersey, foi pensado para facilitar
um movimento de autognose, ou seja, pode agir na liberação de algum conflito íntimo do
jogador, parafraseando a atmosfera adivinhatória de jogos de cartas como o I-Ching6 e o Tarô7,
6 O I Ching ou Livro das Mutações, é um texto clássico chinês composto de várias camadas, sobrepostas ao longo do tempo. É um dos mais antigos e um dos únicos textos chineses que chegaram até nossos dias. Ching, significando clássico, foi o nome dado por Confúcio à sua edição dos antigos livros. Antes era chamado apenas I: o ideograma I é traduzido de
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mas sem o conteúdo místico a eles associado, e sem o aspecto dominante do consultor ou
tarólogo como condutor da atividade hermenêutica. Assim como um livro, é um jogo
preferencialmente voltado para uma leitura silenciosa e solitária, pela natureza das revelações
que pode fomentar. Mas também pode ser utilizado em grupos, com efeitos e interações
diversos:
The OH Cards are designed to increase intuition, imagination, insight and inner vision. People around the world are using them to reclaim their sense of self and their place in this universe. One profound quality of this genre of “cards of association“ is that they bend to the user: you can make them a tool for your own specific purpose. It is a mark of a great tool that it lends itself to universal application, and it is a mark of the power of these cards that they do this without imparting of dogma.
À disposição aleatória de três cartas concebidas como “passado”, “presente” e “futuro”,
identificadas cada uma por uma palavra, sobrepõem-se três outras cartas também retiradas do
monte embaralhado, compostas só por imagens. O choque das imagens com as palavras que
lhes servem de molduras pode confirmar ou contrariar as expectativas geradas pela disposição
inicial, construindo uma narrativa previsível ou imprevista. Ao contrário de Zoom, os OH Cards,
embora se apresentem como um jogo de cartas, na verdade funcionam ontologicamente mais
como um livro, se utilizarmos o critério da interpretação/uso. Neste caso, o objetivo do jogo
centra-se mais na interpretação do que no uso.
O papel do “autor” nesta obra reside em selecionar palavras e imagens que, ao
entrarem em choque, possam produzir possibilidades variadas de sentidos. Ao contrário de
Zoom, entretanto, os elos entre os fragmentos são produzidos ao acaso, pela intervenção do
jogador. Trata-se de uma obra também eminentemente interativa, não só pela ação direta do
receptor na escolha e disposição das cartas, mas sobretudo no ato de sua leitura interpretativa,
ou seja, no momento da produção do sentido. O próprio criador afirma que não se deve
interferir na interpretação do usuário, o que pode alterar e mesmo violentar os rumos de sua
narrativa pessoal. Embora a seleção de palavras e imagens pelo autor delimite as variações
possíveis no ato da recepção (e são muitas, cerca de 7.744 possibilidades combinatórias), ele
muitas formas, e no século XX ficou conhecido no ocidente como "mudança" ou "mutação".O I Ching pode ser compreendido e estudado tanto como um oráculo quanto como um livro de sabedoria. Na própria China, é alvo do estudo diferenciado realizado por religiosos, eruditos e praticantes da filosofia de vida taoísta.
7 Tarô é um jogo de cartas jogado na França e em outros países francófonos, composto por um baralho de 78 cartas. A Fédération Française de Tarot publicou as regras oficiais do jogo. Jogos da mesma família com diferentes nomes são também jogados em outros países da Europa central — na região da Floresta Negra no sul da Alemanha, Suíça, Áustria, Hungria e no norte da Itália. Desde o século XVIII as cartas passaram a ser usadas para a previsão do futuro e desde fins do século XIX elas integram o cerne do esoterismo moderno juntamente com a Cabala, a Astrologia e a Alquimia medieval.
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não poderá controlar ou prever as disposições específicas de cada jogada, e muito menos o
efeito especular que palavras e imagens exercerão no espírito de cada jogador.
Exemplo de uma disposição aleatória de cartas de palavras e imagens do OH Cards
Trata-se de um jogo/livro muito estranho em seus efeitos, pelo fato de não raro inverter
o alvo da leitura: não mais o objeto, e sim o sujeito torna-se a matéria da interpretação, de uma
auto-interpretação. A percepção que se obtém neste jogo é a de uma leitura quase oracular,
como se o sujeito consultasse a si mesmo e as cartas funcionassem como o espelho mágico e
falante da história da Branca de Neve. A deflagração de narrativas inconscientes, e portanto
potenciais, talvez justifique o uso mais freqüente desta série de cartas associativas na área da
psicologia, como instrumento facilitador da terapia. Mas seu emprego na área da educação,
como estimulante lúdico da criatividade e da linguagem também vem sendo bem sucedido,
sobretudo com outros títulos, como Saga e Mythos, de Ely Raman, pela natureza simbólica e
referencial das imagens. Independentemente do propósito, contudo, o efeito dessa experiência
de leitura costuma ser tão inusitado e surpreendente que justifica a interjeição no título da
coletânea: OH!.
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Acreditamos que, ao contrário de Zoom, o funcionamento deste “objeto narrativo
mutante” opera no sentido de propiciar a atualização das histórias virtuais, possivelmente
contidas na combinação das imagens e palavras. Tais histórias destinam-se à interpretação, e
muito particularmente à interpretação do sujeito nelas implicado, o que transforma este jogo
num “livro” peculiar.
Caixas dos OH Cards intitulados Saga e Mythos, com desenhos alusivos a histórias arquetípicas
Conclusão Os princípios que presidem a narratividade nestes artefatos são diferentes daqueles
que habitualmente determinam o modus operandi de um texto literário ficcional. Primeiramente,
há uma restrição profunda ao uso da palavra, que fica reduzida à condição de signo indicial – e
não mais icônico ou simbólico, papéis transferidos para os signos pictóricos. A imagem parece
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exercer um papel decisivo na origem destas narrativas em potência, sintetizando, condensando
ou implicitando o discurso possível. Ao contrário de um texto literário convencional, nada é dito.
Não há sequer o vazio das entrelinhas para buscar o não-dito, ou o interdito, por que não há
linhas preenchidas com palavras. A inclusão de palavras obedientes a um pensamento
ordenador, a uma ideologia, a uma lógica, a um enquadramento pré-determinado por alguém –
um autor – não fazem parte das propostas narrativas desses artefatos.
No entanto, a ordem existe, e subsiste como criação autoral, no princípio estrutural ou
arcabouço da composição. Neste aspecto encontramos uma das mais fortes ligações desses
objetos com a chamada literatura eletrônica, gênero literário digital que nasce a partir de um
programa de base. A literatura hoje – pelo menos aquela gerada em meio eletrônico e
destinada a uma recepção interativa por meio do computador – é eminentemente virtual, e fala,
antes de mais nada, a linguagem algoritmica. Ela surge de um rigoroso cálculo matemático que
estabelece as possibilidades de funcionamento de uma obra. As palavras, imagens, sons, etc,
são acrescentados pela ação do usuário, na atualização das regras propostas pelo sistema.
Este usuário, como o jogador de um game, é uma espécie de autor em segundo grau, sujeito
às contraintes do programa. Suas histórias têm a independência que o programa permitir,
limitando a ação deste autor e confundindo o seu papel com o do leitor.
Por sua vez, duplamente constrangido pelas regras do criador do programa e do
criador do texto, o leitor dessas obras experimenta, contudo, uma surpreendente e inusitada
liberdade, incomum aquela proporcionada pelos textos impressos tradicionais, mesmo os que
se proclamam os mais abertos. Como a maioria dos programas tende a incluir a fragmentação,
a descontinuidade e a interatividade como características composicionais, a recepção
determinada pelos textos eletrônicos costuma ser necessariamente interventiva. Assim, autor e
leitor partilham uma experiência textual igualmente ativa e criativa, apesar da submissão ao
determinismo do sistema. Além disso, como os autores de literatura eletrônica vêm investindo
no conhecimento e domínio da linguagem algoritmica (como no domínio de mais uma língua
estrangeira), muitos têm-se habilitado a gerar seus próprios programas, e não apenas a
preenchê-los com suas próprias palavras (e imagens e sons e etc.). Essa conquista altera
profundamente a noção de autoria da obra literária então produzida, que se torna cada vez
mais complexa e plural: matemática e multimidiática, fruto da ação de um
programador/autor/leitor fundidos numa entidade nova e ainda desconhecida.
Nessas obras, assim como, de maneira antecipada, já nos ditos objetos narrativos
mutantes, o adjetivo literário ultrapassa a carga semântica a que costuma ser associado.
Literatura passa a ser algo muito mais amplo, que se relaciona com a produção de uma
narrativa estruturada sobre os princípios da informática, e que pressupõe atitudes de recepção
oriundas da ludologia, ou do estudo dos jogos. Não mais voltada para a mimese de um suposto
real objetivado, referencial e exterior ao sistema da representação, essas narrativas voltam-se
autofagicamente para a reflexão sobre o próprio sistema que as constitui; enquanto este, de
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modo especular, reflete sobre o próprio sujeito que tenta apreendê-lo. Profundamente
vinculada à psicologia da percepção, portanto, e destinada menos à comunicação de uma idéia
do que à provocação de idéias, a literatura eletrônica parece inaugurar um novo paradigma
comunicacional, que pressupõe uma radical transformação no próprio conceito do humano a
que se destina.
Referências
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