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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO/DOUTORADO CAMILA MARIANI SILVA A LOUCURA SAI DO MANICÔMIO: DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO ESPÍRITO SANTO Rio de Janeiro Junho, 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO/DOUTORADO

CAMILA MARIANI SILVA

A LOUCURA SAI DO MANICÔMIO:

DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO ESPÍRITO SANTO

Rio de Janeiro

Junho, 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO/DOUTORADO

CAMILA MARIANI SILVA

A LOUCURA SAI DO MANICÔMIO:

DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO ESPÍRITO SANTO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicologia Social.

Orientador: Profª. Drª. Ariane Patrícia Ewald

Co-orientador: Profª. Drª. Leila Domingues Machado

Rio de Janeiro

Junho, 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL

A dissertação: A loucura sai do manicômio. Dispositivos residenciais no Espírito Santo Elaborada por Camila Mariani Silva Foi aprovada pelos membros da banca examinadora, em 28 de junho de 2006:

_____________________________________________________ Profª. Ariane Patrícia Ewald (orientadora) _____________________________________________________ Profª. Heliana de Barros Conde Rodrigues _____________________________________________________ Profª. Leila Aparecida Domingues Machado _____________________________________________________ Prof. Paulo Duarte de Carvalho Amarante

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Para todos que acreditam que a vida pulsa, que “a vida não para” e que a cada dia destruímos certezas, ratificamos outras e ainda inventamos

outros modos de habitar a vida, em todos os espaços.

Para os guerreiros contra a lógica manicomial.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Antão e Creusa, por todo amor, dedicação, ajudas aos montes. Obrigada por tudo, mesmo.

À Tiago, pelas tentativas de ajuda, pelo ouvido, pela paciência, por todo o amor. Obrigada por estar ao meu lado nesse turbilhão de intensidades, desespero, descobertas, dúvidas e prazeres; por tantas vezes me apoiar nessa caminhada, por outras tantas questionar.

À vovó Adméia, pelo empréstimo da morada carioca e por compreender minha ausência.

À Sá, que torce, ama e inventa. Pessoa que transmite força e alegria.

Aos amigos que ouviram tantas angústias, reclamações, conquistas e surpresas ao longo desses anos.

À Biu que dividiu muito comigo no Rio, que cozinhou, sugeriu, pensou, debateu. Ferc, que a cada encontro, acolhia e ensinava. Juzinha, disposta, ouvinte, para todas as horas. Jana e Lalá que contribuíram em programas, para mim, desconhecidos.

À todos que compartilharam bons momentos e perdoaram minhas faltas: Cathy, Rapha, Cacá, Tianne, Moninha, Lú, Jajá, Si, Bruca, Lê Piccin, Rafa, Mary, os Vermes do Quiosque, à Galera-ES. Amigos que quase não me encontraram nesses últimos meses, e que me apoiaram, desde o início.

À “grande família” amada que me viu chegar tarde e sair cedo, que não cobrou, que colaborou, que ouviu. Família maravilhosa, obrigada.

Aos professores e funcionários da UERJ, dispostos e atenciosos.

Ariane, orientadora querida que sabe chamar atenção, conversar, ouvir, discutir, ajudar. Grande é a força que você transmite. Obrigada.

À Cris e Leila por tantas ajudas, discussões, leituras e todo o carinho.

Aos extensionistas e estagiários da UFES. Guerreiros que me receberam tão abertamente para compartilharmos tarefas e atividades.

Aos profissionais que lutam pelo processo de Reforma Psiquiátrica e aos moradores dos dispositivos residenciais que tanto ensinaram durante este estudo.

À CAPES, pelo apoio financeiro.

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“Eu tenho dito que não sei o que é a loucura. Pode ser tudo

ou nada. É uma condição humana. Em nós, a loucura existe

e está presente como está a razão [...]. O manicômio tem

sua razão de ser porque torna racional o irracional. Quando

qualquer um fica louco e entra no manicômio, deixa de ser

louco para transformar-se em doente. Torna-se racional

enquanto doente. O problema é como desfazer este nó,

superar a loucura institucional e reconhecer a loucura lá

onde ela teve origem, como se diz, na vida.”

Franco Basaglia

Conferências brasileiras

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ABSTRACT

The way of dealing with madness has been changing. Some authors propose the end of asylums and the care for those who experience madness far from enclosing. In Brazil, since the 70s, we may realize an increasing mobilization held by professionals who work in the mental health field and the relatives of those who use psychiatric services. They fight for changes in the care for people who experience madness, seeking a society without asylums. The public policies in mental health have moved forward creating services that substitute asylum enclosing, such as the Psicossocial Attention Centers (CAPS) and the Residential Devices for those who used to live in mental institutions. Madness deinstitutionalization process aims to extinguish the asylum logic of exclusion and isolation. It is not enough to take people out of psychiatric hospitals and end these establishments. It is important to work in the sense of allowing those who experience craziness to walk around and use the spaces prohibited to them in the past, such as squares, streets, shops etc, that is, to undo all and every prejudice towards those people, destroying also the “invisible asylums”. In the State of Espírito Santo the two first houses for people who left the Adauto Botelho Psychiatric Hospital started functioning in October 2004, in the town of Cariacica. The proposal of this study was to accompany the implementation process of these residential devices and the struggle in denaturalizing madness as “mental illness”. We accompanied the dwellers of these two houses in their activities and we interviewed some of the professionals involved in this process, some of the people who live in these houses and some of their neighbors. Thorough this contact we could realize some changes in the way of dealing with madness and other changes will still happen. It is important to highlight that the real deinstitutionalization process is ampler than the exit of those patients from the psychiatric hospital. The fact that they are living in houses outside the hospital doesn’t guarantee that these people will, in fact, assume that space, the streets and the territory. It is necessary, therefore, to discuss and debate about the deinstitutionalization in every social area, not only among the professionals in mental health field and in the health institutions directly involved. It is interesting to bring all the territory into this proposal. Key words: Madness, psychiatric reform, residential device.

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SUMÁRIO

RESUMO ....................................................................................................................vi

ABSTRACT ...............................................................................................................vii

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10

CAPÍTULO 1

LOUCURA: MUDANÇAS DE PARADIGMAS .........................................................17

1.1. Movimentos de transformação no Brasil ..................................................21

1.2. Dispositivos Residenciais no Brasil ..........................................................32

1.3. Dispositivos Residenciais no Espírito Santo ............................................37

CAPÍTULO 2

DESOSPITALIZAÇÃO E DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA ...............49

2.1. Desnaturalizando a noção de doença mental .........................................56

2.2. Transformação cultural cotidiana .............................................................61

2.3. Desnaturalizando hábitos de trabalho .....................................................71

CAPÍTULO 3

ATUANDO NO TERRITÓRIO: EXPLORAÇÕES A PARTIR DE UM DIÁRIO DE

CAMPO .....................................................................................................................76

3.1. Circulando ................................................................................................82

3.2. Habitar é mais que morar ........................................................................98

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................108

ANEXOS .................................................................................................................115

Modelo dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido

1) Para profissionais em saúde mental e extensionistas do Departamento de

Psicologia da UFES e /ou estagiários ........................................................116

2) Para moradores dos Dispositivos Residenciais de Cariacica/ES ...........118

3) Para pessoas que moram ou trabalham próximo aos Dispositivos

Residenciais em Cariacica/ES ...................................................................120

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INTRODUÇÃO

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Ao participar do Projeto de Extensão Intervenção no Hospital Adauto Botelho

– a desnaturalização da noção de doença mental: produção de outras formas de

espaço-tempo, em 1999, como aluna do curso de graduação em Psicologia da

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o tema da saúde mental se

configurou como relevante na construção da minha trajetória acadêmica. Neste

trabalho buscávamos, nós, do Projeto de Extensão, levar os internos para fora do

espaço mortificante do asilo manicomial, lugares onde a vida pulsa, para que a força

da vida não fosse barrada no hospital psiquiátrico estadual, onde a entidade “doente

mental” é reproduzida (FOUCAULT, 1997, 2000). O cotidiano manicomial propõe

trazer os internados, chamados loucos/doentes, para as práticas sociais

consideradas normais, ou seja, “reabilitá-los” para que habitem territórios

existenciais1 já formatados, conhecidos, prontos, seguindo modelos

convencionados, impedindo a constituição de uma forma diferente de existência, de

habitar a vida.

Como afirmou Foucault, é preciso “transferir para o próprio doente o poder de

produzir sua loucura e a verdade de sua loucura ao invés de procurar reduzi-la a

nada” (FOUCAULT, 2000, p. 126). Por isso a importância de sair do espaço

mortificante do sanatório. Os internos das duas enfermarias onde trabalhamos, no

referido projeto, sempre queriam ir passear, qualquer que fosse o espaço, que não,

o manicômio: feira, shopping, praia, ir tomar um refrigerante em um bar – fora dos

muros do Hospital Psiquiátrico Estadual Adauto Botelho – onde eles pudessem

sentir outros cheiros, sabores, sentidos e experimentar a vida do lado de fora. Logo

que chegávamos à enfermaria a pergunta era: “nós vamos sair hoje?” Mesmo sendo

apenas uma tarde afastados do espaço de enclausuramento de muitos anos, tudo

era muito intenso – eles queriam comer de tudo, experimentar, ouvir diferentes

músicas, até bebiam uma lata de refrigerante toda de uma vez, quase sem parar ao

menos para tomar fôlego.

Fiz estágio na Clínica de La Borde Cour-Cheverny, França, em janeiro e

fevereiro de 2000. Esta clínica foi um marco importante no processo de 1 Território Existencial não é um limite físico. É o espaço provisório que habitamos, que construímos

nossa forma de vida, onde nos reconhecemos. Para Guattari e Rolnik (2000) Desterritorializar é desestabilizar o conhecido, é desmanchar as fronteiras territoriais e permitir que novos territórios possam ser formados. Entretanto, quando o novo território existencial construído não produz rupturas com o que já era instituído, não quebra a lógica dos territórios anteriores, temos a reterritorialização.

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transformação da assistência Psiquiátrica na França, em meados do século XX – a

Psiquiatria de Setor. Os pensionistas – como são chamados os que recebem

tratamento em La Borde – dormem em quartos de, no máximo, quatro pessoas.

Dividem tarefas com os monitores, participam dos ateliês diários de diferentes tipos

(esportes, jornal do dia da clínica, pintura, mosaico, leitura, música, jardinagem,

culinária, dentre outros), das reuniões vespertinas em que qualquer tópico pode ser

discutido. Os horários são bastante flexíveis, e cada um – estagiário, monitor,

morador, usuário do hospital dia – escolhe o que quer fazer, quais atividades

desempenhar naquele dia e o horário, todos trabalhando para o bom funcionamento

do hospital. Foi uma experiência fantástica aprendendo com cada olhar acolhedor

dos pensionistas, e também com um ar irritado de alguns, quando souberam que o

período de estágio estava no fim – afinal, vínculos foram construídos num período

tão curto e os estagiários, como eu fui, deixariam a clínica. Dois meses de estágio foi

o tempo de adaptação à língua e conhecer aquele espaço, as atividades e as

pessoas. No final deste período, parecia que as relações com os pensionistas

estavam sendo transformadas, pareciam mais seguras e o estágio chegou ao fim.

Participei, também como voluntária, da pesquisa “A desinstitucionalização da

loucura” de agosto de 2000 a julho de 2001. Foi durante esta pesquisa, a partir de

entrevistas com funcionários do Hospital Adauto Botelho, que eu soube da

discussão sobre o projeto de lei nº 3.657/89 do Deputado Paulo Delgado (PT/MG),

aprovado um substitutivo à tal proposta em 2001 (Lei nº 10.216) e das portarias

ministeriais 106 e 1.220 de 2000, que regulamentam os Serviços Residenciais

Terapêuticos.2 A partir daí, então, venho buscando conhecer mais essa proposta e

os trabalhos que vêm sendo realizados no Brasil que seguem essas diretrizes,

segundo o processo de Reforma Psiquiátrica. Este trabalho é fruto do estudo e do

acompanhamento das duas primeiras moradias no Espírito Santo.

Sabemos que não basta retirar os pacientes do manicômio – desospitalização

– para que seja efetivado o processo de desinstitucionalização da loucura. O que se

pretende, de fato, é desnaturalizar a loucura como “doença mental”, eliminar a noção

de doença da mente, de invalidez e de periculosidade que acompanham essas

pessoas colocando, como diz Franco Basaglia (2005a), a doença mental entre

2 Nome oficial dado às moradias extra-hospitalares para egressos de hospitais psiquiátricos.

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parênteses e se ocupar da pessoa que passa pela experiência da loucura, não da

doença. Ou seja, permitir que os que passam pela experiência da loucura possam

habitar territórios que não sejam excludentes, que lhes permitam produzir, fazer,

conhecer, circular, criar outras formas de habitar o mundo e de viver sem

necessariamente ter que seguir os modelos institucionalizados pela sociedade

capitalista vigente.

Nesse sentido, a proposta desta pesquisa foi cartografar,3 ou seja,

acompanhar os movimentos que se configuram no campo social a partir do processo

de implementação dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo,

fazendo uma análise crítica desse processo, atentos para a manutenção ou não, da

lógica manicomial – que infantiliza, tutela, controla e que busca normalizar os que

experienciam a loucura.

Esses novos serviços substitutivos ao internamento asilar realmente

contribuem para a desinstitucionalização da loucura? Os moradores são ainda

tutelados, medicalizados exageradamente, infantilizados ou estão realmente

assumindo responsabilidades e exercendo o papel de cidadãos? Eles freqüentam

outros ambientes ou continuam excluídos e confinados, agora em espaços

menores? A comunidade na qual essas moradias estão inseridas, o que pensa

sobre esses serviços e sobre a loucura?

Peter Pelbart (1991) levanta uma interessante questão sobre a saída dos

internados dos manicômios: será que ao se dar aos loucos um outro lugar,

reconhecimento de seus direitos e até mesmo privilégios, buscando integrá-los na

sociedade não estamos, de fato, buscando fazer com que os egressos de hospitais

psiquiátricos tenham regras e limites estabelecidos por nós, “normais”? Não

buscamos delimitar códigos sociais para que sejam obedecidos? Será que não

estamos expropriando da loucura sua força de diferença, alteridade e desrazão?

Não estamos retirando destas pessoas seu potencial de desterritorialização? “Por

potencial de desterritorialização entendo aqui esse poder secreto e admirável de

embaralhar os códigos, subverter as regras do jogo e transpor ou deslocar os limites,

sempre de outro modo” (PELBART, 1991, p.132); potência na relação com o plano

intensivo de forças, sem as normalizações sociais presentes na sociedade.

3 A cartografia será melhor explicada mais adiante, ao abordarmos o método de pesquisa utilizado.

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Devemos, portanto, estar atentos para não contribuirmos para a exclusão da

diferença, para a diluição da estranheza que a loucura provoca. Pelbart chama a

atenção para não trazermos a experiência da loucura para uma vida “normalizada”,

adaptada.

Afirmamos a luta pelo processo de Reforma Psiquiátrica, contudo não de uma

forma irresponsável e imediata, como se longos anos de estrutura manicomial

pudessem ser abolidos do sistema de saúde e da vida cotidiana da noite para o

dia. Nesse sentido, acompanhamos ao longo desta pesquisa as duas primeiras

moradias para egressos de hospital psiquiátrico no Espírito Santo. Participamos das

atividades das residências, tanto na própria casa – aniversários, confraternizações –

como em atividades externas: passeios pela cidade, ida ao circo, a médicos, a

cursos oferecidos na comunidade, ao CAPS. Pudemos, então, analisar os processos

de desospitalização e desinstitucionalização da loucura, problematizando a

manutenção da lógica manicomial em algumas atividades e atitudes dos atores

envolvidos.

Ao trazermos a cartografia como caminho para a realização desta pesquisa, o

fizemos sabendo que a cartografia não é um modelo pronto e pré-determinado de

metodologia, não apresenta caminhos e técnicas como modelos a serem seguidos.

A cartografia “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os

movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 1989, p. 15), inclusive das

paisagens psicossociais. Cartografar é construir junto com a pesquisa, ao longo da

mesma, já que a cartografia se faz junto com os diversos movimentos das

paisagens, que têm vida e se transformam continuamente. A pesquisa é entendida,

então, como processo que deve acompanhar as variações das paisagens que fazem

parte da mesma.4

Nesse sentido, a cartografia propõe analisar e discutir as contingências do

território, sem um modelo ideal e sem a instituição de verdades absolutas. Pensar,

então, em método, é pensar em modos de operar, modos de fazer, de produzir e se

(re) produzir, maneiras de diferenciação na constituição da realidade. Como afirma

Kirst (2003, p. 99), a perspectiva cartográfica é um “modo de produção de 4 Palestra proferia por Leila Domingues Machado como parte do Seminário sobre Pesquisas

Qualitativas organizado pelo Núcleo de Estudos de Tecnologia e Subjetividades – NETES, Universidade Federal do Espírito Santo em 21 de outubro de 2005.

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conhecimento” em que o cartógrafo pesquisador busca o que é vitalizante ou

destrutivo na constituição de territórios existenciais e de realidade, acompanha os

encontros, as transformações e diferenciações dos atos e conhecimentos.

A proposta, neste trabalho, foi cartografar, acompanhar os movimentos,

caminhos e transformações que têm sido configurados com a implementação de

Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, em outubro de 2004. Devido à

necessidade de colocar em análise os movimentos produzidos na implementação

dessas residências, apostamos em um método de pesquisa que aborde os vários

saberes instituídos e instituintes nestes serviços implantados no Estado,

problematizando e recusando naturalizações referentes ao campo da Reforma

Psiquiátrica. Esta metodologia visa “interrogar os diversos sentidos cristalizados nas

instituições” (BARROS, 1994, p. 307) buscando desmanchar territórios já

constituídos, já formatados para que outras instituições5 possam ser forjadas

(PASSOS & BARROS, 2000), transformando a noção de loucura a partir de novas

produções e relações sujeito-objeto de conhecimento que estão sendo constituídas

no cotidiano das residências e o foram no dia-a-dia da pesquisa, uma vez que

pesquisar é intervir no campo.

Para acompanhar os movimentos e processos de constituição dos Serviços

Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo foi necessário e importante acompanhar

as atividades das duas residências pioneiras no Estado, freqüentando as casas,

conversando com a equipe técnica, com os egressos do hospital psiquiátrico e com

as pessoas da vizinhança, participando de reuniões dos profissionais, de

supervisões com os estagiários e extensionistas do programa “Hecceidades:

Programa de Pesquisa e Intervenção em Saúde Mental”.6 Entrevistas semi-

estruturadas7 com os profissionais em saúde mental, moradores dos serviços

residenciais, estagiários e vizinhos foram realizadas e gravadas, quando permitido.

5 Instituição como “processo de produção constante de modos de legitimação das práticas sociais”

(BARROS, 1994, p. 308). 6 O Projeto de Extensão do qual fiz parte em 1999 foi transformado em novembro de 2005, já que não

mais atua exclusivamente nas atividades de ressocialização do Hospital Adauto Botelho. Este trabalho acontece desde 1997 sendo, portanto, um Programa.

7 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UERJ, protocolo nº 007/2005 em junho de 2005. Os modelos dos Termos de Esclarecimento Livre e Esclarecido, que permitem o uso das informações coletadas, estão em anexo.

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No primeiro capítulo, fazemos uma introdução à respeito das propostas e

atividades realizadas no Estado para a implementação dessas residências. São

discutidas algumas das diversas transformações que a noção de loucura vem

sofrendo, tendo como base os estudos de Michel Foucault, os trabalhos de Franco

Basaglia e Franco Rotelli, passando pelas diferentes propostas de Reforma

Psiquiátrica no mundo. Especificamente no Brasil, são trabalhadas, ainda no

primeiro capítulo, algumas discussões acerca do movimento de Luta Antimanicomial

e o processo de Reforma Psiquiátrica brasileiro.

No capítulo dois buscamos diferenciar os processos de desospitalização e

desinstitucionalização da loucura. Trazemos a discussão da noção de loucura como

processo, tendo como base as análises de Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo

(1972), bem como sobre a naturalização da loucura como desvio e a necessidade de

institucionalizá-la. Para que o processo de Reforma Psiquiátrica em curso no país

traga, efetivamente, transformações, as discussões devem ultrapassar os limites dos

saberes instituídos e habitar todos os diferentes espaços sociais.

No terceiro capítulo, discutimos a noção de território segundo o geógrafo

Milton Santos e a assistência territorial em saúde, bem como a participação da

comunidade no processo de Reforma Psiquiátrica, abordando as diferenças entre

estar morando em uma casa fora do asilo manicomial e habitar, de fato, uma

residência.

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CAPÍTULO 1

LOUCURA: MUDANÇAS DE PARADIGMAS

“Eu estava com saúde Adoeci

Eu não ia adoecer sozinha não Mas eu estava com saúde

Estava com muita saúde Me adoeceram

Me internaram no hospital E me deixaram internada

E agora eu vivo no hospital como doente

O hospital parece uma casa O hospital é um hospital”.

Stela do Patrocínio

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De acordo com os estudos de M. Foucault (1991, 1997, 2000), o sentido

conferido ao termo loucura foi e vem sendo produzido diferentemente em diversos

contextos sociais, econômicos, políticos e culturais, seguindo o pensamento

dominante da época. Ele nos mostra que a loucura não era isolada e internada

sistematicamente.

Até meados do século XVII, a loucura era considerada uma experiência

reveladora de verdades do mundo. Nesse sentido, a loucura não era considerada

como negativo da razão, mas sim, uma “experiência trágica” que não exigia sua

exclusão do convívio social. Foucault (1991) afirma que a loucura, ao contrário,

circulava nos espaços e encontros sociais, fazia parte do cenário sendo uma

experiência vivida por alguns que não precisava ser controlada e isolada.

Entretanto, a partir do final do século XVII e início do XVIII a loucura é

entendida como desrazão, como ausência de racionalidade sendo, portanto,

excluída do meio social. No século XVIII, a razão é que domina o conhecimento, não

havendo espaço legitimado para a loucura, uma vez que os loucos não seguem os

valores morais, sociais e econômicos instituídos. O importante era retirar do convívio

social aqueles considerados um fardo para a sociedade, ou seja, loucos, mendigos,

libertinos, inválidos. Dessa forma, a desrazão foi silenciada e aproximada das culpas

morais e sociais (LAVRADOR, 2001a).

Apenas a partir da segunda metade do século XVIII é que os grandes asilos

se tornaram exclusividade dos chamados alienados. Philippe Pinel, considerado por

muitos o “libertador dos loucos”, retirou-lhes as correntes para que eles pudessem

ser devidamente tratados como doentes, alienados. Contudo, os “doentes da mente”

continuavam isolados – mas agora para receberem o tratamento moral preconizado

por Pinel. O isolamento dos alienados era essencial para que o tratamento tivesse

êxito, visto que se acreditava que as causas da loucura estavam na sociedade e na

família. O hospital era considerado, a partir de Pinel, o espaço de conhecimento da

chamada alienação mental e também, espaço de produção da verdade e do saber

sobre essa doença, local de “controle e contenção da periculosidade social e da

potencial subversão da ordem” (BASAGLIA, 2005b, p.273) sob o poder médico.

Emerge, então, um novo saber no bojo do processo da modernidade: a Psiquiatria –

saber científico sobre a loucura, considerada alienação, buscando controlá-la. O

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hospital psiquiátrico assumiu o “lugar de diagnóstico e de classificação”

(FOUCAULT, 2000, p. 122) da loucura, que passa a ser controlada e tratada como

“doença mental”, excluída do projeto de normatização da razão moderna. A partir da

modernidade

uma nova ética surge então, a ética do trabalho, da produção; aqueles que não trabalham, como os loucos, não podem ficar vagando nas ruas – agora que as cidades crescem cada vez mais – dando um mau exemplo. [...] A sociedade se homogeneíza cada vez mais. O diferente é ameaçador (SCLIAR, 2003, p. 187).

Nesse sentido, como afirma Venturini (2003), a loucura é isolada pela razão

moderna, porque não segue as normas da sociedade racionalizada. Sua lógica é

outra, é imprevisível; desejos e valores são expressos de outras maneiras que não

as consideradas “normais” pela sociedade moderna burguesa. O tratamento

psiquiátrico era organizado, então, de forma que os internos pudessem incorporar as

ideologias e normatizações da sociedade burguesa – seguindo a política capitalista

de trabalho (LAVRADOR et al, 2001b), barrando a invenção de novos territórios

existenciais, ou seja, impedindo a constituição de outras maneiras de viver

divergentes do modelo capitalista vigente, de subjetividades diferenciadas visto que

“a produção de subjetividade8 constitui matéria-prima de toda e qualquer produção”

(GUATTARI & ROLNIK, 2000, p.28), ou seja, os comportamentos, percepções,

sensibilidades, relações sociais etc são modelizados por “subjetividades coletivas”

produzidas segundo a regra capitalista. A loucura9, como um modo de vida que não

segue a subjetividade “serializada” e hegemônica, não segue as normas do sistema

dominante capitalista, o sistema de produção em série do flexível e de descartável.

De acordo com Moffatt (1980, p.52), com os psicofármacos busca-se adaptar o

paciente às normatizações sociais, ou seja, que ele seja útil, capaz de realizar

atividades produtivas para a sociedade capitalista e seu bem estar.

A loucura é vista pela Psiquiatria tradicional como movimento de desvio, uma

forma de viver excluída, enclausurada fora do que é tido como normal, incapaz de

8 Subjetividade não se confunde com identidade, como essência imutável, mas configurações

temporárias e inacabadas dos diversos atravessamentos (políticos, sociais, afetivos, artísticos etc) que nos constituem (GUATTARI e ROLNIK, 2000).

9 Loucura não como “doença mental”, psiquiatrizada, mas uma experiência singular divergente dos modelos já determinados. Esta diferenciação será abordada adiante, no capítulo dois.

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participar da construção diária da vida. A noção da loucura como “doença mental”,

institucionalizada, psiquiatrizada ainda é forte nos dias de hoje. Contudo, alguns

movimentos contra o modelo manicomial de isolamento eclodiram em diferentes

países após a Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, a Comunidade

Terapêutica e a Antipsiquiatria na Inglaterra, a Psicoterapia Institucional e a

Psiquiatria de Setor na França, a Psiquiatria Preventiva/Comunitária nos Estados

Unidos e a Psiquiatria Democrática Italiana. Esses movimentos são, hoje,

denominados Movimentos de Reforma Psiquiátrica e buscam, desde meados do

século XX, modificar a assistência aos que passam pela experiência da loucura,

questionando “o papel e a natureza, ora da instituição asilar, ora do saber

psiquiátrico” (AMARANTE, 1998, p. 27). Em algumas instituições que passaram por

reformas, como a Clínica de La Borde, seguindo a Psicoterapia Institucional de F.

Tosquelles e mais tarde, a política da Psiquiatria de Setor, os pacientes assumiram

tarefas e responsabilidades juntamente com a equipe do hospital psiquiátrico, como:

arrumar as camas, cuidar da limpeza, participar da organização de diferentes

atividades e oficinas terapêuticas. Foram, em geral, movimentos constituídos pelos

trabalhadores dos locais onde os loucos viviam e eram “tratados”, devido ao horror à

Segunda Guerra, à violência e aos campos de concentração que se assemelhavam

à violência e falta de cuidados para com os internos nos hospícios, onde

praticamente não se tinha visão de outras possibilidades de futuro para a maioria

dos pacientes. Como afirma Gina Ferreira

é evidente que a forma mais cruel e eficaz de promover a doença mental é a exclusão social, quer pela falta de visão de um futuro melhor causado pela desqualificação estigmatizada do sujeito pela inércia atada à marca de uma improdutividade forçada, quer pela ausência do contato afetivo que se produz com o afastamento dos amigos e familiares (2001, p.82).

Entretanto, a maioria dos movimentos acima citados visava “humanizar” os

asilos manicomiais, ou seja, fazer do hospital psiquiátrico um lugar “melhor” para que

os chamados “doentes mentais” pudessem ser tratados. Apenas os movimentos da

Antipsiquiatria, tendo como referência David Cooper e Ronald Laing, e da Psiquiatria

Democrática Italiana, com Franco Basaglia e Franco Rotelli, questionavam a noção

de doença mental instituída, o saber-poder da psiquiatria e as instituições asilares de

assistência. Como afirmam Rotelli, De Leonardis e Mauri (2001), os movimentos que

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não discutem e não promovem mudanças efetivas no cuidado e assistência aos que

passam pela experiência da loucura são “psiquiatrias reformadas”, já que mantém a

lógica de exclusão, renovando as terapias e humanizando espaços de tratamento.

De acordo com esses autores, a desinstitucionalização efetiva da loucura é um

“processo social complexo” que busca

reconstruir todo o processo de transformação da instituição psiquiátrica desenvolvido ao longo de mais de vinte anos e que deixou sua marca em múltiplas dimensões: do microcosmo da relação terapêutica (e das concepções e práticas de tratamento) à dimensão da construção de uma nova política psiquiátrica (e das concepções e práticas da ação política) (2001, p.25).

Nesse sentido, não basta criar outros espaços de atenção fora dos hospitais

psiquiátricos, extinguir o espaço físico de confinamento e exclusão, retirar os

pacientes dos manicômios, ou seja, não basta desospitalizar os internos. O que o

atual movimento de Reforma Psiquiatria busca é romper com o modelo psiquiátrico

tradicional, destruir a lógica de periculosidade e exclusão dos que passam pela

experiência da loucura, desmanchar a cultura manicomial, os “manicômios

invisíveis”10 em nós incrustados há tanto tempo. Desinstitucionalizar a loucura é

produzir um outro olhar sobre ela, é inventar outras formas de habitar territórios

existenciais que não excluam a diferença e nem a confinem na infantilização,

incapacidade e irresponsabilidade.

1.1. MOVIMENTOS DE TRANSFORMAÇÃO NO BRASIL

Até a segunda metade do século XIX, a loucura não tinha um espaço

específico de tratamento e assistência médica no Brasil, e os que passavam por esta

experiência perambulavam pelas ruas, ou eram presos por causar tumultos ou ainda

10 Termo utilizado por Baptista (1999) como uma postura rígida diante da vida, uma forma cristalizada

de estar no contemporâneo, mantendo a lógica manicomial mesmo fora dos manicômios. Pelbart (1991) utiliza o termo “manicômio mental” para tratar dessa cristalização manicomial.

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encarcerados em celas dos hospitais da Santa Casa de Misericórdia (COSTA,

1989). A partir de 1830, médicos passaram a pedir que fosse criado, no Brasil, um

hospício para alienados para que os loucos pudessem dispor de um local higiênico e

arejado para serem tratados, segundo a proposta de tratamento moral vindo da

Europa. Para Cunha (1986), a medicina social defendia a necessidade de separar,

organizar e conhecer a população das cidades – que cresciam cada vez mais.

Foram estabelecidos lugares para cada categoria da população, onde a disciplina e

a rotina seriam as diretrizes para uma sociedade organizada. Os loucos, que se

diferiam nitidamente da boa sociedade, precisavam ter um lugar onde não

atrapalhariam a ordem social.

O primeiro hospital psiquiátrico brasileiro foi inaugurado em 1852, no Rio de

Janeiro, na Praia Vermelha – lugar calmo para que o tratamento fosse mais eficaz.

Em um ano de funcionamento, todos os 350 leitos do Hospício Dom Pedro II (ligado

à Santa Casa de Misericórdia até a instauração da República) estavam ocupados.

Devido à grande procura e a necessidade de alojar os loucos em locais

especializados para tratamento moral, foram construídos manicômios em outros

Estados do país, em instalações provisórias e muitas vezes precárias, seguindo o

modelo francês de Esquirol – isolamento dos doentes para tratamento, sendo

condição para a cura, visto que ficariam afastados da sociedade e da família, onde

estariam as causas da loucura (LAVRADOR et al, 2001b). A docilidade e a

obediência eram internalizadas pelo pensionista através do trabalho, das normas de

comportamento, sendo eles submetidos à constante vigilância e inspeção. Em 1890,

devido à Proclamação da República, o Hospício Dom Pedro II passa a chamar-se

Hospital Nacional dos Alienados e é colocado exclusivamente sob tutela do Estado

(COSTA, 1989).

Ao final do século XIX, o orçamento destinado à assistência psiquiátrica é

drasticamente reduzido, o que leva à deterioração do tratamento aos internados no

Hospital Nacional. Em 1902, Juliano Moreira foi nomeado diretor deste Hospital e a

Psiquiatria no Brasil recupera suas forças com a primeira Lei Federal de Assistência

aos Alienados (1903), e a criação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia

e Medicina-Legal em 1907.

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Segundo Costa (1989), a Psiquiatria passa a ser especialidade médica

autônoma no Brasil apenas em 1912, o que leva ao surgimento de variados

estabelecimentos para os classificados como “doentes mentais”, principalmente no

Rio de Janeiro, como o Manicômio Judiciário, a Colônia de Jacarepaguá, dentre

outros. Entretanto, os psiquiatras brasileiros enfrentavam a dificuldade de delimitar o

campo do saber psiquiátrico.

Em 1923, é criada, no Brasil, a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) pelo

psiquiatra Gustavo Riedel (COSTA, 1989). Os objetivos iniciais eram de melhorar a

assistência aos internados renovando os profissionais e reformando os

estabelecimentos psiquiátricos. A partir de 1926, psiquiatras passaram a se

preocupar, mais do que com a cura da doença mental, com a prevenção da loucura

em indivíduos normais, atuando em meios escolares, profissionais e sociais – o

movimento higienista em saúde mental.11 Segundo esses pensadores, “os

fenômenos psíquicos e culturais explicavam-se, unicamente, pela hipótese de uma

causalidade biológica que, por sua vez, justificava a intervenção médica em todos os

níveis da sociedade” (COSTA, 1989, p.72). A Psiquiatria busca controlar, também, o

domínio cultural.

No final da década de 70, com a chamada Crise da Dinsam – Divisão

Nacional de Saúde Mental, teve início o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Este era o órgão do Ministério da Saúde responsável pelas políticas públicas em

saúde mental. Os profissionais das quatro unidades12 da Dinsam deflagraram greve

em abril de 1978. No bojo dessa discussão nasce o Movimento dos Trabalhadores

em Saúde Mental (MTSM), denunciando as precárias condições de trabalho, as

irregularidades no que diz respeito à equipe de trabalhadores, bem como o descaso

para com a população internada. O objetivo desse movimento era construir

propostas de transformação da assistência psiquiátrica, regularizar a situação dos

trabalhadores e humanizar os serviços, uma vez que o modelo vigente de tratamento

da “doença mental” era considerado estigmatizante e cronificador (AMARANTE,

1998). A opinião pública foi intensamente mobilizada devido às condições

desumanas, a violência e a corrupção presentes no hospício público, sendo 11 A proposta deste trabalho não é levantar a história da Psiquiatria no Brasil. A respeito da Liga

Brasileira em Higiene Mental, ver Jurandir Freire Costa, 1989. 12 Todas no Rio de Janeiro: Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel, Colônia Juliano Moreira e

Manicômio Judiciário Heitor Carrilho.

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fundamental para uma maior visibilidade e atenção para este movimento de

mudança (DELGADO, 2001).

A partir daí são organizados congressos e encontros nacionais e regionais de

psiquiatria e de trabalhadores em saúde mental. Já em 1979, no III Congresso

Mineiro de Psiquiatria, “grupos de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia

propõem a realização de trabalhos ‘alternativos’ na assistência psiquiátrica”

(AMARANTE, 1998, p.55). Depois de diversos encontros, desencontros e debates é

formulada a estratégia de diminuir os leitos psiquiátricos, dando vez aos recursos

extra-hospitalares de assistência.

Devido às discussões sobre Reforma Psiquiátrica e ao Movimento dos

Trabalhadores visando uma Luta Antimanicomial, surgem, no Brasil, os chamados

serviços alternativos. Receberam essa denominação por se distinguirem do

atendimento psiquiátrico tradicional. Entretanto, esta denominação não agradava

aos profissionais em saúde mental, porque parecia que esses serviços eram uma

alternativa ao manicômio, mas não no sentido de acabar com o internamento asilar,

mas sim, de ser mais uma possibilidade além da existência e funcionamento do

manicômio, sendo este a forma e local principais de tratamento. Na afirmação de

Desviat

a sobrevivência do manicômio distorce qualquer organização de serviços alternativos. Ele se mantém como um saco sem fundo, uma tentação permanente diante do incômodo ou da impotência técnica [...], um recurso fácil na contratransferência das equipes profissionais ou na ignorância ou oportunismo (1999, p.89).

Por isso foram então denominados pelo movimento de pessoas contra a

internação em hospícios de Serviços Substitutivos em Saúde Mental – a fim de

substituir o modelo asilar-manicomial, cuja forma de assistência não mais

correspondia às propostas dos trabalhadores, usuários e seus familiares. Esses

serviços visam, desde então, substituir a internação psiquiátrica tradicional,

propondo outras maneiras de cuidar e dar assistência aos que passam pela

experiência da loucura, bem como construir outras possibilidades de lidar com a

loucura, extinguindo os hospitais psiquiátricos. Dentre eles podemos citar os Centros

de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), Centro

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de Atenção Diária (CAD), Centro de Atividades Integradas (CAIS), Hospitais-dia e

Serviços Residenciais Terapêuticos. São serviços criados a partir de

experimentações e propostas para melhor atender aos que passam pela experiência

da loucura.13 Legislações sobre esses serviços foram criadas e entraram em vigor

após a experiência ter sido construída e implantada pelos profissionais que

acreditam no movimento de luta antimanicomial.

As lutas pela proposta de desinstitucionalização da loucura, pelo fim da lógica

manicomial, tiveram início, no Brasil, na segunda metade dos anos 80, sob influência

da Reforma Italiana protagonizada por Franco Basaglia. Em 1987, é consolidado o

lema por uma sociedade sem manicômios pelo MTSM, buscando alianças com o

movimento popular e a classe trabalhadora organizada. Houve, como afirma

Amarante,

uma ruptura [...] no processo da reforma psiquiátrica brasileira, que deixa de ser restrito ao campo exclusivo, ou predominantemente, das transformações no campo técnico-assistencial, para alcançar uma dimensão mais global e complexa, isto é, tornar-se um processo que ocorre, a um só tempo e articuladamente, nos campos técnico-assistencial, político-jurídico, teórico-conceitual e sociocultural” (1998, p.75-76).

Diversos são os movimentos que têm sido constituídos desde então,

contribuindo para o processo de Reforma Psiquiátrica, a saber: Conferências

Nacionais de Saúde Mental, Movimento de Luta Antimanicomial, fechamento de

instituições que desrespeitavam os direitos humanos de pessoas internadas,

constituições de serviços que substituem o internamento asilar e moradias para

egressos de hospitais psiquiátricos, bem como cooperativas e associações de

usuários e familiares de serviços psiquiátricos.

É importante destacar que o movimento de Reforma Psiquiátrica teve grande

repercussão no país, no primeiro semestre de 1989, quando a Secretaria de Saúde

do Município de Santos/SP interveio na Casa de Saúde Anchieta – hospital

psiquiátrico privado conveniado à previdência social – devido a denúncias de maus-

13 O primeiro CAPS foi criado em São Paulo em 1987, e o primeiro NAPS em Santos em 1989. Esses

serviços foram normatizados em 29 de janeiro de 1992, através da portaria ministerial nº 224 que dispõe sobre o atendimento ambulatorial em unidades especializadas NAPS e CAPS, a fim de oferecer uma assistência substitutiva ao modelo hospitalocêntrico (AMARANTE, 1998).

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tratos, desrespeito aos direitos humanos, morte por espancamento e casos de

suicídio no manicômio conhecido na cidade como “Casa dos Horrores” (NICÁCIO,

1994). Este hospital psiquiátrico abrigava quase o dobro de pacientes internados

que o número de leitos existentes, além de não haver profissionais suficientes, nem

recursos adequados para alimentação e higiene.

Conforme relata Fernanda Nicácio, logo nos primeiros dias de intervenção,

grandes mudanças aconteceram naquele hospital: os quartos de isolamento foram

desativados, bem como a eletroconvulsoterapia, os níveis de alimentação e higiene

foram elevados para padrões humanos, as grades foram retiradas para que todos

pudessem circular pelos corredores e pátios e visitas foram permitidas aos internos e

à instituição. Buscava-se resgatar a dignidade e cidadania que os internos haviam

perdido tendo como base os conceitos de autonomia, liberdade e responsabilidade

(NICÁCIO, 1994). Por ordem judicial, a intervenção foi suspensa em uma semana,

mesmo com comprovações das arbitrariedades que aconteciam naquela instituição –

mas em uma semana essa liminar foi cassada e o processo de intervenção foi

retomado. Neste retorno, o secretário de Saúde, David Capistrano Filho e a prefeita

de Santos, Telma de Souza, foram recebidos com aplausos dos internados na Casa

Anchieta.

Buscava-se, de fato, colocar a doença mental “entre parênteses”, nas

palavras de Basaglia (1985), para que as necessidades do sujeito pudessem

aparecer – o que não significa negar a loucura e o sofrimento, mas não mais reduzir

esta experiência de vida a “doença mental”. Espaços de convivência, de

coletividade, de expressão de desejos, vontades e necessidades foram criados, o

que levou a experimentações, a projetos e a outras possibilidades de atenção, de

cuidado, de vivência cotidiana. Conforme afirma Nicácio (1994), os interventores, os

movimentos sociais engajados, familiares, internos, dentre outros atores sociais

perceberam a necessidade de transformar um modelo historicamente construído de

atenção à loucura. Aos 100 dias de intervenção na Casa Anchieta foi organizada

uma festa na Praça Mauá, em frente à Prefeitura de Santos. Trabalhadores,

usuários, familiares, políticos convidavam a todos a conhecer a diversidade e

construir contatos com a loucura. “A desmontagem do manicômio implicava um

processo de transformação cultural da lógica da exclusão como natural e imutável”

(NICÁCIO, 1994, p.56) que até então dominava.

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Não só contra a violência esta intervenção lutava. Aproximando novamente o

louco da cidadania abandonada, questões diferentes dos problemas internos ao

manicômio surgiram, criando outros contatos, como afirma Nicácio (1994, p.68),

“entre os problemas da loucura e os da vida cotidiana”. Não havia um modelo ideal a

ser seguido, mas havia a necessidade urgente de destruir aquela hegemonia do

poder psiquiátrico excludente, violento e desumano.

A intervenção no hospital, levou à necessidade de produzir instituições novas

que não reproduzissem a lógica manicomial e que atendesse às diferentes

necessidades dos usuários e familiares. Fechar uma instituição não significa apenas

retirar os internados e trancar os portões. O fechamento da Casa de Saúde Anchieta

– onde existiam 20 leitos em 1994, e quase todas as internações eram de pessoas

provenientes da Baixada Santista (NICÁCIO, 1994) – foi um processo longo e um

marco importante na história da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial no

Brasil. A partir deste movimento, que teve grande repercussão na mídia, foi

implantado em Santos “um sistema psiquiátrico que se definia como completamente

substitutivo ao modelo manicomial” (AMARANTE, 1998, p.83): uma rede de serviços

que englobava NAPS, associações, Centro de Convivência, cooperativas,

instituições de residencialidade dentre outros, estendendo-se ao território14 –

entendido aqui, como demonstra Oliveira (2004), espaço tanto físico e geográfico

como espaço de trocas e relações sociais, espaço de atitudes de diferentes

pessoas, de experiências de vida.

Sabendo que é possível assistir e cuidar de pessoas que passam pela

experiência da loucura fora dos muros manicomiais, como mostrou a experiência em

Santos, no mesmo ano o Deputado Paulo Delgado (PT/MG) apresentou o Projeto de

Lei 3.657/89, regulamentando os direitos dos loucos e indicando a extinção

progressiva dos hospitais psiquiátricos, para que o cuidado e tratamento fossem

realizados em instituições não manicomiais. Esta proposta esquentou ainda mais a

discussão acerca da loucura e da assistência em psiquiatria e contribuiu para

aprofundar as discussões sobre as políticas em saúde mental no âmbito

governamental. E, segundo Desviat (1999), outros manicômios particulares foram

fechados por não terem condições de permanecerem funcionando.

14 A noção de Território será abordada no terceiro capítulo.

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nos com pessoas fragilizadas e mesmo assustadas com uma forma de vida que as

mortifica nos manicômios, e esses movimentos em prol de uma Reforma Psiquiátrica

buscam destacar nas pessoas, por tanto tempo internadas, o desejo pela vida, pela

possibilidade de viver de uma maneira que não seja a espera contínua pela cura em

um manicômio – cura como um fim a se chegar, como, segundo afirma Teixeira,

uma “intervenção sobre algo que está funcionando de forma errada, para que volte a

funcionar de forma adequada”(1996, p. 74). Teixeira propõe, então, a noção de

“cura-meio”, ou seja,

pensar a cura como um trajeto de tratamento, onde existe maleabilidade em relação aos sujeitos envolvidos, onde cada momento tem um valor, onde uma norma de recuperação final não se impõe a todo instante, tem um efeito benéfico, pois estabelece possibilidades clínicas mais amplas (1996, p. 74).

O termo Reforma Psiquiátrica aqui adotado, assim como é utilizado nos

espaços de discussão e na literatura sobre saúde mental no Brasil, vem sofrendo

algumas críticas. Quando falamos em “reforma”, alguns autores, conforme afirma

Amarante (2003), consideram apenas modificações técnico-estruturais, já que este

termo vem sendo historicamente utilizado para denominar modificações

superestruturais, superficiais, re-organizando serviços, práticas e modelos de

assistência – é a psiquiatria reformada16 da qual falam Rotelli, De Leonardis e Mauri

(2001). Contudo, uma reforma pode ser uma reforma estrutural, subversiva. E é esta

a proposta do Psiquiatra Paulo Amarante, pesquisador da ENSP/Fiocruz: superar a

noção de reforma como uma modificação administrativa ou meramente técnica,

ultrapassando a idéia de psiquiatria reformada. Segundo Amarante (1997, p. 165),

a Reforma Psiquiátrica da qual se está falando não diz respeito, exclusivamente, à medidas de caráter tecnocientífico ou organizacional. Reforma Psiquiátrica, neste contexto, é um processo permanente de construção de reflexões e transformações que ocorrem a um só tempo, nos campos assistencial, cultural, e conceitual.

Nesse sentido, a proposta do movimento de Reforma Psiquiátrica não é

chegar a um “ponto ótimo” de assistência aos que passam pela experiência da

16 Conforme discutido no início do capítulo um desta dissertação.

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loucura e a seus familiares. O processo de transformação é contínuo e permanente,

sofrendo diversas interferências e modificações, apostando em formas mutantes de

atenção, assistência e cuidado aos usuários dos serviços psiquiátricos. Não basta,

portanto, debater e discutir ações à luz da Reforma Psiquiátrica, se não paramos

para analisar criticamente o que vem sendo feito. Este processo não visa apenas

retirar pacientes dos manicômios e fechar os leitos psiquiátricos, ou seja, não basta

ficar no discurso consensual de que os processos da Reforma e da Luta

Antimanicomial são importantes.

Há palavras que, pelo uso corrente, parecem dispensar definições. Seriam consensuais; todos saberiam do que estão falando em uma simples leitura ou enunciação. Este caráter consensual tem efeito duplo: ora reforça a palavra pelo efeito de unanimidade e obviedade que lhe confere, ora enfraquece porque, lenta e silenciosamente, retira da palavra a possibilidade de ser vivificada pela verificação de suas relações com as ‘coisas’ às quais se referiria (NEVES, 1998, p. 92).

É necessário, portanto, não se limitar a utilizar o termo “Reforma Psiquiátrica”

como se falar nesse processo já produzisse transformações no modelo manicomial e

“hospitalocêntrico” de assistência. De maneiras diversas os que passam pela

experiência da loucura são tutelados, moralizados, infantilizados, considerados

incapazes mesmo quando tantos discursos consensuais falam da melhoria das

condições de vida para os institucionalizados e/ou egressos dos manicômios. É

preciso, sim, avaliarmos continuamente nossas práticas e o que vem sendo,

efetivamente, produzido para que saberes/práticas não sejam naturalizados como

ideais e, como afirma Teixeira (1996), estarmos atentos para que o sujeito tenha

possibilidades de construir um percurso e um outro território existencial da melhor

maneira possível.

Contudo, talvez a segregação do louco ainda seja reproduzida mesmo fora

dos muros manicomiais. Talvez sejam vícios, hábitos de se pensar e viver com a

loucura longe do dia a dia, isolada, institucionalizada. Especialistas já afirmavam,

desde o século XIX, que lugar de louco é no hospício e, segundo Pinel e seu

discípulo Esquirol, o asilo é, por si só, uma instituição terapêutica, ou seja, uma arma

poderosa contra a “doença mental”, como mostram Ewald (1993) e Amarante (1996)

em seus trabalhos. Essa noção naturalizada é difícil de ser quebrada. Ser difícil não

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quer dizer que é impossível, como mostram algumas ações que contribuem para o

processo de desinstitucionalização da loucura, a saber: passe livre em transportes

públicos, benefícios do INSS, programas de políticas públicas que visam a inserção

dos usuários de serviços psiquiátricos no meio social, através dos CAPS e outros

serviços extra-hospitalares, não mais enclausurados em asilos.

Mesmo com novas propostas, programas federais, atividades e tantas

discussões, algumas práticas reprodutoras de uma lógica excludente e paralisante

parecem ser perpetuadas, como posturas rígidas sobre o lugar do louco e do

profissional, certezas que impedem outras experimentações e vivências, medicação

exagerada, políticas de descaso e de exclusão para com a saúde mental. É o que

Lavrador e Machado chamam de “‘desejos de manicômios’, que se expressam

através de um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de

hierarquizar, de oprimir e de controlar” (2001c, p.46). De maneiras diversas os que

passam pela experiência da loucura são tutelados, moralizados, culpabilizados,

infantilizados, considerados incapazes mesmo quando tantos discursos consensuais

falam da melhoria das condições de vida para os loucos institucionalizados e/ou

egressos dos hospitais psiquiátricos. Não basta haver leis para que haja mudanças,

conforme afirma Marchewka,

Com a Lei [nº 10.216/2001], deve ocorrer uma verdadeira mudança de mentalidade. Uma coisa é certa: não se mudam conceitos ou formação com passes de mágica. Não se alteram sistemas de interpretação apenas porque algo novo flui [...]. Em nossa sociedade, ainda permanece a idéia de que o doente mental deva ser tutelado, e que a doença mental relaciona-se com periculosidade criminal. Por isso, devemos enfrentar o estigma que gravita em torno destas construções do século XIX (ca. 2003, p. 10).

Então, como pensar a loucura na atualidade? O que tem sido produzido?

Como está a implementação de Serviços Residenciais Terapêuticos no Estado do

Espírito Santo? Como os profissionais em saúde mental envolvidos têm discutido e

trabalhado essa proposta? As moradias extra-hospitalares para egressos de

hospitais psiquiátricos marcariam o fim do enclausuramento e dos manicômios

invisíveis, ou estão reproduzindo a lógica manicomial? Como as dificuldades no

processo de desinstitucionalização da loucura vêm sendo trabalhadas?

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1.2. DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO BRASIL

A saída de internos de hospitais psiquiátricos para moradias extra-

hospitalares foi regularizada no Brasil no ano 2000, com as portarias 106 e 1.220,

depois que residências para egressos de manicômios já haviam sido implantadas

em alguns municípios do país. Segundo Gomes (2004), em 1990 foi inaugurada a

“Pensão Nova Vida” em Porto Alegre (RS), para egressos de hospital psiquiátrico; e

em 1994 foi implantada uma moradia em Bagé (RS). Em Campinas (SP), segundo

Furtado e Pacheco (1997), a primeira casa foi inaugurada em dezembro de 1991,

sendo chamada de “Lar Abrigado” e a segunda moradia, chamada “Pensão

Protegida” foi implantada em janeiro de 1995. As duas casas estavam ligadas ao

Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, instituição filantrópica em convênio com a

Prefeitura Municipal de Campinas. Segundo Nicácio (1994), em 1993 foi inaugurado,

em Santos (SP), o “Lar Abrigado Manoel da Silva Neto”, conhecida como “República

Manequinho”, com moradores vindos da Casa de Saúde Anchieta, que sofrera

intervenção municipal. Este nome foi escolhido pelos moradores em homenagem ao

Manequinho, ex-interno da Casa Anchieta que faleceu, por motivos clínicos, dias

antes de mudar-se para a casa. No município do Rio de Janeiro a primeira moradia

foi implantada em 1988, chamada “Casa Paulo Barreto 70”, para egressos do

Instituto Philippe Pinel. Uma moradia filiada ao Instituto de Psiquiatria da

Universidade do Brasil (IPUB) foi inaugurada em novembro de 1994 (BAPTISTA,

ZWARG e MORAES, 2001b). Foram, então, acolhidas diversas experiências,

dificuldades, propostas e diferentes projetos já em andamento. Com a legislação,

todas as moradias para ex-internos de asilos manicomiais passaram a ser chamadas

de Serviços Residenciais Terapêuticos – um dos diversos serviços substitutivos ao

modelo “hospitalocêntrico” de cuidado com aqueles que passam pela experiência da

loucura. A Portaria Ministerial nº 106/00 do Ministério da Saúde estabelece que

sejam

moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares que viabilizem sua inserção social (BRASIL, 2004, p.100).

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Contudo, que serviço é este oferecido a egressos do hospital? Essas pessoas

foram expropriadas de suas casas, de suas famílias, de amigos, de prazeres e da

vida que levavam antes de serem internadas. Estes “serviços” devolverão a elas

todos esses anos de internação e isolamento? A proposta é a implantação de uma

casa destinada a pessoas que perderam quase tudo, se não tudo – muitos já não

têm mais contato algum com familiares nem com a sociedade contemporânea.

A partir das determinações Federais na Portarias 106 e 1.220, é importante

levantarmos algumas questões: os moradores serão tratados nesta casa? São locais

destinados para que, os lá residentes, recebam cuidado e tratamento? Ou estas

residências serão um local de moradia, onde eles possam cuidar de si mesmos, uns

dos outros e da casa juntos – como em uma “república de estudantes”? Em

repúblicas estudantis existentes em diversos municípios do Brasil existem diferentes

moradores, com diferentes bagagens e experiências de vida, diversas necessidades

e desejos. Eles se encontram e passam a morar em uma mesma residência, tendo

que conviver juntos em vários momentos, tendo, geralmente, um espaço só seu,

único, para suas coisas. Pessoas que devem estabelecer regras para convivência

naquela moradia, mas cada um constrói seu caminho, suas experiências,

expectativas e projetos de vida.

Uma casa para egressos de hospitais psiquiátricos funcionaria de forma

similar. Os moradores têm expectativas distintas, desejos diversos, dificuldades em

diferentes atividades, projetos variados. O que eles têm em comum é terem vivido

parte de suas vidas dentro de um asilo manicomial – e ainda assim, essas

experiências são diversificadas. Cada uma dessas moradias tem um perfil,

apresentam características distintas e às vezes, muito divergentes dependendo do

número de moradores, do tempo de internação de cada um deles, das atividades

que realizam e que querem vir a desenvolver, da idade dos moradores. Nesse

sentido, as moradias extra-hospitalares não devem ser consideradas da mesma

maneira e com o mesmo funcionamento já que em cada uma delas é atravessada

por variadas forças, diferentes atitudes são tomadas e são diversos os efeitos em

cada morador, nos profissionais e na comunidade. Na casa onde moram cinco

mulheres egressas do Hospital Adauto Botelho, por exemplo, elas cuidam da casa,

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varrem, limpam o banheiro, a louça. Rosana17, uma das moradoras, quer estudar,

aprender a bordar, namorar... Domitila, outra moradora, não se interessa por

bordados. Já os homens da casa de Santana andam mais pelas ruas, vão à praça

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como os CAPS, NAPS, Hospitais-Dia e ambulatórios, como demonstram Furtado e

Pacheco (1997) em seus trabalhos sobre as primeiras moradias extra-hospitalares

em Campinas. Vitor, estagiário de psicologia em uma das casas para egressos do

Hospital Adauto Botelho diz que pensa muito sobre essa questão das casas serem

ou não um serviço:

“eu me pego pensando nisso direto: até que ponto isso também não se torna um serviço? [...] Nós somos estagiários em psicologia aqui dentro, nós temos técnicos de enfermagem, nós temos enfermeiros. Não deixa de ser um lugar recheado de profissionais. Então não é uma simples casa, é uma casa diferenciada. Aí eu acho que tem que se tomar esse cuidado de não se transformar em um serviço”.18

Questionamos a nomenclatura de Serviço Residencial Terapêutico porque

acreditamos que a rede extra-hospitalar deva ser expandida, e que as esferas da

vida possam ser efetivamente diferenciadas, em espaços físicos distintos – bem

diferente do que acontecia enquanto internos de hospitais psiquiátricos. Adotamos o

termo Dispositivo Residencial19 por sua conotação de colocar algo em movimento,

em funcionamento. Segundo Heliana Conde Rodrigues (1997), “‘encarar algo como

dispositivo’ é desprender-se do instituído conforto das representações macro-

reativas para embarcar na deliciosa aventura micro do incessante engendramento

processual do real” (p.195. grifo do autor). Não devemos nos deixar prender a

modelos já existentes de atenção, de cuidado, de outras residências para egressos

de hospitais psiquiátricos, nem às normatizações e generalizações do Ministério da

saúde, mas possibilitar experimentações, outras construções e novas constituições

do fazer, do viver nessas moradias, habitando diferentes espaços físicos que não o

manicômio. Cada moradia é distinta da outra: diferentes em sua construção,

diferentes moradores, diferentes cuidadores, diferentes vizinhos – sem residências

para egressos de hospitais psiquiátricos que se pretendem universais. Como afirma

Deleuze (1988b, p.05),

cada dispositivo é uma multiplicidade, na qual operam tais processos em devir, distintos daqueles que operam no outro [...]. Todo dispositivo se define assim pelo seu teor de novidade e

18 As falas das pessoas entrevistadas durante a pesquisa estão entre aspas e em itálico. 19 Termo utilizado por Baptista, Moraes e Moulin (2002?) e Lavrador e Machado (2005).

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criatividade, que marca ao mesmo tempo sua capacidade de se transformar, de se fissurar em proveito de um dispositivo futuro, ao menos por outro lado, em proveito da confusão de forças sobre suas linhas mais duras, mais rígidas, mais sólidas.

Tendo a casa como dispositivo buscamos – moradores, cuidadores, equipe

técnica, estagiários, vizinhos – permitir novas experimentações e movimentos,

rupturas de linhas rígidas, atualização de outras forças, para que o processo de

desinstitucionalização da loucura não seja tido como verdade absoluta sendo mais

uma institucionalização. Como diz a estagiária de Psicologia Fabiana, acontecem

coisas “indizíveis e quase invisíveis” que ela chama de “trabalho de formiguinha”,

como o fato de Rogério, morador da casa masculina, querer ligar para o irmão e

hoje, apesar de não discar por não conhecer os números, ele fala ao telefone com

quem quer que seja. Quem sabe Rogério se interesse em conhecer os números e

queira aprender a ler!? Rosana, moradora do dispositivo residencial em Itacibá dizia,

na primeira visita que fiz às casas, que não sabia falar ao telefone, que só sabia falar

“alô”. Em uma manhã, exatamente onze meses desde a mudança dela para a casa,

recebi um telefonema de Rosana. Ela queria confirmar se eu ia ao curso de bordado

com ela naquela tarde, porque a cuidadora não poderia ir. Eu fiquei admirada,

porque o curso já acontecia semanalmente há quase três meses e ela nunca havia

confirmado nossa ida. Um outro morador, Jerônimo, diz que não quer aprender só

no CAPS, que ele quer saber mais. É cotidianamente que se constroem caminhos e

projetos de vida. Como falou Letícia,20

“muita coisa mudou depois que eles saíram do Adauto. Novas questões foram aparecendo, que não apareciam lá dentro do hospital”.

Para Deleuze (1988b) um dispositivo é composto de linhas de força distintas,

que seguem diferentes direções, ora mais unidas, ora sem equilíbrio determinado;

linhas que atravessam todo o dispositivo, misturadas, emaranhadas às demais

linhas suscitando, às vezes, mutações, transformações, outras vezes suscitam

outras possibilidades – que se atualizam, acontecem, ou em nada modificam o

20 Extensionista do programa “Hecceidades: Programa de Pesquisa e Intervenção em Saúde Mental”

do Departamento de Psicologia da UFES.

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funcionamento das demais linhas que constituem o dispositivo. Nesse sentido, o

dispositivo residencial não permanece o mesmo em todos os instantes, porém sofre

influências, interferências diversas o que leva a diversas possibilidades,

modificações, dúvidas e diferentes idéias, ou mesmo permanência de determinada

forma de funcionamento. Como em todo dispositivo – o que não é fixo e invariável –

é necessário distinguir o que é esta residência, o que não é mais e o que esta casa

está se tornando – um espaço de convivência e de bem estar? um espaço cheio de

regras e sem discussões? um local pelo qual os moradores sentem-se

responsáveis? mais um lugar de espera, vendo a vida passar? ou um lugar de

possíveis e novos projetos de vida e caminhos? É necessário, então, estarmos

sempre atentos para os movimentos que se configuram no campo social a partir das

atividades e relações das e nas casas para a não manutenção da lógica manicomial

mesmo fora dos muros asilares.

1.3. DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO ESPÍRITO SANTO

A proposta de implementação de moradias para ex-internos de hospitais

psiquiátricos no Espírito Santo teve início em 1998.

“Foi em 98 que a gente começou com um projeto de Lar Abrigado [...]. A princípio a gente pensou em estar fazendo um trabalho com famílias, para estar re-inserindo na família e na sociedade. E depois a gente viu que a maioria por ter um longo tempo de permanência, não tinha mais vínculo familiar, já tinha se perdido. Até pela idade, os familiares diretos já tinham falecido [...] .E a gente montou um projeto de Lar Abrigado na enfermaria 19 naquela época naqueles moldes que existiam [...]. Não tinha legislação ainda proibindo [ser] dentro do hospital. A gente queria abrir uma porta para fora da 19, que fosse para o CAPS, que também estava se estruturando [...] A gente sabia como queria cria, não sabia como iria manter essas casas, quem iria investir, porque não tinha essa legislação toda.”

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Jandira21

Em 2000, um projeto foi elaborado para a construção de quatro casas, com

seis moradores cada, em espaço pertencente ao Hospital, em Cariacica /ES, mas

fora de seus muros.

“A gente fez um projeto de residência, completo, de construção das casas; a gente conseguiu fazer uma parceria com a COHAB,22 a COHAB iria construir [...]. Estava todo pronto para quatro residências [...]. a verba foi desviada [...] não chegou aqui [...]. A gente tinha tudo. Os engenheiros vieram, fizeram a planta, a gente trabalhou junto com eles [...]. Tava com toda a verba destinada aí antes de começar o projeto a verba não chegou, quer dizer, não concretizou. E aí a gente já tava trabalhando os pacientes também [...]. Então a gente está trabalhando com estes que saíram desde aquela época.”

Jandira

A partir de 2003, profissionais do Hospital Adauto Botelho, único hospital

psiquiátrico público do Estado, reiniciaram a discussão sobre a implantação de

moradias para egressos de manicômios com a Coordenação Estadual de Saúde

Mental. Foram efetivados, portanto, espaços de discussão, experimentação e

produção de conhecimentos. A disponibilização dessas habitações possibilita

rupturas com modelos arcaicos e psiquiatrizantes de lidar com a loucura no cotidiano

e propõe novas políticas no campo da saúde mental. Nesse sentido, buscando

transformar a assistência e o cuidado para com aqueles que passam pela

experiência da loucura, muitas discussões foram retomadas, como a questão da

verba para as casas, da tutela e controle em excesso sobre os futuros moradores

dessas residências, além de discussões para decidir se as casas seriam alugadas

ou construídas, para a “escolha” dos internos que sairiam do hospital num primeiro

momento, sobre “cuidadores” para as casas e seus moradores, sobre pagamento

desses trabalhadores, sobre manutenção e gerenciamento das casas e outras

tantas discussões.

21 Assistente Social da Unidade de Ressocialização do Hospital Adauto Botelho e participante da

Equipe para Implementação das moradias extra-hospitales. 22 Cooperativa Habitacional do Espírito Santo.

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Ao final de novembro de 2003, foram criadas duas enfermarias “especiais” no

Hospital Adauto Botelho, chamadas “pré-lares”. Uma feminina e outra masculina,

para os pacientes escolhidos pela equipe do Hospital que iriam habitar as

residências.23 Esta escolha não é feita ao acaso. É necessário um mínimo de

autonomia dos internos para que eles possam sair do hospital e construir um outro

território existencial. Muitos desses pacientes poderiam ter tido alta, contudo não

possuíam suporte familiar ou um outro lugar para morar. Esses novos setores

criados no Adauto Botelho têm como objetivo “preparar” os pacientes, por tanto

tempo internados, para uma vida fora do hospital, nos dispositivos residenciais, em

suas casas.

“Na ressocialização, como um todo, a gente trabalha autonomia, de uma certa forma, alimentação, cuidado das roupas, armário; mas aí vai pro pré-lar e tem que dar melhores condições pra... porque não tem armário pra todo mundo, tem roupa individualizada, mas a gente não pode fazer esse trabalho forte e tal com todos. Aí a gente pega, na ressocialização, a gente escolhe [...] e passa pro pré-lar pra estar avançando nesse tipo de trabalho – mais pra rua, mais pra andar, aprender a cuidar da própria roupa.”

Jandira

As atividades das enfermarias pré-lares eram destinadas a promover a

autonomia dos pacientes no que diz respeito aos cuidados com a arrumação (sua e

a da casa), atividades de compra, de efetuar pagamento e conferir o troco, circular

pelo bairro. São pessoas que viveram em instituições manicomiais por longo

período, não lidavam com atividades corriqueiras como comprar pão, ir ao

supermercado, lavar roupas, ir ao salão de beleza cortar cabelo, há muitos anos. Os

cuidados com esses internos foram intensificados para que eles estivessem

“prontos” para a saída do hospital, desenvolvendo a cada dia suas

responsabilidades, capacidades e autonomia. Mas, quando se está pronto? Existe

um ponto ótimo de autonomia para sair das enfermarias pré-lares e ir para as

residenciais? Como afirma Jandira,

23 Depoimento dado por participantes da equipe do programa “Hecceidades: Programa de Pesquisa e

Intervenção em Saúde Mental” do Departamento de Psicologia da UFES em 2004.

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“hoje a gente sabe que os internos podem ir pras residências, porque a evolução vai ser lá. Não dá para julgar essa autonomia aqui dentro [do hospital], porque as leis são outras.”

“Nos tempos do Adauto você não consegue caminhar muito, se está sob uma porção de coisas institucionais. Tem aquele ranço ‘nada pode, nada vai dar certo’.”

Sheila24

“Quando nós viemos para cá o que tinha mais dificuldade era o Cristóvão. Teve um tempo que a gente chegou a até a perder a esperança sobre ele. Mas ele deu uma virada, mudou bastante. Teve uma melhora boa mesmo. Juro que a gente achava que ele não ia se adaptar à residência, mas ele está muito bem. Tipo assim, ele pegava a toalha que ele se secava, botava no chão e secava os pés. Às vezes usava a toalha como papel higiênico, para se limpar. Agora ele não faz mais isso.”

Simone25

As duas primeiras residências para egressos do Hospital Psiquiátrico Adauto

Botelho, no município de Cariacica/ES, foram inauguradas em 26 de outubro de

2004 – uma feminina, com cinco moradoras e outra, com oito moradores do sexo

masculino. São quatro cuidadores/plantonistas em cada casa, que se revezam em

turnos de 12 por 36 horas, e há, em cada uma delas, uma diarista/cozinheira, que

trabalha nas moradias de segunda a sexta-feira.

As casas foram escolhidas pela equipe técnica do hospital psiquiátrico, e os

internos que iriam morar nessas residências foram conhecer as casas antes da

mudança. Os móveis foram escolhidos, também, por esta equipe para que a

mudança não demorasse ainda mais, e são praticamente iguais nas duas moradias,

de cor clara: camas e mesas de cabeceira para cada morador, armários, mesa com

cadeiras, fogão, geladeira, dois sofás, um rack para aparelho de TV e uma televisão,

máquina de lavar roupas e telefone – ligado ao Hospital Adauto Botelho. Jandira

coloca a correria para se alugar as casas e comprar os móveis, já que o

24 Terapeuta Ocupacional do CAPS Moxuara – freqüentado pelos egressos do Adauto Botelho. 25 Diarista (auxiliar de serviços gerais) da casa masculina. Trabalhava na cozinha do hospital e foi

chamada para trabalhar em um dos dispositivos residenciais.

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levantamento do pregão para o aluguel das casas e compra dos móveis demorou

quase oito meses.

“Na hora de abrir a casa, que iria abrir em julho, não tinha orçamento, porque o financeiro não deu conta [...]. Eu acabei indo sozinha ver as casas, porque era uma semana de prazo para arranjar as casas [...]. Eu vi umas cinqüenta casas mais ou menos. Aí uma era pequena; a outra num lugar muito difícil, muito inadequada e tal [...]. Só que aí não tinha os móveis. Aí o pessoal não deu conta de fazer o orçamento. Aí volta Jandira pra ir, em dois dias [...] pegar o primeiro orçamento [...]. Tivemos que sair nas vésperas, na semana de inauguração pra comprar alguns itens que foram cancelados no pregão; aí saímos aqui em Itacibá pra comprar geladeira, fogão...”

Jandira

Vitor participa do programa de extensão da UFES desde antes da

inauguração das casas, e acompanhou o processo de implantação dessas moradias

e da mudança dos moradores:

“Eu senti [...] um empenho muito grande por parte de algumas pessoas [...]. Empenho mesmo, tipo assim: parou a vida pra poder cuidar disso. [...] correu atrás de tudo, viu tudo sozinha [...]. Mesmo porque a pressão do Estado, das esferas superiores em cima desse pessoal do hospital era muito grande, então eles tinham que colocar a casa [...] pouca gente com muito empenho e pouco tempo”.

A casa das mulheres está localizada em Itacibá, um bairro central de

Cariacica, em meio a outras residências e muitos estabelecimentos comerciais. Fica

há duas quadras da avenida principal, em um local agitado, com muitos carros

passando. São dois quartos – um para três pessoas e no outro, dormem duas

moradoras.

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Fig. 1: Casa das mulheres em Itacibá.

Fig. 2: Varanda da casa das mulheres em Itacibá.

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A casa dos homens fica em um bairro mais calmo, afastado do centro –

Santana. É uma casa grande, de dois andares, com quintal, piscina e terraço com

churrasqueira. Na sala de baixo, estão os sofás, e a TV. No segundo andar, existe

uma sala, vazia; São três quartos no segundo piso, e um, no andar de baixo. Em

cada quarto dormem dois moradores.

Fig. 3: Casa dos homens em Santana.

Fig. 4: Piscina da casa dos homens em Santana.

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As casas são vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), e existem

regulamentações do Ministério da Saúde explicitadas na Portaria 106/00, a saber: a

estrutura física deve ser “situada fora dos limites de unidades hospitalares gerais ou

especializadas” (BRASIL, 2004, p.102); cada moradia deve ter no máximo oito

moradores sendo que, não deve ultrapassar o número de três em cada quarto; deve

haver, minimamente, três refeições diárias; as atividades devem ser

supervisionadas, no mínimo, por um profissional médico e “dois profissionais de

nível médio com experiência e/ou capacitação específica em reabilitação

profissional” (BRASIL, 2004, p.102) e ter um serviço ambulatorial como referência.

Contudo, isso não significa que os mesmos devem estar presentes nas casas em

tempo integral. Os cuidadores não são os responsáveis para alimentar e limpar os

moradores, mas são responsáveis em dar a assistência necessária nas residências.

Os profissionais a quem esses moradores devem recorrer são os profissionais do

CAPS Moxuara – que fica próximo às duas casas, ao lado do Adauto Botelho – local

em que eles freqüentam pelo menos uma vez por semana. Nem todos os cuidadores

e diaristas participaram de algum curso ou preparação para o trabalho nos

dispositivos residenciais. Porém, segundo Jandira, são pessoas que estavam

envolvidas, de certa forma, com a proposta dos dispositivos residenciais. Sobre os

cuidadores, ela afirma que a equipe de implantação das residências estava

“trabalhando com pessoas que tinham [...], que a gente achava, perfil, que acreditavam no projeto, que já tinham trabalhado nos pré-lares, que vinham nas discussões da ressocialização, como que era essa preparação, como seriam esses lares e tal. Entrou gente nova também no contrato, mas estavam envolvidos nisso [...]. A gente estava com problemas de auxiliares de serviços gerais porque [...] eram de outro setor. A gente discutia na nutrição e outros lugares que tinham esse auxiliar, pra estar trabalhando com eles, falando o que era, qual era a função, que não era a mesma daqui [do Hospital].”

Jandira

“Quando eu voltei [de férias] a Jandira estava com um problema, de alguém para vir pra residência. Então, como ela já me conhecia há muitos anos, ela achou que eu, mesmo sem fazer o curso...”

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Verônica26

“A Jandira, ela conversou comigo [...]. Comigo foi individual. Mas o pessoal aí... eles tiveram reunião.”

Simone

Além da legislação nacional, existem normatizações da equipe de

profissionais do Adauto Botelho que coordena os Dispositivo Residenciais, visando

uma melhor adaptação dos egressos do hospital a sua nova moradia. A casa

masculina, por exemplo, é uma casa grande, espaçosa, com quintal e uma piscina

na parte de trás da casa e terraço. Contudo, a piscina não poderia ser utilizada pelos

moradores. Ficou durante um ano, a partir da inauguração da casa, sem cuidados,

acumulando água das chuvas e lodo. Era uma questão, inclusive, de perigo para

reprodução do mosquito que causa a dengue. Sendo alertada para este fato, a

equipe responsável pelas moradias cuidou para que a piscina fosse limpa e tratada

a fim de que não fosse uma área que favorecesse a reprodução deste mosquito. A

proposta não era disponibilizar a piscina para os moradores da casa, sendo que o ph

da água permanecia impróprio para banho. Outra regra é que não se pode fumar

dentro da casa, apenas nos espaços externos. Esta foi uma determinação da equipe

responsável pelas moradias, não uma decisão coletiva da equipe, cuidadores e

moradores. As mulheres, por exemplo, têm horários definidos para fumar – são cinco

cigarros ao longo do dia, todas no mesmo horário. Segundo a diarista Verônica, foi

uma luta

“pra tirar o fumo sabiá. Isso aí que deu briga mesmo [...]. Hoje nem elas mesmo querem saber do fumo. Agora o cigarro não pode faltar. A luta com elas foi isso.”

Entretanto, quando saem de casa, se elas têm algum dinheiro, compram cigarro a

varejo, ou um maço, ou ainda pedem para algumas pessoas na rua.

26 Diarista (auxiliar de serviços gerais) da casa feminina. Trabalhava na Terapia Ocupacional (mas

não é terapeuta) do hospital e foi chamada para trabalhar em um dos dispositivos residenciais.

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Trabalhar a autonomia de cada um desses moradores não é uma tarefa

simples e que segue um caminho pré-estabelecido. Cada um dos profissionais,

estagiários e extensionistas exercem funções diversas, contribuindo para que as

pessoas que não moram mais em um manicômio possam aproveitar e viver o que

este novo território em constituição vem a oferecer.

Essas duas residências pioneiras no Espírito Santo têm, praticamente, “a

obrigação” de dar certo para que outras casas sejam alugadas ou construídas, para

que outros pacientes internados possam sair do hospital e que mais leitos sejam

fechados. Há um grande peso de responsabilidade e ansiedade sobre os

profissionais que trabalham nesta proposta, já que é um projeto inovador no Estado

e muitas expectativas ainda são geradas no que diz respeito ao funcionamento da

casa, às relações entre os pacientes e com as pessoas da vizinhança, aos

tratamentos e acompanhamentos em serviços substitutivos ao internamento asilar.

É importante destacar que, no decorrer desta pesquisa,outras três moradias

para egressos do Adauto Botelho foram implantadas em 16 de fevereiro de 2006,

para pessoas que também freqüentaram as enfermarias “pré-lares” do Hospital:

duas casas para oito homens cada uma, e uma outra moradia para oito mulheres.

Sair do hospício e morar em um dispositivo residencial é suficiente para

desmanchar os “manicômios invisíveis”? O que o processo de Reforma Psiquiátrica

vem buscando é construir um outro lugar para a loucura que não mais aquele de

exclusão e isolamento, tão conhecido no mundo de confinamento. Buscamos

contribuir para que possibilidades sejam abertas para que os que passam pela

experiência da loucura habitem territórios novos, que possam constituir novos

projetos e caminhos.

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CAPÍTULO 02

DESOSPITALIZAÇÃO E

DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA

“Loucura é o império da diferença”.

Fernando Pessoa27

27 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. Palestra “A

crítica da noção de sujeito em Nietzsche e Heidegger” proferida como parte do II Ciclo de Conferências sobre Subjetividade: um olhar plural, realizado pelo Núcleo de Estudos em Tecnologia, Gestão e Subjetividade da UFES em 05 de maio de 2006.

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Ao saírem dos asilos manicomiais, os ex-internos sentem diferenças sociais,

comunicativas, de espaço, de atividades, diversas relações são constituídas e outras

ficam para trás. Os egressos de hospitais psiquiátricos passam por transformações,

como nos mostra Milagres (2003), no que diz respeito à sua alimentação, mudança

de sua rotina, o contato com outras pessoas é intensificado, seus interesses também

sofrem modificações.

Quando ainda no Adauto Botelho, todos os internados recebiam a bandeja de

refeição pronta, na enfermaria – o refeitório do hospital havia sido fechado há anos.

Não utilizavam garfo e faca para alimentarem-se, porque são objetos cortantes e

considerados perigosos em um manicômio. Quando se mudaram para as moradias

extra-hospitalares os homens tinham seus pratos de almoço e jantar feitos pelas

cuidadoras da casa e eles comiam o que lhes era servido com colher, sem utilização

de garfo e faca, mantendo um hábito manicomial. Depois os estagiários e cuidadoras

se serviam. A maioria das pessoas sentava-se à mesa para almoçar, outros se

sentavam no sofá da sala ou no quarto, já que são oito cadeiras e são entre 10 e 12

pessoas para se alimentar. Os estagiários utilizavam garfo e faca nas refeições, e as

cuidadoras variavam os talheres – às vezes preferiam utilizar colher, outras vezes, o

garfo.

Em uma reunião com estagiários, cuidadoras das moradias e profissionais em

saúde menta decidiu-se que os alimentos seriam colocados em vasilhas à mesa

para que cada um se servisse – idéia de uma das cuidadoras. Segundo relatos de

estagiários nas casas, os moradores não sabiam muito bem o que fazer, ficaram

parados, como à espera de serem servidos, o que fizeram por mais de seis meses.

Os estagiários e as cuidadoras falaram para se servirem, para colocarem no prato a

quantidade que eles iriam comer. Havia certo receio, por parte da equipe técnica, de

que a primeira e a segunda pessoa, ao se servirem, pegassem toda a carne; ou que

pegassem demais e poderia faltar para os outros, já que no Adauto Botelho havia

grande disputa entre os internos pelos pedaços de carne, inclusive um pegando a

carne do prato do outro. Para surpresa das cuidadoras, eles se serviram devagar,

com cuidado, sem fazer demasiada sujeira. Garfo e faca foram colocados sobre a

mesa como possibilidade de uso para alimentação, e todos utilizaram a faca para

cortar a carne – a maioria comeu com colher e alguns seguravam a carne com a

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mão para cortá-la. João28 relata que “comer de garfo e faca é bem mais fácil”. Não

se trata de proibir o uso da colher e exigir que seja utilizado este ou aquele talher

para alimentarem-se. A questão é permitir a escolha, as experimentações e

verificações do que é mais fácil usar para cortar, para comer; é possibilitar

aprendizagens e descobertas variadas.

Entretanto, mudanças de hábitos não acontecem de uma hora para outra.

Segundo uma das cuidadoras da casa masculina, a pessoa responsável pelo turno

da noite não colocaria vasilhas à mesa, porque seria mais trabalhoso, mais louças a

serem lavadas. Isso é uma questão que deve ser colocada e discutida entre todos

os profissionais que atuam na proposta dos dispositivos residenciais – que não visa

apenas levar os que experienciam a loucura para outro espaço fora do hospício.

Por algum tempo, pode ser que estes pacientes que saem do manicômio

sintam-se sem chão, desterritorializados, já que o território existencial que

ocupavam, enclausurados em uma instituição psiquiátrica, é desmanchado dando

lugar a uma outra realidade, que não apresenta modelos conhecidos e

experienciados por eles. A vida que eles tinham antes da internação não volta, e não

é uma continuidade linear da vida manicomial. É uma nova realidade que está sendo

constituída. Desterritorializar é embaralhar os códigos prontos no sentido de

transformar as normatizações, deslocando as fronteiras sociais, possibilitando

caminhos e construções outrora impensados. Ao relatar as aventuras de Marco Polo,

Ítalo Calvino (2003, p.30) afirma que “ao chegar a uma nova cidade, o viajante

reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você

deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos”. Andar pelas

ruas e apertar a mão dos estagiários e extensionistas por medo dos carros era uma

constante nos primeiros passeios que fizemos com Abigail29. Quando quer ir

passear, andar pelas ruas, Abigail pergunta: “quer dar uma voltinha?” Ela não afirma

seu desejo de sair, mas responde que gosta de passear quando conversarmos

sobre isso com ela. Esta moradora é uma senhora idosa, anda devagar e sempre

atenta ao barulho dos carros e às buzinas. Ela gosta de sair de casa, de passear

pelas ruas do bairro, mas não sai sozinha. As cuidadoras têm medo de que alguma

28 Morador da casa masculina. 29 Moradora da casa feminina.

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coisa aconteça a ela e às outras moradoras como um atropelamento ou encontrar

uma pessoa que faça algum mal a elas, medo de que elas se percam...

“No momento a gente tem que levar porque pra elas irem sozinhas fica difícil né? [...] Que eu me preocupo muito com elas, de acontecer qualquer coisa... que elas andas muito despercebidas [sic] na rua, né? De acontecer um atropelamento ou alguma coisa assim, fico preocupada.”

Marta30

Um acontecimento interessante foi a primeira ida das moradoras ao shopping

center da capital do Estado, Vitória. Este estabelecimento foi construído e

inaugurado durante os longos anos em que ficaram internadas, e elas não o

conheciam. Ao se depararem com uma escada que te leva para cima ou para baixo,

se assustaram. Elas não conheciam escada rolante, não fazia parte da experiência

da vida delas. Algumas ficaram com medo e só subiram de mãos dadas com

extensionistas ou profissionais que as acompanharam. Muitas coisas nas cidades

foram transformadas desde a internação dessas pessoas. Alice, também moradora

da residência das mulheres, por exemplo, chegou ao Adauto Botelho criança e lá foi

criada, vivendo por mais de trinta anos até mudar-se para a casa onde mora

atualmente, em Itacibá.

Outra dificuldade é lidar com dinheiro: ainda falam cruzeiro, outras falam

cruzado. O real também faz parte da vida delas, porém ainda há certa confusão no

que diz respeito ao dinheiro. Rosana amarra tapetes muito bem, mas tem preferido

bordar – uma coisa nova que ela tem aprendido com algumas cuidadoras e no curso

que freqüenta uma vez por semana, na Igreja Batista do bairro. Contudo, querendo

contribuir para a geração de renda dessas moradoras, eu e o grupo de

extensionistas encontramos uma artesã que se interessou em fazer uma parceria

com as moradoras: elas amarrariam tapetes de tamanho pequeno e a artesã faria o

acabamento, forraria e faria bolsas. O custo da mão de obra pela amarração de

tapetes é por volta de R$ 2,50. Rosana fez um desses tapetinhos, com tiras de

malha mais finas e menores do que ela estava acostumada a trabalhar, mas não

gostou da experiência – levou mais de dois meses para amarrar o tapete. Ela dizia a

30 Cuidadora plantonista da casa das mulheres.

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todos que receberia cinqüenta cruzeiros, depois ela mudava para cinqüenta reais,

pelo trabalho de amarrar um tapete de 35cm por 20 cm, aproximadamente. Várias

vezes dissemos a ela que não era esse o valor a ser recebido, mas ela parecia não

nos ouvir. Rosana, contudo, já compreende melhor valores pequenos – ela compra

cigarro a varejo na padaria e confere o troco, as “pratinhas” como ela chama as

moedas.

A construção de residências extra-hospitalares é uma possibilidade de fazer

com que os que passam pela experiência da loucura construam outras formas de

relação com as pessoas, com as comunidades, com a cidade. Essas moradias,

mesmo sendo assistidas por profissionais, permitem que os egressos de internações

psiquiátricas experienciem a vida fora dos manicômios, que assumam

responsabilidades e participem ativamente da vida comunitária, como a ida de

Rosana ao curso de bordados da Igreja Batista de Itacibá, a ida dos homens à praça

de Santana durante o dia e na feira de sexta-feira à noite, o interesse em aprender

coisas diferentes.

Fig. 5: Praça Silvino Apolinário dos Anjos, próxima à casa dos homens.

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as normalizações do capitalismo; é nos permitir experimentar, de fato, conviver com

as diferenças, com o que não é tido como normal em uma sociedade voltada para a

produtividade como a nossa; é permitir e contribuir para que os que passam por

essa experiência possam criar projetos, outras possibilidades de vida. Nas palavras

de Lavrador

Desinstitucionalização como um processo de se separar do que estanca as intensidades, afirmando e dando passagens ao intensivo como uma potência de agir que aponta para a transformação de fazeres e dizeres (2006, p.144-145).

As naturalizações de ações, comportamentos e saberes são uma maneira de

captura. Forjando linhas de fuga,34 escapando às formas instituídas, há

possibilidades de gerir a vida de outro modo que não aquele considerado “normal”,

buscar outras possibilidades de organização, construindo alternativas sociais e

políticas, produzir outras subjetivações,35 outras formas de viver a loucura que

deixem de lado os modelos e a padronização da chamada “doença mental”.

Mudar o tratamento dos que passam pela experiência da loucura, levando-os

para fora dos muros dos hospitais, não é o suficiente. O mais desafiador e

fundamental é transformar os processos de subjetivação (não a identidade ou

personalidade) a favor da produção da diferença, permitir que o não habitual e não o

normatizado possam ser experimentados. É aí que deve estar o movimento de

resistência,36 lembrando sempre de que aprisionar a céu aberto também é possível,

se manicômios invisíveis continuarem controlando e tutelando as pessoas; e não é

essa a noção que apresentamos aqui. É importante, portanto, estarmos atentos para

o que nossas ações estão produzindo já que diversas modificações e

transformações acontecem cotidianamente, não permitindo que uma ação outrora

inovadora – como a criação dos CAPS e agora dos dispositivos residenciais – seja

cristalizada como a única possibilidade de bem estar. As moradias para egressos 34 Conceito utilizado por Deleuze e Guattari que significa a constituição de escapes às formas

instituídas, construindo possibilidades de vir a ser sob outra lógica (1972; GUATTARI e ROLNIK, 2000).

35 Para Orlandi (2001, p.29), subjetivações são processos de “constituição do próprio sujeito”. As transformações, desconstruções do já dado e formatado, o intempestivo estão relacionados aos modos de subjetivação, que “têm para com a história uma relação de processualidade e por isso não cessam de engendrar outras formas”, nas palavras de Machado (1999, p. 212).

36 Invenção de outras formas de existência; forças que modificam as relações estabelecidas (DELEUZE, 1988a).

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dos hospitais não é a solução ótima e última para o processo de Reforma

Psiquiátrica; é um passo importante, mas não são absolutamente protegidas contra

cristalizações, por exemplo, de como morar, de como se alimentar, de como se

vestir ou de como trabalhar, se relacionar, de como viver. Como afirma Deleuze

(1992, p. 220)

Não se deve perguntar qual o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

2.1. DESNATURALIZANDO A NOÇÃO DE DOENÇA MENTAL

Segundo Franco Basaglia (2005b) a história da loucura se confunde com a

história das modificações e evoluções dos valores, das crenças, dos sistemas de

poder que fundamentam as sociedades e suas organizações. Assim, a loucura tem

sido, por décadas, presa à noção de “‘doença mental’ objetificável, quantificável,

definível em termos científicos pela racionalidade do poder” (2005b, p.271), sendo-

lhe retirado todo sentido trágico e subjetivo para ser apenas uma doença que

precisa ser tratada. Para Basaglia (2005a) a psiquiatria asilar não se dedicava ao

doente, mas à pesquisa ideológica e construção da “doença mental” que transforma

aquele que passa pela experiência da loucura em sintomas patológicos. A noção de

“doença mental” foi historicamente construída e tida como a verdade inquestionável

sobre o sofrimento psíquico, ou seja, foi naturalizada e cristalizada.

Buscando desnaturalizar esse conceito, acabar com a idéia de que é

necessário isolar, classificar e excluir a loucura e tratá-la como “doença mental”,

Basaglia afirma que é essencial colocar essa doença entre parênteses para

enxergarmos de fato o sujeito, não só seus sintomas, ou seja, tratar a pessoa e não

a doença:

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continuar aceitando a psiquiatria e a definição de ‘doença mental’ significa aceitar que o mundo desumanizado em que vivemos seja o único mundo humano, natural, imodificável, contra o qual os homens estão desarmados (BASAGLIA, 2005b, p.298).

Outros autores, além dos italianos, afirmam a construção histórica da noção

da loucura como “doença mental” e defendem essa desnaturalização, como David

Cooper, Ronald Laing e Thomas Szasz. Para Szasz

a adesão ao mito da doença mental permite às pessoas evitar confrontar-se com este problema, acreditando que a saúde mental, concebida como a ausência de doença mental, automaticamente assegura a escolha certa e segura na condução da vida (1977 p.29).

Nesse sentido, a não “doença mental” garantiria escolhas acertadas e adaptadas à

vida social, sem maiores questionamentos e diferenças no modo de pensar, de agir,

de viver. O diferir “atrapalha” a maneira “correta”, normalizada de viver.

Deleuze e Guattari (1972) também discutem a naturalização da “doença

mental” e trabalham maneiras distintas de lidar com o esquizofrênico: uma forma

produzida na clínica psiquiátrica, o louco institucionalizado chamado “doente

mental”, e outra como processualidade e fluxos desterritorializados, sem formas

definidas. Como processo37 (chamado processo esquizo), a loucura remete a fluxos

intensos, não codificados, embaralhados, sem um habitat, atravessando

territorialidades instituídas, problematizando cristalizações sociais, políticas, afetivas,

econômicas etc.

É o louco não institucionalizado, segundo Pelbart (2000, p.170), “quem chega

mais perto do processo, entretém com ele a mais íntima relação, com todos os

perigos implicados nessa intimidade”, que se permite sair de territórios prontos,

instituídos, embaralhar os códigos sociais, construir diferentes maneiras de viver, de

produzir, de se vestir, de agir. Nesse sentido, a loucura não é doença, mas sim,

outra possibilidade de ver, agir e viver o mundo que não os padrões normatizados

pelas regras sociais, familiares, ideológicas, políticas, econômicas. Para Cristina 37 Processo: continuum de ações e fatos que podem levar a outras seqüências de fatos e ações; não

leva ao equilíbrio permanente do já estabelecido (DELEUZE e GUATTARI, 1972).

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Rauter, a loucura pode ser considerada “uma forma de resistência” ao poder

dominante, e “a psiquiatria é um dos mecanismos de poder que permitem

descaracterizar a transgressão à lei como oposição política, buscando dessa forma

neutralizá-la [a loucura] e perpetuar o poder dominante” (1979, p.56) ao afirmar o

“esquizo como entidade clínica” (DELEUZE, 1992, p.35).

Entretanto, segundo Deleuze e Guattari (1972), às vezes o fluxo da loucura (o

processo) chega à loucura institucionalizada (interrupção do processo para sua

“infinitização”), ficando preso, confinado no desterritorializado, no plano sem forma

onde as forças do fora se agitam permanentemente. É neste enclausuramento no

desterritorializado que a lógica capitalística38 psiquiatrizada produz o tipo

esquizofrênico a ser tratado nos hospitais psiquiátricos: o “doente mental” – que está

impedido de criar, de inventar, de resistir. Como afirma Rauter (2000, p.273), é “a

loucura como processo é que é renovadora, e não a loucura psiquiatrizada”. O

esquizofrênico, “doente mental”, produção da clínica psiquiátrica, está capturado no

seu processo de desterritorialização; nele o processo esquizo “está bloqueado ou

girando em falso” (GUATTARI, 1981, p. 84), não ganha forma, não consegue ser

renovação, invenção. A clínica psiquiátrica contribui para o impedimento da

processualidade, da força transformadora do diferir buscando trazer o louco para

uma vida considerada normal, seguindo os valores e normas sociais vigentes da

lógica dominante de produção, ou seja, reterritorializar forças e movimentos

problematizadores.

O processo esquizo é, de certa forma, uma decomposição do modo de existir

já determinado e invenção de um outro modo de existência nesse mundo

“modelizado”. Como afirma Guattari (1992, p. 106), “não se trata absolutamente de

fazer do esquizo um herói dos tempos pós-modernos” não se trata de idolatrar a

loucura. Contudo ele afirma que entender o processo esquizo, a experimentação da

desterritorialização, é fundamental para que a potência de diferenciação seja

reforçada, ou seja, para que a experiência da loucura não seja uma forma de vida

excluída e isolada do convívio social, e que os loucos assumam responsabilidades e

38 Lógica capitalística, para Guattari e Rolnik (2000), como um modo de controle que mantém a lógica

capitalista de produção também nos processos de subjetivação, além do campo da mais-valia econômica.

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atividades dentro de suas capacidades, não mais sendo considerados, à priori,

perigosos, improdutivos e inválidos.

Entretanto, o que acontece às vezes é um processo de desterritorialização

“pura e simplesmente” que não permite um intercâmbio com as forças-fluxo no plano

do fora e paralisa os movimentos inventivos. Habitar o desterritorializado,

permanecer “girando em falso” é bastante difícil. É possível e válido deixar-se perder

o chão e as fronteiras para que novas conexões sejam constituídas, para que um

outro modo de existência ganhe corpo. Todavia, pode ser que ocorra um processo

de reterritorialização – captura das forças intempestivas, reproduzindo a lógica

capitalística de produção da vida, sem efetivas transformações, com modificações

apenas aparentes, como as psiquiatrias reformadas de que falam Rotelli, De

Leonardis e Mauri (2001). Apostamos, contudo, no risco de acolher a diferença, não

se deixando cristalizar e enclausurar num território formatado e identitário, mas

permitir um

pensamento permeável à desrazão [...], praticar um trânsito com tudo aquilo que os loucos nos sugerem, embora eles mesmos, por estarem imersos nesse funcionamento exclusivo, tenham sido reduzidos a corpos passivos e impotentes (em sua forma manicomial cronificada os loucos não mais evocam a desrazão, a não ser de longe e residualmente, mas a morte) (PELBART, 1993, p. 107).

Pelbart (1991, p.133) esclarece que loucura, nesse sentido, é entendida como

desrazão, “uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a

alteridade radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como o seu limite, o seu

contrário, o seu outro, o seu além”, o que não foi naturalizado e possibilita discordar,

estremecer as instituições sociais, políticas, afetivas, econômicas, sexuais,

produtivas etc para diferentes modos de vida.

Análises desenvolvidas por Deleuze e Guattari (1972), Pelbart (1993) e

Foucault (2004) sobre o deslocamento da “loucura-desrazão”39 para a “loucura-

39 Expressões utilizadas por Maria Cristina Campello Lavrador em seu projeto de qualificação de

doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo em 2003.

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doença mental”39 assumem um papel importante no trabalho proposto, na medida

em que demonstram como a desrazão tem sido enclausurada, assumindo a forma

de loucura instituída. Loucura-doença mental é o confinamento de uma figura social

reclusa – o louco institucionalizado. Loucura-desrazão é o que é exterior ao homem,

não é o negativo da razão; é relacionamento com o fora sem nele ficar preso, é

possibilidade de serem forjados outros modos de existência, diferentes territórios

existenciais.

Não se trata aqui de fazer uma glorificação à loucura, mas analisar de que

maneira a relação com a loucura-desrazão vem sendo afastada, e mesmo impedida,

pelo enclausuramento da loucura na forma de “doença mental”. Como afirma Pelbart

(1993), inventar, pensar o intempestivo, o não formatado, é deixar-se contagiar pelo

desatino, é pensar próximo à tênue fronteira da loucura. Essa experimentação

possibilita escapar às limitações, às certezas, às verdades absolutas; e esse é um

pensamento da resistência.

Consideramos importante desmanchar verdades impostas, experimentar

novas práticas, analisar criticamente o que vem sendo proposto, permitir criações e

produção do diferir a partir de uma ética que traga potência para os territórios de

expressão, que supere a mortificação dos modelos formatados e fechados às forças

intensivas, afirmando a vida nas ilimitadas possibilidades de expansão e invenção.

Saber e objeto de conhecimento, então, não são absorvidos como já dados e

definidos, mas, se constituem mutuamente nas experimentações, na construção do

caminho de luta pela desinstitucionalização da loucura.

Em instituições de saúde mental ainda é muito presente a medicalização

exagerada e, muitas vezes, o descaso para com os pacientes e usuários,

reforçando, assim, a noção de “doente mental” e a busca pela reterritorialização dos

loucos a modelos já construídos e dados pela lógica capitalista, como a certa

tradição de família, de trabalho, de moradia, de lazer e de responsabilidades. Ao

invés de seguir os modelos asilares, o processo de Reforma Psiquiátrica busca

intervenções sobre a experiência da loucura que sejam experimentações provisórias,

que possibilitem o contato com o lado de fora, que resistam à forma asilar-

manicomial em todos os espaços-tempo sociais, não só dentro dos muros dos

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hospitais, serviços substitutivos e casas para ex-internos em manicômios. A

construção de moradias para egressos de hospitais psiquiátricos é uma outra

possibilidade de fazer com que os loucos constituam novas maneiras de se

relacionar nas comunidades, nas cidades. Essas residências, mesmo sendo

assistidas por profissionais, permitem que os que passam ou passaram pela

experiência da loucura experienciem a vida fora do manicômio, que assumam

responsabilidades e participem ativamente da vida nas cidades, fora dos muros

hospitalares. Há uma direção, mas não sabemos o que de fato vai acontecer. O que

será construído e efetivado deve ser continuamente analisado: as discussões, as

escolhas, os caminhos e as atividades – análises de todo o processo de Reforma

Psiquiátrica para que novos modelos não sejam cristalizados. Nisso consiste o

método da cartografia – articulação de outros saberes, de diferenciação, não

aceitando a realidade como uma verdade a ser descoberta, mas como realidades a

serem construídas.

2.2. TRANSFORMAÇÃO CULTURAL COTIDIANA

A noção de loucura como “doença mental” que precisa ser tratada em

espaços próprios é herança do saber médico-psiquiátrico. O processo de Reforma

Psiquiátrica, como já discutimos anteriormente, vem buscando desnaturalizar a idéia

de periculosidade e incapacidade dos que passam pela experiência da loucura.

Nesse sentido, é importante problematizarmos a questão sobre a saída dos loucos

dos manicômios: esse processo de desospitalização vigente no Brasil garante a

extinção da idéia de perigo, irresponsabilidade e peso que a loucura apresenta?

Baptista (1999) afirma que o processo de Reforma Psiquiátrica não é

responsabilidade apenas dos profissionais psi – as discussões devem, então, ser

ampliadas para diversos ambientes sociais, já que as pessoas egressas dos

hospitais estarão circulando em diferentes caminhos da cidade e em distintos

estabelecimentos. Afinal, como afirma Suely Rolnik (1997, p.29), “não há

subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente,

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não há cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo seu perfil.

A rigor, é impossível dissociar essas paisagens”. Nesse sentido, o trabalho de

desinstitucionalização da loucura não deve ser limitado aos manicômios, CAPS,

Hospitais-Dia, Dispositivos Residenciais, ambulatórios, hospitais em geral, mas

também nos demais espaços sociais – mercados, lojas, parques, cinema – a fim de

permitir a troca com a desrazão e a abolição dos “manicômios invisíveis”.

Sandro, que mora e trabalha próximo à casa das mulheres em Itacibá, por

exemplo, mudou um pouco sua opinião sobre os pacientes psiquiátricos:

“porque eu pensava que lá, pacientes do Adauto, seria bem ruins, né? Elas não, elas são boas [...]. A gente pensou que seria uma coisa assim de anormal, né? Mas, até então...está sendo tudo maravilha, tudo calmo, tudo tranqüilo. As meninas não têm nenhum problema, elas saem na rua normalmente”.

Ao conviver com egressos de manicômios é possível alterar o estereótipo de

perigoso e incapaz. Mas a fala de Sandro retrata a condição de normalidade

desejada para a vida em comunidade, ou seja, estar bem, estar tranqüilo, ser uma

boa pessoa, não gritar, não estar agitado ou nervoso. Será que, se um dia, duas

moradoras discutirem sobre alguma coisa, sobre quem vai ficar com a bolsa azul

que ganharam, ou sobre quem vai fazer o tapete com as tiras pretas e brancas, elas

serão taxadas de loucas ou será uma discussão entre pessoas que moram na

mesma casa? Alguns de nós, considerados normais, nunca brigou com o irmão (a)

para não lavar a louça, ou usar o carro do pai no sábado à noite? Nunca gritamos

por estarmos nervosos e agitados? Sandro acredita que está tudo bem em ter

vizinhos que vieram do hospital psiquiátrico, porque elas não “perturbam em nada”.

Está tudo bem por que elas são quietas e adaptadas? Para de fato se inserirem na

sociedade, é preciso que os moradores dessas casas se adaptem ao que é aceito e

que estejam adequados ao sistema social?

Sandro não acredita que as pessoas que saíram do Adauto Botelho possam

assumir responsabilidades e participar das atividades da comunidade:

“Sozinha não. Tem que ter uma pessoa, alguma pessoa da família, alguma pessoa ajudando, perto delas”.

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Ainda há uma certa infantilização. Elas não vão, por exemplo, à feira sozinhas

com dinheiro na bolsa para fazer compras para a casa – mesmo porque elas não

acompanharam tantas modificações na nossa moeda e, talvez, tenham

“desaprendido” os ingredientes e temperos para preparar o almoço, sendo que

existe a possibilidade de nunca terem aprendido, já que algumas mulheres, por

exemplo, foram internadas ainda crianças. Mas com o tempo, sendo acompanhadas,

observando, perguntando, fazendo junto com alguém, os moradores conseguirão

realizar diversas atividades e assumir responsabilidades.

Dulce,40 em uma reunião com estagiários, extensionistas e cuidadores da

casa masculina afirma que os funcionários têm "excesso de responsabilidade” e que

se o morador sai de casa desacompanhado o funcionário fica logo preocupado. Ela

falou da experiência de Cintia41, que deu dinheiro para Rosana comprar refrigerante

na loja de conveniência do posto de gasolina a dois quarteirões da casa. Já que

adora sair, Rosana foi prontamente. Mas demorou a voltar, e Cintia foi atrás dela, no

posto de gasolina, e não a encontrou. Houve um desencontro, e a cuidadora ficou

muito preocupada. Ao voltar para a casa, Rosana estava lá contando o que havia

acontecido: o refrigerante na loja de conveniência do posto estava muito caro e ela

resolveu comprá-lo no supermercado, que é em outra direção.

“O meu medo, de Marta, Nazareth, é as meninas se perderem, de acontecer alguma coisa”.

Cintia

É por isso também, que as cuidadoras não deixavam Rosana participar do

curso da Igreja Baptista sozinha. Só era permitido que ela fosse, se um estagiário ou

algum responsável por ela, a acompanhasse. O hábito de que os moradores dos

dispositivos residenciais ainda não sabem fazer as coisas é difícil de ser destruído.

“Tem essa coisa de rigidez da instituição. É muito difícil perder isso [...]. Às vezes o nosso medo é que atrapalha”.

Jandira

40 É enfermeira e participa da equipe de implantação das residências. 41 Cuidadora (plantonista) da casa feminina.

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Ao relatar como faria para ir ao CAPS sozinha, Rosana fala que iria de

ônibus. Ela diz que entraria no ônibus em frente ao posto de gasolina, e que pediria

ao motorista para parar em frente ao Adauto Botelho – o que todos fazemos quando

andamos de ônibus para lugares que não conhecemos bem: pedimos informação e

ajuda. Rosana lembrou de Geraldo, um extensionista da UFES, que acompanhou

algumas das moradoras da casa em Itacibá ao CAPS, nos primeiros meses de vida

na residência e, na volta, pegaram o ônibus errado, perderam-se, atrasaram-se, mas

chegaram todos bem e rindo de volta à casa. Rosana se refere a ele como “Geraldo,

aquele que pegou o ônibus errado”. Todos nós podemos nos perder...

Ainda falando sobre experiências de vizinhos, próximo à casa dos homens,

em Santana, há a padaria de Jonny – próxima, também, à praça do bairro. Os

moradores costumam freqüentar esta padaria, quando vão dar uma volta na praça,

ou vão lá comprar um cigarro ou um café. Jonny já se acostumou com eles e diz que

“estranho que os cara é louco [sic]. Mas tem nada de louco não [...]. Eu acho que já tá equilibrado já, a situação deles [...]. São pessoas normais, normais igual as outras. Não tanto normais porque são... efeito de remédio, alguma coisa ainda, mas dá pra conviver com eles sim”.

Jonny acredita que o hospital psiquiátrico

“pode ser revertido para outro tipo de hospital, atendendo psiquiatria também. Depender só de psiquiatria, e fazer choque elétrico, como funcionava antigamente, acho que isso aí não funciona. Nunca funcionou”.

Há mais de dois séculos a loucura vem sendo considerada como uma doença

perigosa, devendo ser isolada do meio social. Como ultrapassar, então, o

preconceito contra o louco? Barros e Josephson (2001, p.64) respondem: “...

investindo na desconstrução do preconceito por meio do convívio e do contato”. Ou

seja, agindo de forma tal que aqueles que passam pela experiência da loucura

possam assumir responsabilidades e autonomia naquilo em que são capazes,

agindo junto à sociedade, construindo redes de relações e projetos de vida. Para

que isso aconteça, não basta prescrever normas, outorgar leis e sancionar portarias,

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que são importantes, mas não por si só. São as ações do cotidiano, as discussões

do dia-a-dia é que levam às transformações. Jonny, o dono da padaria, parece saber

disso.

Segundo Foucault, a vida das pessoas muda devido a inúmeros movimentos,

não apenas devido à legislação e aos partidos políticos e suas práticas. Citado por

Castelo Branco42 (2000, p. 323), ele afirma:

Esses movimentos sociais transformam verdadeiramente nossas vidas, nossa mentalidade e nossas atitudes, assim como as atitudes e a mentalidade de outras pessoas – pessoas que não pertenciam a esses movimentos. Aí está alguma coisa muito importante e positiva.

Nesse sentido, percebemos a importância do movimento de Luta

Antimanicomial para a destruição da lógica de exclusão e isolamento dos que

passam pela experiência da loucura, para desmanchar os “manicômios invisíveis”

em nossa sociedade.

As transformações sociais ocorrem a partir de vivências e experiências do dia-

a-dia. São as práticas cotidianas que nos incomodam, que nos inquietam e com isso,

experimentamos algumas outras maneiras de agir, de reagir ao que está colocado e,

muitas vezes, naturalizado. Nesse sentido, não são apenas normas e prescrições

que modificam uma dada sociedade.

A experiência italiana vem servindo de referência ao movimento de Reforma

Psiquiátrica no Brasil, principalmente a partir da vinda de Franco Basaglia ao Brasil

em 1978 e do fechamento definitivo do Hospital Psiquiátrico San Giovani em Trieste,

em 1980. O modelo assistencial italiano busca resgatar a autonomia, a dignidade e a

cidadania dos que passam pela experiência da loucura, agindo nos territórios43, não

apenas em espaços específicos de assistência e tratamento.

O movimento de Luta Antimanicomial e o processo de Reforma Psiquiátrica

brasileira, através de contatos e trocas de experiência com o Movimento de

42 apud FOUCAULT, M. Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de l’identité, In:

Dits et Écrits, vol. IV, 1984, p. 746. 43 A noção de território será discutida no terceiro capítulo.

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Psiquiatria Democrática Italiana, têm buscado ampliar os espaços de discussão, de

análise e de propostas para a melhoria do cuidado e assistência aos chamados

loucos e seus familiares. A fim de minimizar o sofrimento, o preconceito e a exclusão

dessas pessoas, procura-se trazê-las de volta dos manicômios para a cidade,

possibilitando novos vínculos, trocas com outras pessoas e outros serviços,

investindo também na invenção e construção de maneiras de viver que não aquela,

infantilizadora e de tutela dos asilos, nos quais estavam enclausurados, e sim,

incentivando responsabilidades e autonomia. Segundo Milton Santos (2003, p. 131),

quanto mais diferentes são os que convivem num espaço limitado, mais idéias do mundo aí estarão para ser levantadas, cotejadas e, desse modo, tanto mais rico será o debate silencioso ou ruidoso que entre as pessoas se estabelece. Nesse sentido, pode-se dizer que a cidade é um lugar privilegiado para essa revelação.

O contato e convívio entre diferentes pessoas e idéias enriquecem relações e

é capaz de transformar idéias, projetos sociais e de vida. Ao falar sobre a idéia de

loucura, Jonny afirma que

“mudou. Não é o bicho que o pessoal fala não. É distúrbio que dá na cabeça do cara; o cara fica... fica maluco. Ele toma um remédio, ele melhora. Não melhora 100%, mas ele vai...”

Diferentes relações e contatos levam a diferentes interesses e

comportamentos. As enfermarias pré-lares existem no Adauto Botelho para iniciar o

trabalho de saída do enclausuramento manicomial trabalhando autonomia, tarefas

de casa, cuidados com a higiene, novas relações, dentre outras coisas que eles não

faziam há anos.

“Na ressocialização como um todo a gente trabalha autonomia, de uma certa forma, alimentação, cuidado das roupas, armário. Mas aí vai pro pré-lar, tem que dar melhores condições [...] porque não tem armário pra todo mundo, tem roupa individualizada, mas a gente não pode fazer esse trabalho forte com todos [...]. Aí passa pro pré-lar pra estar avançando nesse tipo de trabalho mais pra rua, mais pra andar, aprender a cuidar da própria roupa [...]. Fora os pré-lares a roupa não é individualizada [...], aquele negócio de roupa marcada, com uma identificação da enfermaria, não do nome da pessoa. Então você pega uma calça aqui, amanhã é outro que está vestindo. Então não tem nada seu. E essa questão de estar dando voz, a gente começou aqui [nas pré-lares], mas ‘eu quero isso, aquilo’ aqui [no hospital] é muito assim, a pessoa

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[técnico] acha que é... que ele [paciente] está muito cheio de vontade, quando ele quer escolher uma cor, uma roupa.”

Jandira

“Esses pacientes que foram para as residências já estavam aqui [no hospital psiquiátrico] quando eu entrei no Adauto. Vivem aqui uma vida inteira. Perdem a noção do dinheiro, de convívio com a sociedade, como vive um cidadão, perde tudo, ele perdeu tudo. Então você tem que retomar isso, ensinar desde a higiene pessoal... até isso ele perdeu, esse vínculo. Ele não sabe escovar os dentes, ele não sabe tomar banho direito, ele não sabe escolher uma roupa. Você tem que começar do começo. Igual você pegar um neném que está começando, uma criança, a andar os seus passos. Passo a passo você vai ensinando [...]. Você tem que trabalhar a realidade de lá [do dispositivo residencial].”

Dulce

A vida nas pré-lares é bastante diferente da vida nas casas – o espaço físico,

as atividades que podem realizar, os diferentes contatos e vínculos que são

constituídos, as re-descobertas e novas descobertas.

“Hoje a gente sabe que os internos podem ir pras residências, porque a evolução vai ser lá. Não dá para julgar essa autonomia aqui dentro [do Adauto Botelho], porque as leis são outras.”

Jandira

“Creio que elas melhoraram bastante [...]. Quando elas vieram pra cá [para a casa] elas eram assim, mais... principalmente a Alice. De vez em quando começava essas coisa dela... acontece os dengo dela, mas dá pra relevar, né? Agora graças a Deus vir pra cá melhorou... 50%. Graças a Deus melhorou muito”.

Marta

Enquanto ainda internados no manicômio não era permitido ter vontades,

desejos. Não era permitido escolher a roupa, nem o almoço, nem a hora de tomar

banho ou de assistir à televisão, nem se queria ou não, participar das atividades da

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terapia ocupacional. Nas enfermarias pré-lares existem regras de limpeza, de

organização, de onde colocar a roupa suja, de arrumação das camas, dentre outras

normas. Se um desses internos não coloca a roupa no cesto, há uma ameaça de ele

voltar para a enfermaria comum, dele não mais ser “o escolhido” para ir às moradias

extra-hospitalares, porque “está muito rebelde”, e até mesmo, de sofrer alguma outra

punição. Ainda segundo relato da assistente social Jandira, os técnicos do hospital

costumam

“falar que a gente estraga o pessoal [paciente], que é culpa da gente que eles estão cheio de vontades. Então essa coisa assim ‘eu quero minha cama’, ‘eu quero chinelo’, ‘eu quero ir passear’, ‘eu quero ir pra minha casa’, ‘eu quero ligar ou escrever pro meu pai’, isso não era permitido. Então na casa eles assumiram tudo isso que aqui [no hospital] a gente faz uma tentativa, mas tem toda a coisa da instituição que não deixa”.

Mais adiante Jandira complementa:

“toda vez que eles tentavam fazer essa coisa de autonomia, apesar de a gente estar trabalhando autonomia, algumas pessoas até chegavam assim, como se fosse uma punição, punir: ‘ah, vou prender, tá rebelde’ [...]. Os homens [da casa masculina], apesar de andarem, têm aquela coisa assim, logo a princípio, ‘eu posso ir ali?’, de pedir permissão.”

As pessoas que deixaram de morar no manicômio para habitar as

residências, como abordado anteriormente, foram escolhidas pela equipe

responsável pela implantação das moradias extra-hospitalares, seguindo critérios de

autonomia para realização de atividades diárias como a higiene pessoal, o cuidado

com a casa, o convívio com os outros moradores e na comunidade. Entretanto, as

cuidadora, da casa das mulheres acreditam que uma das moradoras não estava

preparada para sair do hospital, como demonstra a fala de Verônica:

“Domitila44 não estava preparada, porque você vê: quando você está conversando com ela, tem horas que ela viaja, que ela não fala coisa com coisa. E as outras não são assim. Ela tem vezes que ela não fala coisa com coisa; ela tem uma reação que ainda é de lá [do Adauto Botelho].”

44 Moradora da casa feminina.

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Na casa dos homens também havia aquele que não se adaptaria:

“quando nós viemos para cá [para a casa masculina], o que tinha mais dificuldade era o Cristóvão.”

Simone

“E o Cristóvão, eu imaginei que ele nunca fosse progredir na vida, e melhorou quase 100%.”

Judith45

“Ele [Cristóvão] não falava coisa com coisa e mudou até nisso.”

Jandira

As cuidadoras e a equipe de coordenação das residências afirmam que teve

melhora na vinda dos ex-internos para as casas:

“Eu acho que eles se integraram bem na comunidade, na casa, tomaram conta da casa mesmo. Porque eles ficaram anos sem ter direito a nada aqui [no hospital].”

Jandira

“Melhoria delas? Higiene com o corpo dela. Também educadas na hora da alimentação. Na limpeza da casa. Melhoraram 100%.”

Verônica

“Lá [no Adauto Botelho] eles não tinham nada pra fazer [...]. Os funcionários fazendo tudo. Aqui não, eles tiveram uma diferença boa sim.”

Simone

45 Cuidadora plantonista da casa dos homens.

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Essas falas e diversas transformações que têm acontecido, mostram-nos que

sair “prontos” de um espaço de enclausuramento como o hospital psiquiátrico, não é

realidade. Ao falar das regras e exigências que alguns funcionários impõem para os

internados nas enfermarias pré-lares, Jandira afirma que:

“a gente não quer que ele fique pronto aqui [no hospital]; aqui é muito perverso.Estar pronto aqui é não estar pronto.”

O processo de Reforma Psiquiátrica visa reabilitar aquelas pessoas excluídas

do convívio social, o que, conforme afirmou Saraceno (1999) não quer dizer

substituir a “desabilitação” pela habilitação. Para este autor, é necessário que haja

“um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as oportunidades de troca de

recursos e de afetos: é somente no interior de tal dinâmica das trocas que se cria um

efeito ‘habilitador’” (1999, p.112). No manicômio não há espaço para trocas de

recursos, sociais ou afetivos. Ainda segundo Saraceno, existe um “mito da

autonomia”, ou seja, uma idéia de que aqueles mais “autônomos” podem participar

dos programas de reabilitação, e aqueles “não autônomos o suficiente”, aqueles que

não estão bem adaptados às regras, os “menos dotados”, devem passar por

processos de retomada da autonomia em espaços que não permitem, de fato, o

exercício da autonomia e da cidadania. Como afirmaram profissionais, técnicos,

estagiários e extensionistas que trabalham nas casas, as mudanças ocorrem na

experimentação, no dia-a-dia.

Através, então, do contato diário, das atitudes, das relações e vínculos

construídos, acreditamos que a idéia de loucura enquanto forma de vida

enclausurada, pode ser desmanchada, desmantelada, dando lugar a outras

possibilidades de viver, de adquirir novas experiências. Como afirma Sahlins (1990,

p. 11), “as pessoas à medida que se tornam socialmente capazes deixam de ser

escravos de seus conceitos para se tornarem seus senhores”. Nesse sentido, os

egressos dos hospitais psiquiátricos não são mais considerados loucos incapazes,

mas outras possibilidades de existência, de vida podem ser constituídas como, por

exemplo, ser visto como aquele que toma remédio psiquiátrico, que faz lindos

tapetes para vender, que joga futebol com as crianças na praça, que pode vir a

limpar piscinas da vizinhança.

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2.3. DESNATURALIZANDO HÁBITOS DE TRABALHO

Ao falar das dificuldades sobre o processo de implantação dos dispositivos

residenciais em Cariacica, Jandira aponta a falta de investimento do setor público e

a questão cultural dos profissionais da área de Saúde Mental. Para ela, os

profissionais “caíram de pára-quedas” no Adauto Botelho e “não vestem a camisa”

do trabalho, das propostas sociais e políticas.

“A grande maioria está [trabalhando no Adauto Botelho] por acaso, não se identifica. Então é muito complicado porque... essa pessoa está sempre reclamando da situação [...]. Não ajuda porque tudo coloca empecilho. O que poderia ser mais fácil, ‘vamos tentar’, ‘vamos lutar’, pode ter até uma dificuldade, mas aí é uma coisa assim... não muda. Ninguém gosta de mudança aqui, não gosta de gente de fora.”

Um dos obstáculos, portanto, para a constituição do processo de Reforma

Psiquiátrica no Espírito Santo são pessoas que trabalham no Hospital Adauto

Botelho, que não acreditam nos processos de desospitalização e

desinstitucionalização da loucura. “Pois uma reforma não pode ser promovida

apenas de fora, no patamar das superestruturas e dos decretos institucionais, se

não for também feita de dentro, pelas aspirações daqueles que afinal vão efetuá-la”

(BARBIER, 1985, p.127). Profissionais das diversas enfermarias e das pré-lares

afetam os internados, os que vão para as residências fora do hospital, os técnicos

chamados para trabalhar nas casas.

“Inclusive algumas pessoas falavam até com os pacientes que iam sair que isso era uma manobra do governo para tirar eles daqui [do Adauto Botelho], que eles já estavam há muito tempo, e iam deixar eles desamparados fora. Até hoje ele acham isso.”

Jandira

Scarcelli (2002) apresenta algumas das preocupações dos trabalhadores em

saúde mental em relação à saída dos internos em manicômios: essas pessoas

conseguirão se adaptar à uma nova vida longe dos cuidados e proteção hospitalar?

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Conseguirão assumir responsabilidades e alguma ocupação, um trabalho?

Conseguirão administrar o tratamento medicamentoso? Conseguirão cuidar de si e

de sua moradia? Há receio de que haja um “desassistir” daqueles que saem do

hospital psiquiátrico. E não é isso que se propõe. De fato os cuidados não serão

mais os mesmos, nem as atividades diárias serão iguais. Essas pessoas serão

atendidas e assistidas nos Centros de Atenção Psicossociais, nas Unidades de

Saúde e em outros serviços disponíveis para a população, além de uma equipe de

profissionais responsável pela manutenção das casas – alimentação, contas a pagar

e qualquer assistência das quais moradores possam precisar.

É importante ressaltar, como afirma Andréa de Carvalho (1996), que a equipe

de trabalho deve estar atenta para não ocupar o lugar de saber o que é bom para

todos, não ocupar o lugar de desejar pelos moradores. Cada um de nós,

profissionais, estudantes, moradores, tem desejos e demandas diferentes, bem

como dificuldades variadas – há diversidade de idéias, de desejos, de vontades,

demandas, dificuldades, saberes, alegrias, tristeza, conquistas... São vidas

diferentes.

Mudanças de hábitos não se dão da noite para o dia. Concordando com

Scarcelli (2002), os egressos do hospital e os trabalhadores devem estar atentos e

alterar os hábitos – não mais esperar o técnico dizer para comer, para tomar banho,

para ir para alguma atividade; não mais exigir que os moradores acordem em horário

pré-determinado, ou que durmam em tal hora, que tomem banho agora, dentre outra

regras institucionais. O cuidar, nos dispositivos residenciais e nos CAPS é de outra

ordem. Contudo, como afirma Delgado (2003), os profissionais em saúde mental

enfrentam dificuldades pela insuficiência da rede de assistência, pela rejeição aos

pacientes psiquiátricos na rede de saúde – unidades básicas e hospitais gerais. E,

como afirmou Jandira, enfrentam preconceitos e descrença de profissionais da

equipe do Hospital Adauto Botelho.

Para a inauguração das primeiras casas, houve dificuldade em encontrar

profissionais dispostos a trabalhar nas residências. Havia o medo de perder o

vínculo com o hospital, e inclusive, de perder o emprego. De início, por exemplo,

Simone se interessou, segundo Jandira, por ser um trabalho diferente, inovador.

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“Mas como tinha aquela corrente contra: ‘isso não vai dar certo’, na última hora, na hora da inauguração, ela desistiu, porque ela ficou com medo. Aí a gente mandou ela [sic] obrigada, tipo assim: ‘você vai, se você não gostar a gente vai arranjar outra pessoa’. Ela foi muito insegura, com medo. No início ela não se adaptou. Aí, nessas conversas, nesse trabalho do dia a dia, ela não fala mais em sair.”

Outros profissionais também passaram por essa dúvida e hoje gostam do

trabalho realizado nas casas.

“Eu nem queria vir [para as casas]. Sinceramente, eu não tava querendo vir não. Na última hora eu desisti, tava desistindo. Mas eu resolvi vir, gostei e agora não quero mais sair. Só se me chamarem de novo...”

Marta

Segundo Dulce, há necessidade de preparar os profissionais que atuam nas

moradias discutindo as propostas do processo de Reforma Psiquiátrica, as

mudanças e transformações no modo de trabalhar, de assistir, de ajudar, de cuidar;

o lugar que a loucura vem ocupando na sociedade e, o que esses dispositivos

propõem.

“Eu costumo dizer que os funcionários, os cuidadores, deveriam ser preparados antes pra fazer esse trabalho. Porque nós tivemos uma dificuldade muito grande com relação aos cuidadores. [...] Para ir pra residência tem que ter um perfil específico, tem que gostar muito do que faz, de ter essa visão, de aceitar as diferenças, de gostar do novo, de estar preparado para as mudanças.”

Dulce

Para Rotelli, De Leonardis e Mauri (2001) os trabalhadores em saúde mental

acostumados ao manicômio, devem “aprender a aprender”, já que a Reforma

Psiquiátrica visa diversas mudanças no cuidado, na assistência, no lidar com os que

passam pela experiência da loucura. Nas casas, os técnicos não estão mais

mediando as relações entre a instituição e pacientes; outras mediações entre

sujeitos egressos de hospícios e a sociedade são necessárias. Segundo Nicácio

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(1994) é como se houvesse uma abertura, uma expansão das relações entre técnico

e usuário que envolve agora questões de trabalho, de família, econômicas, civis, de

morada, jurídicas, dentre outras. Se os conhecimentos técnicos, os fazeres, as

atitudes permanecerem como acontecia no manicômio, haverá, nas palavras de

Saraceno, “reprodução no lugar de produção de sentido, ou seja, produção de

saúde” (2001, p.153), ou seja, o louco “doente mental”, perigosos, incapaz, que

atrapalha e é improdutivo, permanecerá presente nas casas, nas ruas, nas lojas, nas

concepções dos cidadãos. É necessário, portanto, que a mudança de atitudes em

relação ao programa de casas extra-hospitalares e em relação à loucura deva ser

trabalhado em todos os espaços, dentro e fora dos muros hospitalares, junto aos

profissionais atuantes diretos e nos espaços abertos a todos – praças, ruas, lojas,

padarias, igrejas... Segundo Lavrador e Machado

a experimentação de um novo modo de cuidar envolve, antes de tudo, uma disponibilidade objetiva e subjetiva de afetar e ser afetado. O que implica colocar em análise as nossas posturas, as nossas concepções, os nossos preconceitos, os nossos endurecimentos (2005, p.24).

São muitas as experiências em saúde mental que vêm lutando para

desconstruir essa lógica dominante de dominação que impregna nossas atitudes,

idéias e sensações. É uma luta constante, difícil e cheia de surpresas diferenciar a

história de um diagnóstico de “doente mental”, de uma história de vida. As belas

palavras de Fernanda Nicácio demonstram um pouco dessa luta e dos infinitos

afetos presentes:

O campo de incerteza que se abre, a necessidade de reconstruir a história, de elaborar e criar múltiplas estratégias para não excluir, de superar as categorias preestabelecidas de análise e resposta, de a todo o momento se perguntar como fazer [...], de viver o papel do técnico como algo a ser construído, das crises geradas na construção de um serviço aberto [...] é sem dúvida rico e incerto (2001, p. 13).

Existem dificuldades e mesmo descrença, às vezes, mas tem sido um

trabalho de luta cotidiana, de dúvidas e conquistas. As gratificações não são poucas.

Um telefonema de uma moradora que não sabia falar ao telefone avisando que o

tapete estava pronto; as perguntas dos moradores sobre o benefício que receberiam

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– que só foi liberado depois de mais de um ano que haviam se mudado do Hospital

Adauto Botelho para as casas; um morador dizendo que quer ver o filho no estado

do Rio de Janeiro quando o benefício sair, depois de anos sem notícias; uma outra

moradora que quer aprender a ler e a escrever, dentre outras coisas da vida;

moradoras que, depois de mais de um ano, andam sozinhas pelo bairro, compram

perfume e roupa na feira de sábado, com o dinheiro que recebem e que vão ao

CAPS e a outros lugares sem ter a obrigatoriedade de ter um “responsável”

acompanhando-as. Tudo isso é gratificante e exige um trabalho lento, árduo,

querido, diversificado e rico por parte de cada integrante do processo de luta

antimanicomial.

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CAPITULO 3

ATUANDO NO TERRITÓRIO:

EXPLORAÇÕES A PARTIR DE

UM DIÁRIO DE CAMPO

“Os espaços se misturam”.

Ítalo Calvino

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A saúde pública no Brasil, seguindo os parâmetros do Sistema Único de

Saúde (SUS), vem afirmando e efetivando a constituição de territórios para o acesso

e atendimento da comunidade aos centros e postos de saúde. É necessário

discutirmos um pouco esse conceito que veio da Geografia.

Para o geógrafo Milton Santos (2003), o território é mais que um espaço físico

e geográfico para ações, é mais que um recurso; é também espaço de emoção, um

abrigo – são dois movimentos concomitantes. É um espaço “de experiência sempre

renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a

indagação sobre o presente e o futuro” (SANTOS, 2003, p.114). Por não ser apenas

um meio de circulação, o território não se confunde com a noção de espaço, porque

é a ação das pessoas que o caracteriza, é o uso que fazemos dele que de fato

importa. Segundo M. Souza (2002, apud OLIVEIRA, F., 2004) o território é de

caráter político, já que se trata não do espaço em si, mas das relações nele

projetadas, da apropriação daquele espaço. Não é estático, pronto e determinado,

mas está em constante transformação, de acordo com as ações cotidianas e as

relações nele constituídas. Nesse sentido, as transformações sociais acontecem no

território. Para Ewald, Bravo e Gonçalves “o próprio espaço físico é significativo

quando referenciado aos intercâmbios sociais donde recebem seu sentido” (2005,

p.07).

Na década de 80, segundo Oliveira (2004), o processo de Reforma Sanitária

no Brasil levou ao processo de descentralização das ações de saúde, ou seja, as

intervenções e decisões deveriam ser a nível local. Daí a importância da discussão

da noção de território na área da saúde – não se restringindo à divisão geográfica,

mas atentos às redes de relações e às ações constituídas no território.

Percebe-se que, contrapondo-se às estruturas tradicionais, o modelo territorial vai muito além dos limites geográficos, pois permite uma organização da rede de saúde partindo de um contexto histórico particular, refletindo tudo o que uma população produz [...]. Os serviços passam então, a ter a incumbência de buscar modificações sociais, de superar a simples assistência e a incorporar uma nova forma de cuidar que ultrapasse os muros institucionais (CABRAL et al, 2001, p.138).

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A equipe profissional deve atuar de fato no território, não se restringir à

unidade de saúde ou ao serviço em que atua. É necessário conhecer a vida, os

problemas as resistências e criações daquele território, ou seja, fazer parte daquelas

relações. Fernanda Nicácio (1994, p.96) afirma que “a inserção territorial implica

conhecer a região globalmente, as necessidades dos usuários, o percurso da

demanda psiquiátrica, conhecer e intervir nas organizações institucionais, descobrir

recursos, potencialidades.” Não basta haver um estabelecimento, um serviço de

assistência em saúde mental se não há troca, se não há intercâmbio entre este

serviço e o território. A construção de vínculos e alianças é fundamental para uma

boa relação entre o local de assistência e cuidado à saúde, seus trabalhadores, e a

comunidade. A rede construída deve ser mais ampla e complexa do que ser apenas

diferentes locais de atendimento naquela área de abrangência. Segundo Oliveira o

serviço deve “ir ao encontro da vida daquele sujeito, ao lugar onde essa vida se

realiza; eis o significado de penetrar no território” (2004, p.107, grifo do autor).

O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, como já discutido

anteriormente, é influenciado pela proposta italiana de Franco Basaglia, Franco

Rotelli, dentre outros. Tendo como base a experiência de desinstitucionalização em

Trieste, que culminou no fechamento definitivo do Hospital Psiquiátrico San Giovanni

em 1980, Dell’Acqua e Mezzina afirmam que não é o próprio paciente que busca o

Centro de Saúde Mental46; os técnicos, chamados de ‘operadores’, vão ao encontro

do sujeito nos lugares de contato, ou seja,

lugares de vida do paciente (a sua casa, o bar, o lugar de trabalho, etc) e os intermediários serão as pessoas significativas do seu ambiente. O serviço se mobiliza com a máxima flexibilidade para este fim, sem protocolos de intervenção pré-constituídos, ou mesmo ‘equipes especiais’ de intervenção (DELL’ACQUA e MEZZINA, 1991, p.61).

Os técnicos estão presentes no território, o qual é atravessado por diferentes

crenças, atividades e interesses, para lidar com a complexidade existencial dos

sujeitos, e a população conhece os diversos serviços e as propostas do processo de

46 Em Trieste, Itália, foram criados sete Centros de Saúde Mental que funcionam 24 horas por dia,

todos os dias da semana. Apresentam um aspecto de casa e não de ambulatório, estando abertos a toda a população. Não há filas nem marcação de consultas. Cada um desses Centros de Saúde Mental abrange aproximadamente 40.000 habitantes (ROTELLI, DE LEONARDIS e MAURI, 2001).

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desinstitucionalização da loucura. O trabalho, no território, é transformado a partir

das inúmeras experiências de vida dos atores que constituem aquela área.

Rotelli, De Leonardis e Mauri afirmam que a Itália conseguiu abolir a

internação psiquiátrica como forma de tratamento psiquiátrico porque

se descobriu que cuidar significa ocupar-se, aqui e agora, de fazer com que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento do ‘paciente’ e que, ao mesmo tempo, se transforme sua vida concreta e cotidiana, que alimenta este sofrimento (2001, p.33).

Portanto, a ação não se limita aos serviços e não busca restabelecer a

“normalidade” social, muitas vezes “exigida” pelos diversos atores sociais; não busca

a vida “normal” padronizada fazendo com que os que experienciam a loucura sejam

adaptados a um modelo pré-definido de existência, de moradia, de trabalho.

Concordando com Scarcelli (2002), tendemos a acreditar que sabemos o que é bom

para os outros, inclusive para os que moravam em hospitais psiquiátricos. Contudo,

nem sempre o que desejamos e esperamos é o que eles querem e/ou do que

precisam. Devemos estar, portanto, atentos às reais necessidades sociais,

psicológicas, econômicas e materiais da população egressa de manicômios.

Atuando no território, a equipe profissional deve “assumir a

responsabilidade”47. Para Dell’Acqua e Mezzina isso “quer dizer, portanto, assumir a

demanda com todo o alcance social conectado ao estado de sofrimento” (1991,

p.63). Para isso, os profissionais devem acompanhar o usuário em qualquer

instituição que haja necessidade, como tribunal, agência de empregos, médico,

banco, etc. Não significa procurar um advogado pela pessoa, ou retirar dinheiro do

banco por ela, mas sim, acompanhá-la em suas atividades e contribuir para que

qualquer dúvida ou dificuldade que ela tenha seja resolvida. Não se trata de levá-la

porque é “incapaz”, ou ir para tomar conta do usuário. Trata-se de cuidar, de assistir,

caso seja necessário. Não há lugar específico, o local do serviço de saúde, para que

o técnico assuma a responsabilidade por aquela pessoa, evitando o abandono e,

47 Fernanda Nicácio, tradutora do texto de Rotelli, De Leoniardis e Mauri (2001), esclarece que não há

tradução específica da expressão italiana “presa in carico”. Ela explica que a expressão utilizada quer dizer “fazer-se responsável” pelas pessoas daquela região de referência e não encaminhar a outros serviços e instituições para que a pessoa seja atendida e assistida.

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como afirma Nicácio (1994, p.99), contrapondo-se “à fragmentação das

necessidades da demanda.” É fundamental que haja uma organização coletiva nos

serviços, e entre os profissionais, sem uma hierarquia rígida e determinante que

esquadrinhe e divida o trabalho. Essa proposta de “tomada de responsabilidade”

exige horizontalidade nas relações, e flexibilidade por parte dos profissionais para

não segmentar o atendimento, o cuidado, a assistência e as atividades do usuário.

No Brasil, seguindo as diretrizes da III Conferência Nacional de Saúde Mental

realizada em dezembro de 2001, a rede de serviços substitutivos deve oferecer

atenção integral aos usuários e seus familiares, a qualquer tempo, e deve ser

integrada à rede básica territorializada, deve contemplar ações referentes às áreas de trabalho, moradia e educação e, também, ser estruturada de forma descentralizada, integrada e intersetorial, de acordo com as necessidades dos usuários, visando garantir o acesso universal a serviços públicos e de qualidade (BRASIL, 2002, p.38, grifo nosso).

Assim, as diferentes modalidades de assistência devem desenvolver práticas

“pautadas em relações que potencializem a subjetividade, a auto-estima, a

autonomia e a cidadania e busquem superar a relação de tutela e as possibilidades

de institucionalização e/ou cronificação” (BRASIL, 2002, p.24). Saraceno alerta para

o fato de “que não existe política territorial crível, se não existe política simultânea de

superação do manicômio” (1999, p.119). Os serviços substitutivos devem estar

relacionados aos diferentes ambientes e cenários do território: escolas, igrejas,

bares, lojas, clubes, etc – espaços onde são construídas as relações sociais,

territórios onde os que experienciam a loucura passam a habitar. Não basta,

portanto, abrir novos serviços de assistência e manter a lógica manicomial de

exclusão, periculosidade, incapacidade e tutela. O cuidado no território é ampliado,

não deve ser restrito ao serviço. Entretanto, como afirma Nicácio, o trabalho não é

calmo, sem conflitos. Segundo esta autora, “a ação se dá em um terreno

contraditório no qual os conflitos são motor do processo em uma crítica à

reproduções de homogeneização, serialização e objetivação” (1994, p.98).

Alguns técnicos entrevistados, ao falarem do trabalho desenvolvido pelos

profissionais nos serviços substitutivos em saúde mental, no Espírito Santo, e a

integração entre os diferentes serviços em saúde, afirmam que

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“[...] tudo isso tem que ter uma rede. Então a gente está fazendo um trabalho, com dificuldade e tal; você está fazendo um trabalho de estar inserindo na comunidade; mas na rede não está estruturado ainda. [...] Por exemplo, o pessoal de curta [permanência no hospital psiquiátrico] que ainda tem família. Eles vêm com história de muita internação. Por que? Porque falta a base da rede. Vamos dizer: a gente está com um trabalho bom nos serviços alternativos; é bom, é essa a alternativa, mas a gente não tem a base, que seriam o postos de saúde estar atendendo psiquiatra, remédio, orientação, atividades [...]. O que está faltando , principalmente, é a rede estruturada.”

Jandira

2“Aqui não é organizado [o sistema de rede da saúde]. Como é que a gente pode organizar a saúde no Estado se não se tem uma coisa mínima que é saneamento básico, no posto de saúde ter médico, enfermeira, é uma coisa assim. E a saúde mental, é mais complicado ainda organizar essa rede.”

Sheila48

Estas falas demonstram a dificuldade de integração de uma rede de serviços

na área da saúde, não restritas aos cuidados em saúde mental. Leitos manicomiais

são fechados, e discute-se a extinção progressiva dos manicômios. Entretanto, esta

proposta não está clara para grande parte dos técnicos em saúde, nem para a

população, que não percebem a possibilidade de atendimento e cuidado de pessoas

em crise que não no Hospital Psiquiátrico. Infelizmente o hospício e a internação

ainda são referência para a população.

“Não pode acabar. Tem que ter alguma coisa lá. Se não o cara vai fazer exame aonde?”

Jonny

48 Profissional do CAPS Moxuara, onde os moradores das duas casas recebem atendimento.

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Implantar as casas para ex-internos, assumir a responsabilidade, contribuir

para a autonomia e exercício da cidadania, contribuir para o desmanchamento do

Hospital Psiquiátrico, para Kauffmann e Silva, “é a viabilização de um lugar físico,

uma moradia, que possibilita a construção de um lugar subjetivo, um projeto de vida”

(2000, p.37). Mas a implantação dessa casa não leva, automaticamente, à inserção

social de fato daqueles que viveram excluídos por tantos anos. Segundo Scarcelli

(2002) construir e sustentar políticas públicas para serem mantidas em e para

espaços coletivos é um desafio. Uma resolução federal e leis que determinem e

regulamentem os projetos políticos não garantem a solução definitiva, no caso aqui

discutido, para o fim da lógica manicomial excludente e infantilizadora. O processo

de desinstitucionalização da loucura é lento, é construído no dia-a-dia a partir das

dificuldades, das conquistas, das dúvidas, das relações e vínculos constituídos,

envolvendo diferentes pessoas, variados profissionais e diversas vidas.

3.1. CIRCULANDO

Os egressos do Adauto Botelho mudaram para as residências em 26 de

outubro de 2004. A primeira vez que fui às moradias foi uma semana depois da

inauguração, em 01 de novembro. Estava um dia belíssimo, muito quente. Apesar

das dificuldades apontadas pela equipe responsável pelas moradias, a dificuldade

de encontrar uma casa grande o suficiente para tantos moradores, dificuldade da

compra dos móveis, do atraso da saída dos internos, as casas já estavam bem

organizadas, arrumadas, com sofás, aparelho de TV, telefone, camas para todos os

moradores, guarda-roupas e cômodas, máquina de lavar roupas, pratos e talheres,

fogão, geladeira e mesa para refeições. Casas sem muito luxo, mas confortáveis e

arrumadas. Fui com uma extensionista que conhecia a localização das duas

residências, os moradores e as profissionais que trabalhavam nas casas.

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Fig. 6: Cozinha da casa das mulheres, em Itacibá.

Fig. 7: Quarto duplo da casa das mulheres.

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Fig. 8: Sala da casa dos homens em Santana.

Primeiro fomos à casa das mulheres. Eu não conhecia nenhuma das

moradoras nem as cuidadoras. Sentamos à mesa e conversamos sobre a casa,

sobre o hospital, sobre os tapetes que amarravam para vender – artesanato que

aprenderam na Terapia Ocupacional do Adauto Botelho. Uma das cuidadoras

bordava uma toalha de banho e estava fazendo uma para cada moradora. Rosana e

Domitila estavam interessadas em aprender a bordar também e nos mostravam,

entusiasmadas, os pontos que haviam marcado naquela semana, o que faziam na

casa, o que limpavam, o que assistiam na televisão, quando iam ao CAPS, e

afirmavam que, para o Adauto não voltariam mais, e que, estavam felizes por estar

fora de lá. Rosana e Alice mostraram os dedos que não estavam mais tão

amarelados, porque agora fumavam cigarro branco, não mais fumo sabiá enrolado

em folhas de jornal até queimar as pontas dos dedos como faziam no hospital.

Chamamos duas moradoras para irem conosco para a casa dos homens e Rosana e

Abigail prontamente aceitaram o convite.

Para ir da casa das mulheres no bairro de Itacibá para a casa dos homens,

em Santana, passamos pela entrada do Hospital Adauto Botelho, e Rosana acenou

um “tchau” para o hospital. Eu já conhecia apenas um dos moradores da casa

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masculina desde a época em que eu fazia parte do Projeto de Extensão do

Departamento de Psicologia no hospital – o Jerônimo. As cuidadoras não me

conheciam também. Foi ele próprio quem veio abrir o portão da casa para nós, o que

parecia ser a “função” dele enquanto interno do manicômio – era sempre Jerônimo

quem abria o portão da quinta enfermaria do Adauto. Ficamos na varanda

conversando – eu, os extensionistas e alguns moradores. Eles pediam alguma coisa

o tempo todo: fumo, um cigarro, uma moeda, um boné, uma carteira, um anel, como

eles fizeram por tanto tempo no manicômio. Jerônimo estava sentado próximo ao

portão trancado e perguntei a ele, se ele estava bem, se estava feliz de estar

morando em outro lugar, e ele disse que sim. Quando eu perguntei se ele já

conhecia o bairro, se eles saíam para dar uma volta ele respondeu:

“A gente tava preso lá [no hospital]. Agora fica preso aqui.”

Esta afirmação chocou-me. Havia apenas uma semana que eles haviam

saído do hospital, não recebiam qualquer benefício financeiro, mas a proposta dos

dispositivos residenciais não é impedi-los de saírem de suas próprias casas, porém

contribuir para que haja a construção de outros projetos de vida, de autonomia e

liberdade na cidade, nas ruas, em diferentes relações e vínculos sociais. Ou seja,

efetivar campos de possíveis e constituição de formas diferentes de serem tratados,

de habitar, de morar e de viver.

Alguns moradores das duas primeiras casas para egressos de hospitais

psiquiátricos no Espírito Santo demonstram interesse em participar de atividades no

território: na Igreja, fazer um curso, freqüentar aulas, aprender a ler e a escrever,

enfim, interesse em assumir relações amplas e não apenas estar de corpo presente

no território. Jerônimo, por exemplo, diz querer aprender mais que o “ABC.” Ele,

inclusive, manifestou o interesse em trabalhar como ajudante de pedreiro. Rosana,

como já dito anteriormente, freqüenta um curso de bordado em uma Igreja do bairro

e também tem interesse em ir à escola, aprender outras coisas. Contudo, há uma

certa resistência em permitir que os moradores saiam sozinhos de casa, e que

assumam, de fato, sua liberdade. Isso acontece, muitas vezes, por hábitos do

hospital psiquiátrico – já que os cuidadores são funcionários que trabalhavam no

manicômio Adauto Botelho:

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“Elas têm deficiências. Não dá para soltar elas por aí assim. Eu acho que tão cobrando demais da gente.”

Cintia

“Tem essa coisa da rigidez da instituição. É muito difícil perder isso.”

Jandira

Resistência também, por excesso de zelo e proteção:

“Se qualquer coisa acontecer com elas, tenho medo de a culpa ser minha [...]. É uma casa comum. Mas tem que entender que as pessoas que tão aqui viveram muito tempo no hospital e não sabem muita coisa [...]. Minhas preocupações são com elas e o que podem fazer com elas por aí. Elas têm muito para conhecer e como vamos conseguir fazer tudo isso com elas? É difícil.”

Cintia

De fato, é difícil. Depois de mais de vinte anos isolados do mundo, presos em

um manicômio não é fácil assumir responsabilidades, conhecer, andar pela cidade,

construir projetos de vida. Algumas vezes alguns deles podem sair sozinhos: ir ao

CAPS sozinhos – os homens vão andando de casa para o CAPS Moxuara, comprar

um refrigerante para o almoço; mas existe um receio de eles saírem sem

acompanhamento de um “responsável”.

“Eu, no meu caso, eu tenho medo de deixar sair sozinha [...]. A Frances e a Abigail, elas não saem mesmo49. A Alice, pra sair, tem que estar junto porque ela tem dificuldade para andar. A Rosana não, se você mandar ela comprar um refrigerante, ela vai comprar um maço de cigarro, ela vai.”

Verônica

49 São duas senhoras já idosas, com problemas de pressão alta, andam muito devagar e têm um

certo medo de saírem sozinhas.

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Mas, e quando querem sair sozinhos, dar uma volta no bairro, passear, elas

podem? E os homens podem? Na maioria das vezes, não podem sair sozinhos para

ir a um curso, nem à praça do bairro, nem à padaria do Jonny... Amanda, como dito

anteriormente, senta sobre a chave por volta das 17:30 horas para os homens não

saírem de casa à noite sozinhos, porque ela acha que é perigoso. Existe medo de

deixar o portão aberto, medo de que alguém entre e roube a casa, ou faça algum

mal aos moradores, mulheres e homens; existe o medo, também, de que façam

algum “mal sexual” às mulheres.

Aproximadamente em maio de 2005, uma das cuidadoras da casas das

mulheres do turno noturno, Nazareth, levou Rosana e Domitila a um curso de

bordados na Igreja Batista do bairro. Elas ficaram muito entusiasmadas. Contudo,

Nazareth não podia ir ao curso todas as semanas. Eu me dispus a acompanhá-las, a

contribuir para que “tomassem a rua”. Mesmo não sabendo bordar, participei de

algumas das atividades, que eram semanais. Em determinada data, eu não poderia

ir ao curso com Rosana e Domitila e liguei para a casa para avisá-las. Ao atenderem

ao telefone, surpreendi-me com que ouvi: “Residência Terapêutica, boa tarde”. Eu

fiquei um pouco atordoada, achando que havia discado o número errado, já que eu

havia telefonado para a casa de algumas mulheres, e não reconheci a voz da

pessoa que atendera ao telefone. Esta forma de atender ao telefone pareceu-me

uma empresa, um lugar de trabalho, uma instituição fechada para a qual eu não

havia ligado. Identifiquei-me e perguntei se era a casa de Rosana e pedi para

chamá-la. Expliquei a ela que eu não poderia acompanhá-la ao curso naquele dia, e

perguntei se ela saberia ir sozinha. Com a resposta afirmativa encorajei-a a falar

com as cuidadoras, e ir ao curso com Domitila – uma vez que elas já conheciam o

caminho, na verdade, elas mostravam o caminho, e conheciam as professoras e

algumas alunas. Quando fui à casa, três dias depois, e perguntei do curso, Rosana

respondeu-me que não havia ido. Insisti em saber a razão, e ela me disse,

engasgando e de forma embolada, que Marta, uma das cuidadoras, não havia

deixado, que não havia quem as levasse.

Na semana seguinte, foi realizada uma reunião coletiva com a participação de

extensionistas, estagiários, cuidadores, equipe do CAPS e da comissão para

implementação das residências. Foi discutido sobre o fato de os moradores terem

recebido alta do Adauto Botelho, sobre a importância da saída deles do hospital,

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mas não apenas para ficarem dentro de casa, sobre, principalmente, a necessidade

de outras relações e o benefício que as mesmas podem trazer para eles, como

maior liberdade, autonomia, busca de saúde, de estudos, de trabalho. Jandira conta-

nos que depois dessa “assembléia”, os cuidadores pediram a ela uma reunião para

que discutissem a saída dos moradores às ruas, e as responsabilidades que eles,

cuidadores, teriam. As dúvidas foram, segundo relato de Jandira:

“‘Se eles estão andando sozinhos, e se por acaso forem atropelados, eu vou levar processo?’, ‘Como é que é?’, ‘Eu sou responsável?’, ‘Eles estão de alta?’. Porque na internação, eles [pacientes] são de responsabilidade do Estado; e eles [cuidadores] não conseguiram acompanhar que lá eles estão de alta, é uma casa. Lógico que ali tem cuidados, mas eles estão ‘fora’, entre aspas, dessa custódia muito firme do Estado.”

André, psicanalista que presta consultoria ao hospital, naquela reunião-

assembléia alertou para o fato ao qual devemos estar atentos, pois

“podemos cair na armadilha de sobre-proteger e não de cuidar.”

Já em setembro de 2005, onze meses após a ida dos moradores para as

casas, Rosana ainda se interessava em fazer o curso na Igreja Batista e queria

participar dele. Marta ajudava-a em casa com os bordados: ensinava, corrigia os

pontos defeituosos que a “aprendiz” havia feito. Contudo, Rosana mais faltava do

que participava dos encontros na Igreja. Uma das vezes que fui com ela novamente,

a professora perguntou por que ela havia faltado tantas aulas, e ela disse baixinho:

“elas não deixam”, referindo-se às cuidadoras que não permitiam que ela fosse ao

curso desacompanhada, mas pedia-lhe que comprasse um refrigerante, um maço de

cigarros, peixe para o almoço... Rosana podia sair para algumas coisas, para

realizar alguma tarefa, mas não era permitido que saísse desacompanhada para

participar de atividades sociais.

“Sozinha eu não posso ir não [...]; deixa não [...]. Porque negócio de carro, atropelado de carro. Eu sei,eu sei andar na rua sozinha. Eu vou aí no supermercado [...]; pra comprar um refrigerante eu vou sozinha”.

Rosana

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Mais adiante, esta moradora afirma:

“Se mandar eu ir eu sei, eu vou no CAPS de ônibus certinho”.

No dia do curso, na semana seguinte, eu fiquei surpresa com a ligação de

Rosana para minha casa, perguntando se eu iria ao curso com ela naquela tarde.

Quando se mudou para a casa, ela dizia que não sabia falar ao telefone, que ela

gritava “alô” e começava a rir. Depois de um ano, Rosana ainda não discava os

números, todavia sabe pedir a quem atende ao telefone para falar com quem ela

deseja. Ao confirmar que eu estaria lá, de tarde, Rosana logo falou que já tinha

arrumado a casa, que tomara café, que já havia tomado banho e estaria pronta na

hora que eu chegasse. E realmente estava, além de animada com as cores de linha

que Marta havia dado a ela. No curso, uma adolescente ajudou Rosana o tempo

todo, e elas conversaram bastante: falaram de estudos, de dificuldades em bordar,

se moravam perto ou não da Igreja.

Fig.9: Bordado feito por Rosana.

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Uma outra aluna do curso de bordado na Igreja perguntou, a mim, se Rosana

morava em uma clínica, e eu expliquei a ela a proposta dos dispositivos residenciais:

que eram moradores de uma casa, que não era uma clínica, que elas haviam

recebido alta do Adauto Botelho e que continuavam o tratamento com profissionais

do CAPS Moxuara. Esta senhora elogiou o trabalho, disse que era importante elas,

as moradoras, participarem de atividades, e aprender algumas coisas diferentes, até

mesmo para poderem trabalhar e ganhar algum dinheiro.

Em uma reunião com a equipe de extensionistas, estagiários, profissionais do

CAPS e da Unidade de Ressocialização do Adauto Botelho, Patrícia, uma das

cuidadoras da casa das mulheres (que estava na casa havia aproximadamente dez

dias), reclamou que uma das moradoras não lhe obedecia. Patrícia relatou o

episódio que estava tomando banho e nesse momento, Rosana pegou a chave do

portão e saiu de casa sem avisara ninguém, e ainda deixando o portão aberto. As

outras moradoras alertaram a cuidadora do fato, e esta disse ter ficado muito

preocupada e aflita, mesmo sendo de manhã. Depois de algum tempo, Rosana

voltou para casa “como se nada tivesse acontecido”. Este episódio aconteceu em

setembro de 2005, onze meses desde a data em que as moradias foram

inauguradas. Ou seja, há onze meses as moradoras andavam pelo bairro na

companhia dos estagiários e extensionistas, e Rosana já havia saído diversas vezes

para ir ao supermercado, à padaria...

De fato, há preocupação por parte das cuidadoras. No entanto, será que esta

preocupação não leva a um movimento de trancar os portões e comandar o espaço

interno, mantendo a lógica do Hospital Adauto Botelho? Os dispositivos residenciais

não são um outro espaço de isolamento onde os que experienciam a loucura devem

ser trancados e obedecer às ordens sobre a hora de sair de casa e de entrar nela,

de tomar banho, de almoçar, de fumar, de ver TV, de dormir...

“A gente faz elas entenderem que aqui fora é diferente lá de dentro, elas tem o horário delas fumarem. Lá elas fumavam toda hora, toda hora com cigarro na boca. Aqui não, tem o horário delas fumarem [...]. Elas fumam lá fora na varanda. Cada uma tem seu cinzeiro”.

Verônica

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Devemos estar atentos para o que se pretende com estas casas – a retomada

da autonomia e cidadania de pessoas que ficaram anos excluídas dos movimentos

da cidade e não a manutenção de uma lógica em que os que passam pela

experiência da loucura não possam fazer, experimentar, construir, questionar e

inventar formas de viver; ou seja, contribuir para que eles possam criar regras para o

convívio da casa, decidir o que gostam de comer, de vestir, de fazer para se divertir,

como vão ganhar dinheiro para comprar um chinelo, um doce, uma carteira ou mais

cigarro.

Algumas moradoras do dispositivo residencial feminino amarram tapetes –

fitas de malha em estopa – para vender. É uma atividade realizada desde os tempos

de terapia ocupacional do hospital. As cuidadoras cortam as tiras, para que as

moradoras não se machuquem com a tesoura e para que não desperdicem material,

cortando as tiras tortas – mantêm o que era feito no Adauto Botelho. Logo quando

mudaram para as casas, todas faziam muitos tapetes, mas com o tempo, Rosana

passou a interessar-se mais pelo bordado, Domitila deixou de amarrar tapetes e leva

fama de preguiçosa na casa, Frances faz de vez em quando, assim como Abigail.

Apenas Alice ainda faz muitos tapetes. Ela está fazendo um tratamento

fonoaudiológico em uma universidade que propõe atendimento à comunidade (fica

ansiosa para a sessão toda semana e faz todos os exercícios propostos em casa) e

levou um tapete amarrado por ela para o fonoaudiólogo estagiário que a atendia. Os

demais estagiários, professores e mesmo pessoas da comunidade, interessaram-se

em comprar esses tapetes, fizeram encomendas de cor, de tamanho e estimularam

ainda mais Alice a fazer os tapetes, que são muito bem amarrados.

A mãe de uma criança que estava em atendimento nesta clínica universitária

falou que é “bom comprar para ajudar”. Conversando com esta senhora, na sala de

espera, falei sobre as casas para egressos de hospitais psiquiátricos, que Alice e

outras pessoas receberam alta do hospital, mas não tinham mais contato com

familiares e junto de Alice moravam outras quatro mulheres. Mais uma vez, esta

senhora disse que era bom poder ajudar as pessoas. Ela não comprou tapete –

vendemos quatro ou cinco tapetes em menos de dez minutos – mas me trouxe a

dúvida: será que as pessoas compram por que gostam do trabalho e do produto, ou

será por que “é bom ajudar”?

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Fig.10 e 11: Tapetes feitos por moradoras da casa das mulheres.

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Desde abril de 2006, quase todos os moradores das duas casas recebem

benefício do Programa de Volta para Casa. Antes desta data apenas Jânio50 e

Frances recebiam aposentadoria (sendo que Frances recebia por uma curadora que

nunca repassou o dinheiro à ela) e Cristóvão passou a receber benefício depois que

se mudou para a casa. Os moradores ainda não tinham CPF, o que atrasou bastante

o processo para receberem o benefício ao qual têm direito. Ainda hoje, Alice e

Amadeu51 não recebem benefício, porque eles não tinham certidão de nascimento.

Este documento já foi providenciado, mas agora, é necessário o CPF e um

documento com foto.

Assim como os documentos e benefícios para esses moradores estão sendo

providenciados pela equipe de implantação das residências – equipe atuante no

Hospital Adauto Botelho, as enfermarias pré-lares continuam “preparando” outras

pessoas para saírem do manicômio.

A proposta do processo de desospitalização do Adauto Botelho não se

restringiu às duas primeiras residências. Outras três moradias foram implementadas

em 16 de fevereiro de 2006, com meses de atraso. Duas dessas novas casas ficam

localizadas no bairro Santana, em Cariacica. Alguns poucos moradores estavam

preocupados com o bairro ser rotulado como o “bairro dos loucos”. Todavia, essa

discussão e a tentativa de impedir a mudanças dos egressos do hospital para aquele

local não foi difundida. A diferença no modo de pensar, de agir, de viver traz

desacomodações, perturbações e desassossego para uma população que não sabe

ao certo o que a vinda de pessoas ex-internas em manicômios pode significar, o que

se busca, o que eles podem fazer, se é que podem trabalhar ou fazer mal à

comunidade. A maioria dos moradores do bairro Santana não cedeu aos apelos de

alguns vizinhos na tentativa de impedir a mudança. Os moradores da primeira casa

para egressos do Adauto Botelho são conhecidos no bairro, cumprimentam as

pessoas nas ruas, freqüentam a praça, a padaria, circulam pelas ruas – os homens

em Santana tomaram mais as ruas do que as mulheres em Itacibá.

Naquele final de semana, após a inauguração das três novas moradias,

Jandira pediu às cuidadoras que estivessem atentas para que os homens da

50 Morador da casa masculina. 51 Morador da casa masculina.

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primeira casa não saíssem tanto de casa, para não serem alvos de qualquer tipo de

acusação, e esperar a “poeira abaixar” depois de discussões sobre a moradia de ex-

internos no bairro. Este pedido foi prontamente atendido por duas semanas, até

depois do período de carnaval. Os moradores só estavam saindo de casa na

presença dos estagiários e/ou extensionistas que os acompanhavam pelo bairro, à

praça, pelas ruas, padaria, ao CAPS. Durante as festividades de carnaval, os

estagiários – Fabiana e Vitor – não foram à casa e, na quinta-feira seguinte, todos os

moradores os chamaram para sair, para ir passear, para dar uma volta na praça ou

fumar um cigarro na rua. Ao falar para Rogério “vai você que depois eu vou” Fabiana

ouviu a seguinte resposta: “posso não, elas não deixam não.” Então souberam do

comunicado de Jandira, e que aquele pedido de evitar circular muito nas ruas, em

um final de semana, havia sido obedecido por mais tempo: duas semanas.

Ao saírem de casa com os estagiários naquela quinta-feira após período de

carnaval, segundo relato de Fabiana, Jânio abraçou Vitor por longo tempo

agradecendo-lhe por saírem com eles. Rogério lhes agradecia repetidamente, e

falava para todos que passavam pela praça: “a gente tá podendo sair”. Acredito que

os moradores não sabiam o porquê de não estarem saindo de casa naqueles dias.

Na residência havia oito homens e uma cuidadora, o dia inteiro. Ela trabalhava, fazia

almoço, limpava a casa e a cozinha, organizava os medicamentos enquanto alguns

homens ficavam na varanda fumando, ou vendo TV, um ou outro ajudava em

alguma coisa na casa. Mais uma vez o processo de desinstitucionalização da

loucura sofreu um desvio e a reprodução da lógica manicomial de obediência e

prisão em um espaço fechado foi mais forte.

Contudo este episódio levou os estagiários, extensionistas e coordenação a

refletir e trazer discussões acerca das propostas do processo de Reforma

Psiquiátrica para as cuidadoras das moradias. Mesmo sem participar efetivamente

das atividades das casas desde janeiro de 2006, o contato com os extensionistas e

estagiários para a realização deste trabalho não foi perdido. Hoje os moradores e

moradoras das duas primeiras moradias para ex-internos do Hospital Adauto Botelho

saem sozinhos: Rosana vai ao curso toda semana, e vai com Alice ao CAPS,

desacompanhadas. Os passes livres de ônibus foram dados a quase todos os

moradores em março (exceto Alice e Amadeu que não tinham documentos).

Algumas mulheres freqüentam a feira do bairro, no final de semana, e compram

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suas coisas – às vezes compram fiado. Os egressos do Adauto têm circulado de

forma mais livre em seus bairros, pelas ruas, lojas, feiras...

Como já apontou Scarcelli (2002), o uso do estigma de louco, ex-interno de

hospitais psiquiátricos, para obter vantagens como descontos, comprar fiado, pedir

e, às vezes, ganhar coisa na rua deve ser problematizado e discutido. Em uma feira

de bairro a responsável por um stand venderia fiado a qualquer morador do bairro?

Ou o fez por que a cliente é uma ex-moradora de um hospício? Alguns homens

pediam R$1,00 na porta do supermercado, outros pediam cigarro pela rua, outros

pediam coisas que não podiam ter. Acreditamos que esses ‘pedidos’ se davam

devido ao fato de eles não terem dinheiro para comprar seu próprio fumo, uma

carteira, um biscoito, um cordão, um churrasquinho na praça, um refrigerante... Pode

ser. Quem sabe agora que o benefício foi concedido, e eles recebem mensalmente o

dinheiro do “Programa de Volta pra Casa”, isso acabe!

Em um de nossos passeios pelo bairro Itacibá, eu, alguns extensionistas e

moradoras da casa das mulheres, vimos o Circo que estava se apresentando no

bairro. Interessamo-nos e marcarmos com todos os moradores, um passeio ao

Circo, que aconteceu algumas semanas depois. Fomos eu, alguns extensionistas,

quatro dos oito moradores da casa masculina, todas as moradoras da casa das

mulheres e uma cuidadora que estava na casa de plantão. Encontramo-nos na casa

das mulheres, que ficava próxima ao local do circo, e fomos andando. Fui comprar

todos os ingressos de uma vez e pedi um desconto, já que éramos um grupo de 15

pessoas. A moça responsável pela bilheteria perguntou se havia crianças e eu me vi

respondendo da seguinte maneira:

“Não há crianças, somos 15 adultos. 10 são pessoas com transtornos mentais, mas somos todos adultos”.

Após ter refletido sobre o que falei, fiquei intrigada com minha resposta,

embora tenha achado bom o desconto obtido e o lugar nas cadeiras da frente, ainda

que tenha pago preço de arquibancada, porque, segundo a responsável, “é melhor

para eles”. Foi ótimo! Divertimo-nos, cantamos, batemos palmas, vimos leão,

dançarinos, trapezistas, palhaços, o globo da morte, comemos pipoca, bebemos

refrigerantes, e ainda ganhamos algodão doce, durante o intervalo, da moça

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responsável pela bilheteria. Para completar a noite de “ganhos”, esta mesma moça

deu a Kelly52 alguns ingressos para voltarmos ao Circo, que estaria em um outro

bairro de Cariacica em algumas semanas.

Sem refletir e analisar a situação e minha fala, usei o estigma da loucura –

que se pretende superar – para ter regalias, privilégios secundários em uma noite

animada. A proposta não é esconder que aquelas pessoas sofreram anos de

internação, mas também não é confessar e manter o foco nos estigmas e

estereótipos. Esta situação foi uma questão importante de reflexão e análise para

muitos de nós – pesquisadores, extensionistas e estagiários. A luta em superar a

naturalização da loucura se dá cotidianamente, em diferentes espaços e situações,

com todos nós envolvidos. E isso é um processo contínuo, e leva tempo.

O trabalho dos profissionais que atuam nas residências extra-hospitalares não

deve se limitar ao espaço interno das casas. Nicácio, ao trazer a experiência da

criação dos NAPS no município de Santos/SP, fala da importância em “estar com” os

sujeitos de fato, em diferentes esferas sociais: no supermercado, nas praças e

parques, nos conflitos, nas ruas, no bairro, na cidade, “enfim, acompanhá-los em um

intenso processo de propiciar a entrada nas redes sociais, mediar relações,

estimular outras formas de leitura do sofrimento, de contato com os loucos” (1994,

p.97). Assim podemos perceber e conviver com o sujeito e não apenas com a

doença que, por tanto tempo, foi realçada nas mais diferentes relações do usuário

com os profissionais, familiares, com a vida social. O que não significa, de maneira

alguma, abandonar o sujeito à própria sorte. Liberdade para os que experimentam a

loucura e responsabilidade não apenas dentro dos serviços para os profissionais – a

“tomada de responsabilidade”, como já discutido anteriormente. O estagiário Vitor

relata o que percebe no que diz respeito à relação dos moradores com a

comunidade:

“Olha, eu tenho visto, nesse bairro, uma certa aceitação por parte dos adultos, o vizinho da frente que vive conversando com eles. Quando o Henrique desce [para a praça do bairro], ele conversa com muita gente, Jerônimo também, o Rogério. As crianças que é um pouquinho complicado porque quando comenta que é ex-interno as crianças já ficam assim: ‘Ah, é doido’ então fazem aquelas brincadeirinhas. Mas já chamam pelo nome e isso eu

52 Extensionista da UFES.

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acho que faz parte do processo. E cabe também à gente que acompanha, estar explicando, estar tirando um pouco esse preconceito, se é que é possível tirar. É os jovens também têm um pouco esse meio termo, um lado de excitação mas um lado de medo.”

Vitor conta que em uma tarde de sexta-feira encontrou alguns jovens

arrumando, decorando a praça para uma festa que aconteceria naquela noite, e

parou para conversar com eles. Os três moradores da casas masculina, que

estavam com Vitor, continuaram andando para irem à padaria.

“Que eu achei que era uma oportunidade pra ver porque eles estavam com aquela carinha de espanto, meio... de espanto não, mas uma carinha de curiosidade [...]. Aí uma menina comentou: ‘Ah, porque minha prima quando vê um que sempre fala ‘oi’, ela fala ‘oi’ mas sai da beira’. Eu falei: ‘Não precisa sair da beira. Cumprimenta ‘oi, e aí? Bom dia’. Ela falou: ‘Eu sei disso, mas ela tem a cabeça meio dura, a cabeça meio fechada’. E foi rolando aquele papo [...]. Eu vejo que falta um pouco de conversa, falta um pouco de explicar [...]. Acho que falta aproximar esse contato. Portanto, essa festinha que vai ter, eles não querem ir sozinhos. Eu acho que é mais porque falta essa pessoa, essa pessoa talvez pra fazer essa ligação. Eu acho que eles sentem falta disso”.

Vitor

Os técnicos, no processo de desinstitucionalização da loucura, não devem

mais mediar as relações entre a instituição asilar manicomial e os internos. São

necessárias outras mediações, agora entre os sujeitos que saem do hospital e a

sociedade. Nicácio (1994) aborda essa questão como se houvesse uma abertura,

uma expansão das relações entre técnico e usuário que envolve agora questões de

trabalho, de família, questões econômicas, civis, de moradia, questões jurídicas,

dentre outras. A equipe de profissionais, em conjunto, age como protagonista na

transformação institucional e cultural de como lidar com a loucura. Outros saberes

são construídos no cotidiano a partir das diferentes idéias, dúvidas, análises,

discussões e experimentações. Nenhum profissional deve permanecer agarrado aos

saberes instituídos como seu, mas “aprender a aprender” as diferentes situações e

responsabilidades do dia-a-dia. Ao trazer a experiência em Trieste, Rotelli, De

Leonardis e Mauri afirmam que

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torna-se evidente que a profissionalidade se explica menos em termos de competências técnicas especialistas e codificadas e muito mais como capacidade de escolher, utilizar e combinar uma ampla variedade de modalidades e recursos de intervenção (2001, p.45).

3.2. HABITAR É MAIS QUE MORAR

No Espírito Santo, moradias extra-hospitalares têm sido implementados para

que pacientes psiquiátricos possam sair do manicômio estadual e ter uma casa para

morar. Como dito anteriormente, desospitalizar não é o objetivo último do processo

de Reforma Psiquiátrica no Brasil. Superar a noção de loucura como doença

perigosa, que torna as pessoas incapazes e imprestáveis é uma das importantes

propostas desse processo que vem sendo constituído em diversos lugares do

mundo há décadas. As casas para egressos de hospitais psiquiátricos não é a

solução última e definitiva, mas é mais um caminho para o processo de

desinstitucionalização da loucura. Como afirma Vitor,

“se não der certo a gente pensa outro jeito”.

Para Saraceno (1999) o lugar é fundamental para o processo e resultado da

reabilitação psicossocial e está intimamente ligado às intervenções e afetos no qual

estamos envolvidos. Nesse sentido, não podemos esperar que ao sair das

enfermarias pré-lares, os ex-internos estejam “prontos” para assumir todas as

responsabilidades e atividades da vida na cidade. Segundo Jandira, os funcionários

das pré-lares afirmam que alguns pacientes não podem sair para as moradias extra-

hospitalares porque não têm autonomia ainda para que tal processo se realize, visto

não serem obedientes, não estarem preparados ou “bem adestrados” para viverem

fora do asilo manicomial, já que ainda não colocam a roupa suja no cesto de roupa

suja, ou não arrumam a cama pela manhã. Para Jandira

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“não adianta querer preparar aqui [Adauto Botelho], nesta estrutura. Tem que levar [para as casas].”

É no cotidiano das casas, das ruas, da cidade, fora do espaço manicomial

que as “novas” habilidades e aprendizagens se constituirão. É no território aberto

que outros modos de vida são elaborados, através de contato, de intervenções,

conversas, passeios, ou seja, através da produção cotidiana e contínua de

subjetividade, efetivando campos de possíveis onde a diferença possa de fato

assumir um lugar. Não aquele “respeito à diferença” de longe, sem contágio,

aprendendo a conviver com ela, mas a relação, o dia a dia, buscando transpor

barreiras e quebrar estereótipos.

Em um dia do curso de bordado na Igreja Batista, uma outra aluna ajudava

Rosana e elas conversaram bastante. Rosana se referia a sua casa o tempo todo

como “a residência”, “lá na residência”... Quando eu falava com ela “na sua casa” ela

demonstrava dúvida se eu estava falando da casa da tia dela, onde ela havia ido há

pouco tempo, ou da casa onde ela mora atualmente. Parecia que ela não

compreendia que aquela casa onde mora é a sua casa e não mais um serviço

público onde são realizadas algumas atividades como arrumação da casa,

amarração de tapete e oficinas de bordados – ela se apropriara daquela casa como

sua morada?

Mirian de Carvalho, ao discutir a relação da loucura e os espaços que ela

ocupa no manicômio e fora dele, afirma que “habitar não se reduz à simples

condição de moradia, de localização a rua x, número y, casa ou apartamento.

Habitar é uma experiência de aprofundamento e de convivência no espaço,

possibilidade de enraizar-se e desenraizar-se” (2001, p. 330). Nesse sentido não

basta morar em uma casa fora dos muros manicomiais que está garantido um lugar

de habitação de fato. O manicômio, para Scarcelli (2002) é o espaço de negação do

habitar por excelência porque não permite o mergulho em experiências afetivas, não

permite criações, invenções de modos de vida, tentativas e experimentações.

Segundo esta autora o manicômio é o “lugar do estar” (2002, p. 83), lugar não

apropriado por aqueles que lá moram. E não é essa a proposta dos dispositivos

residenciais.

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Saraceno traz uma diferenciação interessante entre o habitar e o estar.

Segundo ele habitar um espaço é apropriar-se dele, não só de forma material, mas

também de “um grau de contratualidade elevado em relação à organização material

e simbólica dos espaços e dos objetos, à sua divisão afetiva com outros” (1999,

p.114); o sujeito que habita um espaço se apropria dele de fato. Habitar é sentir-se

“em casa”, utilizando a expressão de Rolnik (2001, p.12), sentir as descobertas, a

familiaridade, as relações com o mundo, os vínculos e conquistas, os modos de ser.

Habitar não é apenas morar em uma casa. Como afirma Carvalho, “habitar é criar e

cortar raízes, estar e ser no espaço; habitar é um ato de coragem, de

responsabilidade e de escolha de lugares” (2000, p.76). Cortar raízes com anos de

internação e isolamento; criar outras raízes e histórias com a cidade, com os

vizinhos, com os serviços em saúde mental, os técnicos, etc.

Quanto ao estar em um espaço é algo passageiro, é não se apropriar de fato

daquele lugar – tanto em questões matérias como simbólicas (SARACENO, 1999;

SCARCELLI, 2002). É morar sem sentir-se “em casa”, é morar “lá na residência”,

como dizem os moradores egressos do Adauto Botelho, e não assumir a expressão

“lá em casa”. Pode ser que essas casas extra-hospitalares sejam habitações

passageiras, que com o benefício esses moradores se mudem para outras casas,

com outras pessoas ou sozinhos – como Henrique, que quer ir para o Rio de Janeiro

procurar o filho agora que ele recebe o benefício do Programa de Volta para Casa –

mas são espaços para serem habitados de fato, contribuindo para que os moradores

possam voltar a habitar os demais espaços da cidade (CARVALHO, 2001), a vida e

constituir territórios existenciais.

Em diferentes ocasiões ouvimos das cuidadoras, dos estagiários,

extensionistas e da equipe técnica do Adauto Botelho e do CAPS a seguinte

comparação:

“As mulheres se apropriaram mais da casa, e os homens mais da rua”.

Apropriar-se da casa é arrumar a mesa, lavar louça, limpar a casa? É assumir

as atividades da casa? Apropriar-se da rua é sair mais de casa e freqüentar a praça

e a padaria? Esses fazeres levam, de fato, ao habitar a casa e o território? Não

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basta apenas haver uma casa concreta para morar e para cuidar; segundo Scarcelli

é importante que esta morada contribua para a “ativação de desejos e habilidades

que se relacionem ao morar” (2002, p.84) para que os egressos do hospital possam,

de fato, habitar a casa. Como fala Vitor, a relação dos moradores com a casa, com o

corpo e com seus desejos têm sido modificadas:

“hoje eles questionam sobre os desejos. Isso pra mim foi formidável. Outra melhoria é... parece que também que eles diminuíram os delírios que eles tinham [...]. E o cuidado com o corpo que ainda, mesmo que ainda seja precário, é melhorzinho que no hospital. Que eles já arrumam cama, eles lavam pratos.”

O fato de terem saído do manicômio e terem uma casa em uma comunidade

para morar não garante, a priori, a apropriação desses moradores à casa, à sua

vida, seus desejos e projetos... Um trabalho lento e fascinante.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Há mais de um ano duas casas para ex-internos do Hospital Psiquiátrico

Adauto Botelho foram “inauguradas” – com direito a festa de abertura com a

presença das pessoas que saíram do manicômio naquela ocasião, extensionistas,

estagiários, profissionais do hospital e alguns políticos. Uma conquista que

finalmente saiu do papel, sendo desacreditada por alguns e muito esperada por

outros. Como vimos anteriormente, a implantação dessas residências é parte da luta

de alguns profissionais da equipe do manicômio estadual juntamente com a

Coordenação Estadual em Saúde Mental e professores e estudantes da

Universidade Federal do Espírito Santo. As duas primeiras casas pra egressos do

Adauto Botelho no estado trouxeram mais força àqueles que vêm lutando por

diversas mudanças e transformações na assistência Psiquiátrica no Espírito Santo.

Um alívio! Todavia, não seria o fim de um caminho, e sim, o início de mais uma

bifurcação na estrada da desinstitucionalização da loucura.

A saída dos internos manicomiais para moradias extra-hospitalares não

garante o sucesso da Reforma Psiquiátrica, que é um processo social complexo,

como afirmaram Rotelli, De Leonardis e Mauri (2001), e é permanentemente

construído em diferentes esferas. Paulo Amarante (2003) afirma a necessidade de

análise e trabalho em quatro aspectos, sempre interligados, nesse processo.

O primeiro é a dimensão teórico-conceitual da reforma psiquiátrica. Há a

necessidade de desmanchar o saber psiquiátrico clássico que impõe o isolamento

para tratamento da “doença mental” e apagar “a verdade” sobre a loucura construída

segundo a Psiquiatria. Para Amarante é fundamental compreendermos a clínica

como “criação de possibilidades, produção de sociabilidades” (2003, p. 50). Clínica

não como atendimento psicoterapêutico individual, mas atitudes facilitadoras de

descobertas, invenções, sociabilidades e subjetividades não modelizadas segundo

as normalidades instituídas. É, portanto, fundamental construir outros espaços de

assistência aos que passam pela experiência da loucura, e tê-la, de fato, como uma

experiência de vida que não uma doença da mente que leva as pessoas à

incapacidade, improdutividade e violência.

A dimensão técnico-assistencial questiona a prática asilar e a manutenção da

necessidade de isolamento e exclusão como formas de tratamento. As propostas

desinstitucionalizantes visam possibilitar o acolhimento e o cuidado, bem como

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estado do Espírito Santo – moradores que exprimem seus desejos, que se arrumam

para dar uma volta no bairro, que querem aprender a ler e escrever, que não podiam

sair sozinhos mas agora vão sozinhos, de ônibus ou à pé, ao CAPS, que compram

produtos na feira, que ajudam na limpeza e na organização da casa, que batem

papo com o vizinho no portão, que compram refrigerante mais barato, que querem

ver o filho, a mãe, o irmão, dentre diversas outras atividades, inquietudes, vontades

e produções.

Os hábitos e vícios do manicômio não são deixados para trás

instantaneamente, no momento em que saem do asilo e moram em uma casa na

cidade. Como afirma Scarcelli, “o momento que marca a passagem do hospital para

a cidade é carregado de ambigüidade, seja pelo lado dos moradores, seja pelo lado

dos trabalhadores” (2002, p.168) e alguns hábitos devem ser transformados:

profissionais habituados a vigiar e controlar para garantir que as ordens e indicações

sejam cumpridas devem estar atentos para não reproduzirem a submissão

manicomial. No hospital psiquiátrico os ex-internos estavam acostumados à rotina, à

ausência de iniciativa, à mortificação da vida, a obedecer sem questionar e, por

vezes, burlar algumas regras. Uma mudança ampla na atenção, cuidados e nas

relações com a loucura é necessária e lenta. Devemos estar atentos as nossas

regras, atitudes, permissões, punições, tarefas... porque o limite entre o super

cuidado e proteção exagerada, que tutela e infantiliza, e a assistência que ajuda e

não “deixa pra lá” é bastante tênue.

Antonio Lancetti, em seu texto “Quem manda na loucura?” sobre a

experiência da administração em Santos, quando da interdição da Casa de Saúde

Anchieta, afirma que “um indivíduo que passou a maior parte da sua vida num asilo

não muda da noite para o dia. Uma mudança cultural, de mentalidade, não se opera

imediatamente” (1989?, p.04). Tanto os moradores quanto os profissionais que

atuam nas casas passam por aprendizagens cotidianas e pouco a pouco a lógica de

isolamento, exclusão, incapacidade e violência vai sendo desmanchada.

Os moradores precisam de ajuda em algumas situações, e os profissionais

que atuam junto às casas podem e devem ajudar, auxiliar no que for necessário:

para retirar o benefício que recebem; para fazer contas; alguns têm dificuldade em

andar de ônibus, outros não compreendem bem a moeda brasileira e têm dificuldade

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em realizar pagamentos e conferir o troco; Abigail, por exemplo, gosta de circular, de

passear pelo bairro mas tem medo de ir sozinha devido ao grande número de carros

e motos na região onde mora e só sai de casa acompanhada. A casa deve funcionar

“como um dispositivo de autonomia” (LANCETTI, 1994, p.83), como um local de

referência onde os profissionais ajudam cada morador, em diferentes aspectos, a

ganharem forças e potência para construírem suas vidas cada vez mais de maneira

autônoma.

A proposta de casas para egressos de hospitais psiquiátricos não é fazer dos

que experienciam a loucura uma pessoa familiar e comum, mas é contribuir para que

a sociedade possa vê-los e assumi-los em seus desejos, vontades, medos, dúvidas,

certezas, alegrias, tristezas, dores e conquistas, ou seja, como uma pessoa viva,

que produz, inventa, experimenta, erra, acerta, enfim, uma pessoa que vive. Não se

trata de fazer o louco morar, trabalhar, consumir conforme as normatizações do

capitalismo, mas sim, permitir experimentações e escolhas. Os moradores são uma

população historicamente excluída e isolada buscando, agora, conquistar a cidade

como território de vida.

O processo de desinstitucionalização da loucura é inventivo, ou seja, nos

permite fazer, mexer no território, pesquisar, problematizar, questionar, encontrar

muitas possibilidades e diferentes caminhos. Permite à vida conhecer e

experimentar provisoriedades e transformar-se para sua afirmação e expansão.

Viver não é apenas existir. É também sentir, amar, experimentar, testar, gostar, não

gostar, ter, não ter, comprar, sair, dançar, habitar, conversar, permitir, permitir-se... A

vida pulsa, movimenta-se, é movimento. Nesse sentido, ela não está decidida e

pronta em momento algum, não está resolvida e determinada. Retirar moradores de

manicômios não é a solução última tão esperada. É mais uma atitude, uma

conquista que nos leva a outras lutas, outros desafios e aprendizagens.

As transformações vêm acontecendo devagar. Rogério e Rosana, que não

falavam ao telefone, já conversam por esse aparelho – e podem aprender os

números e realizar ligações; moradores comem utilizando garfo e faca, se

necessário, o que não lhes era permitido; as mulheres, que não podiam sair

sozinhas, já saem para alguns lugares sem supervisão de um responsável, e pouco

a pouco vão conquistando espaços e relações no território. Pode ser que alguns

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moradores se interessem em mudar para uma outra casa ou apartamento, que

assumam outras responsabilidades, que tenham novos objetivos. Através dessa

pesquisa não definimos a vida das pessoas nos dispositivos residenciais em

Cariacica/ES; apenas buscamos acompanhar diferentes paisagens com a

implantação dessas duas primeiras moradias para egressos do Hospital Psiquiátrico

Adauto Botelho.

Muitos outros movimentos estão sendo configurados no cotidiano das

residências, a partir das diversas atividades e experiências de cada morador, dos

cuidadores, dos estagiários e extensionistas e dos técnicos envolvidos. Não foi

possível relatar aqui todas as mudanças e transformações pelas quais passamos –

profissionais, estagiários, extensionistas e moradores. Os ex-internos saem mais de

casa, existe uma confiança maior dos trabalhadores em relação à capacidade dos

moradores de saírem, de realizarem diferentes atividades, de construírem vínculos.

O contato, cada vez mais crescente, com a comunidade e a cidade contribui,

visivelmente, para a construção de autonomia, resgate de direitos, deveres e

vontades de cada morador.

Existem dificuldades no longo e complexo processo social de

desinstitucionalização da loucura, mas a cada dia percebemos que as moradias para

pessoas que ficaram internadas em manicômios por tantos anos, são um caminho

que contribui para o processo de Reforma Psiquiátrica. Vivendo nessas casas,

habitando o território, construindo projetos e expectativas de vida, o que não

acontecia no espaço mortificante do hospital, vemos, sentimos e ganhamos força

para continuarmos a fazer esse caminho de transformações efetivas no que diz

respeito à loucura e àqueles que passam por essa experiência. Outras situações,

paisagens, acontecimentos trarão novas transformações para a vida desses

moradores, dos técnicos, estagiários, extensionistas, familiares e vizinhos. A

aprendizagem cotidiana não cessa, basta deixar-se afetar.

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ANEXOS

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA ENTREVISTA COM PROFISSIONAIS EM SAÚDE MENTAL E EXTENSIONISTAS DA UFES O senhor ________________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por exercer atividade como profissional em saúde mental ou como extensionista da UFES em um dos dois dispositivos residenciais inaugurados em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo acompanhar os movimentos que se configuram no campo social a partir do processo de implementação dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, fazendo uma análise crítica desse processo, atentos para a manutenção ou não da lógica manicomial. Pretendo, então, analisar as propostas atuais do processo de Reforma Psiquiátrica no que diz respeito à constituição dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Estado, bem como analisar os processos de desospitalização e desinstitucionalização da loucura. Para obtenção dos dados para esta pesquisa, serão realizadas entrevistas semi-estruturadas, gravadas quando permitido, com moradores dessas casas, com a equipe técnica responsável, com extensionistas do Departamento de Psicologia da UFES e com pessoas vizinhas, bem como estarei participando de atividades nas residências terapêuticas e nas reuniões técnicas da equipe e na supervisão do projeto de extensão, quando permitido. Os dados obtidos serão utilizados apenas para os fins desta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Com esta pesquisa, busco contribuir para a melhoria na atenção e tratamento aos que passam pela experiência da loucura.

Os nomes verdadeiros não serão utilizados. Utilizarei nomes fictícios ou letras para dar nome a quem fala.

A participação desta pesquisa é livre e depende apenas do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa tomar as devidas providências e retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer transtorno ou conseqüência para o senhor ou para as atividades que realiza, ou que virá a realizar. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer espécie.

Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser solicitado a qualquer momento, dirigindo-se a mim. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que o senhor me transmitir. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO NAS REUNIÕES, SUPERVISÕES E ATIVIDADES DE TRABALHO JUNTO AOS PROFISSIONAIS EM SAÚDE MENTAL E EXTENSIONISTAS DA UFES O senhor ________________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio:dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por exercer atividade como profissional em saúde mental ou como extensionista da UFES em um dos dois dispositivos residenciais inaugurados em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo.

Esta pesquisa tem como principal objetivo acompanhar os movimentos que se configuram no campo social a partir do processo de implementação dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, fazendo uma análise crítica desse processo, atentos para a manutenção ou não da lógica manicomial. Pretendo, então, analisar as propostas atuais do processo de Reforma Psiquiátrica no que diz respeito à constituição dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Estado, bem como analisar os processos de desospitalização e desinstitucionalização da loucura. Para obtenção dos dados para esta pesquisa, serão realizadas entrevistas semi-estruturadas, gravadas quando permitido, com moradores dessas casas, com a equipe técnica responsável, com extensionistas do Departamento de Psicologia da UFES e com pessoas vizinhas, bem como estarei participando de atividades nas residências terapêuticas e nas reuniões técnicas da equipe e na supervisão do projeto de extensão, quando permitido. As observações e participações das reuniões serão realizadas no decorrer do ano de 2005. Se houver, por qualquer motivo, algum constrangimento de sua parte, estou aberta e disposta para conversarmos e resolvermos a situação da melhor forma possível. Estarei atenta para evitar desconforto, procurando estabelecer uma relação de confiança e um diálogo franco e aberto entre mim, o senhor e os demais participantes. Terei todo o cuidado para que nada que possa vir a prejudicar suas atividades seja feito. Os dados obtidos serão utilizados apenas para os fins desta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Com esta pesquisa, busco contribuir para a melhoria na atenção e tratamento aos que passam pela experiência da loucura. Os nomes verdadeiros não serão utilizados. Utilizarei nomes fictícios ou letras para dar nome a quem fala.

A participação desta pesquisa é livre e depende apenas do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa tomar as devidas providências e retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer transtorno ou conseqüência para o senhor ou para as atividades que realiza, ou que virá a realizar. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser solicitado a qualquer momento, dirigindo-se a mim. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize os dados coletados nas reuniões, supervisões e atividades de trabalho. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MORADORES DOS DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS. Para entrevista O senhor ______________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por ser morador de um Serviço Residencial Terapêutico inaugurado em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar os Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, analisar as atividades dessas casas observando se ainda existe preconceito e exclusão da loucura e dos ex-internos do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho. Eu farei entrevistas e gravarei a sua, se o senhor autorizar. Serão entrevistados moradores das residências, vizinhos, as cuidadoras, os profissionais responsáveis pelas moradias e os alunos que participam do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo. Eu também estarei participando de atividades que acontecem nas casas e de reuniões com os profissionais responsáveis e com os alunos do Projeto da UFES. As informações obtidas através das entrevistas e da participação nas atividades nas residências e das reuniões serão utilizadas apenas para esta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Espero que haja mais melhorias na assistência de ex-internos de manicômios e no tratamento de quem é considerado louco. Seu nome e dados pessoais não serão colocados na pesquisa. Eu utilizarei nomes falsos, inventados ou apenas letras para dar nome a quem fala.

A participação desta pesquisa é livre e depende só do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer problema para o senhor ou para o tratamento e atendimento que faz agora ou que fará no futuro. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer tipo. Não haverá qualquer tipo de pagamento ao senhor, ao Hospital Adauto Botelho ou à equipe de profissionais e o senhor não terá despesa alguma para participar desta pesquisa. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser pedido a qualquer momento, falando comigo. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que o senhor me passar. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MORADORES DOS DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS. Para participação nas atividades da residência

O senhor __________________________________________________ foi

selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por ser morador de um Serviço Residencial Terapêutico inaugurado em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar os Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, analisar as atividades dessas casas observando se ainda existe preconceito e exclusão da loucura e dos ex-internos do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho. Eu entrevistarei moradores das residências, vizinhos, as cuidadoras, os profissionais responsáveis pelas moradias e os alunos que participam do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo.

Eu também participarei de atividades que acontecem nas casas e de reuniões com os profissionais responsáveis e com os alunos do Projeto da UFES. As observações e participações das atividades da casa serão realizadas durante o ano de 2005 (este ano). Se houver, por qualquer motivo algum incômodo para o senhor, me procure para conversarmos e resolvermos a situação da melhor forma possível. Estarei atenta para evitar desconforto, procurando ter uma relação de confiança entre mim, o senhor e os outros moradores e participantes das atividades.

As informações obtidas através das entrevistas e da participação nas atividades nas residências e das reuniões serão utilizadas apenas para esta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Espero que haja mais melhorias na assistência de ex-internos de manicômios e no tratamento de quem é considerado louco. Seu nome e dados pessoais não serão colocados na pesquisa. Eu utilizarei nomes falsos, inventados ou apenas letras para dar nome a quem fala.

A participação desta pesquisa é livre e depende só do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer problema para o senhor ou para o tratamento e atendimento que faz agora ou que fará no futuro. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer tipo. Não haverá qualquer tipo de pagamento ao senhor, ao Hospital Adauto Botelho ou à equipe de profissionais e o senhor não terá despesa alguma para participar desta pesquisa. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser pedido a qualquer momento, falando comigo. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que o senhor me passar. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA ENTREVISTA COM VIZINHOS AOS DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS EM CARIACICA/ES.

O senhor _____________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhida por morar ou trabalhar próximo a um dos dois Serviços Residenciais Terapêuticos inaugurados em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar os Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, analisar as atividades dessas casas e a comunidade observando se ainda existe preconceito e exclusão da loucura e dos ex-internos do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho. Eu farei entrevistas e gravarei a sua, se o senhor autorizar. Serão entrevistados moradores das residências, vizinhos, as cuidadoras, os profissionais responsáveis pelas moradias e os alunos que participam do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo. Eu também estarei participando de atividades que acontecem nas casas e de reuniões com os profissionais responsáveis e com os alunos do Projeto da UFES. As informações obtidas através das entrevistas e da participação nas atividades nas residências e das reuniões serão utilizadas apenas para esta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Espero que haja mais melhorias na assistência de ex-internos de manicômios e no tratamento de quem é considerado louco.

Seu nome e dados pessoais não serão colocados na pesquisa. Eu utilizarei nomes falsos, inventados ou apenas letras para dar nome a quem fala.

A participação desta pesquisa é livre e depende só do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer transtorno ou conseqüência para o senhor ou para as atividades que o senhor realiza agora ou que virá a realizar. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer tipo. Não haverá qualquer tipo de pagamento ao senhor, ao Hospital Adauto Botelho ou à equipe de profissionais e o senhor não terá despesa alguma para participar desta pesquisa. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser pedido a qualquer momento, falando comigo. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que a senhora me passar. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.

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