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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO/DOUTORADO
CAMILA MARIANI SILVA
A LOUCURA SAI DO MANICÔMIO:
DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO ESPÍRITO SANTO
Rio de Janeiro
Junho, 2006
Livros Grátis
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO/DOUTORADO
CAMILA MARIANI SILVA
A LOUCURA SAI DO MANICÔMIO:
DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO ESPÍRITO SANTO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicologia Social.
Orientador: Profª. Drª. Ariane Patrícia Ewald
Co-orientador: Profª. Drª. Leila Domingues Machado
Rio de Janeiro
Junho, 2006
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
A dissertação: A loucura sai do manicômio. Dispositivos residenciais no Espírito Santo Elaborada por Camila Mariani Silva Foi aprovada pelos membros da banca examinadora, em 28 de junho de 2006:
_____________________________________________________ Profª. Ariane Patrícia Ewald (orientadora) _____________________________________________________ Profª. Heliana de Barros Conde Rodrigues _____________________________________________________ Profª. Leila Aparecida Domingues Machado _____________________________________________________ Prof. Paulo Duarte de Carvalho Amarante
Para todos que acreditam que a vida pulsa, que “a vida não para” e que a cada dia destruímos certezas, ratificamos outras e ainda inventamos
outros modos de habitar a vida, em todos os espaços.
Para os guerreiros contra a lógica manicomial.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Antão e Creusa, por todo amor, dedicação, ajudas aos montes. Obrigada por tudo, mesmo.
À Tiago, pelas tentativas de ajuda, pelo ouvido, pela paciência, por todo o amor. Obrigada por estar ao meu lado nesse turbilhão de intensidades, desespero, descobertas, dúvidas e prazeres; por tantas vezes me apoiar nessa caminhada, por outras tantas questionar.
À vovó Adméia, pelo empréstimo da morada carioca e por compreender minha ausência.
À Sá, que torce, ama e inventa. Pessoa que transmite força e alegria.
Aos amigos que ouviram tantas angústias, reclamações, conquistas e surpresas ao longo desses anos.
À Biu que dividiu muito comigo no Rio, que cozinhou, sugeriu, pensou, debateu. Ferc, que a cada encontro, acolhia e ensinava. Juzinha, disposta, ouvinte, para todas as horas. Jana e Lalá que contribuíram em programas, para mim, desconhecidos.
À todos que compartilharam bons momentos e perdoaram minhas faltas: Cathy, Rapha, Cacá, Tianne, Moninha, Lú, Jajá, Si, Bruca, Lê Piccin, Rafa, Mary, os Vermes do Quiosque, à Galera-ES. Amigos que quase não me encontraram nesses últimos meses, e que me apoiaram, desde o início.
À “grande família” amada que me viu chegar tarde e sair cedo, que não cobrou, que colaborou, que ouviu. Família maravilhosa, obrigada.
Aos professores e funcionários da UERJ, dispostos e atenciosos.
Ariane, orientadora querida que sabe chamar atenção, conversar, ouvir, discutir, ajudar. Grande é a força que você transmite. Obrigada.
À Cris e Leila por tantas ajudas, discussões, leituras e todo o carinho.
Aos extensionistas e estagiários da UFES. Guerreiros que me receberam tão abertamente para compartilharmos tarefas e atividades.
Aos profissionais que lutam pelo processo de Reforma Psiquiátrica e aos moradores dos dispositivos residenciais que tanto ensinaram durante este estudo.
À CAPES, pelo apoio financeiro.
“Eu tenho dito que não sei o que é a loucura. Pode ser tudo
ou nada. É uma condição humana. Em nós, a loucura existe
e está presente como está a razão [...]. O manicômio tem
sua razão de ser porque torna racional o irracional. Quando
qualquer um fica louco e entra no manicômio, deixa de ser
louco para transformar-se em doente. Torna-se racional
enquanto doente. O problema é como desfazer este nó,
superar a loucura institucional e reconhecer a loucura lá
onde ela teve origem, como se diz, na vida.”
Franco Basaglia
Conferências brasileiras
ABSTRACT
The way of dealing with madness has been changing. Some authors propose the end of asylums and the care for those who experience madness far from enclosing. In Brazil, since the 70s, we may realize an increasing mobilization held by professionals who work in the mental health field and the relatives of those who use psychiatric services. They fight for changes in the care for people who experience madness, seeking a society without asylums. The public policies in mental health have moved forward creating services that substitute asylum enclosing, such as the Psicossocial Attention Centers (CAPS) and the Residential Devices for those who used to live in mental institutions. Madness deinstitutionalization process aims to extinguish the asylum logic of exclusion and isolation. It is not enough to take people out of psychiatric hospitals and end these establishments. It is important to work in the sense of allowing those who experience craziness to walk around and use the spaces prohibited to them in the past, such as squares, streets, shops etc, that is, to undo all and every prejudice towards those people, destroying also the “invisible asylums”. In the State of Espírito Santo the two first houses for people who left the Adauto Botelho Psychiatric Hospital started functioning in October 2004, in the town of Cariacica. The proposal of this study was to accompany the implementation process of these residential devices and the struggle in denaturalizing madness as “mental illness”. We accompanied the dwellers of these two houses in their activities and we interviewed some of the professionals involved in this process, some of the people who live in these houses and some of their neighbors. Thorough this contact we could realize some changes in the way of dealing with madness and other changes will still happen. It is important to highlight that the real deinstitutionalization process is ampler than the exit of those patients from the psychiatric hospital. The fact that they are living in houses outside the hospital doesn’t guarantee that these people will, in fact, assume that space, the streets and the territory. It is necessary, therefore, to discuss and debate about the deinstitutionalization in every social area, not only among the professionals in mental health field and in the health institutions directly involved. It is interesting to bring all the territory into this proposal. Key words: Madness, psychiatric reform, residential device.
SUMÁRIO
RESUMO ....................................................................................................................vi
ABSTRACT ...............................................................................................................vii
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
CAPÍTULO 1
LOUCURA: MUDANÇAS DE PARADIGMAS .........................................................17
1.1. Movimentos de transformação no Brasil ..................................................21
1.2. Dispositivos Residenciais no Brasil ..........................................................32
1.3. Dispositivos Residenciais no Espírito Santo ............................................37
CAPÍTULO 2
DESOSPITALIZAÇÃO E DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA ...............49
2.1. Desnaturalizando a noção de doença mental .........................................56
2.2. Transformação cultural cotidiana .............................................................61
2.3. Desnaturalizando hábitos de trabalho .....................................................71
CAPÍTULO 3
ATUANDO NO TERRITÓRIO: EXPLORAÇÕES A PARTIR DE UM DIÁRIO DE
CAMPO .....................................................................................................................76
3.1. Circulando ................................................................................................82
3.2. Habitar é mais que morar ........................................................................98
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................102
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................108
ANEXOS .................................................................................................................115
Modelo dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido
1) Para profissionais em saúde mental e extensionistas do Departamento de
Psicologia da UFES e /ou estagiários ........................................................116
2) Para moradores dos Dispositivos Residenciais de Cariacica/ES ...........118
3) Para pessoas que moram ou trabalham próximo aos Dispositivos
Residenciais em Cariacica/ES ...................................................................120
INTRODUÇÃO
11
Ao participar do Projeto de Extensão Intervenção no Hospital Adauto Botelho
– a desnaturalização da noção de doença mental: produção de outras formas de
espaço-tempo, em 1999, como aluna do curso de graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o tema da saúde mental se
configurou como relevante na construção da minha trajetória acadêmica. Neste
trabalho buscávamos, nós, do Projeto de Extensão, levar os internos para fora do
espaço mortificante do asilo manicomial, lugares onde a vida pulsa, para que a força
da vida não fosse barrada no hospital psiquiátrico estadual, onde a entidade “doente
mental” é reproduzida (FOUCAULT, 1997, 2000). O cotidiano manicomial propõe
trazer os internados, chamados loucos/doentes, para as práticas sociais
consideradas normais, ou seja, “reabilitá-los” para que habitem territórios
existenciais1 já formatados, conhecidos, prontos, seguindo modelos
convencionados, impedindo a constituição de uma forma diferente de existência, de
habitar a vida.
Como afirmou Foucault, é preciso “transferir para o próprio doente o poder de
produzir sua loucura e a verdade de sua loucura ao invés de procurar reduzi-la a
nada” (FOUCAULT, 2000, p. 126). Por isso a importância de sair do espaço
mortificante do sanatório. Os internos das duas enfermarias onde trabalhamos, no
referido projeto, sempre queriam ir passear, qualquer que fosse o espaço, que não,
o manicômio: feira, shopping, praia, ir tomar um refrigerante em um bar – fora dos
muros do Hospital Psiquiátrico Estadual Adauto Botelho – onde eles pudessem
sentir outros cheiros, sabores, sentidos e experimentar a vida do lado de fora. Logo
que chegávamos à enfermaria a pergunta era: “nós vamos sair hoje?” Mesmo sendo
apenas uma tarde afastados do espaço de enclausuramento de muitos anos, tudo
era muito intenso – eles queriam comer de tudo, experimentar, ouvir diferentes
músicas, até bebiam uma lata de refrigerante toda de uma vez, quase sem parar ao
menos para tomar fôlego.
Fiz estágio na Clínica de La Borde Cour-Cheverny, França, em janeiro e
fevereiro de 2000. Esta clínica foi um marco importante no processo de 1 Território Existencial não é um limite físico. É o espaço provisório que habitamos, que construímos
nossa forma de vida, onde nos reconhecemos. Para Guattari e Rolnik (2000) Desterritorializar é desestabilizar o conhecido, é desmanchar as fronteiras territoriais e permitir que novos territórios possam ser formados. Entretanto, quando o novo território existencial construído não produz rupturas com o que já era instituído, não quebra a lógica dos territórios anteriores, temos a reterritorialização.
12
transformação da assistência Psiquiátrica na França, em meados do século XX – a
Psiquiatria de Setor. Os pensionistas – como são chamados os que recebem
tratamento em La Borde – dormem em quartos de, no máximo, quatro pessoas.
Dividem tarefas com os monitores, participam dos ateliês diários de diferentes tipos
(esportes, jornal do dia da clínica, pintura, mosaico, leitura, música, jardinagem,
culinária, dentre outros), das reuniões vespertinas em que qualquer tópico pode ser
discutido. Os horários são bastante flexíveis, e cada um – estagiário, monitor,
morador, usuário do hospital dia – escolhe o que quer fazer, quais atividades
desempenhar naquele dia e o horário, todos trabalhando para o bom funcionamento
do hospital. Foi uma experiência fantástica aprendendo com cada olhar acolhedor
dos pensionistas, e também com um ar irritado de alguns, quando souberam que o
período de estágio estava no fim – afinal, vínculos foram construídos num período
tão curto e os estagiários, como eu fui, deixariam a clínica. Dois meses de estágio foi
o tempo de adaptação à língua e conhecer aquele espaço, as atividades e as
pessoas. No final deste período, parecia que as relações com os pensionistas
estavam sendo transformadas, pareciam mais seguras e o estágio chegou ao fim.
Participei, também como voluntária, da pesquisa “A desinstitucionalização da
loucura” de agosto de 2000 a julho de 2001. Foi durante esta pesquisa, a partir de
entrevistas com funcionários do Hospital Adauto Botelho, que eu soube da
discussão sobre o projeto de lei nº 3.657/89 do Deputado Paulo Delgado (PT/MG),
aprovado um substitutivo à tal proposta em 2001 (Lei nº 10.216) e das portarias
ministeriais 106 e 1.220 de 2000, que regulamentam os Serviços Residenciais
Terapêuticos.2 A partir daí, então, venho buscando conhecer mais essa proposta e
os trabalhos que vêm sendo realizados no Brasil que seguem essas diretrizes,
segundo o processo de Reforma Psiquiátrica. Este trabalho é fruto do estudo e do
acompanhamento das duas primeiras moradias no Espírito Santo.
Sabemos que não basta retirar os pacientes do manicômio – desospitalização
– para que seja efetivado o processo de desinstitucionalização da loucura. O que se
pretende, de fato, é desnaturalizar a loucura como “doença mental”, eliminar a noção
de doença da mente, de invalidez e de periculosidade que acompanham essas
pessoas colocando, como diz Franco Basaglia (2005a), a doença mental entre
2 Nome oficial dado às moradias extra-hospitalares para egressos de hospitais psiquiátricos.
13
parênteses e se ocupar da pessoa que passa pela experiência da loucura, não da
doença. Ou seja, permitir que os que passam pela experiência da loucura possam
habitar territórios que não sejam excludentes, que lhes permitam produzir, fazer,
conhecer, circular, criar outras formas de habitar o mundo e de viver sem
necessariamente ter que seguir os modelos institucionalizados pela sociedade
capitalista vigente.
Nesse sentido, a proposta desta pesquisa foi cartografar,3 ou seja,
acompanhar os movimentos que se configuram no campo social a partir do processo
de implementação dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo,
fazendo uma análise crítica desse processo, atentos para a manutenção ou não, da
lógica manicomial – que infantiliza, tutela, controla e que busca normalizar os que
experienciam a loucura.
Esses novos serviços substitutivos ao internamento asilar realmente
contribuem para a desinstitucionalização da loucura? Os moradores são ainda
tutelados, medicalizados exageradamente, infantilizados ou estão realmente
assumindo responsabilidades e exercendo o papel de cidadãos? Eles freqüentam
outros ambientes ou continuam excluídos e confinados, agora em espaços
menores? A comunidade na qual essas moradias estão inseridas, o que pensa
sobre esses serviços e sobre a loucura?
Peter Pelbart (1991) levanta uma interessante questão sobre a saída dos
internados dos manicômios: será que ao se dar aos loucos um outro lugar,
reconhecimento de seus direitos e até mesmo privilégios, buscando integrá-los na
sociedade não estamos, de fato, buscando fazer com que os egressos de hospitais
psiquiátricos tenham regras e limites estabelecidos por nós, “normais”? Não
buscamos delimitar códigos sociais para que sejam obedecidos? Será que não
estamos expropriando da loucura sua força de diferença, alteridade e desrazão?
Não estamos retirando destas pessoas seu potencial de desterritorialização? “Por
potencial de desterritorialização entendo aqui esse poder secreto e admirável de
embaralhar os códigos, subverter as regras do jogo e transpor ou deslocar os limites,
sempre de outro modo” (PELBART, 1991, p.132); potência na relação com o plano
intensivo de forças, sem as normalizações sociais presentes na sociedade.
3 A cartografia será melhor explicada mais adiante, ao abordarmos o método de pesquisa utilizado.
14
Devemos, portanto, estar atentos para não contribuirmos para a exclusão da
diferença, para a diluição da estranheza que a loucura provoca. Pelbart chama a
atenção para não trazermos a experiência da loucura para uma vida “normalizada”,
adaptada.
Afirmamos a luta pelo processo de Reforma Psiquiátrica, contudo não de uma
forma irresponsável e imediata, como se longos anos de estrutura manicomial
pudessem ser abolidos do sistema de saúde e da vida cotidiana da noite para o
dia. Nesse sentido, acompanhamos ao longo desta pesquisa as duas primeiras
moradias para egressos de hospital psiquiátrico no Espírito Santo. Participamos das
atividades das residências, tanto na própria casa – aniversários, confraternizações –
como em atividades externas: passeios pela cidade, ida ao circo, a médicos, a
cursos oferecidos na comunidade, ao CAPS. Pudemos, então, analisar os processos
de desospitalização e desinstitucionalização da loucura, problematizando a
manutenção da lógica manicomial em algumas atividades e atitudes dos atores
envolvidos.
Ao trazermos a cartografia como caminho para a realização desta pesquisa, o
fizemos sabendo que a cartografia não é um modelo pronto e pré-determinado de
metodologia, não apresenta caminhos e técnicas como modelos a serem seguidos.
A cartografia “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os
movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 1989, p. 15), inclusive das
paisagens psicossociais. Cartografar é construir junto com a pesquisa, ao longo da
mesma, já que a cartografia se faz junto com os diversos movimentos das
paisagens, que têm vida e se transformam continuamente. A pesquisa é entendida,
então, como processo que deve acompanhar as variações das paisagens que fazem
parte da mesma.4
Nesse sentido, a cartografia propõe analisar e discutir as contingências do
território, sem um modelo ideal e sem a instituição de verdades absolutas. Pensar,
então, em método, é pensar em modos de operar, modos de fazer, de produzir e se
(re) produzir, maneiras de diferenciação na constituição da realidade. Como afirma
Kirst (2003, p. 99), a perspectiva cartográfica é um “modo de produção de 4 Palestra proferia por Leila Domingues Machado como parte do Seminário sobre Pesquisas
Qualitativas organizado pelo Núcleo de Estudos de Tecnologia e Subjetividades – NETES, Universidade Federal do Espírito Santo em 21 de outubro de 2005.
15
conhecimento” em que o cartógrafo pesquisador busca o que é vitalizante ou
destrutivo na constituição de territórios existenciais e de realidade, acompanha os
encontros, as transformações e diferenciações dos atos e conhecimentos.
A proposta, neste trabalho, foi cartografar, acompanhar os movimentos,
caminhos e transformações que têm sido configurados com a implementação de
Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, em outubro de 2004. Devido à
necessidade de colocar em análise os movimentos produzidos na implementação
dessas residências, apostamos em um método de pesquisa que aborde os vários
saberes instituídos e instituintes nestes serviços implantados no Estado,
problematizando e recusando naturalizações referentes ao campo da Reforma
Psiquiátrica. Esta metodologia visa “interrogar os diversos sentidos cristalizados nas
instituições” (BARROS, 1994, p. 307) buscando desmanchar territórios já
constituídos, já formatados para que outras instituições5 possam ser forjadas
(PASSOS & BARROS, 2000), transformando a noção de loucura a partir de novas
produções e relações sujeito-objeto de conhecimento que estão sendo constituídas
no cotidiano das residências e o foram no dia-a-dia da pesquisa, uma vez que
pesquisar é intervir no campo.
Para acompanhar os movimentos e processos de constituição dos Serviços
Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo foi necessário e importante acompanhar
as atividades das duas residências pioneiras no Estado, freqüentando as casas,
conversando com a equipe técnica, com os egressos do hospital psiquiátrico e com
as pessoas da vizinhança, participando de reuniões dos profissionais, de
supervisões com os estagiários e extensionistas do programa “Hecceidades:
Programa de Pesquisa e Intervenção em Saúde Mental”.6 Entrevistas semi-
estruturadas7 com os profissionais em saúde mental, moradores dos serviços
residenciais, estagiários e vizinhos foram realizadas e gravadas, quando permitido.
5 Instituição como “processo de produção constante de modos de legitimação das práticas sociais”
(BARROS, 1994, p. 308). 6 O Projeto de Extensão do qual fiz parte em 1999 foi transformado em novembro de 2005, já que não
mais atua exclusivamente nas atividades de ressocialização do Hospital Adauto Botelho. Este trabalho acontece desde 1997 sendo, portanto, um Programa.
7 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UERJ, protocolo nº 007/2005 em junho de 2005. Os modelos dos Termos de Esclarecimento Livre e Esclarecido, que permitem o uso das informações coletadas, estão em anexo.
16
No primeiro capítulo, fazemos uma introdução à respeito das propostas e
atividades realizadas no Estado para a implementação dessas residências. São
discutidas algumas das diversas transformações que a noção de loucura vem
sofrendo, tendo como base os estudos de Michel Foucault, os trabalhos de Franco
Basaglia e Franco Rotelli, passando pelas diferentes propostas de Reforma
Psiquiátrica no mundo. Especificamente no Brasil, são trabalhadas, ainda no
primeiro capítulo, algumas discussões acerca do movimento de Luta Antimanicomial
e o processo de Reforma Psiquiátrica brasileiro.
No capítulo dois buscamos diferenciar os processos de desospitalização e
desinstitucionalização da loucura. Trazemos a discussão da noção de loucura como
processo, tendo como base as análises de Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo
(1972), bem como sobre a naturalização da loucura como desvio e a necessidade de
institucionalizá-la. Para que o processo de Reforma Psiquiátrica em curso no país
traga, efetivamente, transformações, as discussões devem ultrapassar os limites dos
saberes instituídos e habitar todos os diferentes espaços sociais.
No terceiro capítulo, discutimos a noção de território segundo o geógrafo
Milton Santos e a assistência territorial em saúde, bem como a participação da
comunidade no processo de Reforma Psiquiátrica, abordando as diferenças entre
estar morando em uma casa fora do asilo manicomial e habitar, de fato, uma
residência.
CAPÍTULO 1
LOUCURA: MUDANÇAS DE PARADIGMAS
“Eu estava com saúde Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde Me adoeceram
Me internaram no hospital E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
O hospital parece uma casa O hospital é um hospital”.
Stela do Patrocínio
18
De acordo com os estudos de M. Foucault (1991, 1997, 2000), o sentido
conferido ao termo loucura foi e vem sendo produzido diferentemente em diversos
contextos sociais, econômicos, políticos e culturais, seguindo o pensamento
dominante da época. Ele nos mostra que a loucura não era isolada e internada
sistematicamente.
Até meados do século XVII, a loucura era considerada uma experiência
reveladora de verdades do mundo. Nesse sentido, a loucura não era considerada
como negativo da razão, mas sim, uma “experiência trágica” que não exigia sua
exclusão do convívio social. Foucault (1991) afirma que a loucura, ao contrário,
circulava nos espaços e encontros sociais, fazia parte do cenário sendo uma
experiência vivida por alguns que não precisava ser controlada e isolada.
Entretanto, a partir do final do século XVII e início do XVIII a loucura é
entendida como desrazão, como ausência de racionalidade sendo, portanto,
excluída do meio social. No século XVIII, a razão é que domina o conhecimento, não
havendo espaço legitimado para a loucura, uma vez que os loucos não seguem os
valores morais, sociais e econômicos instituídos. O importante era retirar do convívio
social aqueles considerados um fardo para a sociedade, ou seja, loucos, mendigos,
libertinos, inválidos. Dessa forma, a desrazão foi silenciada e aproximada das culpas
morais e sociais (LAVRADOR, 2001a).
Apenas a partir da segunda metade do século XVIII é que os grandes asilos
se tornaram exclusividade dos chamados alienados. Philippe Pinel, considerado por
muitos o “libertador dos loucos”, retirou-lhes as correntes para que eles pudessem
ser devidamente tratados como doentes, alienados. Contudo, os “doentes da mente”
continuavam isolados – mas agora para receberem o tratamento moral preconizado
por Pinel. O isolamento dos alienados era essencial para que o tratamento tivesse
êxito, visto que se acreditava que as causas da loucura estavam na sociedade e na
família. O hospital era considerado, a partir de Pinel, o espaço de conhecimento da
chamada alienação mental e também, espaço de produção da verdade e do saber
sobre essa doença, local de “controle e contenção da periculosidade social e da
potencial subversão da ordem” (BASAGLIA, 2005b, p.273) sob o poder médico.
Emerge, então, um novo saber no bojo do processo da modernidade: a Psiquiatria –
saber científico sobre a loucura, considerada alienação, buscando controlá-la. O
19
hospital psiquiátrico assumiu o “lugar de diagnóstico e de classificação”
(FOUCAULT, 2000, p. 122) da loucura, que passa a ser controlada e tratada como
“doença mental”, excluída do projeto de normatização da razão moderna. A partir da
modernidade
uma nova ética surge então, a ética do trabalho, da produção; aqueles que não trabalham, como os loucos, não podem ficar vagando nas ruas – agora que as cidades crescem cada vez mais – dando um mau exemplo. [...] A sociedade se homogeneíza cada vez mais. O diferente é ameaçador (SCLIAR, 2003, p. 187).
Nesse sentido, como afirma Venturini (2003), a loucura é isolada pela razão
moderna, porque não segue as normas da sociedade racionalizada. Sua lógica é
outra, é imprevisível; desejos e valores são expressos de outras maneiras que não
as consideradas “normais” pela sociedade moderna burguesa. O tratamento
psiquiátrico era organizado, então, de forma que os internos pudessem incorporar as
ideologias e normatizações da sociedade burguesa – seguindo a política capitalista
de trabalho (LAVRADOR et al, 2001b), barrando a invenção de novos territórios
existenciais, ou seja, impedindo a constituição de outras maneiras de viver
divergentes do modelo capitalista vigente, de subjetividades diferenciadas visto que
“a produção de subjetividade8 constitui matéria-prima de toda e qualquer produção”
(GUATTARI & ROLNIK, 2000, p.28), ou seja, os comportamentos, percepções,
sensibilidades, relações sociais etc são modelizados por “subjetividades coletivas”
produzidas segundo a regra capitalista. A loucura9, como um modo de vida que não
segue a subjetividade “serializada” e hegemônica, não segue as normas do sistema
dominante capitalista, o sistema de produção em série do flexível e de descartável.
De acordo com Moffatt (1980, p.52), com os psicofármacos busca-se adaptar o
paciente às normatizações sociais, ou seja, que ele seja útil, capaz de realizar
atividades produtivas para a sociedade capitalista e seu bem estar.
A loucura é vista pela Psiquiatria tradicional como movimento de desvio, uma
forma de viver excluída, enclausurada fora do que é tido como normal, incapaz de
8 Subjetividade não se confunde com identidade, como essência imutável, mas configurações
temporárias e inacabadas dos diversos atravessamentos (políticos, sociais, afetivos, artísticos etc) que nos constituem (GUATTARI e ROLNIK, 2000).
9 Loucura não como “doença mental”, psiquiatrizada, mas uma experiência singular divergente dos modelos já determinados. Esta diferenciação será abordada adiante, no capítulo dois.
20
participar da construção diária da vida. A noção da loucura como “doença mental”,
institucionalizada, psiquiatrizada ainda é forte nos dias de hoje. Contudo, alguns
movimentos contra o modelo manicomial de isolamento eclodiram em diferentes
países após a Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, a Comunidade
Terapêutica e a Antipsiquiatria na Inglaterra, a Psicoterapia Institucional e a
Psiquiatria de Setor na França, a Psiquiatria Preventiva/Comunitária nos Estados
Unidos e a Psiquiatria Democrática Italiana. Esses movimentos são, hoje,
denominados Movimentos de Reforma Psiquiátrica e buscam, desde meados do
século XX, modificar a assistência aos que passam pela experiência da loucura,
questionando “o papel e a natureza, ora da instituição asilar, ora do saber
psiquiátrico” (AMARANTE, 1998, p. 27). Em algumas instituições que passaram por
reformas, como a Clínica de La Borde, seguindo a Psicoterapia Institucional de F.
Tosquelles e mais tarde, a política da Psiquiatria de Setor, os pacientes assumiram
tarefas e responsabilidades juntamente com a equipe do hospital psiquiátrico, como:
arrumar as camas, cuidar da limpeza, participar da organização de diferentes
atividades e oficinas terapêuticas. Foram, em geral, movimentos constituídos pelos
trabalhadores dos locais onde os loucos viviam e eram “tratados”, devido ao horror à
Segunda Guerra, à violência e aos campos de concentração que se assemelhavam
à violência e falta de cuidados para com os internos nos hospícios, onde
praticamente não se tinha visão de outras possibilidades de futuro para a maioria
dos pacientes. Como afirma Gina Ferreira
é evidente que a forma mais cruel e eficaz de promover a doença mental é a exclusão social, quer pela falta de visão de um futuro melhor causado pela desqualificação estigmatizada do sujeito pela inércia atada à marca de uma improdutividade forçada, quer pela ausência do contato afetivo que se produz com o afastamento dos amigos e familiares (2001, p.82).
Entretanto, a maioria dos movimentos acima citados visava “humanizar” os
asilos manicomiais, ou seja, fazer do hospital psiquiátrico um lugar “melhor” para que
os chamados “doentes mentais” pudessem ser tratados. Apenas os movimentos da
Antipsiquiatria, tendo como referência David Cooper e Ronald Laing, e da Psiquiatria
Democrática Italiana, com Franco Basaglia e Franco Rotelli, questionavam a noção
de doença mental instituída, o saber-poder da psiquiatria e as instituições asilares de
assistência. Como afirmam Rotelli, De Leonardis e Mauri (2001), os movimentos que
21
não discutem e não promovem mudanças efetivas no cuidado e assistência aos que
passam pela experiência da loucura são “psiquiatrias reformadas”, já que mantém a
lógica de exclusão, renovando as terapias e humanizando espaços de tratamento.
De acordo com esses autores, a desinstitucionalização efetiva da loucura é um
“processo social complexo” que busca
reconstruir todo o processo de transformação da instituição psiquiátrica desenvolvido ao longo de mais de vinte anos e que deixou sua marca em múltiplas dimensões: do microcosmo da relação terapêutica (e das concepções e práticas de tratamento) à dimensão da construção de uma nova política psiquiátrica (e das concepções e práticas da ação política) (2001, p.25).
Nesse sentido, não basta criar outros espaços de atenção fora dos hospitais
psiquiátricos, extinguir o espaço físico de confinamento e exclusão, retirar os
pacientes dos manicômios, ou seja, não basta desospitalizar os internos. O que o
atual movimento de Reforma Psiquiatria busca é romper com o modelo psiquiátrico
tradicional, destruir a lógica de periculosidade e exclusão dos que passam pela
experiência da loucura, desmanchar a cultura manicomial, os “manicômios
invisíveis”10 em nós incrustados há tanto tempo. Desinstitucionalizar a loucura é
produzir um outro olhar sobre ela, é inventar outras formas de habitar territórios
existenciais que não excluam a diferença e nem a confinem na infantilização,
incapacidade e irresponsabilidade.
1.1. MOVIMENTOS DE TRANSFORMAÇÃO NO BRASIL
Até a segunda metade do século XIX, a loucura não tinha um espaço
específico de tratamento e assistência médica no Brasil, e os que passavam por esta
experiência perambulavam pelas ruas, ou eram presos por causar tumultos ou ainda
10 Termo utilizado por Baptista (1999) como uma postura rígida diante da vida, uma forma cristalizada
de estar no contemporâneo, mantendo a lógica manicomial mesmo fora dos manicômios. Pelbart (1991) utiliza o termo “manicômio mental” para tratar dessa cristalização manicomial.
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encarcerados em celas dos hospitais da Santa Casa de Misericórdia (COSTA,
1989). A partir de 1830, médicos passaram a pedir que fosse criado, no Brasil, um
hospício para alienados para que os loucos pudessem dispor de um local higiênico e
arejado para serem tratados, segundo a proposta de tratamento moral vindo da
Europa. Para Cunha (1986), a medicina social defendia a necessidade de separar,
organizar e conhecer a população das cidades – que cresciam cada vez mais.
Foram estabelecidos lugares para cada categoria da população, onde a disciplina e
a rotina seriam as diretrizes para uma sociedade organizada. Os loucos, que se
diferiam nitidamente da boa sociedade, precisavam ter um lugar onde não
atrapalhariam a ordem social.
O primeiro hospital psiquiátrico brasileiro foi inaugurado em 1852, no Rio de
Janeiro, na Praia Vermelha – lugar calmo para que o tratamento fosse mais eficaz.
Em um ano de funcionamento, todos os 350 leitos do Hospício Dom Pedro II (ligado
à Santa Casa de Misericórdia até a instauração da República) estavam ocupados.
Devido à grande procura e a necessidade de alojar os loucos em locais
especializados para tratamento moral, foram construídos manicômios em outros
Estados do país, em instalações provisórias e muitas vezes precárias, seguindo o
modelo francês de Esquirol – isolamento dos doentes para tratamento, sendo
condição para a cura, visto que ficariam afastados da sociedade e da família, onde
estariam as causas da loucura (LAVRADOR et al, 2001b). A docilidade e a
obediência eram internalizadas pelo pensionista através do trabalho, das normas de
comportamento, sendo eles submetidos à constante vigilância e inspeção. Em 1890,
devido à Proclamação da República, o Hospício Dom Pedro II passa a chamar-se
Hospital Nacional dos Alienados e é colocado exclusivamente sob tutela do Estado
(COSTA, 1989).
Ao final do século XIX, o orçamento destinado à assistência psiquiátrica é
drasticamente reduzido, o que leva à deterioração do tratamento aos internados no
Hospital Nacional. Em 1902, Juliano Moreira foi nomeado diretor deste Hospital e a
Psiquiatria no Brasil recupera suas forças com a primeira Lei Federal de Assistência
aos Alienados (1903), e a criação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia
e Medicina-Legal em 1907.
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Segundo Costa (1989), a Psiquiatria passa a ser especialidade médica
autônoma no Brasil apenas em 1912, o que leva ao surgimento de variados
estabelecimentos para os classificados como “doentes mentais”, principalmente no
Rio de Janeiro, como o Manicômio Judiciário, a Colônia de Jacarepaguá, dentre
outros. Entretanto, os psiquiatras brasileiros enfrentavam a dificuldade de delimitar o
campo do saber psiquiátrico.
Em 1923, é criada, no Brasil, a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) pelo
psiquiatra Gustavo Riedel (COSTA, 1989). Os objetivos iniciais eram de melhorar a
assistência aos internados renovando os profissionais e reformando os
estabelecimentos psiquiátricos. A partir de 1926, psiquiatras passaram a se
preocupar, mais do que com a cura da doença mental, com a prevenção da loucura
em indivíduos normais, atuando em meios escolares, profissionais e sociais – o
movimento higienista em saúde mental.11 Segundo esses pensadores, “os
fenômenos psíquicos e culturais explicavam-se, unicamente, pela hipótese de uma
causalidade biológica que, por sua vez, justificava a intervenção médica em todos os
níveis da sociedade” (COSTA, 1989, p.72). A Psiquiatria busca controlar, também, o
domínio cultural.
No final da década de 70, com a chamada Crise da Dinsam – Divisão
Nacional de Saúde Mental, teve início o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Este era o órgão do Ministério da Saúde responsável pelas políticas públicas em
saúde mental. Os profissionais das quatro unidades12 da Dinsam deflagraram greve
em abril de 1978. No bojo dessa discussão nasce o Movimento dos Trabalhadores
em Saúde Mental (MTSM), denunciando as precárias condições de trabalho, as
irregularidades no que diz respeito à equipe de trabalhadores, bem como o descaso
para com a população internada. O objetivo desse movimento era construir
propostas de transformação da assistência psiquiátrica, regularizar a situação dos
trabalhadores e humanizar os serviços, uma vez que o modelo vigente de tratamento
da “doença mental” era considerado estigmatizante e cronificador (AMARANTE,
1998). A opinião pública foi intensamente mobilizada devido às condições
desumanas, a violência e a corrupção presentes no hospício público, sendo 11 A proposta deste trabalho não é levantar a história da Psiquiatria no Brasil. A respeito da Liga
Brasileira em Higiene Mental, ver Jurandir Freire Costa, 1989. 12 Todas no Rio de Janeiro: Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel, Colônia Juliano Moreira e
Manicômio Judiciário Heitor Carrilho.
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fundamental para uma maior visibilidade e atenção para este movimento de
mudança (DELGADO, 2001).
A partir daí são organizados congressos e encontros nacionais e regionais de
psiquiatria e de trabalhadores em saúde mental. Já em 1979, no III Congresso
Mineiro de Psiquiatria, “grupos de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia
propõem a realização de trabalhos ‘alternativos’ na assistência psiquiátrica”
(AMARANTE, 1998, p.55). Depois de diversos encontros, desencontros e debates é
formulada a estratégia de diminuir os leitos psiquiátricos, dando vez aos recursos
extra-hospitalares de assistência.
Devido às discussões sobre Reforma Psiquiátrica e ao Movimento dos
Trabalhadores visando uma Luta Antimanicomial, surgem, no Brasil, os chamados
serviços alternativos. Receberam essa denominação por se distinguirem do
atendimento psiquiátrico tradicional. Entretanto, esta denominação não agradava
aos profissionais em saúde mental, porque parecia que esses serviços eram uma
alternativa ao manicômio, mas não no sentido de acabar com o internamento asilar,
mas sim, de ser mais uma possibilidade além da existência e funcionamento do
manicômio, sendo este a forma e local principais de tratamento. Na afirmação de
Desviat
a sobrevivência do manicômio distorce qualquer organização de serviços alternativos. Ele se mantém como um saco sem fundo, uma tentação permanente diante do incômodo ou da impotência técnica [...], um recurso fácil na contratransferência das equipes profissionais ou na ignorância ou oportunismo (1999, p.89).
Por isso foram então denominados pelo movimento de pessoas contra a
internação em hospícios de Serviços Substitutivos em Saúde Mental – a fim de
substituir o modelo asilar-manicomial, cuja forma de assistência não mais
correspondia às propostas dos trabalhadores, usuários e seus familiares. Esses
serviços visam, desde então, substituir a internação psiquiátrica tradicional,
propondo outras maneiras de cuidar e dar assistência aos que passam pela
experiência da loucura, bem como construir outras possibilidades de lidar com a
loucura, extinguindo os hospitais psiquiátricos. Dentre eles podemos citar os Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), Centro
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de Atenção Diária (CAD), Centro de Atividades Integradas (CAIS), Hospitais-dia e
Serviços Residenciais Terapêuticos. São serviços criados a partir de
experimentações e propostas para melhor atender aos que passam pela experiência
da loucura.13 Legislações sobre esses serviços foram criadas e entraram em vigor
após a experiência ter sido construída e implantada pelos profissionais que
acreditam no movimento de luta antimanicomial.
As lutas pela proposta de desinstitucionalização da loucura, pelo fim da lógica
manicomial, tiveram início, no Brasil, na segunda metade dos anos 80, sob influência
da Reforma Italiana protagonizada por Franco Basaglia. Em 1987, é consolidado o
lema por uma sociedade sem manicômios pelo MTSM, buscando alianças com o
movimento popular e a classe trabalhadora organizada. Houve, como afirma
Amarante,
uma ruptura [...] no processo da reforma psiquiátrica brasileira, que deixa de ser restrito ao campo exclusivo, ou predominantemente, das transformações no campo técnico-assistencial, para alcançar uma dimensão mais global e complexa, isto é, tornar-se um processo que ocorre, a um só tempo e articuladamente, nos campos técnico-assistencial, político-jurídico, teórico-conceitual e sociocultural” (1998, p.75-76).
Diversos são os movimentos que têm sido constituídos desde então,
contribuindo para o processo de Reforma Psiquiátrica, a saber: Conferências
Nacionais de Saúde Mental, Movimento de Luta Antimanicomial, fechamento de
instituições que desrespeitavam os direitos humanos de pessoas internadas,
constituições de serviços que substituem o internamento asilar e moradias para
egressos de hospitais psiquiátricos, bem como cooperativas e associações de
usuários e familiares de serviços psiquiátricos.
É importante destacar que o movimento de Reforma Psiquiátrica teve grande
repercussão no país, no primeiro semestre de 1989, quando a Secretaria de Saúde
do Município de Santos/SP interveio na Casa de Saúde Anchieta – hospital
psiquiátrico privado conveniado à previdência social – devido a denúncias de maus-
13 O primeiro CAPS foi criado em São Paulo em 1987, e o primeiro NAPS em Santos em 1989. Esses
serviços foram normatizados em 29 de janeiro de 1992, através da portaria ministerial nº 224 que dispõe sobre o atendimento ambulatorial em unidades especializadas NAPS e CAPS, a fim de oferecer uma assistência substitutiva ao modelo hospitalocêntrico (AMARANTE, 1998).
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tratos, desrespeito aos direitos humanos, morte por espancamento e casos de
suicídio no manicômio conhecido na cidade como “Casa dos Horrores” (NICÁCIO,
1994). Este hospital psiquiátrico abrigava quase o dobro de pacientes internados
que o número de leitos existentes, além de não haver profissionais suficientes, nem
recursos adequados para alimentação e higiene.
Conforme relata Fernanda Nicácio, logo nos primeiros dias de intervenção,
grandes mudanças aconteceram naquele hospital: os quartos de isolamento foram
desativados, bem como a eletroconvulsoterapia, os níveis de alimentação e higiene
foram elevados para padrões humanos, as grades foram retiradas para que todos
pudessem circular pelos corredores e pátios e visitas foram permitidas aos internos e
à instituição. Buscava-se resgatar a dignidade e cidadania que os internos haviam
perdido tendo como base os conceitos de autonomia, liberdade e responsabilidade
(NICÁCIO, 1994). Por ordem judicial, a intervenção foi suspensa em uma semana,
mesmo com comprovações das arbitrariedades que aconteciam naquela instituição –
mas em uma semana essa liminar foi cassada e o processo de intervenção foi
retomado. Neste retorno, o secretário de Saúde, David Capistrano Filho e a prefeita
de Santos, Telma de Souza, foram recebidos com aplausos dos internados na Casa
Anchieta.
Buscava-se, de fato, colocar a doença mental “entre parênteses”, nas
palavras de Basaglia (1985), para que as necessidades do sujeito pudessem
aparecer – o que não significa negar a loucura e o sofrimento, mas não mais reduzir
esta experiência de vida a “doença mental”. Espaços de convivência, de
coletividade, de expressão de desejos, vontades e necessidades foram criados, o
que levou a experimentações, a projetos e a outras possibilidades de atenção, de
cuidado, de vivência cotidiana. Conforme afirma Nicácio (1994), os interventores, os
movimentos sociais engajados, familiares, internos, dentre outros atores sociais
perceberam a necessidade de transformar um modelo historicamente construído de
atenção à loucura. Aos 100 dias de intervenção na Casa Anchieta foi organizada
uma festa na Praça Mauá, em frente à Prefeitura de Santos. Trabalhadores,
usuários, familiares, políticos convidavam a todos a conhecer a diversidade e
construir contatos com a loucura. “A desmontagem do manicômio implicava um
processo de transformação cultural da lógica da exclusão como natural e imutável”
(NICÁCIO, 1994, p.56) que até então dominava.
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Não só contra a violência esta intervenção lutava. Aproximando novamente o
louco da cidadania abandonada, questões diferentes dos problemas internos ao
manicômio surgiram, criando outros contatos, como afirma Nicácio (1994, p.68),
“entre os problemas da loucura e os da vida cotidiana”. Não havia um modelo ideal a
ser seguido, mas havia a necessidade urgente de destruir aquela hegemonia do
poder psiquiátrico excludente, violento e desumano.
A intervenção no hospital, levou à necessidade de produzir instituições novas
que não reproduzissem a lógica manicomial e que atendesse às diferentes
necessidades dos usuários e familiares. Fechar uma instituição não significa apenas
retirar os internados e trancar os portões. O fechamento da Casa de Saúde Anchieta
– onde existiam 20 leitos em 1994, e quase todas as internações eram de pessoas
provenientes da Baixada Santista (NICÁCIO, 1994) – foi um processo longo e um
marco importante na história da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial no
Brasil. A partir deste movimento, que teve grande repercussão na mídia, foi
implantado em Santos “um sistema psiquiátrico que se definia como completamente
substitutivo ao modelo manicomial” (AMARANTE, 1998, p.83): uma rede de serviços
que englobava NAPS, associações, Centro de Convivência, cooperativas,
instituições de residencialidade dentre outros, estendendo-se ao território14 –
entendido aqui, como demonstra Oliveira (2004), espaço tanto físico e geográfico
como espaço de trocas e relações sociais, espaço de atitudes de diferentes
pessoas, de experiências de vida.
Sabendo que é possível assistir e cuidar de pessoas que passam pela
experiência da loucura fora dos muros manicomiais, como mostrou a experiência em
Santos, no mesmo ano o Deputado Paulo Delgado (PT/MG) apresentou o Projeto de
Lei 3.657/89, regulamentando os direitos dos loucos e indicando a extinção
progressiva dos hospitais psiquiátricos, para que o cuidado e tratamento fossem
realizados em instituições não manicomiais. Esta proposta esquentou ainda mais a
discussão acerca da loucura e da assistência em psiquiatria e contribuiu para
aprofundar as discussões sobre as políticas em saúde mental no âmbito
governamental. E, segundo Desviat (1999), outros manicômios particulares foram
fechados por não terem condições de permanecerem funcionando.
14 A noção de Território será abordada no terceiro capítulo.
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nos com pessoas fragilizadas e mesmo assustadas com uma forma de vida que as
mortifica nos manicômios, e esses movimentos em prol de uma Reforma Psiquiátrica
buscam destacar nas pessoas, por tanto tempo internadas, o desejo pela vida, pela
possibilidade de viver de uma maneira que não seja a espera contínua pela cura em
um manicômio – cura como um fim a se chegar, como, segundo afirma Teixeira,
uma “intervenção sobre algo que está funcionando de forma errada, para que volte a
funcionar de forma adequada”(1996, p. 74). Teixeira propõe, então, a noção de
“cura-meio”, ou seja,
pensar a cura como um trajeto de tratamento, onde existe maleabilidade em relação aos sujeitos envolvidos, onde cada momento tem um valor, onde uma norma de recuperação final não se impõe a todo instante, tem um efeito benéfico, pois estabelece possibilidades clínicas mais amplas (1996, p. 74).
O termo Reforma Psiquiátrica aqui adotado, assim como é utilizado nos
espaços de discussão e na literatura sobre saúde mental no Brasil, vem sofrendo
algumas críticas. Quando falamos em “reforma”, alguns autores, conforme afirma
Amarante (2003), consideram apenas modificações técnico-estruturais, já que este
termo vem sendo historicamente utilizado para denominar modificações
superestruturais, superficiais, re-organizando serviços, práticas e modelos de
assistência – é a psiquiatria reformada16 da qual falam Rotelli, De Leonardis e Mauri
(2001). Contudo, uma reforma pode ser uma reforma estrutural, subversiva. E é esta
a proposta do Psiquiatra Paulo Amarante, pesquisador da ENSP/Fiocruz: superar a
noção de reforma como uma modificação administrativa ou meramente técnica,
ultrapassando a idéia de psiquiatria reformada. Segundo Amarante (1997, p. 165),
a Reforma Psiquiátrica da qual se está falando não diz respeito, exclusivamente, à medidas de caráter tecnocientífico ou organizacional. Reforma Psiquiátrica, neste contexto, é um processo permanente de construção de reflexões e transformações que ocorrem a um só tempo, nos campos assistencial, cultural, e conceitual.
Nesse sentido, a proposta do movimento de Reforma Psiquiátrica não é
chegar a um “ponto ótimo” de assistência aos que passam pela experiência da
16 Conforme discutido no início do capítulo um desta dissertação.
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loucura e a seus familiares. O processo de transformação é contínuo e permanente,
sofrendo diversas interferências e modificações, apostando em formas mutantes de
atenção, assistência e cuidado aos usuários dos serviços psiquiátricos. Não basta,
portanto, debater e discutir ações à luz da Reforma Psiquiátrica, se não paramos
para analisar criticamente o que vem sendo feito. Este processo não visa apenas
retirar pacientes dos manicômios e fechar os leitos psiquiátricos, ou seja, não basta
ficar no discurso consensual de que os processos da Reforma e da Luta
Antimanicomial são importantes.
Há palavras que, pelo uso corrente, parecem dispensar definições. Seriam consensuais; todos saberiam do que estão falando em uma simples leitura ou enunciação. Este caráter consensual tem efeito duplo: ora reforça a palavra pelo efeito de unanimidade e obviedade que lhe confere, ora enfraquece porque, lenta e silenciosamente, retira da palavra a possibilidade de ser vivificada pela verificação de suas relações com as ‘coisas’ às quais se referiria (NEVES, 1998, p. 92).
É necessário, portanto, não se limitar a utilizar o termo “Reforma Psiquiátrica”
como se falar nesse processo já produzisse transformações no modelo manicomial e
“hospitalocêntrico” de assistência. De maneiras diversas os que passam pela
experiência da loucura são tutelados, moralizados, infantilizados, considerados
incapazes mesmo quando tantos discursos consensuais falam da melhoria das
condições de vida para os institucionalizados e/ou egressos dos manicômios. É
preciso, sim, avaliarmos continuamente nossas práticas e o que vem sendo,
efetivamente, produzido para que saberes/práticas não sejam naturalizados como
ideais e, como afirma Teixeira (1996), estarmos atentos para que o sujeito tenha
possibilidades de construir um percurso e um outro território existencial da melhor
maneira possível.
Contudo, talvez a segregação do louco ainda seja reproduzida mesmo fora
dos muros manicomiais. Talvez sejam vícios, hábitos de se pensar e viver com a
loucura longe do dia a dia, isolada, institucionalizada. Especialistas já afirmavam,
desde o século XIX, que lugar de louco é no hospício e, segundo Pinel e seu
discípulo Esquirol, o asilo é, por si só, uma instituição terapêutica, ou seja, uma arma
poderosa contra a “doença mental”, como mostram Ewald (1993) e Amarante (1996)
em seus trabalhos. Essa noção naturalizada é difícil de ser quebrada. Ser difícil não
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quer dizer que é impossível, como mostram algumas ações que contribuem para o
processo de desinstitucionalização da loucura, a saber: passe livre em transportes
públicos, benefícios do INSS, programas de políticas públicas que visam a inserção
dos usuários de serviços psiquiátricos no meio social, através dos CAPS e outros
serviços extra-hospitalares, não mais enclausurados em asilos.
Mesmo com novas propostas, programas federais, atividades e tantas
discussões, algumas práticas reprodutoras de uma lógica excludente e paralisante
parecem ser perpetuadas, como posturas rígidas sobre o lugar do louco e do
profissional, certezas que impedem outras experimentações e vivências, medicação
exagerada, políticas de descaso e de exclusão para com a saúde mental. É o que
Lavrador e Machado chamam de “‘desejos de manicômios’, que se expressam
através de um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de
hierarquizar, de oprimir e de controlar” (2001c, p.46). De maneiras diversas os que
passam pela experiência da loucura são tutelados, moralizados, culpabilizados,
infantilizados, considerados incapazes mesmo quando tantos discursos consensuais
falam da melhoria das condições de vida para os loucos institucionalizados e/ou
egressos dos hospitais psiquiátricos. Não basta haver leis para que haja mudanças,
conforme afirma Marchewka,
Com a Lei [nº 10.216/2001], deve ocorrer uma verdadeira mudança de mentalidade. Uma coisa é certa: não se mudam conceitos ou formação com passes de mágica. Não se alteram sistemas de interpretação apenas porque algo novo flui [...]. Em nossa sociedade, ainda permanece a idéia de que o doente mental deva ser tutelado, e que a doença mental relaciona-se com periculosidade criminal. Por isso, devemos enfrentar o estigma que gravita em torno destas construções do século XIX (ca. 2003, p. 10).
Então, como pensar a loucura na atualidade? O que tem sido produzido?
Como está a implementação de Serviços Residenciais Terapêuticos no Estado do
Espírito Santo? Como os profissionais em saúde mental envolvidos têm discutido e
trabalhado essa proposta? As moradias extra-hospitalares para egressos de
hospitais psiquiátricos marcariam o fim do enclausuramento e dos manicômios
invisíveis, ou estão reproduzindo a lógica manicomial? Como as dificuldades no
processo de desinstitucionalização da loucura vêm sendo trabalhadas?
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1.2. DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO BRASIL
A saída de internos de hospitais psiquiátricos para moradias extra-
hospitalares foi regularizada no Brasil no ano 2000, com as portarias 106 e 1.220,
depois que residências para egressos de manicômios já haviam sido implantadas
em alguns municípios do país. Segundo Gomes (2004), em 1990 foi inaugurada a
“Pensão Nova Vida” em Porto Alegre (RS), para egressos de hospital psiquiátrico; e
em 1994 foi implantada uma moradia em Bagé (RS). Em Campinas (SP), segundo
Furtado e Pacheco (1997), a primeira casa foi inaugurada em dezembro de 1991,
sendo chamada de “Lar Abrigado” e a segunda moradia, chamada “Pensão
Protegida” foi implantada em janeiro de 1995. As duas casas estavam ligadas ao
Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, instituição filantrópica em convênio com a
Prefeitura Municipal de Campinas. Segundo Nicácio (1994), em 1993 foi inaugurado,
em Santos (SP), o “Lar Abrigado Manoel da Silva Neto”, conhecida como “República
Manequinho”, com moradores vindos da Casa de Saúde Anchieta, que sofrera
intervenção municipal. Este nome foi escolhido pelos moradores em homenagem ao
Manequinho, ex-interno da Casa Anchieta que faleceu, por motivos clínicos, dias
antes de mudar-se para a casa. No município do Rio de Janeiro a primeira moradia
foi implantada em 1988, chamada “Casa Paulo Barreto 70”, para egressos do
Instituto Philippe Pinel. Uma moradia filiada ao Instituto de Psiquiatria da
Universidade do Brasil (IPUB) foi inaugurada em novembro de 1994 (BAPTISTA,
ZWARG e MORAES, 2001b). Foram, então, acolhidas diversas experiências,
dificuldades, propostas e diferentes projetos já em andamento. Com a legislação,
todas as moradias para ex-internos de asilos manicomiais passaram a ser chamadas
de Serviços Residenciais Terapêuticos – um dos diversos serviços substitutivos ao
modelo “hospitalocêntrico” de cuidado com aqueles que passam pela experiência da
loucura. A Portaria Ministerial nº 106/00 do Ministério da Saúde estabelece que
sejam
moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares que viabilizem sua inserção social (BRASIL, 2004, p.100).
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Contudo, que serviço é este oferecido a egressos do hospital? Essas pessoas
foram expropriadas de suas casas, de suas famílias, de amigos, de prazeres e da
vida que levavam antes de serem internadas. Estes “serviços” devolverão a elas
todos esses anos de internação e isolamento? A proposta é a implantação de uma
casa destinada a pessoas que perderam quase tudo, se não tudo – muitos já não
têm mais contato algum com familiares nem com a sociedade contemporânea.
A partir das determinações Federais na Portarias 106 e 1.220, é importante
levantarmos algumas questões: os moradores serão tratados nesta casa? São locais
destinados para que, os lá residentes, recebam cuidado e tratamento? Ou estas
residências serão um local de moradia, onde eles possam cuidar de si mesmos, uns
dos outros e da casa juntos – como em uma “república de estudantes”? Em
repúblicas estudantis existentes em diversos municípios do Brasil existem diferentes
moradores, com diferentes bagagens e experiências de vida, diversas necessidades
e desejos. Eles se encontram e passam a morar em uma mesma residência, tendo
que conviver juntos em vários momentos, tendo, geralmente, um espaço só seu,
único, para suas coisas. Pessoas que devem estabelecer regras para convivência
naquela moradia, mas cada um constrói seu caminho, suas experiências,
expectativas e projetos de vida.
Uma casa para egressos de hospitais psiquiátricos funcionaria de forma
similar. Os moradores têm expectativas distintas, desejos diversos, dificuldades em
diferentes atividades, projetos variados. O que eles têm em comum é terem vivido
parte de suas vidas dentro de um asilo manicomial – e ainda assim, essas
experiências são diversificadas. Cada uma dessas moradias tem um perfil,
apresentam características distintas e às vezes, muito divergentes dependendo do
número de moradores, do tempo de internação de cada um deles, das atividades
que realizam e que querem vir a desenvolver, da idade dos moradores. Nesse
sentido, as moradias extra-hospitalares não devem ser consideradas da mesma
maneira e com o mesmo funcionamento já que em cada uma delas é atravessada
por variadas forças, diferentes atitudes são tomadas e são diversos os efeitos em
cada morador, nos profissionais e na comunidade. Na casa onde moram cinco
mulheres egressas do Hospital Adauto Botelho, por exemplo, elas cuidam da casa,
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varrem, limpam o banheiro, a louça. Rosana17, uma das moradoras, quer estudar,
aprender a bordar, namorar... Domitila, outra moradora, não se interessa por
bordados. Já os homens da casa de Santana andam mais pelas ruas, vão à praça
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como os CAPS, NAPS, Hospitais-Dia e ambulatórios, como demonstram Furtado e
Pacheco (1997) em seus trabalhos sobre as primeiras moradias extra-hospitalares
em Campinas. Vitor, estagiário de psicologia em uma das casas para egressos do
Hospital Adauto Botelho diz que pensa muito sobre essa questão das casas serem
ou não um serviço:
“eu me pego pensando nisso direto: até que ponto isso também não se torna um serviço? [...] Nós somos estagiários em psicologia aqui dentro, nós temos técnicos de enfermagem, nós temos enfermeiros. Não deixa de ser um lugar recheado de profissionais. Então não é uma simples casa, é uma casa diferenciada. Aí eu acho que tem que se tomar esse cuidado de não se transformar em um serviço”.18
Questionamos a nomenclatura de Serviço Residencial Terapêutico porque
acreditamos que a rede extra-hospitalar deva ser expandida, e que as esferas da
vida possam ser efetivamente diferenciadas, em espaços físicos distintos – bem
diferente do que acontecia enquanto internos de hospitais psiquiátricos. Adotamos o
termo Dispositivo Residencial19 por sua conotação de colocar algo em movimento,
em funcionamento. Segundo Heliana Conde Rodrigues (1997), “‘encarar algo como
dispositivo’ é desprender-se do instituído conforto das representações macro-
reativas para embarcar na deliciosa aventura micro do incessante engendramento
processual do real” (p.195. grifo do autor). Não devemos nos deixar prender a
modelos já existentes de atenção, de cuidado, de outras residências para egressos
de hospitais psiquiátricos, nem às normatizações e generalizações do Ministério da
saúde, mas possibilitar experimentações, outras construções e novas constituições
do fazer, do viver nessas moradias, habitando diferentes espaços físicos que não o
manicômio. Cada moradia é distinta da outra: diferentes em sua construção,
diferentes moradores, diferentes cuidadores, diferentes vizinhos – sem residências
para egressos de hospitais psiquiátricos que se pretendem universais. Como afirma
Deleuze (1988b, p.05),
cada dispositivo é uma multiplicidade, na qual operam tais processos em devir, distintos daqueles que operam no outro [...]. Todo dispositivo se define assim pelo seu teor de novidade e
18 As falas das pessoas entrevistadas durante a pesquisa estão entre aspas e em itálico. 19 Termo utilizado por Baptista, Moraes e Moulin (2002?) e Lavrador e Machado (2005).
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criatividade, que marca ao mesmo tempo sua capacidade de se transformar, de se fissurar em proveito de um dispositivo futuro, ao menos por outro lado, em proveito da confusão de forças sobre suas linhas mais duras, mais rígidas, mais sólidas.
Tendo a casa como dispositivo buscamos – moradores, cuidadores, equipe
técnica, estagiários, vizinhos – permitir novas experimentações e movimentos,
rupturas de linhas rígidas, atualização de outras forças, para que o processo de
desinstitucionalização da loucura não seja tido como verdade absoluta sendo mais
uma institucionalização. Como diz a estagiária de Psicologia Fabiana, acontecem
coisas “indizíveis e quase invisíveis” que ela chama de “trabalho de formiguinha”,
como o fato de Rogério, morador da casa masculina, querer ligar para o irmão e
hoje, apesar de não discar por não conhecer os números, ele fala ao telefone com
quem quer que seja. Quem sabe Rogério se interesse em conhecer os números e
queira aprender a ler!? Rosana, moradora do dispositivo residencial em Itacibá dizia,
na primeira visita que fiz às casas, que não sabia falar ao telefone, que só sabia falar
“alô”. Em uma manhã, exatamente onze meses desde a mudança dela para a casa,
recebi um telefonema de Rosana. Ela queria confirmar se eu ia ao curso de bordado
com ela naquela tarde, porque a cuidadora não poderia ir. Eu fiquei admirada,
porque o curso já acontecia semanalmente há quase três meses e ela nunca havia
confirmado nossa ida. Um outro morador, Jerônimo, diz que não quer aprender só
no CAPS, que ele quer saber mais. É cotidianamente que se constroem caminhos e
projetos de vida. Como falou Letícia,20
“muita coisa mudou depois que eles saíram do Adauto. Novas questões foram aparecendo, que não apareciam lá dentro do hospital”.
Para Deleuze (1988b) um dispositivo é composto de linhas de força distintas,
que seguem diferentes direções, ora mais unidas, ora sem equilíbrio determinado;
linhas que atravessam todo o dispositivo, misturadas, emaranhadas às demais
linhas suscitando, às vezes, mutações, transformações, outras vezes suscitam
outras possibilidades – que se atualizam, acontecem, ou em nada modificam o
20 Extensionista do programa “Hecceidades: Programa de Pesquisa e Intervenção em Saúde Mental”
do Departamento de Psicologia da UFES.
37
funcionamento das demais linhas que constituem o dispositivo. Nesse sentido, o
dispositivo residencial não permanece o mesmo em todos os instantes, porém sofre
influências, interferências diversas o que leva a diversas possibilidades,
modificações, dúvidas e diferentes idéias, ou mesmo permanência de determinada
forma de funcionamento. Como em todo dispositivo – o que não é fixo e invariável –
é necessário distinguir o que é esta residência, o que não é mais e o que esta casa
está se tornando – um espaço de convivência e de bem estar? um espaço cheio de
regras e sem discussões? um local pelo qual os moradores sentem-se
responsáveis? mais um lugar de espera, vendo a vida passar? ou um lugar de
possíveis e novos projetos de vida e caminhos? É necessário, então, estarmos
sempre atentos para os movimentos que se configuram no campo social a partir das
atividades e relações das e nas casas para a não manutenção da lógica manicomial
mesmo fora dos muros asilares.
1.3. DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS NO ESPÍRITO SANTO
A proposta de implementação de moradias para ex-internos de hospitais
psiquiátricos no Espírito Santo teve início em 1998.
“Foi em 98 que a gente começou com um projeto de Lar Abrigado [...]. A princípio a gente pensou em estar fazendo um trabalho com famílias, para estar re-inserindo na família e na sociedade. E depois a gente viu que a maioria por ter um longo tempo de permanência, não tinha mais vínculo familiar, já tinha se perdido. Até pela idade, os familiares diretos já tinham falecido [...] .E a gente montou um projeto de Lar Abrigado na enfermaria 19 naquela época naqueles moldes que existiam [...]. Não tinha legislação ainda proibindo [ser] dentro do hospital. A gente queria abrir uma porta para fora da 19, que fosse para o CAPS, que também estava se estruturando [...] A gente sabia como queria cria, não sabia como iria manter essas casas, quem iria investir, porque não tinha essa legislação toda.”
38
Jandira21
Em 2000, um projeto foi elaborado para a construção de quatro casas, com
seis moradores cada, em espaço pertencente ao Hospital, em Cariacica /ES, mas
fora de seus muros.
“A gente fez um projeto de residência, completo, de construção das casas; a gente conseguiu fazer uma parceria com a COHAB,22 a COHAB iria construir [...]. Estava todo pronto para quatro residências [...]. a verba foi desviada [...] não chegou aqui [...]. A gente tinha tudo. Os engenheiros vieram, fizeram a planta, a gente trabalhou junto com eles [...]. Tava com toda a verba destinada aí antes de começar o projeto a verba não chegou, quer dizer, não concretizou. E aí a gente já tava trabalhando os pacientes também [...]. Então a gente está trabalhando com estes que saíram desde aquela época.”
Jandira
A partir de 2003, profissionais do Hospital Adauto Botelho, único hospital
psiquiátrico público do Estado, reiniciaram a discussão sobre a implantação de
moradias para egressos de manicômios com a Coordenação Estadual de Saúde
Mental. Foram efetivados, portanto, espaços de discussão, experimentação e
produção de conhecimentos. A disponibilização dessas habitações possibilita
rupturas com modelos arcaicos e psiquiatrizantes de lidar com a loucura no cotidiano
e propõe novas políticas no campo da saúde mental. Nesse sentido, buscando
transformar a assistência e o cuidado para com aqueles que passam pela
experiência da loucura, muitas discussões foram retomadas, como a questão da
verba para as casas, da tutela e controle em excesso sobre os futuros moradores
dessas residências, além de discussões para decidir se as casas seriam alugadas
ou construídas, para a “escolha” dos internos que sairiam do hospital num primeiro
momento, sobre “cuidadores” para as casas e seus moradores, sobre pagamento
desses trabalhadores, sobre manutenção e gerenciamento das casas e outras
tantas discussões.
21 Assistente Social da Unidade de Ressocialização do Hospital Adauto Botelho e participante da
Equipe para Implementação das moradias extra-hospitales. 22 Cooperativa Habitacional do Espírito Santo.
39
Ao final de novembro de 2003, foram criadas duas enfermarias “especiais” no
Hospital Adauto Botelho, chamadas “pré-lares”. Uma feminina e outra masculina,
para os pacientes escolhidos pela equipe do Hospital que iriam habitar as
residências.23 Esta escolha não é feita ao acaso. É necessário um mínimo de
autonomia dos internos para que eles possam sair do hospital e construir um outro
território existencial. Muitos desses pacientes poderiam ter tido alta, contudo não
possuíam suporte familiar ou um outro lugar para morar. Esses novos setores
criados no Adauto Botelho têm como objetivo “preparar” os pacientes, por tanto
tempo internados, para uma vida fora do hospital, nos dispositivos residenciais, em
suas casas.
“Na ressocialização, como um todo, a gente trabalha autonomia, de uma certa forma, alimentação, cuidado das roupas, armário; mas aí vai pro pré-lar e tem que dar melhores condições pra... porque não tem armário pra todo mundo, tem roupa individualizada, mas a gente não pode fazer esse trabalho forte e tal com todos. Aí a gente pega, na ressocialização, a gente escolhe [...] e passa pro pré-lar pra estar avançando nesse tipo de trabalho – mais pra rua, mais pra andar, aprender a cuidar da própria roupa.”
Jandira
As atividades das enfermarias pré-lares eram destinadas a promover a
autonomia dos pacientes no que diz respeito aos cuidados com a arrumação (sua e
a da casa), atividades de compra, de efetuar pagamento e conferir o troco, circular
pelo bairro. São pessoas que viveram em instituições manicomiais por longo
período, não lidavam com atividades corriqueiras como comprar pão, ir ao
supermercado, lavar roupas, ir ao salão de beleza cortar cabelo, há muitos anos. Os
cuidados com esses internos foram intensificados para que eles estivessem
“prontos” para a saída do hospital, desenvolvendo a cada dia suas
responsabilidades, capacidades e autonomia. Mas, quando se está pronto? Existe
um ponto ótimo de autonomia para sair das enfermarias pré-lares e ir para as
residenciais? Como afirma Jandira,
23 Depoimento dado por participantes da equipe do programa “Hecceidades: Programa de Pesquisa e
Intervenção em Saúde Mental” do Departamento de Psicologia da UFES em 2004.
40
“hoje a gente sabe que os internos podem ir pras residências, porque a evolução vai ser lá. Não dá para julgar essa autonomia aqui dentro [do hospital], porque as leis são outras.”
“Nos tempos do Adauto você não consegue caminhar muito, se está sob uma porção de coisas institucionais. Tem aquele ranço ‘nada pode, nada vai dar certo’.”
Sheila24
“Quando nós viemos para cá o que tinha mais dificuldade era o Cristóvão. Teve um tempo que a gente chegou a até a perder a esperança sobre ele. Mas ele deu uma virada, mudou bastante. Teve uma melhora boa mesmo. Juro que a gente achava que ele não ia se adaptar à residência, mas ele está muito bem. Tipo assim, ele pegava a toalha que ele se secava, botava no chão e secava os pés. Às vezes usava a toalha como papel higiênico, para se limpar. Agora ele não faz mais isso.”
Simone25
As duas primeiras residências para egressos do Hospital Psiquiátrico Adauto
Botelho, no município de Cariacica/ES, foram inauguradas em 26 de outubro de
2004 – uma feminina, com cinco moradoras e outra, com oito moradores do sexo
masculino. São quatro cuidadores/plantonistas em cada casa, que se revezam em
turnos de 12 por 36 horas, e há, em cada uma delas, uma diarista/cozinheira, que
trabalha nas moradias de segunda a sexta-feira.
As casas foram escolhidas pela equipe técnica do hospital psiquiátrico, e os
internos que iriam morar nessas residências foram conhecer as casas antes da
mudança. Os móveis foram escolhidos, também, por esta equipe para que a
mudança não demorasse ainda mais, e são praticamente iguais nas duas moradias,
de cor clara: camas e mesas de cabeceira para cada morador, armários, mesa com
cadeiras, fogão, geladeira, dois sofás, um rack para aparelho de TV e uma televisão,
máquina de lavar roupas e telefone – ligado ao Hospital Adauto Botelho. Jandira
coloca a correria para se alugar as casas e comprar os móveis, já que o
24 Terapeuta Ocupacional do CAPS Moxuara – freqüentado pelos egressos do Adauto Botelho. 25 Diarista (auxiliar de serviços gerais) da casa masculina. Trabalhava na cozinha do hospital e foi
chamada para trabalhar em um dos dispositivos residenciais.
41
levantamento do pregão para o aluguel das casas e compra dos móveis demorou
quase oito meses.
“Na hora de abrir a casa, que iria abrir em julho, não tinha orçamento, porque o financeiro não deu conta [...]. Eu acabei indo sozinha ver as casas, porque era uma semana de prazo para arranjar as casas [...]. Eu vi umas cinqüenta casas mais ou menos. Aí uma era pequena; a outra num lugar muito difícil, muito inadequada e tal [...]. Só que aí não tinha os móveis. Aí o pessoal não deu conta de fazer o orçamento. Aí volta Jandira pra ir, em dois dias [...] pegar o primeiro orçamento [...]. Tivemos que sair nas vésperas, na semana de inauguração pra comprar alguns itens que foram cancelados no pregão; aí saímos aqui em Itacibá pra comprar geladeira, fogão...”
Jandira
Vitor participa do programa de extensão da UFES desde antes da
inauguração das casas, e acompanhou o processo de implantação dessas moradias
e da mudança dos moradores:
“Eu senti [...] um empenho muito grande por parte de algumas pessoas [...]. Empenho mesmo, tipo assim: parou a vida pra poder cuidar disso. [...] correu atrás de tudo, viu tudo sozinha [...]. Mesmo porque a pressão do Estado, das esferas superiores em cima desse pessoal do hospital era muito grande, então eles tinham que colocar a casa [...] pouca gente com muito empenho e pouco tempo”.
A casa das mulheres está localizada em Itacibá, um bairro central de
Cariacica, em meio a outras residências e muitos estabelecimentos comerciais. Fica
há duas quadras da avenida principal, em um local agitado, com muitos carros
passando. São dois quartos – um para três pessoas e no outro, dormem duas
moradoras.
42
Fig. 1: Casa das mulheres em Itacibá.
Fig. 2: Varanda da casa das mulheres em Itacibá.
43
A casa dos homens fica em um bairro mais calmo, afastado do centro –
Santana. É uma casa grande, de dois andares, com quintal, piscina e terraço com
churrasqueira. Na sala de baixo, estão os sofás, e a TV. No segundo andar, existe
uma sala, vazia; São três quartos no segundo piso, e um, no andar de baixo. Em
cada quarto dormem dois moradores.
Fig. 3: Casa dos homens em Santana.
Fig. 4: Piscina da casa dos homens em Santana.
44
45
46
As casas são vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), e existem
regulamentações do Ministério da Saúde explicitadas na Portaria 106/00, a saber: a
estrutura física deve ser “situada fora dos limites de unidades hospitalares gerais ou
especializadas” (BRASIL, 2004, p.102); cada moradia deve ter no máximo oito
moradores sendo que, não deve ultrapassar o número de três em cada quarto; deve
haver, minimamente, três refeições diárias; as atividades devem ser
supervisionadas, no mínimo, por um profissional médico e “dois profissionais de
nível médio com experiência e/ou capacitação específica em reabilitação
profissional” (BRASIL, 2004, p.102) e ter um serviço ambulatorial como referência.
Contudo, isso não significa que os mesmos devem estar presentes nas casas em
tempo integral. Os cuidadores não são os responsáveis para alimentar e limpar os
moradores, mas são responsáveis em dar a assistência necessária nas residências.
Os profissionais a quem esses moradores devem recorrer são os profissionais do
CAPS Moxuara – que fica próximo às duas casas, ao lado do Adauto Botelho – local
em que eles freqüentam pelo menos uma vez por semana. Nem todos os cuidadores
e diaristas participaram de algum curso ou preparação para o trabalho nos
dispositivos residenciais. Porém, segundo Jandira, são pessoas que estavam
envolvidas, de certa forma, com a proposta dos dispositivos residenciais. Sobre os
cuidadores, ela afirma que a equipe de implantação das residências estava
“trabalhando com pessoas que tinham [...], que a gente achava, perfil, que acreditavam no projeto, que já tinham trabalhado nos pré-lares, que vinham nas discussões da ressocialização, como que era essa preparação, como seriam esses lares e tal. Entrou gente nova também no contrato, mas estavam envolvidos nisso [...]. A gente estava com problemas de auxiliares de serviços gerais porque [...] eram de outro setor. A gente discutia na nutrição e outros lugares que tinham esse auxiliar, pra estar trabalhando com eles, falando o que era, qual era a função, que não era a mesma daqui [do Hospital].”
Jandira
“Quando eu voltei [de férias] a Jandira estava com um problema, de alguém para vir pra residência. Então, como ela já me conhecia há muitos anos, ela achou que eu, mesmo sem fazer o curso...”
47
Verônica26
“A Jandira, ela conversou comigo [...]. Comigo foi individual. Mas o pessoal aí... eles tiveram reunião.”
Simone
Além da legislação nacional, existem normatizações da equipe de
profissionais do Adauto Botelho que coordena os Dispositivo Residenciais, visando
uma melhor adaptação dos egressos do hospital a sua nova moradia. A casa
masculina, por exemplo, é uma casa grande, espaçosa, com quintal e uma piscina
na parte de trás da casa e terraço. Contudo, a piscina não poderia ser utilizada pelos
moradores. Ficou durante um ano, a partir da inauguração da casa, sem cuidados,
acumulando água das chuvas e lodo. Era uma questão, inclusive, de perigo para
reprodução do mosquito que causa a dengue. Sendo alertada para este fato, a
equipe responsável pelas moradias cuidou para que a piscina fosse limpa e tratada
a fim de que não fosse uma área que favorecesse a reprodução deste mosquito. A
proposta não era disponibilizar a piscina para os moradores da casa, sendo que o ph
da água permanecia impróprio para banho. Outra regra é que não se pode fumar
dentro da casa, apenas nos espaços externos. Esta foi uma determinação da equipe
responsável pelas moradias, não uma decisão coletiva da equipe, cuidadores e
moradores. As mulheres, por exemplo, têm horários definidos para fumar – são cinco
cigarros ao longo do dia, todas no mesmo horário. Segundo a diarista Verônica, foi
uma luta
“pra tirar o fumo sabiá. Isso aí que deu briga mesmo [...]. Hoje nem elas mesmo querem saber do fumo. Agora o cigarro não pode faltar. A luta com elas foi isso.”
Entretanto, quando saem de casa, se elas têm algum dinheiro, compram cigarro a
varejo, ou um maço, ou ainda pedem para algumas pessoas na rua.
26 Diarista (auxiliar de serviços gerais) da casa feminina. Trabalhava na Terapia Ocupacional (mas
não é terapeuta) do hospital e foi chamada para trabalhar em um dos dispositivos residenciais.
48
Trabalhar a autonomia de cada um desses moradores não é uma tarefa
simples e que segue um caminho pré-estabelecido. Cada um dos profissionais,
estagiários e extensionistas exercem funções diversas, contribuindo para que as
pessoas que não moram mais em um manicômio possam aproveitar e viver o que
este novo território em constituição vem a oferecer.
Essas duas residências pioneiras no Espírito Santo têm, praticamente, “a
obrigação” de dar certo para que outras casas sejam alugadas ou construídas, para
que outros pacientes internados possam sair do hospital e que mais leitos sejam
fechados. Há um grande peso de responsabilidade e ansiedade sobre os
profissionais que trabalham nesta proposta, já que é um projeto inovador no Estado
e muitas expectativas ainda são geradas no que diz respeito ao funcionamento da
casa, às relações entre os pacientes e com as pessoas da vizinhança, aos
tratamentos e acompanhamentos em serviços substitutivos ao internamento asilar.
É importante destacar que, no decorrer desta pesquisa,outras três moradias
para egressos do Adauto Botelho foram implantadas em 16 de fevereiro de 2006,
para pessoas que também freqüentaram as enfermarias “pré-lares” do Hospital:
duas casas para oito homens cada uma, e uma outra moradia para oito mulheres.
Sair do hospício e morar em um dispositivo residencial é suficiente para
desmanchar os “manicômios invisíveis”? O que o processo de Reforma Psiquiátrica
vem buscando é construir um outro lugar para a loucura que não mais aquele de
exclusão e isolamento, tão conhecido no mundo de confinamento. Buscamos
contribuir para que possibilidades sejam abertas para que os que passam pela
experiência da loucura habitem territórios novos, que possam constituir novos
projetos e caminhos.
CAPÍTULO 02
DESOSPITALIZAÇÃO E
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA
“Loucura é o império da diferença”.
Fernando Pessoa27
27 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. Palestra “A
crítica da noção de sujeito em Nietzsche e Heidegger” proferida como parte do II Ciclo de Conferências sobre Subjetividade: um olhar plural, realizado pelo Núcleo de Estudos em Tecnologia, Gestão e Subjetividade da UFES em 05 de maio de 2006.
50
Ao saírem dos asilos manicomiais, os ex-internos sentem diferenças sociais,
comunicativas, de espaço, de atividades, diversas relações são constituídas e outras
ficam para trás. Os egressos de hospitais psiquiátricos passam por transformações,
como nos mostra Milagres (2003), no que diz respeito à sua alimentação, mudança
de sua rotina, o contato com outras pessoas é intensificado, seus interesses também
sofrem modificações.
Quando ainda no Adauto Botelho, todos os internados recebiam a bandeja de
refeição pronta, na enfermaria – o refeitório do hospital havia sido fechado há anos.
Não utilizavam garfo e faca para alimentarem-se, porque são objetos cortantes e
considerados perigosos em um manicômio. Quando se mudaram para as moradias
extra-hospitalares os homens tinham seus pratos de almoço e jantar feitos pelas
cuidadoras da casa e eles comiam o que lhes era servido com colher, sem utilização
de garfo e faca, mantendo um hábito manicomial. Depois os estagiários e cuidadoras
se serviam. A maioria das pessoas sentava-se à mesa para almoçar, outros se
sentavam no sofá da sala ou no quarto, já que são oito cadeiras e são entre 10 e 12
pessoas para se alimentar. Os estagiários utilizavam garfo e faca nas refeições, e as
cuidadoras variavam os talheres – às vezes preferiam utilizar colher, outras vezes, o
garfo.
Em uma reunião com estagiários, cuidadoras das moradias e profissionais em
saúde menta decidiu-se que os alimentos seriam colocados em vasilhas à mesa
para que cada um se servisse – idéia de uma das cuidadoras. Segundo relatos de
estagiários nas casas, os moradores não sabiam muito bem o que fazer, ficaram
parados, como à espera de serem servidos, o que fizeram por mais de seis meses.
Os estagiários e as cuidadoras falaram para se servirem, para colocarem no prato a
quantidade que eles iriam comer. Havia certo receio, por parte da equipe técnica, de
que a primeira e a segunda pessoa, ao se servirem, pegassem toda a carne; ou que
pegassem demais e poderia faltar para os outros, já que no Adauto Botelho havia
grande disputa entre os internos pelos pedaços de carne, inclusive um pegando a
carne do prato do outro. Para surpresa das cuidadoras, eles se serviram devagar,
com cuidado, sem fazer demasiada sujeira. Garfo e faca foram colocados sobre a
mesa como possibilidade de uso para alimentação, e todos utilizaram a faca para
cortar a carne – a maioria comeu com colher e alguns seguravam a carne com a
51
mão para cortá-la. João28 relata que “comer de garfo e faca é bem mais fácil”. Não
se trata de proibir o uso da colher e exigir que seja utilizado este ou aquele talher
para alimentarem-se. A questão é permitir a escolha, as experimentações e
verificações do que é mais fácil usar para cortar, para comer; é possibilitar
aprendizagens e descobertas variadas.
Entretanto, mudanças de hábitos não acontecem de uma hora para outra.
Segundo uma das cuidadoras da casa masculina, a pessoa responsável pelo turno
da noite não colocaria vasilhas à mesa, porque seria mais trabalhoso, mais louças a
serem lavadas. Isso é uma questão que deve ser colocada e discutida entre todos
os profissionais que atuam na proposta dos dispositivos residenciais – que não visa
apenas levar os que experienciam a loucura para outro espaço fora do hospício.
Por algum tempo, pode ser que estes pacientes que saem do manicômio
sintam-se sem chão, desterritorializados, já que o território existencial que
ocupavam, enclausurados em uma instituição psiquiátrica, é desmanchado dando
lugar a uma outra realidade, que não apresenta modelos conhecidos e
experienciados por eles. A vida que eles tinham antes da internação não volta, e não
é uma continuidade linear da vida manicomial. É uma nova realidade que está sendo
constituída. Desterritorializar é embaralhar os códigos prontos no sentido de
transformar as normatizações, deslocando as fronteiras sociais, possibilitando
caminhos e construções outrora impensados. Ao relatar as aventuras de Marco Polo,
Ítalo Calvino (2003, p.30) afirma que “ao chegar a uma nova cidade, o viajante
reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você
deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos”. Andar pelas
ruas e apertar a mão dos estagiários e extensionistas por medo dos carros era uma
constante nos primeiros passeios que fizemos com Abigail29. Quando quer ir
passear, andar pelas ruas, Abigail pergunta: “quer dar uma voltinha?” Ela não afirma
seu desejo de sair, mas responde que gosta de passear quando conversarmos
sobre isso com ela. Esta moradora é uma senhora idosa, anda devagar e sempre
atenta ao barulho dos carros e às buzinas. Ela gosta de sair de casa, de passear
pelas ruas do bairro, mas não sai sozinha. As cuidadoras têm medo de que alguma
28 Morador da casa masculina. 29 Moradora da casa feminina.
52
coisa aconteça a ela e às outras moradoras como um atropelamento ou encontrar
uma pessoa que faça algum mal a elas, medo de que elas se percam...
“No momento a gente tem que levar porque pra elas irem sozinhas fica difícil né? [...] Que eu me preocupo muito com elas, de acontecer qualquer coisa... que elas andas muito despercebidas [sic] na rua, né? De acontecer um atropelamento ou alguma coisa assim, fico preocupada.”
Marta30
Um acontecimento interessante foi a primeira ida das moradoras ao shopping
center da capital do Estado, Vitória. Este estabelecimento foi construído e
inaugurado durante os longos anos em que ficaram internadas, e elas não o
conheciam. Ao se depararem com uma escada que te leva para cima ou para baixo,
se assustaram. Elas não conheciam escada rolante, não fazia parte da experiência
da vida delas. Algumas ficaram com medo e só subiram de mãos dadas com
extensionistas ou profissionais que as acompanharam. Muitas coisas nas cidades
foram transformadas desde a internação dessas pessoas. Alice, também moradora
da residência das mulheres, por exemplo, chegou ao Adauto Botelho criança e lá foi
criada, vivendo por mais de trinta anos até mudar-se para a casa onde mora
atualmente, em Itacibá.
Outra dificuldade é lidar com dinheiro: ainda falam cruzeiro, outras falam
cruzado. O real também faz parte da vida delas, porém ainda há certa confusão no
que diz respeito ao dinheiro. Rosana amarra tapetes muito bem, mas tem preferido
bordar – uma coisa nova que ela tem aprendido com algumas cuidadoras e no curso
que freqüenta uma vez por semana, na Igreja Batista do bairro. Contudo, querendo
contribuir para a geração de renda dessas moradoras, eu e o grupo de
extensionistas encontramos uma artesã que se interessou em fazer uma parceria
com as moradoras: elas amarrariam tapetes de tamanho pequeno e a artesã faria o
acabamento, forraria e faria bolsas. O custo da mão de obra pela amarração de
tapetes é por volta de R$ 2,50. Rosana fez um desses tapetinhos, com tiras de
malha mais finas e menores do que ela estava acostumada a trabalhar, mas não
gostou da experiência – levou mais de dois meses para amarrar o tapete. Ela dizia a
30 Cuidadora plantonista da casa das mulheres.
53
todos que receberia cinqüenta cruzeiros, depois ela mudava para cinqüenta reais,
pelo trabalho de amarrar um tapete de 35cm por 20 cm, aproximadamente. Várias
vezes dissemos a ela que não era esse o valor a ser recebido, mas ela parecia não
nos ouvir. Rosana, contudo, já compreende melhor valores pequenos – ela compra
cigarro a varejo na padaria e confere o troco, as “pratinhas” como ela chama as
moedas.
A construção de residências extra-hospitalares é uma possibilidade de fazer
com que os que passam pela experiência da loucura construam outras formas de
relação com as pessoas, com as comunidades, com a cidade. Essas moradias,
mesmo sendo assistidas por profissionais, permitem que os egressos de internações
psiquiátricas experienciem a vida fora dos manicômios, que assumam
responsabilidades e participem ativamente da vida comunitária, como a ida de
Rosana ao curso de bordados da Igreja Batista de Itacibá, a ida dos homens à praça
de Santana durante o dia e na feira de sexta-feira à noite, o interesse em aprender
coisas diferentes.
Fig. 5: Praça Silvino Apolinário dos Anjos, próxima à casa dos homens.
55
as normalizações do capitalismo; é nos permitir experimentar, de fato, conviver com
as diferenças, com o que não é tido como normal em uma sociedade voltada para a
produtividade como a nossa; é permitir e contribuir para que os que passam por
essa experiência possam criar projetos, outras possibilidades de vida. Nas palavras
de Lavrador
Desinstitucionalização como um processo de se separar do que estanca as intensidades, afirmando e dando passagens ao intensivo como uma potência de agir que aponta para a transformação de fazeres e dizeres (2006, p.144-145).
As naturalizações de ações, comportamentos e saberes são uma maneira de
captura. Forjando linhas de fuga,34 escapando às formas instituídas, há
possibilidades de gerir a vida de outro modo que não aquele considerado “normal”,
buscar outras possibilidades de organização, construindo alternativas sociais e
políticas, produzir outras subjetivações,35 outras formas de viver a loucura que
deixem de lado os modelos e a padronização da chamada “doença mental”.
Mudar o tratamento dos que passam pela experiência da loucura, levando-os
para fora dos muros dos hospitais, não é o suficiente. O mais desafiador e
fundamental é transformar os processos de subjetivação (não a identidade ou
personalidade) a favor da produção da diferença, permitir que o não habitual e não o
normatizado possam ser experimentados. É aí que deve estar o movimento de
resistência,36 lembrando sempre de que aprisionar a céu aberto também é possível,
se manicômios invisíveis continuarem controlando e tutelando as pessoas; e não é
essa a noção que apresentamos aqui. É importante, portanto, estarmos atentos para
o que nossas ações estão produzindo já que diversas modificações e
transformações acontecem cotidianamente, não permitindo que uma ação outrora
inovadora – como a criação dos CAPS e agora dos dispositivos residenciais – seja
cristalizada como a única possibilidade de bem estar. As moradias para egressos 34 Conceito utilizado por Deleuze e Guattari que significa a constituição de escapes às formas
instituídas, construindo possibilidades de vir a ser sob outra lógica (1972; GUATTARI e ROLNIK, 2000).
35 Para Orlandi (2001, p.29), subjetivações são processos de “constituição do próprio sujeito”. As transformações, desconstruções do já dado e formatado, o intempestivo estão relacionados aos modos de subjetivação, que “têm para com a história uma relação de processualidade e por isso não cessam de engendrar outras formas”, nas palavras de Machado (1999, p. 212).
36 Invenção de outras formas de existência; forças que modificam as relações estabelecidas (DELEUZE, 1988a).
56
dos hospitais não é a solução ótima e última para o processo de Reforma
Psiquiátrica; é um passo importante, mas não são absolutamente protegidas contra
cristalizações, por exemplo, de como morar, de como se alimentar, de como se
vestir ou de como trabalhar, se relacionar, de como viver. Como afirma Deleuze
(1992, p. 220)
Não se deve perguntar qual o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.
2.1. DESNATURALIZANDO A NOÇÃO DE DOENÇA MENTAL
Segundo Franco Basaglia (2005b) a história da loucura se confunde com a
história das modificações e evoluções dos valores, das crenças, dos sistemas de
poder que fundamentam as sociedades e suas organizações. Assim, a loucura tem
sido, por décadas, presa à noção de “‘doença mental’ objetificável, quantificável,
definível em termos científicos pela racionalidade do poder” (2005b, p.271), sendo-
lhe retirado todo sentido trágico e subjetivo para ser apenas uma doença que
precisa ser tratada. Para Basaglia (2005a) a psiquiatria asilar não se dedicava ao
doente, mas à pesquisa ideológica e construção da “doença mental” que transforma
aquele que passa pela experiência da loucura em sintomas patológicos. A noção de
“doença mental” foi historicamente construída e tida como a verdade inquestionável
sobre o sofrimento psíquico, ou seja, foi naturalizada e cristalizada.
Buscando desnaturalizar esse conceito, acabar com a idéia de que é
necessário isolar, classificar e excluir a loucura e tratá-la como “doença mental”,
Basaglia afirma que é essencial colocar essa doença entre parênteses para
enxergarmos de fato o sujeito, não só seus sintomas, ou seja, tratar a pessoa e não
a doença:
57
continuar aceitando a psiquiatria e a definição de ‘doença mental’ significa aceitar que o mundo desumanizado em que vivemos seja o único mundo humano, natural, imodificável, contra o qual os homens estão desarmados (BASAGLIA, 2005b, p.298).
Outros autores, além dos italianos, afirmam a construção histórica da noção
da loucura como “doença mental” e defendem essa desnaturalização, como David
Cooper, Ronald Laing e Thomas Szasz. Para Szasz
a adesão ao mito da doença mental permite às pessoas evitar confrontar-se com este problema, acreditando que a saúde mental, concebida como a ausência de doença mental, automaticamente assegura a escolha certa e segura na condução da vida (1977 p.29).
Nesse sentido, a não “doença mental” garantiria escolhas acertadas e adaptadas à
vida social, sem maiores questionamentos e diferenças no modo de pensar, de agir,
de viver. O diferir “atrapalha” a maneira “correta”, normalizada de viver.
Deleuze e Guattari (1972) também discutem a naturalização da “doença
mental” e trabalham maneiras distintas de lidar com o esquizofrênico: uma forma
produzida na clínica psiquiátrica, o louco institucionalizado chamado “doente
mental”, e outra como processualidade e fluxos desterritorializados, sem formas
definidas. Como processo37 (chamado processo esquizo), a loucura remete a fluxos
intensos, não codificados, embaralhados, sem um habitat, atravessando
territorialidades instituídas, problematizando cristalizações sociais, políticas, afetivas,
econômicas etc.
É o louco não institucionalizado, segundo Pelbart (2000, p.170), “quem chega
mais perto do processo, entretém com ele a mais íntima relação, com todos os
perigos implicados nessa intimidade”, que se permite sair de territórios prontos,
instituídos, embaralhar os códigos sociais, construir diferentes maneiras de viver, de
produzir, de se vestir, de agir. Nesse sentido, a loucura não é doença, mas sim,
outra possibilidade de ver, agir e viver o mundo que não os padrões normatizados
pelas regras sociais, familiares, ideológicas, políticas, econômicas. Para Cristina 37 Processo: continuum de ações e fatos que podem levar a outras seqüências de fatos e ações; não
leva ao equilíbrio permanente do já estabelecido (DELEUZE e GUATTARI, 1972).
58
Rauter, a loucura pode ser considerada “uma forma de resistência” ao poder
dominante, e “a psiquiatria é um dos mecanismos de poder que permitem
descaracterizar a transgressão à lei como oposição política, buscando dessa forma
neutralizá-la [a loucura] e perpetuar o poder dominante” (1979, p.56) ao afirmar o
“esquizo como entidade clínica” (DELEUZE, 1992, p.35).
Entretanto, segundo Deleuze e Guattari (1972), às vezes o fluxo da loucura (o
processo) chega à loucura institucionalizada (interrupção do processo para sua
“infinitização”), ficando preso, confinado no desterritorializado, no plano sem forma
onde as forças do fora se agitam permanentemente. É neste enclausuramento no
desterritorializado que a lógica capitalística38 psiquiatrizada produz o tipo
esquizofrênico a ser tratado nos hospitais psiquiátricos: o “doente mental” – que está
impedido de criar, de inventar, de resistir. Como afirma Rauter (2000, p.273), é “a
loucura como processo é que é renovadora, e não a loucura psiquiatrizada”. O
esquizofrênico, “doente mental”, produção da clínica psiquiátrica, está capturado no
seu processo de desterritorialização; nele o processo esquizo “está bloqueado ou
girando em falso” (GUATTARI, 1981, p. 84), não ganha forma, não consegue ser
renovação, invenção. A clínica psiquiátrica contribui para o impedimento da
processualidade, da força transformadora do diferir buscando trazer o louco para
uma vida considerada normal, seguindo os valores e normas sociais vigentes da
lógica dominante de produção, ou seja, reterritorializar forças e movimentos
problematizadores.
O processo esquizo é, de certa forma, uma decomposição do modo de existir
já determinado e invenção de um outro modo de existência nesse mundo
“modelizado”. Como afirma Guattari (1992, p. 106), “não se trata absolutamente de
fazer do esquizo um herói dos tempos pós-modernos” não se trata de idolatrar a
loucura. Contudo ele afirma que entender o processo esquizo, a experimentação da
desterritorialização, é fundamental para que a potência de diferenciação seja
reforçada, ou seja, para que a experiência da loucura não seja uma forma de vida
excluída e isolada do convívio social, e que os loucos assumam responsabilidades e
38 Lógica capitalística, para Guattari e Rolnik (2000), como um modo de controle que mantém a lógica
capitalista de produção também nos processos de subjetivação, além do campo da mais-valia econômica.
59
atividades dentro de suas capacidades, não mais sendo considerados, à priori,
perigosos, improdutivos e inválidos.
Entretanto, o que acontece às vezes é um processo de desterritorialização
“pura e simplesmente” que não permite um intercâmbio com as forças-fluxo no plano
do fora e paralisa os movimentos inventivos. Habitar o desterritorializado,
permanecer “girando em falso” é bastante difícil. É possível e válido deixar-se perder
o chão e as fronteiras para que novas conexões sejam constituídas, para que um
outro modo de existência ganhe corpo. Todavia, pode ser que ocorra um processo
de reterritorialização – captura das forças intempestivas, reproduzindo a lógica
capitalística de produção da vida, sem efetivas transformações, com modificações
apenas aparentes, como as psiquiatrias reformadas de que falam Rotelli, De
Leonardis e Mauri (2001). Apostamos, contudo, no risco de acolher a diferença, não
se deixando cristalizar e enclausurar num território formatado e identitário, mas
permitir um
pensamento permeável à desrazão [...], praticar um trânsito com tudo aquilo que os loucos nos sugerem, embora eles mesmos, por estarem imersos nesse funcionamento exclusivo, tenham sido reduzidos a corpos passivos e impotentes (em sua forma manicomial cronificada os loucos não mais evocam a desrazão, a não ser de longe e residualmente, mas a morte) (PELBART, 1993, p. 107).
Pelbart (1991, p.133) esclarece que loucura, nesse sentido, é entendida como
desrazão, “uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a
alteridade radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como o seu limite, o seu
contrário, o seu outro, o seu além”, o que não foi naturalizado e possibilita discordar,
estremecer as instituições sociais, políticas, afetivas, econômicas, sexuais,
produtivas etc para diferentes modos de vida.
Análises desenvolvidas por Deleuze e Guattari (1972), Pelbart (1993) e
Foucault (2004) sobre o deslocamento da “loucura-desrazão”39 para a “loucura-
39 Expressões utilizadas por Maria Cristina Campello Lavrador em seu projeto de qualificação de
doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo em 2003.
60
doença mental”39 assumem um papel importante no trabalho proposto, na medida
em que demonstram como a desrazão tem sido enclausurada, assumindo a forma
de loucura instituída. Loucura-doença mental é o confinamento de uma figura social
reclusa – o louco institucionalizado. Loucura-desrazão é o que é exterior ao homem,
não é o negativo da razão; é relacionamento com o fora sem nele ficar preso, é
possibilidade de serem forjados outros modos de existência, diferentes territórios
existenciais.
Não se trata aqui de fazer uma glorificação à loucura, mas analisar de que
maneira a relação com a loucura-desrazão vem sendo afastada, e mesmo impedida,
pelo enclausuramento da loucura na forma de “doença mental”. Como afirma Pelbart
(1993), inventar, pensar o intempestivo, o não formatado, é deixar-se contagiar pelo
desatino, é pensar próximo à tênue fronteira da loucura. Essa experimentação
possibilita escapar às limitações, às certezas, às verdades absolutas; e esse é um
pensamento da resistência.
Consideramos importante desmanchar verdades impostas, experimentar
novas práticas, analisar criticamente o que vem sendo proposto, permitir criações e
produção do diferir a partir de uma ética que traga potência para os territórios de
expressão, que supere a mortificação dos modelos formatados e fechados às forças
intensivas, afirmando a vida nas ilimitadas possibilidades de expansão e invenção.
Saber e objeto de conhecimento, então, não são absorvidos como já dados e
definidos, mas, se constituem mutuamente nas experimentações, na construção do
caminho de luta pela desinstitucionalização da loucura.
Em instituições de saúde mental ainda é muito presente a medicalização
exagerada e, muitas vezes, o descaso para com os pacientes e usuários,
reforçando, assim, a noção de “doente mental” e a busca pela reterritorialização dos
loucos a modelos já construídos e dados pela lógica capitalista, como a certa
tradição de família, de trabalho, de moradia, de lazer e de responsabilidades. Ao
invés de seguir os modelos asilares, o processo de Reforma Psiquiátrica busca
intervenções sobre a experiência da loucura que sejam experimentações provisórias,
que possibilitem o contato com o lado de fora, que resistam à forma asilar-
manicomial em todos os espaços-tempo sociais, não só dentro dos muros dos
61
hospitais, serviços substitutivos e casas para ex-internos em manicômios. A
construção de moradias para egressos de hospitais psiquiátricos é uma outra
possibilidade de fazer com que os loucos constituam novas maneiras de se
relacionar nas comunidades, nas cidades. Essas residências, mesmo sendo
assistidas por profissionais, permitem que os que passam ou passaram pela
experiência da loucura experienciem a vida fora do manicômio, que assumam
responsabilidades e participem ativamente da vida nas cidades, fora dos muros
hospitalares. Há uma direção, mas não sabemos o que de fato vai acontecer. O que
será construído e efetivado deve ser continuamente analisado: as discussões, as
escolhas, os caminhos e as atividades – análises de todo o processo de Reforma
Psiquiátrica para que novos modelos não sejam cristalizados. Nisso consiste o
método da cartografia – articulação de outros saberes, de diferenciação, não
aceitando a realidade como uma verdade a ser descoberta, mas como realidades a
serem construídas.
2.2. TRANSFORMAÇÃO CULTURAL COTIDIANA
A noção de loucura como “doença mental” que precisa ser tratada em
espaços próprios é herança do saber médico-psiquiátrico. O processo de Reforma
Psiquiátrica, como já discutimos anteriormente, vem buscando desnaturalizar a idéia
de periculosidade e incapacidade dos que passam pela experiência da loucura.
Nesse sentido, é importante problematizarmos a questão sobre a saída dos loucos
dos manicômios: esse processo de desospitalização vigente no Brasil garante a
extinção da idéia de perigo, irresponsabilidade e peso que a loucura apresenta?
Baptista (1999) afirma que o processo de Reforma Psiquiátrica não é
responsabilidade apenas dos profissionais psi – as discussões devem, então, ser
ampliadas para diversos ambientes sociais, já que as pessoas egressas dos
hospitais estarão circulando em diferentes caminhos da cidade e em distintos
estabelecimentos. Afinal, como afirma Suely Rolnik (1997, p.29), “não há
subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente,
62
não há cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo seu perfil.
A rigor, é impossível dissociar essas paisagens”. Nesse sentido, o trabalho de
desinstitucionalização da loucura não deve ser limitado aos manicômios, CAPS,
Hospitais-Dia, Dispositivos Residenciais, ambulatórios, hospitais em geral, mas
também nos demais espaços sociais – mercados, lojas, parques, cinema – a fim de
permitir a troca com a desrazão e a abolição dos “manicômios invisíveis”.
Sandro, que mora e trabalha próximo à casa das mulheres em Itacibá, por
exemplo, mudou um pouco sua opinião sobre os pacientes psiquiátricos:
“porque eu pensava que lá, pacientes do Adauto, seria bem ruins, né? Elas não, elas são boas [...]. A gente pensou que seria uma coisa assim de anormal, né? Mas, até então...está sendo tudo maravilha, tudo calmo, tudo tranqüilo. As meninas não têm nenhum problema, elas saem na rua normalmente”.
Ao conviver com egressos de manicômios é possível alterar o estereótipo de
perigoso e incapaz. Mas a fala de Sandro retrata a condição de normalidade
desejada para a vida em comunidade, ou seja, estar bem, estar tranqüilo, ser uma
boa pessoa, não gritar, não estar agitado ou nervoso. Será que, se um dia, duas
moradoras discutirem sobre alguma coisa, sobre quem vai ficar com a bolsa azul
que ganharam, ou sobre quem vai fazer o tapete com as tiras pretas e brancas, elas
serão taxadas de loucas ou será uma discussão entre pessoas que moram na
mesma casa? Alguns de nós, considerados normais, nunca brigou com o irmão (a)
para não lavar a louça, ou usar o carro do pai no sábado à noite? Nunca gritamos
por estarmos nervosos e agitados? Sandro acredita que está tudo bem em ter
vizinhos que vieram do hospital psiquiátrico, porque elas não “perturbam em nada”.
Está tudo bem por que elas são quietas e adaptadas? Para de fato se inserirem na
sociedade, é preciso que os moradores dessas casas se adaptem ao que é aceito e
que estejam adequados ao sistema social?
Sandro não acredita que as pessoas que saíram do Adauto Botelho possam
assumir responsabilidades e participar das atividades da comunidade:
“Sozinha não. Tem que ter uma pessoa, alguma pessoa da família, alguma pessoa ajudando, perto delas”.
63
Ainda há uma certa infantilização. Elas não vão, por exemplo, à feira sozinhas
com dinheiro na bolsa para fazer compras para a casa – mesmo porque elas não
acompanharam tantas modificações na nossa moeda e, talvez, tenham
“desaprendido” os ingredientes e temperos para preparar o almoço, sendo que
existe a possibilidade de nunca terem aprendido, já que algumas mulheres, por
exemplo, foram internadas ainda crianças. Mas com o tempo, sendo acompanhadas,
observando, perguntando, fazendo junto com alguém, os moradores conseguirão
realizar diversas atividades e assumir responsabilidades.
Dulce,40 em uma reunião com estagiários, extensionistas e cuidadores da
casa masculina afirma que os funcionários têm "excesso de responsabilidade” e que
se o morador sai de casa desacompanhado o funcionário fica logo preocupado. Ela
falou da experiência de Cintia41, que deu dinheiro para Rosana comprar refrigerante
na loja de conveniência do posto de gasolina a dois quarteirões da casa. Já que
adora sair, Rosana foi prontamente. Mas demorou a voltar, e Cintia foi atrás dela, no
posto de gasolina, e não a encontrou. Houve um desencontro, e a cuidadora ficou
muito preocupada. Ao voltar para a casa, Rosana estava lá contando o que havia
acontecido: o refrigerante na loja de conveniência do posto estava muito caro e ela
resolveu comprá-lo no supermercado, que é em outra direção.
“O meu medo, de Marta, Nazareth, é as meninas se perderem, de acontecer alguma coisa”.
Cintia
É por isso também, que as cuidadoras não deixavam Rosana participar do
curso da Igreja Baptista sozinha. Só era permitido que ela fosse, se um estagiário ou
algum responsável por ela, a acompanhasse. O hábito de que os moradores dos
dispositivos residenciais ainda não sabem fazer as coisas é difícil de ser destruído.
“Tem essa coisa de rigidez da instituição. É muito difícil perder isso [...]. Às vezes o nosso medo é que atrapalha”.
Jandira
40 É enfermeira e participa da equipe de implantação das residências. 41 Cuidadora (plantonista) da casa feminina.
64
Ao relatar como faria para ir ao CAPS sozinha, Rosana fala que iria de
ônibus. Ela diz que entraria no ônibus em frente ao posto de gasolina, e que pediria
ao motorista para parar em frente ao Adauto Botelho – o que todos fazemos quando
andamos de ônibus para lugares que não conhecemos bem: pedimos informação e
ajuda. Rosana lembrou de Geraldo, um extensionista da UFES, que acompanhou
algumas das moradoras da casa em Itacibá ao CAPS, nos primeiros meses de vida
na residência e, na volta, pegaram o ônibus errado, perderam-se, atrasaram-se, mas
chegaram todos bem e rindo de volta à casa. Rosana se refere a ele como “Geraldo,
aquele que pegou o ônibus errado”. Todos nós podemos nos perder...
Ainda falando sobre experiências de vizinhos, próximo à casa dos homens,
em Santana, há a padaria de Jonny – próxima, também, à praça do bairro. Os
moradores costumam freqüentar esta padaria, quando vão dar uma volta na praça,
ou vão lá comprar um cigarro ou um café. Jonny já se acostumou com eles e diz que
“estranho que os cara é louco [sic]. Mas tem nada de louco não [...]. Eu acho que já tá equilibrado já, a situação deles [...]. São pessoas normais, normais igual as outras. Não tanto normais porque são... efeito de remédio, alguma coisa ainda, mas dá pra conviver com eles sim”.
Jonny acredita que o hospital psiquiátrico
“pode ser revertido para outro tipo de hospital, atendendo psiquiatria também. Depender só de psiquiatria, e fazer choque elétrico, como funcionava antigamente, acho que isso aí não funciona. Nunca funcionou”.
Há mais de dois séculos a loucura vem sendo considerada como uma doença
perigosa, devendo ser isolada do meio social. Como ultrapassar, então, o
preconceito contra o louco? Barros e Josephson (2001, p.64) respondem: “...
investindo na desconstrução do preconceito por meio do convívio e do contato”. Ou
seja, agindo de forma tal que aqueles que passam pela experiência da loucura
possam assumir responsabilidades e autonomia naquilo em que são capazes,
agindo junto à sociedade, construindo redes de relações e projetos de vida. Para
que isso aconteça, não basta prescrever normas, outorgar leis e sancionar portarias,
65
que são importantes, mas não por si só. São as ações do cotidiano, as discussões
do dia-a-dia é que levam às transformações. Jonny, o dono da padaria, parece saber
disso.
Segundo Foucault, a vida das pessoas muda devido a inúmeros movimentos,
não apenas devido à legislação e aos partidos políticos e suas práticas. Citado por
Castelo Branco42 (2000, p. 323), ele afirma:
Esses movimentos sociais transformam verdadeiramente nossas vidas, nossa mentalidade e nossas atitudes, assim como as atitudes e a mentalidade de outras pessoas – pessoas que não pertenciam a esses movimentos. Aí está alguma coisa muito importante e positiva.
Nesse sentido, percebemos a importância do movimento de Luta
Antimanicomial para a destruição da lógica de exclusão e isolamento dos que
passam pela experiência da loucura, para desmanchar os “manicômios invisíveis”
em nossa sociedade.
As transformações sociais ocorrem a partir de vivências e experiências do dia-
a-dia. São as práticas cotidianas que nos incomodam, que nos inquietam e com isso,
experimentamos algumas outras maneiras de agir, de reagir ao que está colocado e,
muitas vezes, naturalizado. Nesse sentido, não são apenas normas e prescrições
que modificam uma dada sociedade.
A experiência italiana vem servindo de referência ao movimento de Reforma
Psiquiátrica no Brasil, principalmente a partir da vinda de Franco Basaglia ao Brasil
em 1978 e do fechamento definitivo do Hospital Psiquiátrico San Giovani em Trieste,
em 1980. O modelo assistencial italiano busca resgatar a autonomia, a dignidade e a
cidadania dos que passam pela experiência da loucura, agindo nos territórios43, não
apenas em espaços específicos de assistência e tratamento.
O movimento de Luta Antimanicomial e o processo de Reforma Psiquiátrica
brasileira, através de contatos e trocas de experiência com o Movimento de
42 apud FOUCAULT, M. Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de l’identité, In:
Dits et Écrits, vol. IV, 1984, p. 746. 43 A noção de território será discutida no terceiro capítulo.
66
Psiquiatria Democrática Italiana, têm buscado ampliar os espaços de discussão, de
análise e de propostas para a melhoria do cuidado e assistência aos chamados
loucos e seus familiares. A fim de minimizar o sofrimento, o preconceito e a exclusão
dessas pessoas, procura-se trazê-las de volta dos manicômios para a cidade,
possibilitando novos vínculos, trocas com outras pessoas e outros serviços,
investindo também na invenção e construção de maneiras de viver que não aquela,
infantilizadora e de tutela dos asilos, nos quais estavam enclausurados, e sim,
incentivando responsabilidades e autonomia. Segundo Milton Santos (2003, p. 131),
quanto mais diferentes são os que convivem num espaço limitado, mais idéias do mundo aí estarão para ser levantadas, cotejadas e, desse modo, tanto mais rico será o debate silencioso ou ruidoso que entre as pessoas se estabelece. Nesse sentido, pode-se dizer que a cidade é um lugar privilegiado para essa revelação.
O contato e convívio entre diferentes pessoas e idéias enriquecem relações e
é capaz de transformar idéias, projetos sociais e de vida. Ao falar sobre a idéia de
loucura, Jonny afirma que
“mudou. Não é o bicho que o pessoal fala não. É distúrbio que dá na cabeça do cara; o cara fica... fica maluco. Ele toma um remédio, ele melhora. Não melhora 100%, mas ele vai...”
Diferentes relações e contatos levam a diferentes interesses e
comportamentos. As enfermarias pré-lares existem no Adauto Botelho para iniciar o
trabalho de saída do enclausuramento manicomial trabalhando autonomia, tarefas
de casa, cuidados com a higiene, novas relações, dentre outras coisas que eles não
faziam há anos.
“Na ressocialização como um todo a gente trabalha autonomia, de uma certa forma, alimentação, cuidado das roupas, armário. Mas aí vai pro pré-lar, tem que dar melhores condições [...] porque não tem armário pra todo mundo, tem roupa individualizada, mas a gente não pode fazer esse trabalho forte com todos [...]. Aí passa pro pré-lar pra estar avançando nesse tipo de trabalho mais pra rua, mais pra andar, aprender a cuidar da própria roupa [...]. Fora os pré-lares a roupa não é individualizada [...], aquele negócio de roupa marcada, com uma identificação da enfermaria, não do nome da pessoa. Então você pega uma calça aqui, amanhã é outro que está vestindo. Então não tem nada seu. E essa questão de estar dando voz, a gente começou aqui [nas pré-lares], mas ‘eu quero isso, aquilo’ aqui [no hospital] é muito assim, a pessoa
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[técnico] acha que é... que ele [paciente] está muito cheio de vontade, quando ele quer escolher uma cor, uma roupa.”
Jandira
“Esses pacientes que foram para as residências já estavam aqui [no hospital psiquiátrico] quando eu entrei no Adauto. Vivem aqui uma vida inteira. Perdem a noção do dinheiro, de convívio com a sociedade, como vive um cidadão, perde tudo, ele perdeu tudo. Então você tem que retomar isso, ensinar desde a higiene pessoal... até isso ele perdeu, esse vínculo. Ele não sabe escovar os dentes, ele não sabe tomar banho direito, ele não sabe escolher uma roupa. Você tem que começar do começo. Igual você pegar um neném que está começando, uma criança, a andar os seus passos. Passo a passo você vai ensinando [...]. Você tem que trabalhar a realidade de lá [do dispositivo residencial].”
Dulce
A vida nas pré-lares é bastante diferente da vida nas casas – o espaço físico,
as atividades que podem realizar, os diferentes contatos e vínculos que são
constituídos, as re-descobertas e novas descobertas.
“Hoje a gente sabe que os internos podem ir pras residências, porque a evolução vai ser lá. Não dá para julgar essa autonomia aqui dentro [do Adauto Botelho], porque as leis são outras.”
Jandira
“Creio que elas melhoraram bastante [...]. Quando elas vieram pra cá [para a casa] elas eram assim, mais... principalmente a Alice. De vez em quando começava essas coisa dela... acontece os dengo dela, mas dá pra relevar, né? Agora graças a Deus vir pra cá melhorou... 50%. Graças a Deus melhorou muito”.
Marta
Enquanto ainda internados no manicômio não era permitido ter vontades,
desejos. Não era permitido escolher a roupa, nem o almoço, nem a hora de tomar
banho ou de assistir à televisão, nem se queria ou não, participar das atividades da
68
terapia ocupacional. Nas enfermarias pré-lares existem regras de limpeza, de
organização, de onde colocar a roupa suja, de arrumação das camas, dentre outras
normas. Se um desses internos não coloca a roupa no cesto, há uma ameaça de ele
voltar para a enfermaria comum, dele não mais ser “o escolhido” para ir às moradias
extra-hospitalares, porque “está muito rebelde”, e até mesmo, de sofrer alguma outra
punição. Ainda segundo relato da assistente social Jandira, os técnicos do hospital
costumam
“falar que a gente estraga o pessoal [paciente], que é culpa da gente que eles estão cheio de vontades. Então essa coisa assim ‘eu quero minha cama’, ‘eu quero chinelo’, ‘eu quero ir passear’, ‘eu quero ir pra minha casa’, ‘eu quero ligar ou escrever pro meu pai’, isso não era permitido. Então na casa eles assumiram tudo isso que aqui [no hospital] a gente faz uma tentativa, mas tem toda a coisa da instituição que não deixa”.
Mais adiante Jandira complementa:
“toda vez que eles tentavam fazer essa coisa de autonomia, apesar de a gente estar trabalhando autonomia, algumas pessoas até chegavam assim, como se fosse uma punição, punir: ‘ah, vou prender, tá rebelde’ [...]. Os homens [da casa masculina], apesar de andarem, têm aquela coisa assim, logo a princípio, ‘eu posso ir ali?’, de pedir permissão.”
As pessoas que deixaram de morar no manicômio para habitar as
residências, como abordado anteriormente, foram escolhidas pela equipe
responsável pela implantação das moradias extra-hospitalares, seguindo critérios de
autonomia para realização de atividades diárias como a higiene pessoal, o cuidado
com a casa, o convívio com os outros moradores e na comunidade. Entretanto, as
cuidadora, da casa das mulheres acreditam que uma das moradoras não estava
preparada para sair do hospital, como demonstra a fala de Verônica:
“Domitila44 não estava preparada, porque você vê: quando você está conversando com ela, tem horas que ela viaja, que ela não fala coisa com coisa. E as outras não são assim. Ela tem vezes que ela não fala coisa com coisa; ela tem uma reação que ainda é de lá [do Adauto Botelho].”
44 Moradora da casa feminina.
69
Na casa dos homens também havia aquele que não se adaptaria:
“quando nós viemos para cá [para a casa masculina], o que tinha mais dificuldade era o Cristóvão.”
Simone
“E o Cristóvão, eu imaginei que ele nunca fosse progredir na vida, e melhorou quase 100%.”
Judith45
“Ele [Cristóvão] não falava coisa com coisa e mudou até nisso.”
Jandira
As cuidadoras e a equipe de coordenação das residências afirmam que teve
melhora na vinda dos ex-internos para as casas:
“Eu acho que eles se integraram bem na comunidade, na casa, tomaram conta da casa mesmo. Porque eles ficaram anos sem ter direito a nada aqui [no hospital].”
Jandira
“Melhoria delas? Higiene com o corpo dela. Também educadas na hora da alimentação. Na limpeza da casa. Melhoraram 100%.”
Verônica
“Lá [no Adauto Botelho] eles não tinham nada pra fazer [...]. Os funcionários fazendo tudo. Aqui não, eles tiveram uma diferença boa sim.”
Simone
45 Cuidadora plantonista da casa dos homens.
70
Essas falas e diversas transformações que têm acontecido, mostram-nos que
sair “prontos” de um espaço de enclausuramento como o hospital psiquiátrico, não é
realidade. Ao falar das regras e exigências que alguns funcionários impõem para os
internados nas enfermarias pré-lares, Jandira afirma que:
“a gente não quer que ele fique pronto aqui [no hospital]; aqui é muito perverso.Estar pronto aqui é não estar pronto.”
O processo de Reforma Psiquiátrica visa reabilitar aquelas pessoas excluídas
do convívio social, o que, conforme afirmou Saraceno (1999) não quer dizer
substituir a “desabilitação” pela habilitação. Para este autor, é necessário que haja
“um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as oportunidades de troca de
recursos e de afetos: é somente no interior de tal dinâmica das trocas que se cria um
efeito ‘habilitador’” (1999, p.112). No manicômio não há espaço para trocas de
recursos, sociais ou afetivos. Ainda segundo Saraceno, existe um “mito da
autonomia”, ou seja, uma idéia de que aqueles mais “autônomos” podem participar
dos programas de reabilitação, e aqueles “não autônomos o suficiente”, aqueles que
não estão bem adaptados às regras, os “menos dotados”, devem passar por
processos de retomada da autonomia em espaços que não permitem, de fato, o
exercício da autonomia e da cidadania. Como afirmaram profissionais, técnicos,
estagiários e extensionistas que trabalham nas casas, as mudanças ocorrem na
experimentação, no dia-a-dia.
Através, então, do contato diário, das atitudes, das relações e vínculos
construídos, acreditamos que a idéia de loucura enquanto forma de vida
enclausurada, pode ser desmanchada, desmantelada, dando lugar a outras
possibilidades de viver, de adquirir novas experiências. Como afirma Sahlins (1990,
p. 11), “as pessoas à medida que se tornam socialmente capazes deixam de ser
escravos de seus conceitos para se tornarem seus senhores”. Nesse sentido, os
egressos dos hospitais psiquiátricos não são mais considerados loucos incapazes,
mas outras possibilidades de existência, de vida podem ser constituídas como, por
exemplo, ser visto como aquele que toma remédio psiquiátrico, que faz lindos
tapetes para vender, que joga futebol com as crianças na praça, que pode vir a
limpar piscinas da vizinhança.
71
2.3. DESNATURALIZANDO HÁBITOS DE TRABALHO
Ao falar das dificuldades sobre o processo de implantação dos dispositivos
residenciais em Cariacica, Jandira aponta a falta de investimento do setor público e
a questão cultural dos profissionais da área de Saúde Mental. Para ela, os
profissionais “caíram de pára-quedas” no Adauto Botelho e “não vestem a camisa”
do trabalho, das propostas sociais e políticas.
“A grande maioria está [trabalhando no Adauto Botelho] por acaso, não se identifica. Então é muito complicado porque... essa pessoa está sempre reclamando da situação [...]. Não ajuda porque tudo coloca empecilho. O que poderia ser mais fácil, ‘vamos tentar’, ‘vamos lutar’, pode ter até uma dificuldade, mas aí é uma coisa assim... não muda. Ninguém gosta de mudança aqui, não gosta de gente de fora.”
Um dos obstáculos, portanto, para a constituição do processo de Reforma
Psiquiátrica no Espírito Santo são pessoas que trabalham no Hospital Adauto
Botelho, que não acreditam nos processos de desospitalização e
desinstitucionalização da loucura. “Pois uma reforma não pode ser promovida
apenas de fora, no patamar das superestruturas e dos decretos institucionais, se
não for também feita de dentro, pelas aspirações daqueles que afinal vão efetuá-la”
(BARBIER, 1985, p.127). Profissionais das diversas enfermarias e das pré-lares
afetam os internados, os que vão para as residências fora do hospital, os técnicos
chamados para trabalhar nas casas.
“Inclusive algumas pessoas falavam até com os pacientes que iam sair que isso era uma manobra do governo para tirar eles daqui [do Adauto Botelho], que eles já estavam há muito tempo, e iam deixar eles desamparados fora. Até hoje ele acham isso.”
Jandira
Scarcelli (2002) apresenta algumas das preocupações dos trabalhadores em
saúde mental em relação à saída dos internos em manicômios: essas pessoas
conseguirão se adaptar à uma nova vida longe dos cuidados e proteção hospitalar?
72
Conseguirão assumir responsabilidades e alguma ocupação, um trabalho?
Conseguirão administrar o tratamento medicamentoso? Conseguirão cuidar de si e
de sua moradia? Há receio de que haja um “desassistir” daqueles que saem do
hospital psiquiátrico. E não é isso que se propõe. De fato os cuidados não serão
mais os mesmos, nem as atividades diárias serão iguais. Essas pessoas serão
atendidas e assistidas nos Centros de Atenção Psicossociais, nas Unidades de
Saúde e em outros serviços disponíveis para a população, além de uma equipe de
profissionais responsável pela manutenção das casas – alimentação, contas a pagar
e qualquer assistência das quais moradores possam precisar.
É importante ressaltar, como afirma Andréa de Carvalho (1996), que a equipe
de trabalho deve estar atenta para não ocupar o lugar de saber o que é bom para
todos, não ocupar o lugar de desejar pelos moradores. Cada um de nós,
profissionais, estudantes, moradores, tem desejos e demandas diferentes, bem
como dificuldades variadas – há diversidade de idéias, de desejos, de vontades,
demandas, dificuldades, saberes, alegrias, tristeza, conquistas... São vidas
diferentes.
Mudanças de hábitos não se dão da noite para o dia. Concordando com
Scarcelli (2002), os egressos do hospital e os trabalhadores devem estar atentos e
alterar os hábitos – não mais esperar o técnico dizer para comer, para tomar banho,
para ir para alguma atividade; não mais exigir que os moradores acordem em horário
pré-determinado, ou que durmam em tal hora, que tomem banho agora, dentre outra
regras institucionais. O cuidar, nos dispositivos residenciais e nos CAPS é de outra
ordem. Contudo, como afirma Delgado (2003), os profissionais em saúde mental
enfrentam dificuldades pela insuficiência da rede de assistência, pela rejeição aos
pacientes psiquiátricos na rede de saúde – unidades básicas e hospitais gerais. E,
como afirmou Jandira, enfrentam preconceitos e descrença de profissionais da
equipe do Hospital Adauto Botelho.
Para a inauguração das primeiras casas, houve dificuldade em encontrar
profissionais dispostos a trabalhar nas residências. Havia o medo de perder o
vínculo com o hospital, e inclusive, de perder o emprego. De início, por exemplo,
Simone se interessou, segundo Jandira, por ser um trabalho diferente, inovador.
73
“Mas como tinha aquela corrente contra: ‘isso não vai dar certo’, na última hora, na hora da inauguração, ela desistiu, porque ela ficou com medo. Aí a gente mandou ela [sic] obrigada, tipo assim: ‘você vai, se você não gostar a gente vai arranjar outra pessoa’. Ela foi muito insegura, com medo. No início ela não se adaptou. Aí, nessas conversas, nesse trabalho do dia a dia, ela não fala mais em sair.”
Outros profissionais também passaram por essa dúvida e hoje gostam do
trabalho realizado nas casas.
“Eu nem queria vir [para as casas]. Sinceramente, eu não tava querendo vir não. Na última hora eu desisti, tava desistindo. Mas eu resolvi vir, gostei e agora não quero mais sair. Só se me chamarem de novo...”
Marta
Segundo Dulce, há necessidade de preparar os profissionais que atuam nas
moradias discutindo as propostas do processo de Reforma Psiquiátrica, as
mudanças e transformações no modo de trabalhar, de assistir, de ajudar, de cuidar;
o lugar que a loucura vem ocupando na sociedade e, o que esses dispositivos
propõem.
“Eu costumo dizer que os funcionários, os cuidadores, deveriam ser preparados antes pra fazer esse trabalho. Porque nós tivemos uma dificuldade muito grande com relação aos cuidadores. [...] Para ir pra residência tem que ter um perfil específico, tem que gostar muito do que faz, de ter essa visão, de aceitar as diferenças, de gostar do novo, de estar preparado para as mudanças.”
Dulce
Para Rotelli, De Leonardis e Mauri (2001) os trabalhadores em saúde mental
acostumados ao manicômio, devem “aprender a aprender”, já que a Reforma
Psiquiátrica visa diversas mudanças no cuidado, na assistência, no lidar com os que
passam pela experiência da loucura. Nas casas, os técnicos não estão mais
mediando as relações entre a instituição e pacientes; outras mediações entre
sujeitos egressos de hospícios e a sociedade são necessárias. Segundo Nicácio
74
(1994) é como se houvesse uma abertura, uma expansão das relações entre técnico
e usuário que envolve agora questões de trabalho, de família, econômicas, civis, de
morada, jurídicas, dentre outras. Se os conhecimentos técnicos, os fazeres, as
atitudes permanecerem como acontecia no manicômio, haverá, nas palavras de
Saraceno, “reprodução no lugar de produção de sentido, ou seja, produção de
saúde” (2001, p.153), ou seja, o louco “doente mental”, perigosos, incapaz, que
atrapalha e é improdutivo, permanecerá presente nas casas, nas ruas, nas lojas, nas
concepções dos cidadãos. É necessário, portanto, que a mudança de atitudes em
relação ao programa de casas extra-hospitalares e em relação à loucura deva ser
trabalhado em todos os espaços, dentro e fora dos muros hospitalares, junto aos
profissionais atuantes diretos e nos espaços abertos a todos – praças, ruas, lojas,
padarias, igrejas... Segundo Lavrador e Machado
a experimentação de um novo modo de cuidar envolve, antes de tudo, uma disponibilidade objetiva e subjetiva de afetar e ser afetado. O que implica colocar em análise as nossas posturas, as nossas concepções, os nossos preconceitos, os nossos endurecimentos (2005, p.24).
São muitas as experiências em saúde mental que vêm lutando para
desconstruir essa lógica dominante de dominação que impregna nossas atitudes,
idéias e sensações. É uma luta constante, difícil e cheia de surpresas diferenciar a
história de um diagnóstico de “doente mental”, de uma história de vida. As belas
palavras de Fernanda Nicácio demonstram um pouco dessa luta e dos infinitos
afetos presentes:
O campo de incerteza que se abre, a necessidade de reconstruir a história, de elaborar e criar múltiplas estratégias para não excluir, de superar as categorias preestabelecidas de análise e resposta, de a todo o momento se perguntar como fazer [...], de viver o papel do técnico como algo a ser construído, das crises geradas na construção de um serviço aberto [...] é sem dúvida rico e incerto (2001, p. 13).
Existem dificuldades e mesmo descrença, às vezes, mas tem sido um
trabalho de luta cotidiana, de dúvidas e conquistas. As gratificações não são poucas.
Um telefonema de uma moradora que não sabia falar ao telefone avisando que o
tapete estava pronto; as perguntas dos moradores sobre o benefício que receberiam
75
– que só foi liberado depois de mais de um ano que haviam se mudado do Hospital
Adauto Botelho para as casas; um morador dizendo que quer ver o filho no estado
do Rio de Janeiro quando o benefício sair, depois de anos sem notícias; uma outra
moradora que quer aprender a ler e a escrever, dentre outras coisas da vida;
moradoras que, depois de mais de um ano, andam sozinhas pelo bairro, compram
perfume e roupa na feira de sábado, com o dinheiro que recebem e que vão ao
CAPS e a outros lugares sem ter a obrigatoriedade de ter um “responsável”
acompanhando-as. Tudo isso é gratificante e exige um trabalho lento, árduo,
querido, diversificado e rico por parte de cada integrante do processo de luta
antimanicomial.
CAPITULO 3
ATUANDO NO TERRITÓRIO:
EXPLORAÇÕES A PARTIR DE
UM DIÁRIO DE CAMPO
“Os espaços se misturam”.
Ítalo Calvino
77
A saúde pública no Brasil, seguindo os parâmetros do Sistema Único de
Saúde (SUS), vem afirmando e efetivando a constituição de territórios para o acesso
e atendimento da comunidade aos centros e postos de saúde. É necessário
discutirmos um pouco esse conceito que veio da Geografia.
Para o geógrafo Milton Santos (2003), o território é mais que um espaço físico
e geográfico para ações, é mais que um recurso; é também espaço de emoção, um
abrigo – são dois movimentos concomitantes. É um espaço “de experiência sempre
renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a
indagação sobre o presente e o futuro” (SANTOS, 2003, p.114). Por não ser apenas
um meio de circulação, o território não se confunde com a noção de espaço, porque
é a ação das pessoas que o caracteriza, é o uso que fazemos dele que de fato
importa. Segundo M. Souza (2002, apud OLIVEIRA, F., 2004) o território é de
caráter político, já que se trata não do espaço em si, mas das relações nele
projetadas, da apropriação daquele espaço. Não é estático, pronto e determinado,
mas está em constante transformação, de acordo com as ações cotidianas e as
relações nele constituídas. Nesse sentido, as transformações sociais acontecem no
território. Para Ewald, Bravo e Gonçalves “o próprio espaço físico é significativo
quando referenciado aos intercâmbios sociais donde recebem seu sentido” (2005,
p.07).
Na década de 80, segundo Oliveira (2004), o processo de Reforma Sanitária
no Brasil levou ao processo de descentralização das ações de saúde, ou seja, as
intervenções e decisões deveriam ser a nível local. Daí a importância da discussão
da noção de território na área da saúde – não se restringindo à divisão geográfica,
mas atentos às redes de relações e às ações constituídas no território.
Percebe-se que, contrapondo-se às estruturas tradicionais, o modelo territorial vai muito além dos limites geográficos, pois permite uma organização da rede de saúde partindo de um contexto histórico particular, refletindo tudo o que uma população produz [...]. Os serviços passam então, a ter a incumbência de buscar modificações sociais, de superar a simples assistência e a incorporar uma nova forma de cuidar que ultrapasse os muros institucionais (CABRAL et al, 2001, p.138).
78
A equipe profissional deve atuar de fato no território, não se restringir à
unidade de saúde ou ao serviço em que atua. É necessário conhecer a vida, os
problemas as resistências e criações daquele território, ou seja, fazer parte daquelas
relações. Fernanda Nicácio (1994, p.96) afirma que “a inserção territorial implica
conhecer a região globalmente, as necessidades dos usuários, o percurso da
demanda psiquiátrica, conhecer e intervir nas organizações institucionais, descobrir
recursos, potencialidades.” Não basta haver um estabelecimento, um serviço de
assistência em saúde mental se não há troca, se não há intercâmbio entre este
serviço e o território. A construção de vínculos e alianças é fundamental para uma
boa relação entre o local de assistência e cuidado à saúde, seus trabalhadores, e a
comunidade. A rede construída deve ser mais ampla e complexa do que ser apenas
diferentes locais de atendimento naquela área de abrangência. Segundo Oliveira o
serviço deve “ir ao encontro da vida daquele sujeito, ao lugar onde essa vida se
realiza; eis o significado de penetrar no território” (2004, p.107, grifo do autor).
O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, como já discutido
anteriormente, é influenciado pela proposta italiana de Franco Basaglia, Franco
Rotelli, dentre outros. Tendo como base a experiência de desinstitucionalização em
Trieste, que culminou no fechamento definitivo do Hospital Psiquiátrico San Giovanni
em 1980, Dell’Acqua e Mezzina afirmam que não é o próprio paciente que busca o
Centro de Saúde Mental46; os técnicos, chamados de ‘operadores’, vão ao encontro
do sujeito nos lugares de contato, ou seja,
lugares de vida do paciente (a sua casa, o bar, o lugar de trabalho, etc) e os intermediários serão as pessoas significativas do seu ambiente. O serviço se mobiliza com a máxima flexibilidade para este fim, sem protocolos de intervenção pré-constituídos, ou mesmo ‘equipes especiais’ de intervenção (DELL’ACQUA e MEZZINA, 1991, p.61).
Os técnicos estão presentes no território, o qual é atravessado por diferentes
crenças, atividades e interesses, para lidar com a complexidade existencial dos
sujeitos, e a população conhece os diversos serviços e as propostas do processo de
46 Em Trieste, Itália, foram criados sete Centros de Saúde Mental que funcionam 24 horas por dia,
todos os dias da semana. Apresentam um aspecto de casa e não de ambulatório, estando abertos a toda a população. Não há filas nem marcação de consultas. Cada um desses Centros de Saúde Mental abrange aproximadamente 40.000 habitantes (ROTELLI, DE LEONARDIS e MAURI, 2001).
79
desinstitucionalização da loucura. O trabalho, no território, é transformado a partir
das inúmeras experiências de vida dos atores que constituem aquela área.
Rotelli, De Leonardis e Mauri afirmam que a Itália conseguiu abolir a
internação psiquiátrica como forma de tratamento psiquiátrico porque
se descobriu que cuidar significa ocupar-se, aqui e agora, de fazer com que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento do ‘paciente’ e que, ao mesmo tempo, se transforme sua vida concreta e cotidiana, que alimenta este sofrimento (2001, p.33).
Portanto, a ação não se limita aos serviços e não busca restabelecer a
“normalidade” social, muitas vezes “exigida” pelos diversos atores sociais; não busca
a vida “normal” padronizada fazendo com que os que experienciam a loucura sejam
adaptados a um modelo pré-definido de existência, de moradia, de trabalho.
Concordando com Scarcelli (2002), tendemos a acreditar que sabemos o que é bom
para os outros, inclusive para os que moravam em hospitais psiquiátricos. Contudo,
nem sempre o que desejamos e esperamos é o que eles querem e/ou do que
precisam. Devemos estar, portanto, atentos às reais necessidades sociais,
psicológicas, econômicas e materiais da população egressa de manicômios.
Atuando no território, a equipe profissional deve “assumir a
responsabilidade”47. Para Dell’Acqua e Mezzina isso “quer dizer, portanto, assumir a
demanda com todo o alcance social conectado ao estado de sofrimento” (1991,
p.63). Para isso, os profissionais devem acompanhar o usuário em qualquer
instituição que haja necessidade, como tribunal, agência de empregos, médico,
banco, etc. Não significa procurar um advogado pela pessoa, ou retirar dinheiro do
banco por ela, mas sim, acompanhá-la em suas atividades e contribuir para que
qualquer dúvida ou dificuldade que ela tenha seja resolvida. Não se trata de levá-la
porque é “incapaz”, ou ir para tomar conta do usuário. Trata-se de cuidar, de assistir,
caso seja necessário. Não há lugar específico, o local do serviço de saúde, para que
o técnico assuma a responsabilidade por aquela pessoa, evitando o abandono e,
47 Fernanda Nicácio, tradutora do texto de Rotelli, De Leoniardis e Mauri (2001), esclarece que não há
tradução específica da expressão italiana “presa in carico”. Ela explica que a expressão utilizada quer dizer “fazer-se responsável” pelas pessoas daquela região de referência e não encaminhar a outros serviços e instituições para que a pessoa seja atendida e assistida.
80
como afirma Nicácio (1994, p.99), contrapondo-se “à fragmentação das
necessidades da demanda.” É fundamental que haja uma organização coletiva nos
serviços, e entre os profissionais, sem uma hierarquia rígida e determinante que
esquadrinhe e divida o trabalho. Essa proposta de “tomada de responsabilidade”
exige horizontalidade nas relações, e flexibilidade por parte dos profissionais para
não segmentar o atendimento, o cuidado, a assistência e as atividades do usuário.
No Brasil, seguindo as diretrizes da III Conferência Nacional de Saúde Mental
realizada em dezembro de 2001, a rede de serviços substitutivos deve oferecer
atenção integral aos usuários e seus familiares, a qualquer tempo, e deve ser
integrada à rede básica territorializada, deve contemplar ações referentes às áreas de trabalho, moradia e educação e, também, ser estruturada de forma descentralizada, integrada e intersetorial, de acordo com as necessidades dos usuários, visando garantir o acesso universal a serviços públicos e de qualidade (BRASIL, 2002, p.38, grifo nosso).
Assim, as diferentes modalidades de assistência devem desenvolver práticas
“pautadas em relações que potencializem a subjetividade, a auto-estima, a
autonomia e a cidadania e busquem superar a relação de tutela e as possibilidades
de institucionalização e/ou cronificação” (BRASIL, 2002, p.24). Saraceno alerta para
o fato de “que não existe política territorial crível, se não existe política simultânea de
superação do manicômio” (1999, p.119). Os serviços substitutivos devem estar
relacionados aos diferentes ambientes e cenários do território: escolas, igrejas,
bares, lojas, clubes, etc – espaços onde são construídas as relações sociais,
territórios onde os que experienciam a loucura passam a habitar. Não basta,
portanto, abrir novos serviços de assistência e manter a lógica manicomial de
exclusão, periculosidade, incapacidade e tutela. O cuidado no território é ampliado,
não deve ser restrito ao serviço. Entretanto, como afirma Nicácio, o trabalho não é
calmo, sem conflitos. Segundo esta autora, “a ação se dá em um terreno
contraditório no qual os conflitos são motor do processo em uma crítica à
reproduções de homogeneização, serialização e objetivação” (1994, p.98).
Alguns técnicos entrevistados, ao falarem do trabalho desenvolvido pelos
profissionais nos serviços substitutivos em saúde mental, no Espírito Santo, e a
integração entre os diferentes serviços em saúde, afirmam que
81
“[...] tudo isso tem que ter uma rede. Então a gente está fazendo um trabalho, com dificuldade e tal; você está fazendo um trabalho de estar inserindo na comunidade; mas na rede não está estruturado ainda. [...] Por exemplo, o pessoal de curta [permanência no hospital psiquiátrico] que ainda tem família. Eles vêm com história de muita internação. Por que? Porque falta a base da rede. Vamos dizer: a gente está com um trabalho bom nos serviços alternativos; é bom, é essa a alternativa, mas a gente não tem a base, que seriam o postos de saúde estar atendendo psiquiatra, remédio, orientação, atividades [...]. O que está faltando , principalmente, é a rede estruturada.”
Jandira
2“Aqui não é organizado [o sistema de rede da saúde]. Como é que a gente pode organizar a saúde no Estado se não se tem uma coisa mínima que é saneamento básico, no posto de saúde ter médico, enfermeira, é uma coisa assim. E a saúde mental, é mais complicado ainda organizar essa rede.”
Sheila48
Estas falas demonstram a dificuldade de integração de uma rede de serviços
na área da saúde, não restritas aos cuidados em saúde mental. Leitos manicomiais
são fechados, e discute-se a extinção progressiva dos manicômios. Entretanto, esta
proposta não está clara para grande parte dos técnicos em saúde, nem para a
população, que não percebem a possibilidade de atendimento e cuidado de pessoas
em crise que não no Hospital Psiquiátrico. Infelizmente o hospício e a internação
ainda são referência para a população.
“Não pode acabar. Tem que ter alguma coisa lá. Se não o cara vai fazer exame aonde?”
Jonny
48 Profissional do CAPS Moxuara, onde os moradores das duas casas recebem atendimento.
82
Implantar as casas para ex-internos, assumir a responsabilidade, contribuir
para a autonomia e exercício da cidadania, contribuir para o desmanchamento do
Hospital Psiquiátrico, para Kauffmann e Silva, “é a viabilização de um lugar físico,
uma moradia, que possibilita a construção de um lugar subjetivo, um projeto de vida”
(2000, p.37). Mas a implantação dessa casa não leva, automaticamente, à inserção
social de fato daqueles que viveram excluídos por tantos anos. Segundo Scarcelli
(2002) construir e sustentar políticas públicas para serem mantidas em e para
espaços coletivos é um desafio. Uma resolução federal e leis que determinem e
regulamentem os projetos políticos não garantem a solução definitiva, no caso aqui
discutido, para o fim da lógica manicomial excludente e infantilizadora. O processo
de desinstitucionalização da loucura é lento, é construído no dia-a-dia a partir das
dificuldades, das conquistas, das dúvidas, das relações e vínculos constituídos,
envolvendo diferentes pessoas, variados profissionais e diversas vidas.
3.1. CIRCULANDO
Os egressos do Adauto Botelho mudaram para as residências em 26 de
outubro de 2004. A primeira vez que fui às moradias foi uma semana depois da
inauguração, em 01 de novembro. Estava um dia belíssimo, muito quente. Apesar
das dificuldades apontadas pela equipe responsável pelas moradias, a dificuldade
de encontrar uma casa grande o suficiente para tantos moradores, dificuldade da
compra dos móveis, do atraso da saída dos internos, as casas já estavam bem
organizadas, arrumadas, com sofás, aparelho de TV, telefone, camas para todos os
moradores, guarda-roupas e cômodas, máquina de lavar roupas, pratos e talheres,
fogão, geladeira e mesa para refeições. Casas sem muito luxo, mas confortáveis e
arrumadas. Fui com uma extensionista que conhecia a localização das duas
residências, os moradores e as profissionais que trabalhavam nas casas.
83
Fig. 6: Cozinha da casa das mulheres, em Itacibá.
Fig. 7: Quarto duplo da casa das mulheres.
84
Fig. 8: Sala da casa dos homens em Santana.
Primeiro fomos à casa das mulheres. Eu não conhecia nenhuma das
moradoras nem as cuidadoras. Sentamos à mesa e conversamos sobre a casa,
sobre o hospital, sobre os tapetes que amarravam para vender – artesanato que
aprenderam na Terapia Ocupacional do Adauto Botelho. Uma das cuidadoras
bordava uma toalha de banho e estava fazendo uma para cada moradora. Rosana e
Domitila estavam interessadas em aprender a bordar também e nos mostravam,
entusiasmadas, os pontos que haviam marcado naquela semana, o que faziam na
casa, o que limpavam, o que assistiam na televisão, quando iam ao CAPS, e
afirmavam que, para o Adauto não voltariam mais, e que, estavam felizes por estar
fora de lá. Rosana e Alice mostraram os dedos que não estavam mais tão
amarelados, porque agora fumavam cigarro branco, não mais fumo sabiá enrolado
em folhas de jornal até queimar as pontas dos dedos como faziam no hospital.
Chamamos duas moradoras para irem conosco para a casa dos homens e Rosana e
Abigail prontamente aceitaram o convite.
Para ir da casa das mulheres no bairro de Itacibá para a casa dos homens,
em Santana, passamos pela entrada do Hospital Adauto Botelho, e Rosana acenou
um “tchau” para o hospital. Eu já conhecia apenas um dos moradores da casa
85
masculina desde a época em que eu fazia parte do Projeto de Extensão do
Departamento de Psicologia no hospital – o Jerônimo. As cuidadoras não me
conheciam também. Foi ele próprio quem veio abrir o portão da casa para nós, o que
parecia ser a “função” dele enquanto interno do manicômio – era sempre Jerônimo
quem abria o portão da quinta enfermaria do Adauto. Ficamos na varanda
conversando – eu, os extensionistas e alguns moradores. Eles pediam alguma coisa
o tempo todo: fumo, um cigarro, uma moeda, um boné, uma carteira, um anel, como
eles fizeram por tanto tempo no manicômio. Jerônimo estava sentado próximo ao
portão trancado e perguntei a ele, se ele estava bem, se estava feliz de estar
morando em outro lugar, e ele disse que sim. Quando eu perguntei se ele já
conhecia o bairro, se eles saíam para dar uma volta ele respondeu:
“A gente tava preso lá [no hospital]. Agora fica preso aqui.”
Esta afirmação chocou-me. Havia apenas uma semana que eles haviam
saído do hospital, não recebiam qualquer benefício financeiro, mas a proposta dos
dispositivos residenciais não é impedi-los de saírem de suas próprias casas, porém
contribuir para que haja a construção de outros projetos de vida, de autonomia e
liberdade na cidade, nas ruas, em diferentes relações e vínculos sociais. Ou seja,
efetivar campos de possíveis e constituição de formas diferentes de serem tratados,
de habitar, de morar e de viver.
Alguns moradores das duas primeiras casas para egressos de hospitais
psiquiátricos no Espírito Santo demonstram interesse em participar de atividades no
território: na Igreja, fazer um curso, freqüentar aulas, aprender a ler e a escrever,
enfim, interesse em assumir relações amplas e não apenas estar de corpo presente
no território. Jerônimo, por exemplo, diz querer aprender mais que o “ABC.” Ele,
inclusive, manifestou o interesse em trabalhar como ajudante de pedreiro. Rosana,
como já dito anteriormente, freqüenta um curso de bordado em uma Igreja do bairro
e também tem interesse em ir à escola, aprender outras coisas. Contudo, há uma
certa resistência em permitir que os moradores saiam sozinhos de casa, e que
assumam, de fato, sua liberdade. Isso acontece, muitas vezes, por hábitos do
hospital psiquiátrico – já que os cuidadores são funcionários que trabalhavam no
manicômio Adauto Botelho:
86
“Elas têm deficiências. Não dá para soltar elas por aí assim. Eu acho que tão cobrando demais da gente.”
Cintia
“Tem essa coisa da rigidez da instituição. É muito difícil perder isso.”
Jandira
Resistência também, por excesso de zelo e proteção:
“Se qualquer coisa acontecer com elas, tenho medo de a culpa ser minha [...]. É uma casa comum. Mas tem que entender que as pessoas que tão aqui viveram muito tempo no hospital e não sabem muita coisa [...]. Minhas preocupações são com elas e o que podem fazer com elas por aí. Elas têm muito para conhecer e como vamos conseguir fazer tudo isso com elas? É difícil.”
Cintia
De fato, é difícil. Depois de mais de vinte anos isolados do mundo, presos em
um manicômio não é fácil assumir responsabilidades, conhecer, andar pela cidade,
construir projetos de vida. Algumas vezes alguns deles podem sair sozinhos: ir ao
CAPS sozinhos – os homens vão andando de casa para o CAPS Moxuara, comprar
um refrigerante para o almoço; mas existe um receio de eles saírem sem
acompanhamento de um “responsável”.
“Eu, no meu caso, eu tenho medo de deixar sair sozinha [...]. A Frances e a Abigail, elas não saem mesmo49. A Alice, pra sair, tem que estar junto porque ela tem dificuldade para andar. A Rosana não, se você mandar ela comprar um refrigerante, ela vai comprar um maço de cigarro, ela vai.”
Verônica
49 São duas senhoras já idosas, com problemas de pressão alta, andam muito devagar e têm um
certo medo de saírem sozinhas.
87
Mas, e quando querem sair sozinhos, dar uma volta no bairro, passear, elas
podem? E os homens podem? Na maioria das vezes, não podem sair sozinhos para
ir a um curso, nem à praça do bairro, nem à padaria do Jonny... Amanda, como dito
anteriormente, senta sobre a chave por volta das 17:30 horas para os homens não
saírem de casa à noite sozinhos, porque ela acha que é perigoso. Existe medo de
deixar o portão aberto, medo de que alguém entre e roube a casa, ou faça algum
mal aos moradores, mulheres e homens; existe o medo, também, de que façam
algum “mal sexual” às mulheres.
Aproximadamente em maio de 2005, uma das cuidadoras da casas das
mulheres do turno noturno, Nazareth, levou Rosana e Domitila a um curso de
bordados na Igreja Batista do bairro. Elas ficaram muito entusiasmadas. Contudo,
Nazareth não podia ir ao curso todas as semanas. Eu me dispus a acompanhá-las, a
contribuir para que “tomassem a rua”. Mesmo não sabendo bordar, participei de
algumas das atividades, que eram semanais. Em determinada data, eu não poderia
ir ao curso com Rosana e Domitila e liguei para a casa para avisá-las. Ao atenderem
ao telefone, surpreendi-me com que ouvi: “Residência Terapêutica, boa tarde”. Eu
fiquei um pouco atordoada, achando que havia discado o número errado, já que eu
havia telefonado para a casa de algumas mulheres, e não reconheci a voz da
pessoa que atendera ao telefone. Esta forma de atender ao telefone pareceu-me
uma empresa, um lugar de trabalho, uma instituição fechada para a qual eu não
havia ligado. Identifiquei-me e perguntei se era a casa de Rosana e pedi para
chamá-la. Expliquei a ela que eu não poderia acompanhá-la ao curso naquele dia, e
perguntei se ela saberia ir sozinha. Com a resposta afirmativa encorajei-a a falar
com as cuidadoras, e ir ao curso com Domitila – uma vez que elas já conheciam o
caminho, na verdade, elas mostravam o caminho, e conheciam as professoras e
algumas alunas. Quando fui à casa, três dias depois, e perguntei do curso, Rosana
respondeu-me que não havia ido. Insisti em saber a razão, e ela me disse,
engasgando e de forma embolada, que Marta, uma das cuidadoras, não havia
deixado, que não havia quem as levasse.
Na semana seguinte, foi realizada uma reunião coletiva com a participação de
extensionistas, estagiários, cuidadores, equipe do CAPS e da comissão para
implementação das residências. Foi discutido sobre o fato de os moradores terem
recebido alta do Adauto Botelho, sobre a importância da saída deles do hospital,
88
mas não apenas para ficarem dentro de casa, sobre, principalmente, a necessidade
de outras relações e o benefício que as mesmas podem trazer para eles, como
maior liberdade, autonomia, busca de saúde, de estudos, de trabalho. Jandira conta-
nos que depois dessa “assembléia”, os cuidadores pediram a ela uma reunião para
que discutissem a saída dos moradores às ruas, e as responsabilidades que eles,
cuidadores, teriam. As dúvidas foram, segundo relato de Jandira:
“‘Se eles estão andando sozinhos, e se por acaso forem atropelados, eu vou levar processo?’, ‘Como é que é?’, ‘Eu sou responsável?’, ‘Eles estão de alta?’. Porque na internação, eles [pacientes] são de responsabilidade do Estado; e eles [cuidadores] não conseguiram acompanhar que lá eles estão de alta, é uma casa. Lógico que ali tem cuidados, mas eles estão ‘fora’, entre aspas, dessa custódia muito firme do Estado.”
André, psicanalista que presta consultoria ao hospital, naquela reunião-
assembléia alertou para o fato ao qual devemos estar atentos, pois
“podemos cair na armadilha de sobre-proteger e não de cuidar.”
Já em setembro de 2005, onze meses após a ida dos moradores para as
casas, Rosana ainda se interessava em fazer o curso na Igreja Batista e queria
participar dele. Marta ajudava-a em casa com os bordados: ensinava, corrigia os
pontos defeituosos que a “aprendiz” havia feito. Contudo, Rosana mais faltava do
que participava dos encontros na Igreja. Uma das vezes que fui com ela novamente,
a professora perguntou por que ela havia faltado tantas aulas, e ela disse baixinho:
“elas não deixam”, referindo-se às cuidadoras que não permitiam que ela fosse ao
curso desacompanhada, mas pedia-lhe que comprasse um refrigerante, um maço de
cigarros, peixe para o almoço... Rosana podia sair para algumas coisas, para
realizar alguma tarefa, mas não era permitido que saísse desacompanhada para
participar de atividades sociais.
“Sozinha eu não posso ir não [...]; deixa não [...]. Porque negócio de carro, atropelado de carro. Eu sei,eu sei andar na rua sozinha. Eu vou aí no supermercado [...]; pra comprar um refrigerante eu vou sozinha”.
Rosana
89
Mais adiante, esta moradora afirma:
“Se mandar eu ir eu sei, eu vou no CAPS de ônibus certinho”.
No dia do curso, na semana seguinte, eu fiquei surpresa com a ligação de
Rosana para minha casa, perguntando se eu iria ao curso com ela naquela tarde.
Quando se mudou para a casa, ela dizia que não sabia falar ao telefone, que ela
gritava “alô” e começava a rir. Depois de um ano, Rosana ainda não discava os
números, todavia sabe pedir a quem atende ao telefone para falar com quem ela
deseja. Ao confirmar que eu estaria lá, de tarde, Rosana logo falou que já tinha
arrumado a casa, que tomara café, que já havia tomado banho e estaria pronta na
hora que eu chegasse. E realmente estava, além de animada com as cores de linha
que Marta havia dado a ela. No curso, uma adolescente ajudou Rosana o tempo
todo, e elas conversaram bastante: falaram de estudos, de dificuldades em bordar,
se moravam perto ou não da Igreja.
Fig.9: Bordado feito por Rosana.
90
Uma outra aluna do curso de bordado na Igreja perguntou, a mim, se Rosana
morava em uma clínica, e eu expliquei a ela a proposta dos dispositivos residenciais:
que eram moradores de uma casa, que não era uma clínica, que elas haviam
recebido alta do Adauto Botelho e que continuavam o tratamento com profissionais
do CAPS Moxuara. Esta senhora elogiou o trabalho, disse que era importante elas,
as moradoras, participarem de atividades, e aprender algumas coisas diferentes, até
mesmo para poderem trabalhar e ganhar algum dinheiro.
Em uma reunião com a equipe de extensionistas, estagiários, profissionais do
CAPS e da Unidade de Ressocialização do Adauto Botelho, Patrícia, uma das
cuidadoras da casa das mulheres (que estava na casa havia aproximadamente dez
dias), reclamou que uma das moradoras não lhe obedecia. Patrícia relatou o
episódio que estava tomando banho e nesse momento, Rosana pegou a chave do
portão e saiu de casa sem avisara ninguém, e ainda deixando o portão aberto. As
outras moradoras alertaram a cuidadora do fato, e esta disse ter ficado muito
preocupada e aflita, mesmo sendo de manhã. Depois de algum tempo, Rosana
voltou para casa “como se nada tivesse acontecido”. Este episódio aconteceu em
setembro de 2005, onze meses desde a data em que as moradias foram
inauguradas. Ou seja, há onze meses as moradoras andavam pelo bairro na
companhia dos estagiários e extensionistas, e Rosana já havia saído diversas vezes
para ir ao supermercado, à padaria...
De fato, há preocupação por parte das cuidadoras. No entanto, será que esta
preocupação não leva a um movimento de trancar os portões e comandar o espaço
interno, mantendo a lógica do Hospital Adauto Botelho? Os dispositivos residenciais
não são um outro espaço de isolamento onde os que experienciam a loucura devem
ser trancados e obedecer às ordens sobre a hora de sair de casa e de entrar nela,
de tomar banho, de almoçar, de fumar, de ver TV, de dormir...
“A gente faz elas entenderem que aqui fora é diferente lá de dentro, elas tem o horário delas fumarem. Lá elas fumavam toda hora, toda hora com cigarro na boca. Aqui não, tem o horário delas fumarem [...]. Elas fumam lá fora na varanda. Cada uma tem seu cinzeiro”.
Verônica
91
Devemos estar atentos para o que se pretende com estas casas – a retomada
da autonomia e cidadania de pessoas que ficaram anos excluídas dos movimentos
da cidade e não a manutenção de uma lógica em que os que passam pela
experiência da loucura não possam fazer, experimentar, construir, questionar e
inventar formas de viver; ou seja, contribuir para que eles possam criar regras para o
convívio da casa, decidir o que gostam de comer, de vestir, de fazer para se divertir,
como vão ganhar dinheiro para comprar um chinelo, um doce, uma carteira ou mais
cigarro.
Algumas moradoras do dispositivo residencial feminino amarram tapetes –
fitas de malha em estopa – para vender. É uma atividade realizada desde os tempos
de terapia ocupacional do hospital. As cuidadoras cortam as tiras, para que as
moradoras não se machuquem com a tesoura e para que não desperdicem material,
cortando as tiras tortas – mantêm o que era feito no Adauto Botelho. Logo quando
mudaram para as casas, todas faziam muitos tapetes, mas com o tempo, Rosana
passou a interessar-se mais pelo bordado, Domitila deixou de amarrar tapetes e leva
fama de preguiçosa na casa, Frances faz de vez em quando, assim como Abigail.
Apenas Alice ainda faz muitos tapetes. Ela está fazendo um tratamento
fonoaudiológico em uma universidade que propõe atendimento à comunidade (fica
ansiosa para a sessão toda semana e faz todos os exercícios propostos em casa) e
levou um tapete amarrado por ela para o fonoaudiólogo estagiário que a atendia. Os
demais estagiários, professores e mesmo pessoas da comunidade, interessaram-se
em comprar esses tapetes, fizeram encomendas de cor, de tamanho e estimularam
ainda mais Alice a fazer os tapetes, que são muito bem amarrados.
A mãe de uma criança que estava em atendimento nesta clínica universitária
falou que é “bom comprar para ajudar”. Conversando com esta senhora, na sala de
espera, falei sobre as casas para egressos de hospitais psiquiátricos, que Alice e
outras pessoas receberam alta do hospital, mas não tinham mais contato com
familiares e junto de Alice moravam outras quatro mulheres. Mais uma vez, esta
senhora disse que era bom poder ajudar as pessoas. Ela não comprou tapete –
vendemos quatro ou cinco tapetes em menos de dez minutos – mas me trouxe a
dúvida: será que as pessoas compram por que gostam do trabalho e do produto, ou
será por que “é bom ajudar”?
92
Fig.10 e 11: Tapetes feitos por moradoras da casa das mulheres.
93
Desde abril de 2006, quase todos os moradores das duas casas recebem
benefício do Programa de Volta para Casa. Antes desta data apenas Jânio50 e
Frances recebiam aposentadoria (sendo que Frances recebia por uma curadora que
nunca repassou o dinheiro à ela) e Cristóvão passou a receber benefício depois que
se mudou para a casa. Os moradores ainda não tinham CPF, o que atrasou bastante
o processo para receberem o benefício ao qual têm direito. Ainda hoje, Alice e
Amadeu51 não recebem benefício, porque eles não tinham certidão de nascimento.
Este documento já foi providenciado, mas agora, é necessário o CPF e um
documento com foto.
Assim como os documentos e benefícios para esses moradores estão sendo
providenciados pela equipe de implantação das residências – equipe atuante no
Hospital Adauto Botelho, as enfermarias pré-lares continuam “preparando” outras
pessoas para saírem do manicômio.
A proposta do processo de desospitalização do Adauto Botelho não se
restringiu às duas primeiras residências. Outras três moradias foram implementadas
em 16 de fevereiro de 2006, com meses de atraso. Duas dessas novas casas ficam
localizadas no bairro Santana, em Cariacica. Alguns poucos moradores estavam
preocupados com o bairro ser rotulado como o “bairro dos loucos”. Todavia, essa
discussão e a tentativa de impedir a mudanças dos egressos do hospital para aquele
local não foi difundida. A diferença no modo de pensar, de agir, de viver traz
desacomodações, perturbações e desassossego para uma população que não sabe
ao certo o que a vinda de pessoas ex-internas em manicômios pode significar, o que
se busca, o que eles podem fazer, se é que podem trabalhar ou fazer mal à
comunidade. A maioria dos moradores do bairro Santana não cedeu aos apelos de
alguns vizinhos na tentativa de impedir a mudança. Os moradores da primeira casa
para egressos do Adauto Botelho são conhecidos no bairro, cumprimentam as
pessoas nas ruas, freqüentam a praça, a padaria, circulam pelas ruas – os homens
em Santana tomaram mais as ruas do que as mulheres em Itacibá.
Naquele final de semana, após a inauguração das três novas moradias,
Jandira pediu às cuidadoras que estivessem atentas para que os homens da
50 Morador da casa masculina. 51 Morador da casa masculina.
94
primeira casa não saíssem tanto de casa, para não serem alvos de qualquer tipo de
acusação, e esperar a “poeira abaixar” depois de discussões sobre a moradia de ex-
internos no bairro. Este pedido foi prontamente atendido por duas semanas, até
depois do período de carnaval. Os moradores só estavam saindo de casa na
presença dos estagiários e/ou extensionistas que os acompanhavam pelo bairro, à
praça, pelas ruas, padaria, ao CAPS. Durante as festividades de carnaval, os
estagiários – Fabiana e Vitor – não foram à casa e, na quinta-feira seguinte, todos os
moradores os chamaram para sair, para ir passear, para dar uma volta na praça ou
fumar um cigarro na rua. Ao falar para Rogério “vai você que depois eu vou” Fabiana
ouviu a seguinte resposta: “posso não, elas não deixam não.” Então souberam do
comunicado de Jandira, e que aquele pedido de evitar circular muito nas ruas, em
um final de semana, havia sido obedecido por mais tempo: duas semanas.
Ao saírem de casa com os estagiários naquela quinta-feira após período de
carnaval, segundo relato de Fabiana, Jânio abraçou Vitor por longo tempo
agradecendo-lhe por saírem com eles. Rogério lhes agradecia repetidamente, e
falava para todos que passavam pela praça: “a gente tá podendo sair”. Acredito que
os moradores não sabiam o porquê de não estarem saindo de casa naqueles dias.
Na residência havia oito homens e uma cuidadora, o dia inteiro. Ela trabalhava, fazia
almoço, limpava a casa e a cozinha, organizava os medicamentos enquanto alguns
homens ficavam na varanda fumando, ou vendo TV, um ou outro ajudava em
alguma coisa na casa. Mais uma vez o processo de desinstitucionalização da
loucura sofreu um desvio e a reprodução da lógica manicomial de obediência e
prisão em um espaço fechado foi mais forte.
Contudo este episódio levou os estagiários, extensionistas e coordenação a
refletir e trazer discussões acerca das propostas do processo de Reforma
Psiquiátrica para as cuidadoras das moradias. Mesmo sem participar efetivamente
das atividades das casas desde janeiro de 2006, o contato com os extensionistas e
estagiários para a realização deste trabalho não foi perdido. Hoje os moradores e
moradoras das duas primeiras moradias para ex-internos do Hospital Adauto Botelho
saem sozinhos: Rosana vai ao curso toda semana, e vai com Alice ao CAPS,
desacompanhadas. Os passes livres de ônibus foram dados a quase todos os
moradores em março (exceto Alice e Amadeu que não tinham documentos).
Algumas mulheres freqüentam a feira do bairro, no final de semana, e compram
95
suas coisas – às vezes compram fiado. Os egressos do Adauto têm circulado de
forma mais livre em seus bairros, pelas ruas, lojas, feiras...
Como já apontou Scarcelli (2002), o uso do estigma de louco, ex-interno de
hospitais psiquiátricos, para obter vantagens como descontos, comprar fiado, pedir
e, às vezes, ganhar coisa na rua deve ser problematizado e discutido. Em uma feira
de bairro a responsável por um stand venderia fiado a qualquer morador do bairro?
Ou o fez por que a cliente é uma ex-moradora de um hospício? Alguns homens
pediam R$1,00 na porta do supermercado, outros pediam cigarro pela rua, outros
pediam coisas que não podiam ter. Acreditamos que esses ‘pedidos’ se davam
devido ao fato de eles não terem dinheiro para comprar seu próprio fumo, uma
carteira, um biscoito, um cordão, um churrasquinho na praça, um refrigerante... Pode
ser. Quem sabe agora que o benefício foi concedido, e eles recebem mensalmente o
dinheiro do “Programa de Volta pra Casa”, isso acabe!
Em um de nossos passeios pelo bairro Itacibá, eu, alguns extensionistas e
moradoras da casa das mulheres, vimos o Circo que estava se apresentando no
bairro. Interessamo-nos e marcarmos com todos os moradores, um passeio ao
Circo, que aconteceu algumas semanas depois. Fomos eu, alguns extensionistas,
quatro dos oito moradores da casa masculina, todas as moradoras da casa das
mulheres e uma cuidadora que estava na casa de plantão. Encontramo-nos na casa
das mulheres, que ficava próxima ao local do circo, e fomos andando. Fui comprar
todos os ingressos de uma vez e pedi um desconto, já que éramos um grupo de 15
pessoas. A moça responsável pela bilheteria perguntou se havia crianças e eu me vi
respondendo da seguinte maneira:
“Não há crianças, somos 15 adultos. 10 são pessoas com transtornos mentais, mas somos todos adultos”.
Após ter refletido sobre o que falei, fiquei intrigada com minha resposta,
embora tenha achado bom o desconto obtido e o lugar nas cadeiras da frente, ainda
que tenha pago preço de arquibancada, porque, segundo a responsável, “é melhor
para eles”. Foi ótimo! Divertimo-nos, cantamos, batemos palmas, vimos leão,
dançarinos, trapezistas, palhaços, o globo da morte, comemos pipoca, bebemos
refrigerantes, e ainda ganhamos algodão doce, durante o intervalo, da moça
96
responsável pela bilheteria. Para completar a noite de “ganhos”, esta mesma moça
deu a Kelly52 alguns ingressos para voltarmos ao Circo, que estaria em um outro
bairro de Cariacica em algumas semanas.
Sem refletir e analisar a situação e minha fala, usei o estigma da loucura –
que se pretende superar – para ter regalias, privilégios secundários em uma noite
animada. A proposta não é esconder que aquelas pessoas sofreram anos de
internação, mas também não é confessar e manter o foco nos estigmas e
estereótipos. Esta situação foi uma questão importante de reflexão e análise para
muitos de nós – pesquisadores, extensionistas e estagiários. A luta em superar a
naturalização da loucura se dá cotidianamente, em diferentes espaços e situações,
com todos nós envolvidos. E isso é um processo contínuo, e leva tempo.
O trabalho dos profissionais que atuam nas residências extra-hospitalares não
deve se limitar ao espaço interno das casas. Nicácio, ao trazer a experiência da
criação dos NAPS no município de Santos/SP, fala da importância em “estar com” os
sujeitos de fato, em diferentes esferas sociais: no supermercado, nas praças e
parques, nos conflitos, nas ruas, no bairro, na cidade, “enfim, acompanhá-los em um
intenso processo de propiciar a entrada nas redes sociais, mediar relações,
estimular outras formas de leitura do sofrimento, de contato com os loucos” (1994,
p.97). Assim podemos perceber e conviver com o sujeito e não apenas com a
doença que, por tanto tempo, foi realçada nas mais diferentes relações do usuário
com os profissionais, familiares, com a vida social. O que não significa, de maneira
alguma, abandonar o sujeito à própria sorte. Liberdade para os que experimentam a
loucura e responsabilidade não apenas dentro dos serviços para os profissionais – a
“tomada de responsabilidade”, como já discutido anteriormente. O estagiário Vitor
relata o que percebe no que diz respeito à relação dos moradores com a
comunidade:
“Olha, eu tenho visto, nesse bairro, uma certa aceitação por parte dos adultos, o vizinho da frente que vive conversando com eles. Quando o Henrique desce [para a praça do bairro], ele conversa com muita gente, Jerônimo também, o Rogério. As crianças que é um pouquinho complicado porque quando comenta que é ex-interno as crianças já ficam assim: ‘Ah, é doido’ então fazem aquelas brincadeirinhas. Mas já chamam pelo nome e isso eu
52 Extensionista da UFES.
97
acho que faz parte do processo. E cabe também à gente que acompanha, estar explicando, estar tirando um pouco esse preconceito, se é que é possível tirar. É os jovens também têm um pouco esse meio termo, um lado de excitação mas um lado de medo.”
Vitor conta que em uma tarde de sexta-feira encontrou alguns jovens
arrumando, decorando a praça para uma festa que aconteceria naquela noite, e
parou para conversar com eles. Os três moradores da casas masculina, que
estavam com Vitor, continuaram andando para irem à padaria.
“Que eu achei que era uma oportunidade pra ver porque eles estavam com aquela carinha de espanto, meio... de espanto não, mas uma carinha de curiosidade [...]. Aí uma menina comentou: ‘Ah, porque minha prima quando vê um que sempre fala ‘oi’, ela fala ‘oi’ mas sai da beira’. Eu falei: ‘Não precisa sair da beira. Cumprimenta ‘oi, e aí? Bom dia’. Ela falou: ‘Eu sei disso, mas ela tem a cabeça meio dura, a cabeça meio fechada’. E foi rolando aquele papo [...]. Eu vejo que falta um pouco de conversa, falta um pouco de explicar [...]. Acho que falta aproximar esse contato. Portanto, essa festinha que vai ter, eles não querem ir sozinhos. Eu acho que é mais porque falta essa pessoa, essa pessoa talvez pra fazer essa ligação. Eu acho que eles sentem falta disso”.
Vitor
Os técnicos, no processo de desinstitucionalização da loucura, não devem
mais mediar as relações entre a instituição asilar manicomial e os internos. São
necessárias outras mediações, agora entre os sujeitos que saem do hospital e a
sociedade. Nicácio (1994) aborda essa questão como se houvesse uma abertura,
uma expansão das relações entre técnico e usuário que envolve agora questões de
trabalho, de família, questões econômicas, civis, de moradia, questões jurídicas,
dentre outras. A equipe de profissionais, em conjunto, age como protagonista na
transformação institucional e cultural de como lidar com a loucura. Outros saberes
são construídos no cotidiano a partir das diferentes idéias, dúvidas, análises,
discussões e experimentações. Nenhum profissional deve permanecer agarrado aos
saberes instituídos como seu, mas “aprender a aprender” as diferentes situações e
responsabilidades do dia-a-dia. Ao trazer a experiência em Trieste, Rotelli, De
Leonardis e Mauri afirmam que
98
torna-se evidente que a profissionalidade se explica menos em termos de competências técnicas especialistas e codificadas e muito mais como capacidade de escolher, utilizar e combinar uma ampla variedade de modalidades e recursos de intervenção (2001, p.45).
3.2. HABITAR É MAIS QUE MORAR
No Espírito Santo, moradias extra-hospitalares têm sido implementados para
que pacientes psiquiátricos possam sair do manicômio estadual e ter uma casa para
morar. Como dito anteriormente, desospitalizar não é o objetivo último do processo
de Reforma Psiquiátrica no Brasil. Superar a noção de loucura como doença
perigosa, que torna as pessoas incapazes e imprestáveis é uma das importantes
propostas desse processo que vem sendo constituído em diversos lugares do
mundo há décadas. As casas para egressos de hospitais psiquiátricos não é a
solução última e definitiva, mas é mais um caminho para o processo de
desinstitucionalização da loucura. Como afirma Vitor,
“se não der certo a gente pensa outro jeito”.
Para Saraceno (1999) o lugar é fundamental para o processo e resultado da
reabilitação psicossocial e está intimamente ligado às intervenções e afetos no qual
estamos envolvidos. Nesse sentido, não podemos esperar que ao sair das
enfermarias pré-lares, os ex-internos estejam “prontos” para assumir todas as
responsabilidades e atividades da vida na cidade. Segundo Jandira, os funcionários
das pré-lares afirmam que alguns pacientes não podem sair para as moradias extra-
hospitalares porque não têm autonomia ainda para que tal processo se realize, visto
não serem obedientes, não estarem preparados ou “bem adestrados” para viverem
fora do asilo manicomial, já que ainda não colocam a roupa suja no cesto de roupa
suja, ou não arrumam a cama pela manhã. Para Jandira
99
“não adianta querer preparar aqui [Adauto Botelho], nesta estrutura. Tem que levar [para as casas].”
É no cotidiano das casas, das ruas, da cidade, fora do espaço manicomial
que as “novas” habilidades e aprendizagens se constituirão. É no território aberto
que outros modos de vida são elaborados, através de contato, de intervenções,
conversas, passeios, ou seja, através da produção cotidiana e contínua de
subjetividade, efetivando campos de possíveis onde a diferença possa de fato
assumir um lugar. Não aquele “respeito à diferença” de longe, sem contágio,
aprendendo a conviver com ela, mas a relação, o dia a dia, buscando transpor
barreiras e quebrar estereótipos.
Em um dia do curso de bordado na Igreja Batista, uma outra aluna ajudava
Rosana e elas conversaram bastante. Rosana se referia a sua casa o tempo todo
como “a residência”, “lá na residência”... Quando eu falava com ela “na sua casa” ela
demonstrava dúvida se eu estava falando da casa da tia dela, onde ela havia ido há
pouco tempo, ou da casa onde ela mora atualmente. Parecia que ela não
compreendia que aquela casa onde mora é a sua casa e não mais um serviço
público onde são realizadas algumas atividades como arrumação da casa,
amarração de tapete e oficinas de bordados – ela se apropriara daquela casa como
sua morada?
Mirian de Carvalho, ao discutir a relação da loucura e os espaços que ela
ocupa no manicômio e fora dele, afirma que “habitar não se reduz à simples
condição de moradia, de localização a rua x, número y, casa ou apartamento.
Habitar é uma experiência de aprofundamento e de convivência no espaço,
possibilidade de enraizar-se e desenraizar-se” (2001, p. 330). Nesse sentido não
basta morar em uma casa fora dos muros manicomiais que está garantido um lugar
de habitação de fato. O manicômio, para Scarcelli (2002) é o espaço de negação do
habitar por excelência porque não permite o mergulho em experiências afetivas, não
permite criações, invenções de modos de vida, tentativas e experimentações.
Segundo esta autora o manicômio é o “lugar do estar” (2002, p. 83), lugar não
apropriado por aqueles que lá moram. E não é essa a proposta dos dispositivos
residenciais.
100
Saraceno traz uma diferenciação interessante entre o habitar e o estar.
Segundo ele habitar um espaço é apropriar-se dele, não só de forma material, mas
também de “um grau de contratualidade elevado em relação à organização material
e simbólica dos espaços e dos objetos, à sua divisão afetiva com outros” (1999,
p.114); o sujeito que habita um espaço se apropria dele de fato. Habitar é sentir-se
“em casa”, utilizando a expressão de Rolnik (2001, p.12), sentir as descobertas, a
familiaridade, as relações com o mundo, os vínculos e conquistas, os modos de ser.
Habitar não é apenas morar em uma casa. Como afirma Carvalho, “habitar é criar e
cortar raízes, estar e ser no espaço; habitar é um ato de coragem, de
responsabilidade e de escolha de lugares” (2000, p.76). Cortar raízes com anos de
internação e isolamento; criar outras raízes e histórias com a cidade, com os
vizinhos, com os serviços em saúde mental, os técnicos, etc.
Quanto ao estar em um espaço é algo passageiro, é não se apropriar de fato
daquele lugar – tanto em questões matérias como simbólicas (SARACENO, 1999;
SCARCELLI, 2002). É morar sem sentir-se “em casa”, é morar “lá na residência”,
como dizem os moradores egressos do Adauto Botelho, e não assumir a expressão
“lá em casa”. Pode ser que essas casas extra-hospitalares sejam habitações
passageiras, que com o benefício esses moradores se mudem para outras casas,
com outras pessoas ou sozinhos – como Henrique, que quer ir para o Rio de Janeiro
procurar o filho agora que ele recebe o benefício do Programa de Volta para Casa –
mas são espaços para serem habitados de fato, contribuindo para que os moradores
possam voltar a habitar os demais espaços da cidade (CARVALHO, 2001), a vida e
constituir territórios existenciais.
Em diferentes ocasiões ouvimos das cuidadoras, dos estagiários,
extensionistas e da equipe técnica do Adauto Botelho e do CAPS a seguinte
comparação:
“As mulheres se apropriaram mais da casa, e os homens mais da rua”.
Apropriar-se da casa é arrumar a mesa, lavar louça, limpar a casa? É assumir
as atividades da casa? Apropriar-se da rua é sair mais de casa e freqüentar a praça
e a padaria? Esses fazeres levam, de fato, ao habitar a casa e o território? Não
101
basta apenas haver uma casa concreta para morar e para cuidar; segundo Scarcelli
é importante que esta morada contribua para a “ativação de desejos e habilidades
que se relacionem ao morar” (2002, p.84) para que os egressos do hospital possam,
de fato, habitar a casa. Como fala Vitor, a relação dos moradores com a casa, com o
corpo e com seus desejos têm sido modificadas:
“hoje eles questionam sobre os desejos. Isso pra mim foi formidável. Outra melhoria é... parece que também que eles diminuíram os delírios que eles tinham [...]. E o cuidado com o corpo que ainda, mesmo que ainda seja precário, é melhorzinho que no hospital. Que eles já arrumam cama, eles lavam pratos.”
O fato de terem saído do manicômio e terem uma casa em uma comunidade
para morar não garante, a priori, a apropriação desses moradores à casa, à sua
vida, seus desejos e projetos... Um trabalho lento e fascinante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
103
Há mais de um ano duas casas para ex-internos do Hospital Psiquiátrico
Adauto Botelho foram “inauguradas” – com direito a festa de abertura com a
presença das pessoas que saíram do manicômio naquela ocasião, extensionistas,
estagiários, profissionais do hospital e alguns políticos. Uma conquista que
finalmente saiu do papel, sendo desacreditada por alguns e muito esperada por
outros. Como vimos anteriormente, a implantação dessas residências é parte da luta
de alguns profissionais da equipe do manicômio estadual juntamente com a
Coordenação Estadual em Saúde Mental e professores e estudantes da
Universidade Federal do Espírito Santo. As duas primeiras casas pra egressos do
Adauto Botelho no estado trouxeram mais força àqueles que vêm lutando por
diversas mudanças e transformações na assistência Psiquiátrica no Espírito Santo.
Um alívio! Todavia, não seria o fim de um caminho, e sim, o início de mais uma
bifurcação na estrada da desinstitucionalização da loucura.
A saída dos internos manicomiais para moradias extra-hospitalares não
garante o sucesso da Reforma Psiquiátrica, que é um processo social complexo,
como afirmaram Rotelli, De Leonardis e Mauri (2001), e é permanentemente
construído em diferentes esferas. Paulo Amarante (2003) afirma a necessidade de
análise e trabalho em quatro aspectos, sempre interligados, nesse processo.
O primeiro é a dimensão teórico-conceitual da reforma psiquiátrica. Há a
necessidade de desmanchar o saber psiquiátrico clássico que impõe o isolamento
para tratamento da “doença mental” e apagar “a verdade” sobre a loucura construída
segundo a Psiquiatria. Para Amarante é fundamental compreendermos a clínica
como “criação de possibilidades, produção de sociabilidades” (2003, p. 50). Clínica
não como atendimento psicoterapêutico individual, mas atitudes facilitadoras de
descobertas, invenções, sociabilidades e subjetividades não modelizadas segundo
as normalidades instituídas. É, portanto, fundamental construir outros espaços de
assistência aos que passam pela experiência da loucura, e tê-la, de fato, como uma
experiência de vida que não uma doença da mente que leva as pessoas à
incapacidade, improdutividade e violência.
A dimensão técnico-assistencial questiona a prática asilar e a manutenção da
necessidade de isolamento e exclusão como formas de tratamento. As propostas
desinstitucionalizantes visam possibilitar o acolhimento e o cuidado, bem como
105
estado do Espírito Santo – moradores que exprimem seus desejos, que se arrumam
para dar uma volta no bairro, que querem aprender a ler e escrever, que não podiam
sair sozinhos mas agora vão sozinhos, de ônibus ou à pé, ao CAPS, que compram
produtos na feira, que ajudam na limpeza e na organização da casa, que batem
papo com o vizinho no portão, que compram refrigerante mais barato, que querem
ver o filho, a mãe, o irmão, dentre diversas outras atividades, inquietudes, vontades
e produções.
Os hábitos e vícios do manicômio não são deixados para trás
instantaneamente, no momento em que saem do asilo e moram em uma casa na
cidade. Como afirma Scarcelli, “o momento que marca a passagem do hospital para
a cidade é carregado de ambigüidade, seja pelo lado dos moradores, seja pelo lado
dos trabalhadores” (2002, p.168) e alguns hábitos devem ser transformados:
profissionais habituados a vigiar e controlar para garantir que as ordens e indicações
sejam cumpridas devem estar atentos para não reproduzirem a submissão
manicomial. No hospital psiquiátrico os ex-internos estavam acostumados à rotina, à
ausência de iniciativa, à mortificação da vida, a obedecer sem questionar e, por
vezes, burlar algumas regras. Uma mudança ampla na atenção, cuidados e nas
relações com a loucura é necessária e lenta. Devemos estar atentos as nossas
regras, atitudes, permissões, punições, tarefas... porque o limite entre o super
cuidado e proteção exagerada, que tutela e infantiliza, e a assistência que ajuda e
não “deixa pra lá” é bastante tênue.
Antonio Lancetti, em seu texto “Quem manda na loucura?” sobre a
experiência da administração em Santos, quando da interdição da Casa de Saúde
Anchieta, afirma que “um indivíduo que passou a maior parte da sua vida num asilo
não muda da noite para o dia. Uma mudança cultural, de mentalidade, não se opera
imediatamente” (1989?, p.04). Tanto os moradores quanto os profissionais que
atuam nas casas passam por aprendizagens cotidianas e pouco a pouco a lógica de
isolamento, exclusão, incapacidade e violência vai sendo desmanchada.
Os moradores precisam de ajuda em algumas situações, e os profissionais
que atuam junto às casas podem e devem ajudar, auxiliar no que for necessário:
para retirar o benefício que recebem; para fazer contas; alguns têm dificuldade em
andar de ônibus, outros não compreendem bem a moeda brasileira e têm dificuldade
106
em realizar pagamentos e conferir o troco; Abigail, por exemplo, gosta de circular, de
passear pelo bairro mas tem medo de ir sozinha devido ao grande número de carros
e motos na região onde mora e só sai de casa acompanhada. A casa deve funcionar
“como um dispositivo de autonomia” (LANCETTI, 1994, p.83), como um local de
referência onde os profissionais ajudam cada morador, em diferentes aspectos, a
ganharem forças e potência para construírem suas vidas cada vez mais de maneira
autônoma.
A proposta de casas para egressos de hospitais psiquiátricos não é fazer dos
que experienciam a loucura uma pessoa familiar e comum, mas é contribuir para que
a sociedade possa vê-los e assumi-los em seus desejos, vontades, medos, dúvidas,
certezas, alegrias, tristezas, dores e conquistas, ou seja, como uma pessoa viva,
que produz, inventa, experimenta, erra, acerta, enfim, uma pessoa que vive. Não se
trata de fazer o louco morar, trabalhar, consumir conforme as normatizações do
capitalismo, mas sim, permitir experimentações e escolhas. Os moradores são uma
população historicamente excluída e isolada buscando, agora, conquistar a cidade
como território de vida.
O processo de desinstitucionalização da loucura é inventivo, ou seja, nos
permite fazer, mexer no território, pesquisar, problematizar, questionar, encontrar
muitas possibilidades e diferentes caminhos. Permite à vida conhecer e
experimentar provisoriedades e transformar-se para sua afirmação e expansão.
Viver não é apenas existir. É também sentir, amar, experimentar, testar, gostar, não
gostar, ter, não ter, comprar, sair, dançar, habitar, conversar, permitir, permitir-se... A
vida pulsa, movimenta-se, é movimento. Nesse sentido, ela não está decidida e
pronta em momento algum, não está resolvida e determinada. Retirar moradores de
manicômios não é a solução última tão esperada. É mais uma atitude, uma
conquista que nos leva a outras lutas, outros desafios e aprendizagens.
As transformações vêm acontecendo devagar. Rogério e Rosana, que não
falavam ao telefone, já conversam por esse aparelho – e podem aprender os
números e realizar ligações; moradores comem utilizando garfo e faca, se
necessário, o que não lhes era permitido; as mulheres, que não podiam sair
sozinhas, já saem para alguns lugares sem supervisão de um responsável, e pouco
a pouco vão conquistando espaços e relações no território. Pode ser que alguns
107
moradores se interessem em mudar para uma outra casa ou apartamento, que
assumam outras responsabilidades, que tenham novos objetivos. Através dessa
pesquisa não definimos a vida das pessoas nos dispositivos residenciais em
Cariacica/ES; apenas buscamos acompanhar diferentes paisagens com a
implantação dessas duas primeiras moradias para egressos do Hospital Psiquiátrico
Adauto Botelho.
Muitos outros movimentos estão sendo configurados no cotidiano das
residências, a partir das diversas atividades e experiências de cada morador, dos
cuidadores, dos estagiários e extensionistas e dos técnicos envolvidos. Não foi
possível relatar aqui todas as mudanças e transformações pelas quais passamos –
profissionais, estagiários, extensionistas e moradores. Os ex-internos saem mais de
casa, existe uma confiança maior dos trabalhadores em relação à capacidade dos
moradores de saírem, de realizarem diferentes atividades, de construírem vínculos.
O contato, cada vez mais crescente, com a comunidade e a cidade contribui,
visivelmente, para a construção de autonomia, resgate de direitos, deveres e
vontades de cada morador.
Existem dificuldades no longo e complexo processo social de
desinstitucionalização da loucura, mas a cada dia percebemos que as moradias para
pessoas que ficaram internadas em manicômios por tantos anos, são um caminho
que contribui para o processo de Reforma Psiquiátrica. Vivendo nessas casas,
habitando o território, construindo projetos e expectativas de vida, o que não
acontecia no espaço mortificante do hospital, vemos, sentimos e ganhamos força
para continuarmos a fazer esse caminho de transformações efetivas no que diz
respeito à loucura e àqueles que passam por essa experiência. Outras situações,
paisagens, acontecimentos trarão novas transformações para a vida desses
moradores, dos técnicos, estagiários, extensionistas, familiares e vizinhos. A
aprendizagem cotidiana não cessa, basta deixar-se afetar.
108
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ANEXOS
116
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA ENTREVISTA COM PROFISSIONAIS EM SAÚDE MENTAL E EXTENSIONISTAS DA UFES O senhor ________________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por exercer atividade como profissional em saúde mental ou como extensionista da UFES em um dos dois dispositivos residenciais inaugurados em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo acompanhar os movimentos que se configuram no campo social a partir do processo de implementação dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, fazendo uma análise crítica desse processo, atentos para a manutenção ou não da lógica manicomial. Pretendo, então, analisar as propostas atuais do processo de Reforma Psiquiátrica no que diz respeito à constituição dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Estado, bem como analisar os processos de desospitalização e desinstitucionalização da loucura. Para obtenção dos dados para esta pesquisa, serão realizadas entrevistas semi-estruturadas, gravadas quando permitido, com moradores dessas casas, com a equipe técnica responsável, com extensionistas do Departamento de Psicologia da UFES e com pessoas vizinhas, bem como estarei participando de atividades nas residências terapêuticas e nas reuniões técnicas da equipe e na supervisão do projeto de extensão, quando permitido. Os dados obtidos serão utilizados apenas para os fins desta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Com esta pesquisa, busco contribuir para a melhoria na atenção e tratamento aos que passam pela experiência da loucura.
Os nomes verdadeiros não serão utilizados. Utilizarei nomes fictícios ou letras para dar nome a quem fala.
A participação desta pesquisa é livre e depende apenas do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa tomar as devidas providências e retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer transtorno ou conseqüência para o senhor ou para as atividades que realiza, ou que virá a realizar. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer espécie.
Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser solicitado a qualquer momento, dirigindo-se a mim. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que o senhor me transmitir. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.
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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO NAS REUNIÕES, SUPERVISÕES E ATIVIDADES DE TRABALHO JUNTO AOS PROFISSIONAIS EM SAÚDE MENTAL E EXTENSIONISTAS DA UFES O senhor ________________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio:dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por exercer atividade como profissional em saúde mental ou como extensionista da UFES em um dos dois dispositivos residenciais inaugurados em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo.
Esta pesquisa tem como principal objetivo acompanhar os movimentos que se configuram no campo social a partir do processo de implementação dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, fazendo uma análise crítica desse processo, atentos para a manutenção ou não da lógica manicomial. Pretendo, então, analisar as propostas atuais do processo de Reforma Psiquiátrica no que diz respeito à constituição dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Estado, bem como analisar os processos de desospitalização e desinstitucionalização da loucura. Para obtenção dos dados para esta pesquisa, serão realizadas entrevistas semi-estruturadas, gravadas quando permitido, com moradores dessas casas, com a equipe técnica responsável, com extensionistas do Departamento de Psicologia da UFES e com pessoas vizinhas, bem como estarei participando de atividades nas residências terapêuticas e nas reuniões técnicas da equipe e na supervisão do projeto de extensão, quando permitido. As observações e participações das reuniões serão realizadas no decorrer do ano de 2005. Se houver, por qualquer motivo, algum constrangimento de sua parte, estou aberta e disposta para conversarmos e resolvermos a situação da melhor forma possível. Estarei atenta para evitar desconforto, procurando estabelecer uma relação de confiança e um diálogo franco e aberto entre mim, o senhor e os demais participantes. Terei todo o cuidado para que nada que possa vir a prejudicar suas atividades seja feito. Os dados obtidos serão utilizados apenas para os fins desta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Com esta pesquisa, busco contribuir para a melhoria na atenção e tratamento aos que passam pela experiência da loucura. Os nomes verdadeiros não serão utilizados. Utilizarei nomes fictícios ou letras para dar nome a quem fala.
A participação desta pesquisa é livre e depende apenas do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa tomar as devidas providências e retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer transtorno ou conseqüência para o senhor ou para as atividades que realiza, ou que virá a realizar. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser solicitado a qualquer momento, dirigindo-se a mim. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize os dados coletados nas reuniões, supervisões e atividades de trabalho. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.
118
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MORADORES DOS DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS. Para entrevista O senhor ______________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por ser morador de um Serviço Residencial Terapêutico inaugurado em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar os Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, analisar as atividades dessas casas observando se ainda existe preconceito e exclusão da loucura e dos ex-internos do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho. Eu farei entrevistas e gravarei a sua, se o senhor autorizar. Serão entrevistados moradores das residências, vizinhos, as cuidadoras, os profissionais responsáveis pelas moradias e os alunos que participam do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo. Eu também estarei participando de atividades que acontecem nas casas e de reuniões com os profissionais responsáveis e com os alunos do Projeto da UFES. As informações obtidas através das entrevistas e da participação nas atividades nas residências e das reuniões serão utilizadas apenas para esta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Espero que haja mais melhorias na assistência de ex-internos de manicômios e no tratamento de quem é considerado louco. Seu nome e dados pessoais não serão colocados na pesquisa. Eu utilizarei nomes falsos, inventados ou apenas letras para dar nome a quem fala.
A participação desta pesquisa é livre e depende só do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer problema para o senhor ou para o tratamento e atendimento que faz agora ou que fará no futuro. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer tipo. Não haverá qualquer tipo de pagamento ao senhor, ao Hospital Adauto Botelho ou à equipe de profissionais e o senhor não terá despesa alguma para participar desta pesquisa. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser pedido a qualquer momento, falando comigo. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que o senhor me passar. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.
119
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MORADORES DOS DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS. Para participação nas atividades da residência
O senhor __________________________________________________ foi
selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhido por ser morador de um Serviço Residencial Terapêutico inaugurado em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar os Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, analisar as atividades dessas casas observando se ainda existe preconceito e exclusão da loucura e dos ex-internos do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho. Eu entrevistarei moradores das residências, vizinhos, as cuidadoras, os profissionais responsáveis pelas moradias e os alunos que participam do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo.
Eu também participarei de atividades que acontecem nas casas e de reuniões com os profissionais responsáveis e com os alunos do Projeto da UFES. As observações e participações das atividades da casa serão realizadas durante o ano de 2005 (este ano). Se houver, por qualquer motivo algum incômodo para o senhor, me procure para conversarmos e resolvermos a situação da melhor forma possível. Estarei atenta para evitar desconforto, procurando ter uma relação de confiança entre mim, o senhor e os outros moradores e participantes das atividades.
As informações obtidas através das entrevistas e da participação nas atividades nas residências e das reuniões serão utilizadas apenas para esta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Espero que haja mais melhorias na assistência de ex-internos de manicômios e no tratamento de quem é considerado louco. Seu nome e dados pessoais não serão colocados na pesquisa. Eu utilizarei nomes falsos, inventados ou apenas letras para dar nome a quem fala.
A participação desta pesquisa é livre e depende só do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer problema para o senhor ou para o tratamento e atendimento que faz agora ou que fará no futuro. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer tipo. Não haverá qualquer tipo de pagamento ao senhor, ao Hospital Adauto Botelho ou à equipe de profissionais e o senhor não terá despesa alguma para participar desta pesquisa. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser pedido a qualquer momento, falando comigo. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que o senhor me passar. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.
120
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA ENTREVISTA COM VIZINHOS AOS DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS EM CARIACICA/ES.
O senhor _____________________________________________________ foi selecionado a participar da pesquisa “A loucura sai do manicômio: dispositivos residenciais no Espírito Santo”. O senhor foi escolhida por morar ou trabalhar próximo a um dos dois Serviços Residenciais Terapêuticos inaugurados em 2004 no município de Cariacica, Espírito Santo. Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar os Serviços Residenciais Terapêuticos no Espírito Santo, analisar as atividades dessas casas e a comunidade observando se ainda existe preconceito e exclusão da loucura e dos ex-internos do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho. Eu farei entrevistas e gravarei a sua, se o senhor autorizar. Serão entrevistados moradores das residências, vizinhos, as cuidadoras, os profissionais responsáveis pelas moradias e os alunos que participam do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo. Eu também estarei participando de atividades que acontecem nas casas e de reuniões com os profissionais responsáveis e com os alunos do Projeto da UFES. As informações obtidas através das entrevistas e da participação nas atividades nas residências e das reuniões serão utilizadas apenas para esta pesquisa, que será divulgada em abril de 2006. Espero que haja mais melhorias na assistência de ex-internos de manicômios e no tratamento de quem é considerado louco.
Seu nome e dados pessoais não serão colocados na pesquisa. Eu utilizarei nomes falsos, inventados ou apenas letras para dar nome a quem fala.
A participação desta pesquisa é livre e depende só do senhor. O senhor pode desistir de participar da pesquisa por qualquer motivo, em qualquer momento do desenvolvimento deste trabalho. Se isso acontecer, peço que me comunique de sua decisão para que eu possa retirar as informações que dizem respeito ao senhor, sem que haja qualquer transtorno ou conseqüência para o senhor ou para as atividades que o senhor realiza agora ou que virá a realizar. O senhor pode não responder qualquer pergunta que lhe traga constrangimento de qualquer tipo. Não haverá qualquer tipo de pagamento ao senhor, ao Hospital Adauto Botelho ou à equipe de profissionais e o senhor não terá despesa alguma para participar desta pesquisa. Qualquer informação que desejar, qualquer esclarecimento, pode ser pedido a qualquer momento, falando comigo. Agradeço sua participação nesta pesquisa. Peço que assine abaixo permitindo que eu utilize as informações que a senhora me passar. Camila Mariani Silva Local e data Declaro que compreendi o termo acima e consinto em participar desta pesquisa. Declaro também que recebi cópia deste termo de consentimento. Nome e assinatura do participante Local e data OBS: Em caso de dúvida, reclamação ou quando necessário, contatar a pesquisadora Camila Mariani Silva pelo telefone (27) 9996-2096 ou (27) 3324-3808, ou ainda pelo endereço Av. César Hilal, 1405, Bloco A, aptº 1202, cep: 29052-231, Vitória/ES. Você também pode entrar em contato com a professora orientadora Ariane Ewald, através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ pelo telefone (21) 2587-7304 ou pelo endereço Rua São Francisco Xavier, 524 – sala 10.019, Bloco F, Maracanã, cep: 20.559-900, Rio de Janeiro/RJ.
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