A Loucura nas Personagens de · PDF filese o que Otelo pensa de Desdémona e Cássio é errado ou não. Como em todo o delírio, não é tanto a veracidade das ideias que se encontra

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    ResumoO trabalho inicia-se com uma introduo em que se expem os propsitos do mesmo: a anlise psicopatolgica de uma persona-gem de Shakespeare - Otelo - realando a im-portncia do dramaturgo ingls para a compreenso da loucura no mundo renascentista ento emergente. Apresenta-se, em seguida, de forma descritiva, as caractersticas da personalidade de Otelo que se relacionam com o desenvolvimento do seu delrio de cime. Por fim, nas concluses sublinha-se a sobreposio do seu quadro clnico com a classificao actual da DSM-IV.

    AbstractThis paper begins with an introduction where the aims are explained: a psychopatholo-gical analysis of a Shakespearean character - Othello followed by the discussion of theEnglish dramatists importance in helpingus understand madness in the emergent world of Renaissance. The main characte-ristics of Othellos personality, which allowedthe development of his jealousy delusion, aredescribed. Finally, the conclusions underline the overlap of the symptoms developed by the character with the DSM-IV classification.

    Keywords: Othello, delusion.

    IntroduoWilliam Shakespeare inventou o humano, tal como hoje o conhecemos, em literatura. O

    que equivale a dizer que as personagens, at a imutveis, ganharam com o autor de Stratford-on-Avon, a capacidade de se auto-recriarem e, logo, de se individualizarem. Shakespeare, como nenhum outro, pelo menos antes dele, conferiu-lhes a personalidade a partir do naturalismo psicolgico - sendo esta a sua grande originalidade -, o que conseguiu pela fora do seu raciocnio e pela qualidade da sua prosa e poesia. Mas tambm pela son-dagem do abismo existente entre o ser humano e os seus ideais - estes, motivo caro mentalidade renascentista - atingindo, com Hamlet, a possibilidade de a personagem ser agente activo dessa auscultao.A personagem shakespeareana , com fre-quncia, algum diferente, na luta da sua afirmao no mundo, o que se prende com a individuao e naturalismo psicolgico acima referidos. o que se passa com Fallstaff, Otelo, Lear, Hamlet, Macbeth, Ricardo II e Ricardo III, para s referirmos alguns dos protagonistas das suas peas. Neste caminho da humanizao das personagens, a loucura, uma das formas em que os homens se mos-tram diferentes da maioria, no escapou incluso no mundo dramtico do autor ingls. H, no entanto, a considerar que, j ento, se indiciava poder vir a loucura a abandonar o lugar de recluso que at ento ocupava, o que em termos cientficos s viria a acontecer, de forma consistente, aps a revoluo francesa, com Pinel. De facto, este psiquiatra francs viria a reconhecer que o louco pode ser ouvido e que o discurso da loucura no era um mero

    A Loucura nas Personagens de Shakespeare*Nuno Borja SantosPsiquiatra com o grau de consultor do Hospital Fernando Fonseca

    *Baseado na monografia do seminrio de Cincia e Literatura doMestrado de Histria e Filosofia da Cincia da Universidade Nova de Lisboa

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    repositrio de elementos desprezveis. Mas, como dissemos, na Literatura e Medicina dos sc. XVI e XVII, alguns autores promoviam ja integrao do louco na sociedade, com vrios mdicos a defenderem que a loucura era doena e no bruxaria e com autores como Shakespeare, Cervantes e Molire a abordar o tema, resgatando-o do recalcamento. Vejamosesta passagem do D. Quixote em que umadas personagens admite alguma normali-dade, do protagonista, tido, pelos demais, como louco:

    ...que fuera de las simplicidades que este buen hidalgo dite tocantes a su locura, si le tratar de otras cosas, discurre con bonsimas razones y muestra tener un entendimiento claro y apacible en todo; de manera que, como no le toquen en sus caballeras, no habr nadie que le juzgue sino por de muy buen entendimiento.

    Neste trabalho, tentaremos analisar a for-ma como Shakespeare tratou a loucura, exemplificando com os casos em que ela foi descrita de forma mais consistente, de acordo com o entendimento psiquitrico actual. Deixaremos de lado as situaes (inmeras) em que as suas personagens parecem afectas de algum desiquilbrio mental mas em que este no se constituiu como entidade patolgica reconhecida, repetimos, pelos padres actuais. No abordaremos, por exem-plo, o caso de Lear, em que a sua loucura, por vezes mesmo referida, na pea, como

    demncia, transitria, fruto dramtico de circunstncias adversas e, no final, reversvel, dando ento lugar a uma lucidez, que, alis, em substncia, nunca abandona o seu discurso, mesmo quando a forma deste nos parece alterada.Sero tambm excludos os casos passveis de um contorno mais prximo de perturbao da personalidade. Ressalvamos, no entanto que, neste campo, Shakespeare nos d extra-ordinrios esboos de algumas dessas altera-es, como a da psicopatia de Ricardo III.Procuraremos, alm disso, permanecer no terreno descritivo, no sendo nosso objectivo, o estudo de mecanismos psicanalticos das personagens shakespeareanas, rea explorada por diversos autores, como Freud e Lacan.Escolhemos, assim, duas personagens, Oteloe Ricardo II, a primeira, por conseguir decal-car, dos conhecimentos actuais, o desen-volvimento de um delrio de cime a partir de uma personalidade sensitiva e, a segunda que deixaremos para artigo posterior -,por num solilquio, traduzir, de forma admi-rvel, a vivncia temporal na depresso.

    Anlise da personagem

    Otelo, apesar da sua aparente pujana fsica e psicolgica, denota alguns indcios da pre-sena de um ego fraco, de que adiante nos ocuparemos - aspecto que, alis marcado admiravelmente por Verdi, na pera hom-nima, ao faz-lo acompanhar, na sua pri-meira apario, no I acto, de uma entrada em

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    fortissimo, para, depois, no final do III acto, a sua morte ser tristemente sublinhada por uma melodia em pianissimo. Vemos, ao longo da pea que o esplendor de Otelo rapidamente ofuscado, ao cair de forma to fcil na trama de Iago. Tambm da sua relao com Desd-mona (na obra original, escrita pelo autor italiano Cntio, esta personagem tinha j este nome, que significa dos demnios), tida, a priori, como romntica e ideal, trans-parecem, aqui e ali, algumas pistas que nos podem levar a pensar no ter sido ela, afinal, to desinteressada nos seus propsitos de casamento. , pois, a partir desta base que Shakespeare vai desenvolver o argumento da pea. Otelo reunia condies de diversa ordem que o tornavam vulnervel ao cime: em primeiro lugar, para Shakespeare e para o esprito da poca em que a pea foi escrita, a sua raa. Tratava-se de um negro entre bran-cos. Esta diferena frequentemente acen-tuada durante a pea, por vezes, por si pr-prio, em termos que invocam uma inferi-oridade em relao aos demais, outras pelasrestantes personagens que referem a dificul-dade de entender o seu casamento com Des-dmona. Em segundo lugar, Otelo um homem de idade avanada (para os padres da poca). Tambm a esta situao alude no III Acto, quando comea a suspeitar da infedilidade da sua mulher:

    Oth. Haply, for I am black; And have not Those soft parts of conversation That Chamberes have: Or for I am declind Into the vale of years(1)

    Em terceiro lugar, Otelo era um militar de origem estrangeira ao servio de Veneza, condio que lhe impunha mais uma dife-rena em relao aos demais. Finalmente, tinha a convico de no ser um homem letrado e no possuir o dom da palavra (ao contrrio do que fez com Hamlet, Lear ou Macbeth, Shakespeare, dotou-o de pouca eloquncia):

    Oth. Rude I am in my speech And littleBlend with the soft phrase of peace ..........................................................And little of this great world can I speakMore than pertains to feats of boil and battle;And therefore little shall I grace my causeSpeaking for myself. (2)

    E, embora tal no se possa depreender de forma clara, poder haver uma insinuao de que Otelo no consumou o casamento, j que aps ter morto Desdmona, parece admitir que ela morreu virgem:

    Oth. Now how dost thou look now? O ill-starrd Wench!Pale as thy smock! When we shall meet at compt, This look of thine will hurl my soul from heaven,And fiends will snatch at it. Cold, cold my girl? Even like thy chastity.(3)

    Nuno Borja Santos

    1. Ote. Naturalmente por eu ser negro, por no ter esses dons adocicados das conversas que os alfenins possuem; por j descer o plano inclinado dos anos2. Ote. Rude que sou na maneira de falar e mal preparado para a doce linguagem da paz... Fora dos combates e da guerra pouco sei dizer

    vasto mundo; por consequncia, advogando a minha prpria causa, no deve haver receio de que eu a embeleze.3. Ote. Vejamos que aspecto tu apresentas neste momento! Oh! Mulher nascida debaixo de uma to m estrela! Plida como a tua camisa!

    Quando nos encontrarmos no tribunal de Deus, basta o teu aspecto presente para que a minha alma se precipite do Cu e logo osdemnios se ho-de apoderar dela. Fria! Fria! Meu amor! Fria como a tua prpria castidade!

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    J anteriormente, ele enunciara o seu pouco interesse pelo casamento, antes de conhecer Desdmona, o que pode indicar uma mascu-linidade frgil, com consequente temor da se-xualidade feminina. Muitos autores, como Miguel Bombarda, ligaram o delrio de cime impotncia sexual.Estas caractersticas de Otelo podem-nos levar, assim, a pensar estar na presena de uma per-sonalidade sensitiva, tal como foi descrita por Kretschmer, em 1903: diz-nos este autor que o sensitivo um sujeito astnico, com uma vida sexual inibida, retentivo em termos de ex-presso emocional, de tica escrupulosa, vo-luntarioso e sensvel crtica e traio. Acon-tece ainda que, com frequncia, um indi-vduo que se encontra em minoria no meio que o cerca, seja devido a raa, nacionalidade,