Upload
trankien
View
217
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
A Lua d’Além-Mar
Paulo Eduardo Padilha
A Lua d’Além-Mar
Copyright © 2013 by Paulo Eduardo França Padilha
Título em kaupelanês: Unin Aiso Tasi
1ª Edição
Registro no Escritório de Direitos Autorais
Fundação Biblioteca Nacional
Número de Registro: 545.818
Livro: 1039 Folha: 98
À minha família e
À memória de meu pai.
7
Prólogo
Reza a lenda que na terra dos espíritos, Naiwatera, o
deus-sol, escolheu a bela Mawaunin, a deusa-lua, para se ca-
sar. Como prova de seu amor resolveu presentear a amada
com a Lua de Prata, um amuleto mágico forjado em tempos
imemoriais na terra mística de Bharat.
Mawaungi, a deusa da escuridão e irmã gêmea da lua,
ficou terrivelmente enciumada por ter sido preterida pelo po-
deroso senhor. Inconformada, mandou matar um búfalo negro
em honra de Yaruk, o espírito das trevas. Falou a fórmula
mágica, utilizando as palavras da língua sagrada para invocá-
lo.
Ridi wele nai, nitu mwole yaatē,
Abat sae ina nwok, wone mwuri wal,
Na mwaimai saya’e na nguwatē
Na mwalu atma nye ina nwal.
Conjuro-te, ó Espírito das Trevas,
Para, uma era depois, renascer.
Em troca dest’alma que levas,
Traze-me muito ouro e poder.
Seu pedido foi prontamente atendido e o gênio maligno
veio de seu reino no mundo inferior, pois há muito cobiçava
tal amuleto que lhe traria grande poder e aumentaria seu do-
8
mínio sobre a terra dos homens. Não ousava, porém, enfrentar
Naiwatera diretamente, preferindo agir de forma sorrateira,
corrompendo as pessoas e aproveitando-se de suas fraquezas e
temores para dominá-las e escravizá-las.
E assim, mais uma vez, a sombra do Mal pairou sobre a
Humanidade. Um exército de maus espíritos atendeu ao cha-
mado de seu mestre e veio à Terra para influenciar os bruxos
e bruxas a fazer toda a sorte de perversidades e malefícios.
No entanto, os homens não estavam desamparados. O
deus-sol contava com gênios bons, espíritos guardiões e an-
cestrais, para proteger a Terra. Estes agiam através de feiticei-
ros, curando, abençoando e resgatando as almas enfraquecidas
e perdidas. Trava-se assim a eterna luta entre o Bem e o Mal.
9
Capítulo 1
O Cordão de Prata
– Aê mano, que treta é essa? Cê sentou o dedo, mano! –
gritou o moleque de jaqueta impermeável cinza no ouvido do
seu parceiro.
– É nós, véio. Quando eu colei no bacana, ele tava de
zoeira na fita, me tirando, aí eu apaguei ele, certo? – respon-
deu o outro moleque, com um sorriso meio sarcástico. – Fir-
meza? – completou, escondendo-se atrás do capuz preto.
– Cê é sem noção, mano! O tio tava entregando o bagu-
lho. Parada errada, mano, cê passou o cara! Agora a casa caiu,
tá ligado? Vou vazar, mano – disse o primeiro, já correndo.
Sozinho, meio chapado, o segundo garoto demorou um
pouco mais e, enquanto guardava a arma sob o casaco, con-
templou o estrago que havia feito. O cara estava ali na sua
frente, inerte, com a cabeça toda ensanguentada caída em ci-
ma do volante da Captiva. Pra largar a mão de ser otário, pen-
sou. O trânsito todo parado na Alameda Santos. Ele foi saindo
calmamente, com cara de quem era senhor da vida e da morte.
Ninguém ousava reagir. Ninguém ousava se aproximar, nem
mesmo encará-lo de frente. Mesmo sendo final de julho, o
calor da tarde não justificava o casaco preto, o capuz na cabe-
ça, mas ele não estava nem aí. Com ele era assim mesmo, tá
ligado?
– Já era, véio – completou, quase como uma justificati-
va para si mesmo. Mais uma morte nas costas.
10
Desceu a Rua Bela Cintra sem ser importunado por nin-
guém, sentindo-se todo poderoso. Acreditava mesmo que era
praticamente invencível, invulnerável, com um revólver na
mão. Mal sabia que, dias depois, morreria crivado de balas
num terreno baldio, por causa de uma discussão idiota sobre
um mísero relógio roubado.
O carro continuava parado na rua atrapalhando o trânsi-
to. Os de trás conseguiram mudar de faixa e partiram rápido,
as pessoas horrorizadas com o que viam, querendo sumir dali.
O medo era grande demais para permitir que elas ficassem,
prestassem algum socorro ou pelo menos servissem de teste-
munha de mais um crime bárbaro. E por muitos dias teriam
assunto para conversas sobre a violência em São Paulo.
Demorou até que o vigia de um dos prédios, que pre-
senciara tudo, se aproximasse. Então outros transeuntes tam-
bém chegaram perto meio ressabiados. Alguém avisou o res-
gate. Logo apareceu uma ambulância com as luzes piscando e
a sirene ligada. Dois paramédicos, cujo trabalho obrigava-os a
conviver quase que diariamente com situações desse tipo,
começaram a agir. Um deles abriu a porta da Captiva e tomou
o pulso da vítima, certo de que o indivíduo já estava morto.
Para sua surpresa, ainda havia pulso. Fraco, mas havia. Base-
ado em sua experiência em casos semelhantes, a morte era
uma questão de minutos. De todo jeito, começou ali mesmo
os procedimentos de emergência. A primeira medida era ten-
tar garantir a respiração e a circulação sanguínea, tentar um
mínimo de estabilização do quadro para poder transportar o
paciente para o hospital.
Pouco depois, ajudado pelo colega, começou a retirar o
homem do carro. Nessa altura, uma viatura de polícia também
11
já tinha chegado e os policias procuravam por testemunhas
dispostas a descrever os criminosos em meio à multidão de
curiosos que começara a se formar. Tarefa difícil encontrar
quem se dispusesse a testemunhar num caso desses. Todos
tinham medo de identificar os bandidos. Com a ineficiência
da justiça, mesmo que os pegassem, os marginais poderiam
ser soltos logo depois e tentar se vingar dos que os haviam
delatado.
Eu assistia a tudo, horrorizado. Cheguei poucos instan-
tes depois do tiro e me juntei ao grupo que observava a cena.
Ainda pude ouvir o diálogo dos moleques. Como neurocirur-
gião de um renomado hospital, teria prestado os primeiros
socorros, logo após a fuga deles, mas os paramédicos, que
chegaram rápido, estavam bem preparados e melhor equipa-
dos para atender a vítimas nessa situação. Aliás, havia muito
pouco a fazer, o prognóstico era extremamente ruim num caso
desses. As chances de sobrevivência com um tiro de 38 na
cabeça, à queima-roupa, eram praticamente nulas.
O sol já estava baixo por volta das cinco da tarde, mas
seu o brilho ainda era intenso e ofuscava a vista. Mesmo as-
sim, consegui ver quando colocaram o homem, um sujeito
branco aparentando uns trinta e poucos anos, na maca. O rosto
estava desfigurado e a roupa encharcada de sangue. Rapida-
mente puseram a maca na ambulância que partiu sem demora
abrindo caminho pelas ruas congestionadas do centro. Um
policial manobrava o carro que fora deixado no meio da rua,
para desobstruí-la.
Eu era admirado por meus colegas por efetuar cirurgias
complexas com grande habilidade e destreza. Muitas vezes,
surpreendia profissionais mais antigos e experientes. Diziam
12
que eu tinha uma aptidão inata para realizar operações consi-
deradas impossíveis e, dada minha pouca idade, alguns diziam
que eu realizava verdadeiros milagres, como se tivesse um
dom divino para a cura. Na verdade, eu acreditava que tudo
era fruto de muita persistência, dos estudos numa conceituada
faculdade, de boa formação teórica e de uma equipe cirúrgica
bastante capaz. Além de trabalhar num excelente hospital com
equipamentos de última geração.
Há tempos que eu me considerava cético e agnóstico,
refratário a qualquer forma de espiritualidade. Já tinha ficado
para trás a época em que eu era um homem de fé. Além do
mais, atravessava um momento bastante difícil da vida. Sen-
tia-me profundamente só. Essa solidão fora causada pela mor-
te de meu pai há um ano e agora, por uma decepção amorosa.
Naquele instante, porém, eu me peguei refletindo sobre
o trágico destino que se abatera sobre a vítima de um crime
tão cruel, a triste sina de um trabalhador, talvez pai de família,
que tivera a vida ceifada por dois menores drogados, inconse-
quentes, para obter dinheiro para mais drogas. Vi-me, de re-
pente, pensando em Deus e na alma do pobre sujeito, pairando
no limbo, nos umbrais de uma outra dimensão, desligando-se
de uma maneira tão abrupta da vida terrena.
O aglomerado de pessoas começou a se desfazer. Eu
também fui saindo, surpreendendo-me por ter ficado tanto
tempo ali, mergulhado em divagações. Tinha compromissos
importantes e, convenhamos, era uma completa insanidade
ficar parado numa rua como a Alameda Santos, em plena re-
gião central de São Paulo. Não sabia o que me dera na cabeça
de ficar ali espiando, no meio dos curiosos. Não era do meu
feitio esse tipo de atitude.
13
Mal sabia a história fantástica que eu seria protagonista
a partir dali. Realmente, difícil de acreditar. Teria sido tudo
verdade? Ou apenas um sonho, fruto da minha imaginação,
em que a realidade se confunde com projeções do subconsci-
ente? Pior ainda, tudo não passaria de obra de uma mente per-
turbada, doente, com profundos problemas psíquicos, buscan-
do justificar com atitudes insanas traumas vividos ao longo da
vida?
Olhei novamente para o veículo estacionado no meio-
fio. Um pensamento absurdo passou-me pela cabeça. E se
fosse comigo? Afinal eu fazia esse mesmo trajeto de carro
todo dia quando ia para o hospital. Podia ter sido eu.
Tentei me concentrar nas atividades que teria em segui-
da. Pensei nos pacientes do setor de neurologia. Alguns casos
bastante difíceis, intervenções cirúrgicas. Mas meus pensa-
mentos se voltavam novamente para o infeliz que havia sido
baleado. Estaria ele ainda vivo? Após sofrer uma lesão cere-
bral traumática tão grave? A pressão intracraniana havia sido
controlada? Teria havido perda de massa encefálica?
Algumas religiões falam que o espírito se liga ao corpo
por um sutil cordão de prata. Quando sonhamos, nosso espíri-
to viaja, mas fica ligado ao corpo por ele. Na morte ele se
rompe, libertando o espírito. O desse homem já teria se rom-
pido? Instintivamente levei a mão ao pescoço tocando o cor-
dão de prata que usava desde criança.
Apesar da formação católica, há muito me afastara da
igreja. Pragmático, procurava não pensar muito em assuntos
transcendentais. Mas, continuava pensando no estado do mo-
ço que levara o tiro. E surpreendi-me com tais pensamentos
místicos. Talvez ele já estivesse rumo à eternidade, ao inson-
14
dável. O que viria a seguir? A presença de Deus? Dos entes já
falecidos? Haveria o tão esperado paraíso? Ou tudo acabaria
ali mesmo?
Deprimido como andava, pensei que, se fosse eu, nin-
guém choraria minha morte. Meus queridos pais já eram fale-
cidos. Dei-me conta de como estava só. Irremediavelmente só.
Ninguém choraria minha morte! Estava acostumado ao papel
de médico, salvando vidas, não ao de paciente, de vítima. Não
pensava muito na ideia da morte, mas conjeturei que não esta-
va preparado para morrer. Por outro lado, ponderei que nin-
guém está preparado para esse momento. Ainda sonhava en-
contrar um grande amor, casar, ter um filho talvez. Fazer algo
grandioso, enfim, dar uma razão para minha existência. Entre-
tanto, pensando bem, se fosse comigo, seria melhor assim.
Partir sem deixar herdeiros, sem deixar uma viúva, sem deixar
parentes tristes. Não tinha irmãos. Meu pai havia morrido no
ano anterior e minha mãe, pouco antes de eu entrar na Univer-
sidade de São Paulo. Eu tinha uns poucos amigos, é verdade,
com quem saía de vez em quando e que certamente sentiriam
minha falta, mas nada que não estivesse superado depois de
um curto espaço de tempo.
À noite, uma bela lua cheia surgiu no céu sem nuvens e
derramou seu brilho prateado sobre a cidade. A claridade da
grande metrópole e o ritmo de vida dos dias atuais fazia com
que poucos olhassem para o céu e reparassem nela. Em outros
tempos, sua influência na vida das pessoas foi bem mais signi-
ficativa.