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ALuisLlosaUreta,emseusilêncio,

eaoskenkitsatatsiriramachiguengas.

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I

VIMaFlorençaparaesquecer-meporumtempodoPeruedosperuanoseeisqueomalfadadopaísmeveioaoencontroestamanhãdamaneiramaisinesperada.HaviavisitadoareconstruídacasadeDante,aigrejinhadeSanMartinodelVescovoearuazinhaondealendadizqueeleviuBeatrizpelaprimeiravez,quando,naRuadeSantaMargherita,umavitrinamedetevedebrusco:arcos,flechas,umremolavrado,umcântarocomdesenhosgeométricoseummanequimembutidoemumacushma[1]dealgodãosilvestre.Masforamtrêsouquatrofotografiasquemedevolveram,dechofre,osabordaselvaperuana.Oslargosrios,ascorpulentasárvores,asfrágeiscanoas,asfracascabanassobrepalafitaseosviveirosdehomensemulheres,seminuselambuzadosdetinta,contemplando-mefixamentedesuasbrilhantescartolinas.

Naturalmente,entrei.Comumaestranhaexcitaçãoeopressentimentodeestarfazendoumaburrice,arriscando-me por uma curiosidade banal a frustrar, de algum modo, o projeto tão bem planejado eexecutadoatéagora—lerDanteeMaquiaveleverpinturarenascentistadurantedoisoutrêsmeses,emirredutível solidão—,aprovocarumadessasdiscretashecatombesque,dequandoemquando,põemminhavidadecabeçaparabaixo.Mas,naturalmente,entrei.

A galeria era minúscula. Uma só peça de teto rebaixado e ao qual, para poder exibir todas asfotografias, tinham acrescentado dois painéis, atulhados tambémde imagens em ambos os lados.Umaraparigamagra,deóculos,sentadaatrásdeumamesinha,olhou-me.Podiavisitaraexposição"Inatividellaforestaamazónica"?

—Certo.Avanti,avanti.

Não havia objetos no interior da galeria, só fotografias, pelo menos umas cinqüenta, a maioriabastantegrandes.Careciamdelegendas,masalguém,talvezopróprioGabrieleMalfatti,escreveraduaslaudas para indicar que as fotografias foram feitas durante uma viagem de duas semanas pela regiãoamazônicadosdepartamentosdeCuscoeMadredeDios,noOrienteperuano.Oartistapropusera-seadescrever, "semdemagogia nemesteticismo", a existência quotidiana de uma tribo que, até há poucosanos,viviaquasesemcontatocomacivilização,disseminadaemunidadesdeumaouduasfamílias.Sóemnossos dias começava a agrupar-se naqueles lugares documentados pelamostra,masmuitos delespermaneciamaindanafloresta.Onomedatriboestavaespanholizadosemerros:osmachiguengas.

As fotografiasmaterializavambastantebemopropósitodeMalfatti.Aliestavamosmachiguengaslançandooarpãodamargemdorio,ou,semi-ocultosnomato,preparandooarcoembuscadacapivaraouda huangana; ali estavam, recolhendomandioca nas diminutas hortas esparramadas à volta de suasnovasaldeias—talvezasprimeirasdesualongahistória—,roçandoomatoafacãoeentrelaçandoasfolhas das palmeiras para cobrir suas vivendas. Uma roda demulheres tecia esteiras e cestos, outra

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preparava cocares, engastando vistosas penas de papagaio e arara em aros demadeira. Ali estavam,decorandominuciosamentesuascaraseseuscorposcomtintadourucu,fazendofogo,secandocouros,fermentandomandiocaparaomasatoemrecipientesemformadecanoa.Asfotografiasmostravamcomeloqüência comoerampoucosnaquela imensidadede céu, água evegetaçãoqueos cercava, suavidafrágil e frugal, seu isolamento, seu arcaísmo, sua vulnerabilidade. Era verdade: sem demagogia nemesteticismo.

Istoquevoudizernãoéuma invençãoaposteriorinemumafalsa recordação.Estoucertodequepassavadeumafotografiaàseguintecomumaemoçãoque,emdadomomento,setornouangústia.Quehácomvocê?Quepoderiaencontrarnestasimagensquejustifiquesemelhanteansiedade?

DesdeasprimeirasfotografiastinhareconhecidoasclareirasondeselevantamNuevaLuzeNuevoMundo não fazia três anos que havia estado neles— e, inclusive, ao ver uma panorâmica do últimodestes lugares,amemóriame ressuscitounoatoa sensaçãodecatástrofecomqueviviaaterrissagemacrobáticaquefizemos lá,naquelamanhã,noCessnadoInstitutoLingüístico,paradesviardecriançasmachiguengas. Também me parecera reconhecer algumas caras dos homens e mulheres com quem,ajudado porMr. Schneil, conversei.E isto se fez certeza quando, emoutra das fotografias, vi, com amesmabarriguinha inchadaeosmesmosolhosvivosqueaminha lembrançaconservava,omeninodebocaenarizcomidospelauta[2].Mostrava à câmera, comamesma inocência enaturalidade comquemostraraanós,esseburacocomcaninos,céudabocaeamígdalasquelhedavaumardeferamisteriosa.

Afotografiaqueesperavadesdequeentreinagaleriaapareceuentreasúltimas.Aoprimeiroolharpercebia-sequeaquelacomunidadedehomensemulheressentadosemcírculo,àmaneiraamazônica—parecidaàoriental:aspernasemcruz,flexionadashorizontalmente,otroncoerecto—,ebanhadosporumaluzquecomeçavaaceder,decrepúsculotornando-senoite,estavahipnoticamenteconcentrada.Suaimobilidade era absoluta.Todas as caras orientavam-se, comoos raios deuma circunferência, para opontocentral,umasilhuetamasculinaque,depé,nocoraçãodarodademachiguengasimantadosporela,falava,movendoosbraços.Sentiumfrionascostas.Pensei:"ComofoiqueesteMalfatticonseguiuquelhe permitissem, como fez para...?" Baixei-me, aproximei muito meu rosto da fotografia. Estiveexaminando-a, cheirando-a, perfurando-a com os olhos e a imaginação até que notei que a moça dagalerialevantava-sedesuamesinhaevinhaatémim,inquieta.

Fazendoumesforçoparameserenar,perguntei-lheseasfotografiaseramvendidas.Não,acreditavaquenão.EramdaEditoraRizzoli.Publicariaum livrocomelas, achava.Pedi-lhequemepusesseemcontatocomofotógrafo.Nãoseriapossível,infelizmente:

—IlsignoreGabrieleMalfattièmorto.

Morto?Sim.Deumasfebres.Umvíruscontraídonaquelasselvas,forse.Ocoitado!Eraumfotógrafodemodas,tinhatrabalhadoparaVogue,paraUomo,revistasassim,fotografandomodelos,móveis,jóias,

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vestidos.Passaraavidasonhandocomfazeralgodiferente,maispessoal,comoestaviagemàAmazônia.E quando afinal pôde realizá-lo e iam publicar um livro com seu trabalho, morria! E, agora, ledispiaceva,maseraahoradopranzoetinhaquefechar.

Agradeci-lhe.Antesdesaireenfrentar-meumavezmaiscomasmaravilhaseashordasdeturistasdeFlorença,pudeaindadarumaúltimaolhadaàfotografia.Sim.Semamenordúvida.Umfalador.

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II

SAÚLZURATAStinhaumamancharoxa-escura,vinhoavinagrado,quelhecobriatodooladodireitodacara,eunscabelosvermelhosedespenteadoscomoascerdasdeumescovão.Amanchanãorespeitavaaorelhanemoslábiosnemonariz,aosquaistambémmarcavacomuminchaçovenoso.Eraorapazmaisfeiodomundo;massimpáticoeboagente.Nãoconhecioutrapessoaquedesse,desaída,comoele,essaimpressãodepessoatãofranca,semarestas,desprendidaedebonsinstintos,ninguémquemostrasseumasimplicidade e um coração semelhantes em qualquer circunstância. Eu o conheci quando prestávamosexamesparaingressonaUniversidadeefomosmuitoamigos—namedidaemquesepodeseramigodeumarcanjo—sobretudonosdoisprimeirosanos,quecursamosjuntosnaFaculdadedeLetras.Nodiaemqueoconhecielemeadvertiu,morrendoderireapontandoparaasuamancha:

—TodosmechamamdeMascarita,compadre.Eapostoquenãosabeporquê.

NóstambémochamávamosporesteapelidoemSanMarcos.

Tinha nascido em Talara e tratava todo mundo de compadre. Palavras e ditos da fala das ruasbrotavam em cada frase que dizia, dando à sua conversa íntima inclusive um ar de chacota. Seuproblema, dizia, era que o pai ganhara demais como armazém lá no povoado, tanto que umbelo diadecidiumudar-separaLima.Edesdequetinhamvindoparaacapitalovelhodera-seaojudaísmo.Nãoeramuitoreligioso,lánoportopiurano,queSaúlselembrasse.Umavezououtravira-olendoaBíblia,sim, mas nunca se preocupou em inculcar a Mascarita que pertencia a outra raça e a outra religiãodiferentedasdosrapazesdopovoado.AquiemLima,entretanto,sim.Queporra!Navelhice,espinhas.Ou,melhordizendo,areligiãodeAbraãoeMoisés.Porra!Nóséramosunssortudossendocatólicos.Areligião católica era um pão commanteiga de tão fácil, umamissinha demeia hora cada domingo ecomunhõescadaprimeirasexta-feiradomêsquepassavamvoando.Ele,emtroca,tinhaqueseenfiarnossábadosnasinagoga,horasafio,segurandoosbocejosefingindointeressar-sepelossermõesdorabino—quenãoentendiapatavina—paranãodecepcionaropai,que,afinaldecontas,eraumvelhotemuitoboagente.SeMascaritalhetivesseditoquefaziatempodeixaradeacreditaremDeuseque,empoucaspalavras,issodepertenceraopovoeleitonãoointeressavaemnada,opobreDomSalomónteriatidoumfaniquito.

ConheciDomSalomónnãomuitodepoisqueSaúl,umdomingo.Saúltinhameconvidadoaalmoçar.AcasaficavaemBreña,atrásdoColégioLaSalle,emumatransversalsombriadaAvenidaArica.Eraumacasaextensa,repletademóveisvelhos,ecomumpapagaiofaladordenomeesobrenomekafkianos,querepetia todoo tempooapelidodeSaúl:"Mascarita!Mascarita!"Paie filhoviviamsozinhos,comumacriadaquevieracomelesdeTalaraeque,alémdecozinharparaeles,ajudavaDomSalomónno

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mercadinhoqueabriraemLima."Aquele,odagradedeferrocomumaestreladeseispontas,compadre.Chama-seLaEstrellaporcausadaestreladeDavi,jápensou?"

FiqueiimpressionadocomoafetoeasatençõesqueMascaritaprodigalizavaaseupai,umanciãoencurvado,barbacrescida,quearrastavaunspésdeformadospelosjoanetesemsandáliasquepareciamcoturnosromanos.Falavaespanholcomfortepronúnciarussaoupolonesa,eissoque,medisse,jáestavahá mais de vinte anos no Peru. Tinha um ar velhaco e simpático: "Eu, quando pequeno, queria sertrapezistadecirco,masavidaacaboumefazendomercador,vejaosenhorquedecepção."

EraSaúlseuúnicofilho?Sim,era.EamãedeMascarita?MorreradoisanosdepoisqueafamíliasemudaraparaLima.Cara,quepena;poressafotografiadesuamãe,vê-sequedeviasermuitomoça,nãoé,Saúl?Sim,era.Bem,deumlado,claroqueMascaritasentiaamortedela.Mas,deoutro,talveztivessesidomelhorparaelamudardevida.PorquesuapobrevelhasofriamuitíssimoemLima.Elemefezsinaisparaqueeumeaproximasseebaixouavoz (precaução inútil porque tínhamosdeixadoDomSalomónprofundamenteadormecidoemumacadeiradebalançodasaladejantarenósconversávamosnoquartodele)paradizer:

—MinhamãeeraumacrioulinhadeTalaraqueovelhoarranjoulogoquechegoucomorefugiado.Parecequeviviamamigados,atéqueeunasci.Sóentãosecasaram.Vocêimaginaoqueéparaumjudeucasar-secomumacristã,comoquechamamosumagoye?Não,vocênãosabeoqueéisso.

LáemTalaraacoisanãotinha tidoamenor importânciaporqueasduasfamílias judiasdolugaraestavammeiomisturadas na sociedade local.Mas ao se instalar emLima, amãedeSaúl tevemuitosproblemas.Sentiamuitoafaltadesuaterra,desdeocalorzinhoeocéusemnuvens,desolradiantetodooano,atéseusparenteseamigos.Deoutraparte,acomunidadejudiadeLimanuncaaaceitou,pormaisqueela,paraagradaraDomSalomón,tivesseconcordadoemtomarobanhodapurificaçãoeseinstruirpelorabinoafimdecumprircomtodososritosdaconversão.Naverdade—eSaúlmepiscouumolhotravessoacomunidadenãoaaceitavanemtantoporserumagoyecomoporserumacrioulinhadeTalara,umamulhersimples,semeducação,quemalsabialer.PorqueosjudeusdeLimatinhamsetornadounsburgueses,compadre.

Elemediziaistosemqualquertraçoderaivaoudramatismo,comaaceitaçãotranqüiladealgumacoisaque,pelovisto,nãoteriapodidoacontecerdeoutramaneira."Eueminhavelhaéramoscomounhae carne. Ela também se aborrecia na sinagoga e, sem que Dom Salomón notasse, para que aquelessábadosreligiosospassassemmaisdepressa,jogávamosdisfarçadamenteoYan-Ken-Po.Adistância.Elasesentavanaprimeirafiladagaleriaeeuembaixo,comoshomens.Mexíamosasmãosaomesmotempoe às vezes tínhamos ataques de riso que espantavamos piedosos."Um câncer fulminante a levou, empoucassemanas.Edesdeamortedela,DomSalomónviuomundodesabar.

—Essevelhinhoquevocêviuali,dormindoasesta,eraháunsdoisanosumhomeminteiro,cheio

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deenergiaeamorpelavida.Amortedaminhavelhaodemoliu.

***

Saúl tinhaentradonaSanMarcos,paracursarDireitoe fazerogostodeDomSalomón.Porele, teriaficadoparaajudá-loemLaEstrella,quedavamuitasdoresdecabeçaaopaielheexigiamaisesforçosdo quemerecia, em sua idade.Mas Dom Salomón foi terminante. Saúl não poria os pés atrás dessebalcão.Saúljamaisatenderiaaumfreguês.Saúlnãoseriaumcomerciantecomoele.

—Masporquê,velhinho?Estácommedodeque,comestacara,euespantesuafreguesia?—Elemediziaistoentregargalhadas.—Averdadeéque,agoraquepôdeeconomizaralgumdinheirinho,DomSalomónquerqueafamíliafiqueimportante.EjáestámevendolevarosobrenomeZuratasàdiplomaciaouàCâmaradosDeputados.Poxa!

Fazerilustreonomedefamília,exercendoumaprofissãoliberal,eraalgumacoisacomqueSaúlnãoseiludiamuito.Quelheinteressavanavida?Aindanãosabia,defato.Masofoidescobrindonaquelesmeses e anos da nossa amizade, na década dos cinqüenta, naquele Peru que ia passando— enquantoMascarita, eu, nossa geração, nos tornávamos adultos — da mentirosa tranqüilidade da ditadura dogeneralOdríaàsincertezasenovidadesdoregimedemocrático,querenasceuem1956,quandoSaúleeuestávamosnoterceiroano.

Naquele tempo, sem amenor dúvida, já tinha descoberto o que lhe interessava na vida. Não demaneirarelampejante,nemcomasegurançadedepois,mas,emtodocaso,oextraordináriomecanismojáestavaemmarchae,passoapasso,empurrando-oumdiaparacá,outroparalá,iatraçandoesselabirintoondeMascarita entraria para não sair nuncamais. Em 1956 estudavaEtnologia aomesmo tempo queDireitoejátinhaestadováriasvezesnaselva.JásentiaessafascinaçãodeenfeitiçadopeloshomensdaflorestaeaNaturezaintocada,pelasculturasprimitivas,minúsculas,dispersasnascolinassilvestresdamontanhaenaplaníciedaAmazônia?Jáardianeleessefogosolidário,brotadosombriamentedomaisprofundodesuapersonalidade,poressesnossoscompatriotasquedesdetemposimemoriaisviviamlá,acossadoseincomodados,entreoslargoselentosrios,comtangasetatuagens,adorandoosespíritosdaárvore, a serpente, a nuvem e o relâmpago? Sim, tudo isso já tinha começado. E eu o notei a partirdaqueleincidentenobilhar,ocorridodoisoutrêsanosdepoisquenosconhecemos.

***

Íamos,dequandoemquando,entreduasaulasdaUniversidade,jogarumapartidanaarrebentadasaladebilhar,queeratambémcantina,doJirónAzángaro.AndandopelaruacomSaúldescobria-secomodeviaserduraavidadele,pelainsolênciaeamaldadedaspessoas.Viravam-seouparavamàfrentedelepara

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olhá-lomelhor,eabriammuitoosolhos,semdisfarçaroespantoouarepulsãoque lhes inspiravasuacara,enãoerararoque,osmeninossobretudo,lhedissessemasneiras.Eeleparecianãosechatearcomisso;reagiaàsimpertinênciassemprecomalgumatiradaengraçada.Oincidente,quandoentrávamosnobilhar,nãofoielequeprovocou,maseu,quenadatenhodeanjinho.Obêbadoestavabebendonobalcão.Malnosviu,veioaonossoencontro,cambaleante,eparoudiantedeSaúl,osbraçosnacintura:

—Putamerda,quemonstro!Dequezoológicovocêfugiu,cara?

—Dequalseria,compadre,doúnicoquehá,odeBarranco—respondeu-lheMascarita.—Sevocêforcorrendo,aindaencontraráminhajaulaaberta.

Etentoucontinuarcaminhando.Obêbado,porém,esticouasmãosnadireçãodele,fazendocomosdedosoqueosmeninosfazemquandolhesofendemamãe.

—Vocênãoentra,monstro.—Tinhaseenfurecidosubitamente.—comessacara,nãodeviasairàrua,vocêassustaaspessoas.

—Maseunãotenhooutra,queéquevocêquer?—Saúlsorriuparaele.—Deixeagentepassarenãosejachato.

Eu, então, perdi a paciência. Agarrei o bêbado pelas lapelas e comecei a sacudi-lo. Houve umprincípiodetumulto,genteagitada,empurrões,eMascaritaeeutivemosqueiremborasemjogarnossapartida.

No dia seguinte recebi dele um presente, com umas linhas. Era um ossinho branco, em forma delosango, gravado com umas figuras geométricas cor de tijolo puxando para ocre. As figurasrepresentavam dois labirintos paralelos, compostos de barras de diferentes tamanhos, separadas pordistâncias idênticas, as pequenas como que abrigando-se nas grandes. A cartinha dele, risonha eenigmática,diziaalgoassim:

***

Compadre:

Vamosver se esseossomágicoacalma seus ímpetosevocêdeixadeandar soqueandoospobresgambazinhos.Oossoédetapireodesenhonãoéasacanagemqueparece,unsriscosprimitivos,masumainscriçãosimbólica.FoiditadaporMorenanchiite,osenhordotrovão,aumtigre,eesteaumbruxoamigomeudasselvasdoAltoPicha.Seacreditaqueessessímbolossãoderedemoinhosderioouduasjibóiasenrascadasdormindoasesta,podeserquetenharazão.Massão,fundamentalmente,aordemquereinanomundo.Aquelequesedeixavencerpelaraivaentortaessaslinhaseelas,tortas,nãopodemmaissustentaraterra.Nãovaiquererqueporsuaculpaavidasedesintegreevoltemosaocaosoriginaldoqualnostiraram,aossopros,Tasurinchi,odeusdobem,eKientibakori,odeusdomal,nãoé,compadre?

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De modo que não tenha mais essas raivas e menos ainda por minha culpa. De qualquer maneira,obrigado.

Tchau,

Saúl

***

Pedi-lhe que me contasse um pouco mais sobre aquela história de trovão, o tigre, as linhas tortas,Tasurinchi e Kientibakori, e ele me reteve uma tarde inteira em sua casa de Breña, muito contente,falando-medascrençasecostumesdeumatriboespalhadapelasselvasdeCuscoeMadredeDios.

Euestavaatiradosobreacamadeleeelesentadoemumbaú,comolourinhonoombro.Olourinhomordiscava os cabelos vermelhos de Saúl e o interrompia seguidamente com um berro mandão:"Mascarita!""Quieto,GregórioSamsa",acalmava-oele.

Os desenhos de seus utensílios e suas blusas, as tatuagens de suas caras e corpos não eramarbitrários nem decorativos, compadre. Eram a escritura cifrada, que continha o nome secreto daspessoasefórmulassagradasparaprotegerosobjetosdadeterioraçãoedomalefícioque,atravésdeles,podia chegar até seus donos. Os desenhos eram ditados por uma divindade barbada e ruidosa,Morenanchiite,osenhordotrovão,que,doaltodeummorro,emmeioaumatempestade,comunicavaamensagem a um tigre. Este a transmitia ao curandeiro ou chamán no curso de uma "mareada" deayahuasca[3], esses talos alucinógenos cujos cozimentos erambebidos em todas as cerimôniasnativas.AquelebruxodoAltoPicha—"sábio, istosim,porra,digobruxoparaquevocêmeentenda"—jáotinhainstruídosobreafilosofiaquepermitiuàtribosobreviveratéopresente.Omaisimportante,paraeles,eraaserenidade.Nãodeviamafogar-senuncaemumcopodeáguanememumainundação.Deviamcontertodoarrebatamentopassional,poisháumacorrespondênciafatídicaentreoespíritodohomemeosdaNatureza,equalquertranstornoviolentonaqueleacarretaalgumacatástrofenesta.

—Araivadeumsujeitopodefazerqueumriotransborde,eumassassinato,queoraioqueimeaaldeia.TalvezoacidentecomoExpresso,naAvenidaArequipa,estamanhã,sejaculpadosocoquevocêdeuontemnaquelebêbado.Nãolhedóiaconsciência?

Fiquei espantado com omuito que sabia sobre essa tribo. E aindamais ao sentir a simpatia quederramavatorrencialmentedesseconhecimento.Falavadaquelesíndios,deseususoseseusmitos,desuapaisagem e seus deuses, com o respeito de admiração com que eu me referia a Sartre, Malraux eFaulkner,meusautorespreferidosdaqueleano.NemsequerdeseuadmiradoKafkaeuoouvifalarnuncacomtantaemoção.

DevotersuspeitadojáentãoqueSaúlnuncaseriaadvogadoe,também,queointeressedelepelos

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índiosdaAmazôniaeraalgomaisque"etnológico".Nãouminteresseprofissional,técnico,senãomuitomaisíntimo,emboranãosimplesdeprecisar.Algomaisemotivoqueracionalcertamente,atodeamorantesquecuriosidadeintelectualouqueesseapetitedeaventuraquepareciaabrigarnavocaçãodetantoscompanheirosseusdoDepartamentodeEtnologia.AatitudedeSaúlemrelaçãoasuanovacarreira,adevoção que demonstrava em relação ao mundo da Amazônia, foram freqüentemente motivo deconjecturasentrenós,seusamigosecolegas,noPátiodaFaculdadedeLetrasdeSanMarcos.

SabiaDomSalomónqueSaúlestudavaEtnologiaouopensavaconcentradonoscursosdeDireito?Averdade éque, emboraMascarita estivesse aindamatriculadonaFaculdadedeDireito, descuidava-setotalmente de suas aulas. Com exceção de Kafka, e, sobretudo, de A metamorfose, que tinha lidoincontáveis vezes e quase decorado, todas as suas leituras eramagora antropológicas.Lembrode suaconsternação pelo pouquíssimo que se tinha escrito sobre as tribos e de seus protestos diante dasdificuldadesqueenfrentavaparaconsultaressabibliografiapulverizadaemseparataserevistasquenemsemprechegavamaSanMarcosouàBibliotecaNacional.

***

Tudotinhacomeçado,elemecontou,certaocasião,comumaviagemaQuillabamba,noDiadaPátria.Tinha ido lá a convite de umprimo-irmão de suamãe, um tio chacareiro, emigrado de Piura àquelasterras,quetambémcomerciavaemmadeiras.Ohomeminternava-senaselvaembuscademognoepau-vermelho e tinha mateiros e cortadores indígenas que trabalhavam para ele. Mascarita fizera boasrelaçõescomestesnativos—bastanteocidentalizadosamaioriadeles—,queotinhamlevadoemsuasincursõesealojadoemseusacampamentosaolongodavastaregiãobanhadapeloAltoUrubamba,oAltoMadredeDioseseusrespectivosafluentes.Todaumanoiteestevemecontando,entusiasmado,oquefoiparaeleatravessarembalsaoPongodeMainique,ondeoUrubamba,apertadoentredoiscontrafortesdacordilheira,setornavaumlabirintodecorredeiraseredemoinhos.

***

—Oterrordealgunscarregadoresétãograndequeéprecisoamarrá-losàbalsa,comofazemcomasvacas,paraquedesçamoPongo.Vocênemimaginaoqueéisso,compadre!

Um missionário espanhol, da Missão Dominicana de Quillabamba, mostrara-lhe misteriosospetroglifos espalhados pela zona, e tinha comido carne demacaco, tartaruga,minhocas, e tomara umgrandeporrecommasatodemandioca.

—OsnativosdaregiãoacreditamqueomundocomeçounoPongodeMainique.Eeujuroavocêquenaquelelugarháumnevoeirosagrado,umnãoseiquê,quelevantanossoscabelos.Vocênemimagina

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oqueéisso,compadre!Porra!

Aexperiênciateveconseqüênciasqueninguémpoderiasequerimaginar.Nemmesmoele,estoucertodisso.

Voltou a Quillabamba no Natal e ali passou o verão todo. Regressou nas férias de julho e nodezembroseguinte.CadavezquehaviaumagreveemSanMarcos,emboradepoucosdias,voavaparaaselva de qualquer maneira: em caminhão, trem, lotações, ônibus. Voltava dessas viagens exaltado eloquaz,osolhosbrilhantesdeadmiraçãopelostesourosquetinhadescoberto.Tudooquefossedeláointeressava e o excitava demaneira excessiva. Ter conhecido o lendário Fidel Pereira, por exemplo.Filho de um cusquenho branco e de uma machiguenga, era uma mistura de senhor feudal e caciqueaborígine.NoúltimoterçodoséculoXIX,umcusquenhodeboafamília,fugindodajustiça,internou-senaquelasselvas,ondeosmachiguengasoacolheram.Casou-secomumamulherdatribo.Ofilho,Fidel,tinhavividoàvontadeentreasduasculturas,passando-seporbrancoentreosbrancosépormachiguengaentreosmachiguengas.Tinhaváriasesposaslegítimaseinfinidadedeconcubinaseumaconstelaçãodefilhasefilhos,atravésdosquaisexploravatodososcafezaisechácarasentreQuillabambaeoPongodeMainique,nosquaisfaziatrabalhar,poucomenosquedegraça,agentedesuatribo.Mascarita,apesardisso,sentiacertabenevolênciaporele:

—Aproveita-sedeles,naturalmente.Mas,pelomenos,nãoosdespreza.Conheceaculturadelesafundoeseorgulhadela.Equandooutrosqueremexplorá-los,eleosdefende.

Nosrelatosquemefazia,oentusiasmodeSaúldotavaomaistrivialdosepisódios—oroçadodeummatoouapescadeumagamitana—decontornosheróicos.Maserasobretudoomundo indígena,com seus costumes elementares e sua vida frugal, seu animismo e sua magia, o que parecia tê-loenfeitiçado.Agoraseiqueaquelesíndios,cujalínguatinhacomeçadoaaprendercomaajudadosalunosindígenasdaMissãoDominicanadeQuillabamba—umavezmecantouumatristeerepetitivacançãoincompreensível, acompanhando-se com o ritmo de uma cabaça cheia de sementes —, eram osmachiguengas.Agoraseiqueaquelescartazescomdesenhozinhos,mostrandoosperigosdepescarcomdinamite,queviempilhadosemsuacasadeBreña,eleostinhafeitoparadistribuí-losentrebrancosemestiçosdoAltoUrubamba—osfilhos,netos,sobrinhos,bastardoseenteadosdeFidelPereiracomaintençãodeprotegerasespéciesquealimentavamaessesmesmosíndiosque,umquartodeséculomaistarde,fotografariaagoraofalecidoGabrieleMalfatti.

Vistocomaperspectivadotempo,sabendooqueaconteceudepois—penseimuitonisto—,possodizerqueSaúlexperimentouumaconversão.Emumsentidoculturaletalveztambémreligioso.Éaúnicaexperiênciaconcretaquemetocouobservardepertoquepareciadarsentido,materializar, issoqueosreligiosos do colégio onde estudei queriam explicar nas aulas de catecismo com expressões como"receberagraça","sertocadopelagraça","cairnoslaçosdagraça".DesdeoprimeirocontatoquetevecomaAmazônia,Mascarita foipegoemumaemboscadaespiritualque fezdeleumapessoadiferente.

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Não só porque se desinteressou do Direito e se matriculou na Escola de Etnologia, e pela novaorientaçãodesuasleituras,nasquais,salvoGregórioSamsa,nãosobreviveupersonagemliterárioalgum,mas porque, desde então, começou a preocupar-se, a obstinar-se com dois assuntos que, nos anosseguintes,seriamseuúnicotemadeconversa:oestadodasculturasamazônicaseaagoniadasflorestasqueashospedavam.

—Vocêsetornouumhomemdeidéiasfixas,Mascarita.Nãosepodefalaroutracoisacomvocê.

—Ora,éverdade,meuvelho,nãodeixeivocêabriraboca.Fale-meumpouco,setivervontade,deTolstoi,dalutadeclassesoudosromancesdecavalaria.

—Nãoestáexagerandoumpouco,Saúl?

—Não,compadre,achoquenemseioquedizer.Juro.OqueestãofazendonaAmazôniaéumcrime.Nãotemjustificativa,doânguloqueforexaminado.Acrediteemmim,cara,nãoseria.Ponha-senolugardeles, ainda que por um segundo. Para onde podem continuar indo? Expulsam-nos de suas terras háséculos,atiram-noscadavezmaisparadentro,maisparadentro.Oextraordinárioéque,apesardetantascalamidades,nãotenhamdesaparecido.Láestãosempre,resistindo.Nãoédetirarochapéu?Porra,láestoueuoutravez.FalemosdeSartre,vá.

Oquemerevoltaéqueninguémseimportacomoqueestáacontecendolá.Porqueeleseimportavatanto? Não por razões políticas, em todo caso. Mascarita achava que a política era a coisa menosinteressantedomundo.Quandofalávamosdepolítica,notavaqueeleseviolentavasóparameagradar,pois eu, naquela época, tinha ímpetos revolucionários eme entregara a lerMarx e falar das relaçõessociaisdaprodução.Saúlseaborreciacomessesassuntostantocomocomossermõesdorabino.Mastalvez tambémnãofosseexatodizerqueaqueles temaso interessavamporumarazãoéticageral,peloqueacondiçãodosindígenasdaselvarefletiasobreasiniqüidadessociaisdenossopaís,poisSaúlnãoreagia domesmomodo ante outras injustiças que tinha pela frente, talvez nem sequer as percebia.AsituaçãodosíndiosdosAndes,porexemplo—queeramváriosmilhões,emvezdospoucosmilharesdaAmazônia—,oucomoosperuanosdasclassesmédiaealtaremuneravametratavamseuscriados.

Não, era só aquela específica manifestação de inconsciência, irresponsabilidade e crueldadehumanas,aqueseabatiasobreoshomenseasárvores,osanimaiseosriosdaselva,que,porumarazãoque entãome era difícil compreender (talvez a ele também), transformouSaúlZuratas, tirandode suacabeça toda outra inquietação e tornando-o um homem de idéias fixas. Ao extremo de que se nãohouvessesidoumapessoatãoboa,tãogenerosaeserviçal,provavelmenteteriadeixadodefreqüentá-lo.Porqueéverdadequesetornoumonótono.

Às vezes, para ver até onde podia levá-lo "o tema", eu o provocava.O que propunha, afinal decontas?Que,paranãoalterarascondiçõesdevidaeascrençasdeumastribosqueviviam,muitasdelas,naIdadedaPedra,seabstivesseorestodoPerudeexploraraAmazônia?Deveriamdezesseismilhões

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deperuanosrenunciaraosrecursosnaturaisdetrêsquartaspartesdeseuterritórioparaqueossessentaouoitentamilindígenasamazônicoscontinuassemtrocandoflechastranqüilamenteentreeles,reduzindocabeças e adorando à jibóia constritora? Devíamos ignorar as possibilidades agrícolas, pastoris ecomerciaisdaregiãoparaqueosetnólogosdomundosedeleitassemestudandoaovivoopotlatch,asrelações de parentesco, os ritos da puberdade, do matrimônio, da morte, que aquelas curiosidadeshumanasvinhampraticando,quasesemevolução,hácentenasdeanos?Não,Mascarita,opaístinhaquesedesenvolver.NãodisseraMarxqueoprogressoviriajorrandosangue?Portristequefosse,haviaqueaceitá-lo. Não tínhamos alternativa. Se o preço do desenvolvimento e da industrialização para osdezesseismilhõesdeperuanoseraqueessespoucosmilharesdepeladostivessemquecortarocabelo,lavar as tatuagens e se tornarem mestiços — ou, para usar a mais odiada palavra do etnólogo:aculturarem-se—,queremédio.

Mascaritanãosezangavacomigo,porquenãosezangavanuncapornadaecomninguém,etampoucoadotavaumarsuperiordeperdôo-você-porque-não-sabe-o-que-diz.Maseusentia,quandolhefaziaestasprovocações, que doíam nele como se houvesse faladomal deDomSalomónZuratas. Ele disfarçavamuitobem,éverdade.Tinhaconseguidoentão, talvez,o idealmachiguengadenão sentir jamais raivaparaqueaslinhasparalelasquesustentamomundonãocedam.Nãoaceitava,alémdisso,discutiresteouqualqueroutroassuntodemaneirageral,emtermosideológicos.Tinhaumaresistênciacongênitaatodotipodepronunciamentoabstrato.Osproblemassempreseapresentavamparaeledemaneiraconcreta:oquehaviavistocomseusolhoseasconseqüênciasquequalquerum,comumpoucodemiolonamoleira,podiadeduzirqueaquiloterianofuturo.

—Apescacomexplosivos,porexemplo.Supõe-sequeestáproibida.Mas,váeolhe,compadre.Nãohárioouquebradaemtodaaselvaondeosserranoseosviracochas—assimchamamosbrancos— não poupem tempo, pescando a granel, com dinamite. Poupem tempo! Você imagina o que issosignifica? Cartuchos de dinamite pulverizando dia e noite os bancos de peixes. As espécies estãodesaparecendo,velhinho.

***

Discutíamos em umamesa do Bar Palermo, em La Colmena, tomando cerveja. Fora havia sol, genteapressada,desconjuntadosautomóveisdeagressivasbuzinasenoscercavaessaatmosferaenfumaçada,comcheiroabanhafritaeaurina,dosbotequinsdocentrodeLima.

—Maseapescacomvenenos,Mascarita?Nãofoiporacasoinventadapelosíndios?TambémelessãounsdepredadoresdaAmazônia.

Eu disse isso para que descarregasse sua artilharia pesada contra mim. E ele a disparou,naturalmente.Erafalso,completamentefalso.Elespescavamcombarbascoecumo,masnoscanaisou

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braçosderioenaspoçasqueficamnasilhasquandoaságuasbaixam.Esóemcertasépocasdoano.Jamaisnosperíodosdedesova,queconheciamcomoapalmadesuasmãos.Nessasdataspescavamcomredes, arpões e armadilhas, ou com as mãos nuas; você ficaria louco se os visse, compadre. Emcompensação, os crioulos usavam o barbasco e o cumo todo o ano, em qualquer lugar. Águasenvenenadasmilharesemilharesdevezes,aolongodedecênios.Compreendiaisso?Nãosóliquidavamascriasnostemposdedesova,tambémapodreciamasraízesdasárvoresedasplantasdasmargens.

Eleosidealizava?Estoucertoquesim.Etambém,talvezsemdesejá-lo,exageravaasdevastaçõespara fortalecer seus argumentos.Mas era evidenteque essas criasde sável ebagre envenenadospelocaule do barbasco e do cumo, e os peixes destroçados pelos explosivos dos pescadores de Loreto,MadredeDios,SanMartínouAmazonas,doíam-lhetantoquantoseavítimativessesidoseupapagaiofalador.Eeraamesmacoisa,naturalmente,quandosereferiaaodesmatamentomaciçoordenadopelosmadeireiros—"MeutioHipólitoéumdeles,aindaquemecusteadmiti-lo"—queestavamacabandocomasárvoresmaisvaliosas.Falou-melongamentedosprocedimentosdosviracochasedosserranos,quedesceramdosAndesparaconquistaraselva,delimparomatomedianteincêndiosquecarbonizavamimensasextensõesde terras,que, logoapósumaouduascolheitas,pela faltadehúmusvegetal epelaerosãocausadapelaságuas,tornavam-seestéreis.Eoquedizer,compadre,doextermíniodosanimais,da cobiça frenética pelos couros, que, por exemplo, fizera de jaguares, lagartos, pumas, serpentes edezenasdeanimais,raridadesbiológicasemviasdeextinção?Foiumlongodiscurso,querecordomuitobem por alguma coisa que surgiu, já ao final de nossa conversa, quando tínhamos despachado váriasgarrafasdecervejaeunssanduíchesde lingüiça(dequeelegostavamuito).Dasárvoresedospeixesvoltavasempre,emsuaperoração,aomotivocentraldesuasapreensões:astribos.Tambémelas,nesteandar,seextinguiriam.

— Sério: você acha que a poligamia, o animismo, a redução de cabeças e a feitiçaria comcozimentosdetabacorepresentamumaformasuperiordecultura,Mascarita?

***

Um serraninho atirava baldes de serragem sobre as cusparadas e demais sujeiras do chão de pedravermelha doBar Palermo e um chinês ia atrás, varrendo. Saúl ficoume olhando umbom tempo, semresponder.Afinal,negou,sacudindoacabeça.

— Superior, não. Nunca disse isso, nem acreditei, irmãozinho.— Tinha ficado muito sério.—Inferior,talvez,seissosemedeemtermosdemortalidadeinfantil,desituaçãodamulher,demonogamiaoupoligamia,deartesanatoeindústria.Nãopensequeeuosidealizo.Demodonenhum.

Calou-se,comoquedistraídoporalgumacoisa,talvezporaqueladiscussãonamesavizinha,queseexaltavaouesfriavasimetricamentedesdequeestávamosali.Masnãoeraisso.Aslembrançaséqueo

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tinhamdistraído.Eacheique,derepente,seentristecia.

—Háentreoshomensqueandameosdeoutrastribos,coisasqueochocariammuito,meuvelho.Nãoonego.

Porexemplo:osaguarunasehuambisasdoAltoMaranhãoarrancamohímendesuasfilhascomasmãos e o comem ao primeiro sinal de sangue; em muitas tribos existe a escravidão e em algumascomunidadessedeixamorrerosvelhosaoprimeirosintomadefraqueza,apretextodequesuasalmasforamchamadaseseudestinoestavacumprido.Masopiordetudo,talvezomaisdifícildeaceitardonossopontodevista,eraissoque,comumpoucodehumornegro,sepodiachamaroperfeccionismodastribosdafamíliaarawak.Operfeccionismo,Saúl?Sim,umacoisaque,àprimeiravista,mepareceria,como tinha parecido a ele, tão cruel, companheirinho: as crianças que nasciam com defeitos físicos,coxos,mancos,cegos,commaisoumenosdedosqueosdevidos,ouolábioleporino,asprópriasmãesmatavam,atirando-asaorioouenterrando-asvivas.Quemnãosechocariacomessescostumes?

Examinou-melongamente,emsilêncio,pensativo,comoseestivesseprocurandoaspalavrasexatasdaquiloquequeriamedizer.Derepente,tocounoseuimensosinal.

—Eunãoteriapassadonoexame,compadre.Euteriasidoliquidado—sussurrou.—Dizemqueosespartanosfaziamomesmo,nãoé?QueatiravamosmonstrinhoseosgregóriossamsasdomonteTaigeto,nãoé?

Riu, eu ri,mas ambos sabíamosquenão estavabrincandoenãohavia razão algumapara rirmos.Explicou-meque,curiosamente,essesimplacáveiscomosrecém-nascidosdefeituososeram,entretanto,muitotolerantescomosque,jácrescidosouadultos,eramvítimasdealgumacidenteouenfermidadequeosafetavafisicamente.Saúl,pelomenos,nãotinhanotadohostilidadeemrelaçãoaosinválidosouaosloucosnastribos.Amãodelecontinuavasempresobreaescamaarroxeadadeseumeio-rosto.

—Masissoéoquesãoedevemosrespeitá-los.Serassimosajudouavivercentenasdeanos,emharmonia com suas florestas. Embora não entendamos suas crenças e alguns de seus costumes nosrepugnem,nãotemosodireitodeacabarcomeles.

***

Achoqueaquelamanhã,noBarPalermo,foiaúnicavezemquealudiu,nãodebrincadeiramasasério,inclusivecomdramatismo,àquiloque,pormaisqueodissimulassecom tantaelegância, tinhaqueserumatragédiaemsuavida,aexcrescênciaquefaziadeleummotivoambulantedezombariaenojo,equedevia afetar todas as suas relações, especialmente com as mulheres. (Era com elas de uma grandetimidez;eutinhanotado,naUniversidade,queasevitavaesótentavaconversarcomalgumadenossascolegasquandoelalhedirigiaapalavra.)Retirou,afinal,amãodorostocomumgestodetédio,como

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quearrependidodetertocadonosinal,eselançouaumnovosermão:

—Nossoscarros,canhões,aviõeseCocas-Colasnosdãodireitoaliquidá-losporquenãotêmnadadisso?Ouvocêacreditanahistóriade"civilizarosselvagens",compadre?Como?Fazendo-ossoldados?Pondo-osatrabalharnaschácaras,deescravosdoscrioulostipoFidelPereira?Obrigando-osamudardelíngua,dereligião,decostumes,comoqueremosmissionários?Queéqueseganhacomisso?Quepossamsermelhorexplorados,nadamais.Queseconvertamemzumbis,nascaricaturasdehomensquesãoosindígenassemi-aculturadosdasruasdeLima.

OserraninhoqueatiravabaldesdeserragemnoPalermocalçavaessessapatos—umasolaeduastirasdeborrachadepneu—queosambulantesfazemeseguravaacalçaremendadacomumpedaçodecorda.Eraummeninocomcaradevelho,cabeloslisos,unhasnegraseumacrostaavermelhadanonariz.Umzumbi?Umacaricatura?TeriasidomelhorparaelepermaneceremsuaaldeiadosAndes,calçandoumpésódesandáliaeponchoenãoaprendernuncaoespanhol?Eunãoosabia,euaindatenhodúvidas.

MasMascaritasim,osabia.Falavasemveemência,semcólera,comumafirmezatranqüila.Durantemuito tempo explicou-me o outro lado daquelas crueldades ("que são, dizia, o preço que pagampelasobrevivência"),oquelhepareciaadmirávelnaquelasculturas.Eraumacoisaque,pormaisdiferençasque houvesse entre elas, todas tinham em comum: a boa inteligência com o mundo em que viviamimersas, essa sabedoria, nascidadeumaprática antiqüíssima, que lhes tinhapermitido, atravésdeumelaborado sistema de ritos, proibições, temores, rotinas, repetidos e transmitidos de pais a filhos,preservar aquelaNatureza aparentemente tão exuberante,mas, na realidade, tão frágil e perecível, daqual dependiam para subsistir. Haviam sobrevivido porque seus usos e costumes afeiçoaram-sedocemente aos ritmos e exigências domundonatural, semviolentá-lo nem subvertê-lo profundamente,apenas o indispensável para não serem destruídas por ele. Exatamente o contrário do que estávamosfazendooscivilizados,queesbanjávamosesseselementossemosquaisterminaríamosmurchandocomoasfloresprivadasdeágua.

Euoescutavaesimulavainteressar-meporsuaspalavras.Mas,emvezdisso,pensavaemseusinal.Porquetinharecorridoaele,derepente,enquantomeexplicavaoquesentiapelosnativosdaAmazônia?Estava aí a chave da conversa deMascarita? Esses shipibos, huambisas, aguarunas, yaguas, shapras,campas,mashcos,representavamnasociedadeperuanaalgoqueelepodiaentendermelhorqueninguém:um horror pitoresco, uma excepcionalidade que os outros compadeciam ou escarneciam, mas semconceder-lheorespeitoeadignidadequesómereciamaquelesqueseajustavamemseufísico,costumesecrençasà"normalidade".Amboseramumaanomaliaparaorestodosperuanos;seusinalprovocavaneles,emnós,umsentimentoparecidoaoque,nofundo,alimentávamosporessesseresqueviviam,lálonge, seminus, comendo seuspiolhos e falandodialetos incompreensíveis.Era essa a raizdo amor àprimeiravistadeMascaritapelos selvagens?Tinha inconscientemente se identificadocomesses seresmarginaisdevidoaseusinal,queoconvertiatambémemummarginalcadavezquepunhaospésnarua?

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Eulhepropusestainterpretação,paraversemelhoravaohumordele,e,defato,pôs-searir.

—VocêpassouemPsicologiacomoDoutorGuerrinha?—brincoucomigo.—Euteriareprovadovocê.

E,semprerindo,contou-mequeDomSalomónZuratas,maisespertoqueeu,tinhalhesugeridoumaleiturajudaicadoassunto.

—EuidentificoosíndiosdaAmazôniacomopovojudeu,sempreminoritárioesempreperseguidopor sua religião e seus costumes diferentes dos do resto da sociedade. Que é que você acha? Umainterpretaçãomaisnobrequeasua,quesepoderiachamarasíndromedeFrankenstein.Cadaloucocomsuamania,compadre.

Repliqueiqueambasasinterpretaçõesnãoseexcluíam.Eleterminoufantasiando,divertido.

—Sim,épossívelquevocêtenharazão.Talvezofatodesermeiojudeuemeiomonstrotenhamefeitomaissensívelqueumhomemtãoespantosamentenormalcomovocêàsortedosselvagens.

—Pobresselvagens!Vocêosusaparasecaraslágrimas.Vocêtambémseservedeles,estávendo?

—Muitobem,fiquemosporaqui,porquetenhoumaaulaagora—despediu-se,levantando-se,semsombradodesânimodeummomentoatrás.—Masmelembreparanapróximavezcorrigiressahistóriade "pobres selvagens".Vou contar a você algumas coisas que o deixarão preocupado, compadre. Porexemplo, o que fizeram com eles na época da febre da borracha. Se agüentaram aquilo, não se podechamá-losdepobres.Masdesuper-homens,issosim.Vocêvaiver,vaiver.

***

Pelovisto,falavadeseu"tema"comDomSalomón.Ovelhinhoacabaraporaceitarque,emlugardetê-lo no Foro, Saúl prestigiasse o sobrenome Zuratas nas classes universitárias e nos domínios dainvestigaçãoantropológica.Era issooquetinhadecididosernavida?Umcatedrático?Umestudioso?Quetinhacondiçõesparatanto,euoouvidizer,certatarde,deumdosseusprofessores,oDoutorJoséMatosMar,queentãodirigiaoDepartamentodeEtnologiadeSanMarcos.

—Aquelerapaz,oZuratas,édeprimeiraordem.PassoutrêsmesesdefériasnoUrubamba,fazendotrabalhodecampocomosmachiguengasetrouxeumexcelentematerial.

EleodiziaaRaúlPorrasBarrenechea,umhistoriadorcomquemeutrabalhavaà tardee tinhaumsantohorror pelaEtnologia e aAntropologia, que acusavade substituir ohomempeloutensílio comoprotagonistadacultura,edealeijaraprosacastelhana (queele,diga-sedepassagem,escreviaàsmilmaravilhas).

—Muito bem, então façamos desse jovem um historiador e não um colecionador de pedrinhas,

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DoutorMatos.Sejaaltruísta,transfira-oaoDepartamentodeHistória.

OtrabalhoqueSaúlfeznoverãode56,entreosmachiguengas,foimaistarde,ampliado,suatesededoutorado.Apresentou-aquandoestávamosnoquintoanodaFaculdade,eeumelembromuitobemdaexpressãodeorgulho,deíntimaalegria,deDomSalomón.Emtrajedenoite,comumacamisadepeitoengomado sob o casaco, acompanhou a cerimônia da primeira fila doSalão deAtos, e seus olhinhosbrilhavamenquantoSaúlliasuasconclusões,respondiaàsperguntasdosexaminadores—presididosporMatosMar—,eraaprovadoecolocavamneleafaixaacadêmicacorrespondente.

Dom Salomón convidou-nos a almoçar no Raimondi, no centro de Lima, para festejar oacontecimento.Maselenãocomeunada, talvezparanão transgredir involuntariamenteadieta judaica.(Uma das brincadeiras de Saúl, quando pedia lingüiça ou mariscos era: "E, depois, o fato de estarcometendo umpecado ao comê-los, dá a eles umgostinhomuito especial, compadre, que você nuncasaberácomoé.")DomSalomónnãocabiaemsidecontentecomotítulodofilho.Enquantocomíamos,dirigindo-seamimcomsuamastigadapronúnciacentro-européia,pediu-me,comveemência:

—Convençaseuamigoaaceitarabolsa.—Vendominhacaradesurpresa,explicou-me:—NãoqueriràEuropaparanãomedeixarsozinho,comoseeunãofossebastantegrandeparasabercuidardemim.Eujálhedisse:seficarteimando,vaimeobrigaramorrerparaqueelepossairtranqüiloàFrançaespecializar-se.

AssimfiqueisabendoqueMatosMartinhaconseguidoparaSaúlumabolsaparafazeroDoutoradonaUniversidadedeBordéus.Mascaritaarecusara,poisnãoqueriadeixaropaisozinho.EssafoiarazãopelaqualnãoviajouaBordéus?Entãoacrediteinela;agoraestoucertodequementia.Agoraseique,aindaquenãooconfessasseaninguémeotivesseguardadosobsetechaves,aquelaconversãotinhaidofermentandoemseu interioratéganharascaracterísticasdeumraptomístico, talvezdeumabuscademartirológio.Nãotenhodúvida,agora,dequeaqueletítulodebacharelemEtnologiaeleganhou,dando-seaotrabalhoderedigirumatese,sabendoquenuncaseriaumetnólogo,sóparadaressasatisfaçãoaopai.Euque,poraquelesdias,mecansavaemgestõesparaconseguirqualquerbolsaquemepermitisseiràEuropa,tenteiváriasvezesconvencê-lodequenãodesperdiçassetaloportunidade."Éumacoisaquenãovoltaráaacontecer,Mascarita.AEuropa!AFrança!Nãosejabárbaro,cara!"Foicategórico:nãopodiair,eleeraaúnicapessoaqueDomSalomóntinhanomundoenãoiaabandoná-lopordoisoutrêsanos,sabendooquantoestavavelho.

Énaturalqueeuacreditassenele.Quemnãoacreditounelecompletamentefoiaquelequelhetinhaconseguidoabolsaealimentaramuitasilusõesaseurespeito,seuprofessorMatosMar.Enumadaquelastardes, como costumava acontecer, ele apareceu na casa de Porras Barrenechea, para trocar idéias etomarchácombiscoitos.

Melancólico,eleanunciou:

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—Prepare-se,DoutorPorras.ODepartamentodeHistória podeusar a bolsa deBordéus.Nossocandidatoarecusou.Queachadisso?

—Queeusaiba,éaprimeiraveznahistóriadeSanMarcosquealguémrecusaumabolsaparaaFrança—dissePorras.—Quefoiquemordeuesserapaz?

Eu,queestavacatalogandoosmitossobreElDoradoeasSeteCidadesdeCibolanoscronistasdodescobrimentoeconquista,namesmapeçaondeconversavam,metiacolherparadizerquearazãodarecusaeraDomSalomón,aquemSaúlnãoqueriadeixarsozinho.

— Essa é a razão que Zuratas dá, sim, e tomara que seja verdadeira— concordouMatosMar,fazendo umgesto cético.—Temo, porém, que haja alguma razãomais forte. Saúl está tendo dúvidassobreainvestigaçãoeotrabalhodecampo.Dúvidaséticas.

PorrasBarrenecheaesticouoqueixoemostrouosolhinhosmaliciososquemostravacadavezqueiadizerumamaldade.

—Bem,seZuratascompreendeuqueaEtnologiaéumapseudociênciainventadapelosgringosparadestruirasHumanidades,émaisinteligentedoquepodiaseesperar.

MatosMar,porém,nãosorriu.

—Estou falando sério,Doutor Porras. É uma pena, porque o rapaz temmagníficas condições. Éinteligente, perceptivo, muito bom investigador e com muita capacidade de trabalho. Agora estáafirmando,imaginesóosenhor,queotrabalhoquefazemoséimoral.

— Imoral? Enfim, vá se saber o que fazem vocês entre os bons selvagens com o pretexto deaveriguarseuscostumes—riuPorras.—Eu,éclaro,nãoporiaminhasmãosnofogopelavirtudedosetnólogos.

—Equenósosestamosagredindo,violentandoaculturadeles—prosseguiuMatosMar,semlheprestaratenção.—Equecomosnossosgravadoresecanetasesferográficassomosovermequeentranafrutaeaapodrece.

Contou que, fazia poucos dias, tinha havido uma discussão no Departamento de Etnologia. SaúlZuratas escandalizou todos os que lá estavam proclamando que as conseqüências do trabalho dosetnólogos eram semelhantes à ação dos caucheiros, madeireiros, recrutadores do Exército e demaismestiçosebrancosqueestavamdizimandoastribos.

—DissequeretomamosotrabalhoondeosmissionáriosodeixaramnaColônia—acrescentou.—Equenós,comahistóriadaciência,comoaquelescomadaevangelização,somosapontadelançadosexterminadoresdeíndios.

—RessuscitaoindigenismofanáticodosanostrintanospátiosdeSanMarcos?—suspirouPorras.— Eu não estranharia, pois isso acontece por estações, como os catarros. Já estou vendo Zuratas a

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escrever panfletos contra Pizarro, a conquista espanhola e os crimes da Inquisição. Não o quero noDepartamento de História! Espero que aceite essa bolsa, se nacionalize francês e faça carreirapromovendoaLendaNegra.

Não dei muita importância ao que, naquela tarde, ouvi Matos Mar dizer, entre as empoeiradasestantes cheias de livros e estatuetas de Quixotes e Sancho Panças da casa miraflorina de PorrasBarrenechea,naRuaColina.PensoquenãofaleicomSaúlsobreaquilo.Masagora,aqui,emFlorença,enquanto recordo e faço anotações, esse episódio adquire retroativamente uma grande significação.Aquelasimpatia,solidariedade,feitiço,fosseoquefosse,tinhaentãoalcançadoumclímaxemudadodenatureza. Se questionava os etnólogos, de quem o menos que se podia dizer era que, com todas asmiopiasquetivessem,estavamperfeitamenteconscientesdanecessidadedeentender,emseusprópriostermos, amaneira de ver omundo dos indígenas da selva, o que defendia entãoMascarita?Algo tãoquiméricocomo,reconhecendo-lhesunsdireitosinalienáveissobresuasterras,orestodoPerudeclarara selva em quarentena?Nunca ninguémmais deveria lá entrar a fim de evitar a contaminação dessasculturascomosmiasmasdegenerantesdanossa?HaviachegadoaessesextremosopurismoamazônicodeSaúl?

AverdadeéquenãonosvimosmuitonosúltimosmesesquepassamosnaUniversidade.Euandavatambém muito ocupado, escrevendo minha tese. Ele praticamente tinha abandonado o Direito. Eu oencontrava, muito raramente, nas poucas vezes em que aparecia pelo Departamento de Literatura,contíguo então ao de Etnologia. Tomávamos um café ou fumávamos um cigarro, conversando, sob aspalmeirasamarelecidasdocasarãodoParqueUniversitário.Aocrescer,tomandoorumodeocupaçõeseprojetos distintos, nossa amizade, bastante estreita nos primeiros anos, tinha-se convertido em umarelaçãoesporádicaesuperficial.Eulheperguntavaporsuasandanças,poiseleestavasempreretornandoouapontodepartirparaaselvaeeuassociava isso,atéaquelecomentáriodeMatosMaraoDoutorPorras, a seu trabalho universitário, a uma especialização crescente de Saúl nas culturas amazônicas.Maséverdadeque,salvoaquelaúltimaconversa—adenossadespedidaeadesuacatilináriacontraoInstitutoLingüístico e o casal Schneil—, acredito que naqueles últimosmeses não voltamos a ter osdiálogosintermináveis,deconfidenciaslibérrimas,ocoraçãonamão,quecelebramosmuitasvezesentre1953e1956.

Se os tivéssemos mantido, teria ele aberto seu peito, deixando-me entrever o que ia fazer?Provavelmente não.Esse gênero de decisão, a dos santos e dos loucos, não se torna pública.Ela vaisendoforjadapoucoapouco,nasdobrasdoespírito,contrariandoaprópriarazãoeaoabrigodeolharesindiscretos,semsubmetê-laàaprovaçãodosoutros—quejamaisaconcederiam—atéqueépostaemprática. Imagino que no curso desse processo— a construção do projeto e suamutação em ato—osanto, iluminado ou louco, vai se isolando, fechando-se em uma solidão que os demais não estão emcondições de penetrar. Eu, de minha parte, não suspeitei sequer queMascarita podia estar vivendo,

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naqueles últimos meses de nossa vida universitária— já éramos homens os dois— uma revoluçãointernasemelhante.Queeraumapessoamaisretraídaqueorestodosmortais,ou,melhor,quetinhasetornado mais reservado ao deixar para trás a adolescência, eu o percebi, sim. Mas o atribuíexclusivamenteaseurosto,queinterpunhaessatremendafealdadeentreeleeomundo,dificultandosuasrelações com as outras pessoas. Continuava sendo esse ser jovial, simpático, boa gente, dos anosanteriores?Tinha-setornadomaissérioelacônico,menossoltoqueantes,meparece.Emboranãomefiemuito de minha memória quanto a isto. Talvez continuasse sendo o mesmo Mascarita risonho econservadorqueconheciem1953,eminhafantasiaomudeparaqueseencaixemelhorcomooutro,odosanosfuturos,essequejánãoconhecieaquem—umavezquecediàmalditatentaçãodeescreversobreele—devoinventar.

Amemórianãometrai,entretanto,estoucerto,noqueconcerneaseuaspectoeaseufísico.Aquelescabelos vermelhos, com um redemoinho no alto do crânio, rebeldes ao pente, andavam sempreflamejando,remexendo-se,dançandosobreessacarabifronte,que,noladosadio,eradeumatezpálidaesardenta. Tinha olhos e dentes direitos. Era alto, magro, e estou certo de que, exceto no dia de suaformatura,nuncaovicomumagravata.Andavasemprecomumascamisasesportebaratas,dealgodãocru,sobreasquais,noinverno,metiaumsuéterdequalquercor,ecalçasjeansdesbotadaseamassadas.Sobreseussapatosjamaisdeveterpassadoumaescova.

Não acredito que tivesse confidentes nem que estreitasse uma amizade íntima com ninguém.Provavelmente suas outras amizades foram parecidas à que nos uniu, cordialíssimas mas bastanteepidérmicas.Conhecidos, sim, tevemuitos,naUniversidadee, semdúvida,nobairro,mas jurariaqueninguémchegouasaber,desuaboca,oqueestavalheacontecendonemoquesepropunhafazer.Seéqueaquiloeleplanejoucuidadosamenteenãoaconteceudemaneiragradual,insensivelmente,porobradascircunstâncias mais que por escolha sua. É algo em que tenho pensado muito nestes anos e que,naturalmente,nuncachegareiasaber.

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III

DEPOIS,oshomensdaterrapuseram-seaandardiretoatéosolquecaía.Antes,permaneciamquietoseles também.O sol, seu olho do céu, estava fixo.Desvelado, sempre aberto, olhando-nos, aquecia omundo.Sua luz, aindaque fortíssima,Tasurinchi podia resistir.Nãohavia dano, nãohavia vento, nãohaviachuva.Asmulherespariamcriançaspuras.SeTasurinchiqueriacomer,afundavaamãonorioetirava, rabeando,umsável; ou,disparandoa flecha semapontar, davaunspassospelamata e logo seencontravacomumaperuazinha,umaperdizouumtrompetero[4]flechados.Nuncafaltavaoquecomer.Nãohaviaguerra.Osriostransbordavamdepeixeseosbosquesdeanimais.Osmashcosnãoexistiam.Oshomensdaterraeramfortes,sábios,serenoseunidos.Estavamquietosesemraiva.Antesquedepois.

Os que iam, voltavam, metendo-se no espírito dos melhores. Assim, ninguém costumava morrer."Tocaamimir",diziaTasurinchi.Desciaàmargemdorioefaziasuacamadefolhaseramossecoseuma cobertura de ungurabi. Levantava ao redor uma paliçada de bambus pontiagudos para que acapivara, em suas andanças pela margem, não comesse seu cadáver. Deitava-se, ia embora e, poucodepois,voltava,abrigando-senoquehaviacaçadomais, lutadomelhorou respeitadooscostumes.Oshomensdaterraviviamjuntos.Quietos.Amortenãoeraamorte.Eraireregressar.Emlugardedebilitá-los, robustecia-os, somandoaosque ficavamasabedoriaea forçados idos. "Somose seremos,diziaTasurinchi.Parecequenãovamosmorrer.Osquevão,voltaram.Estãoaqui.Elessãonós."

Porque,então, seeram tãopuros,puseram-seaandaroshomensda terra?Porque,umdia,o solcomeçouacair.Paraquenãocaíssemais,paraajudá-loaselevantar.ÉoquedizTasurinchi.

É,pelomenos,oqueeusoube.

JátinhatidoosolsuaguerracomKashiri,alua?Talvez.Pôs-seapiscar,asemovimentar,sualuzseapagouemalsepodiavê-lo.Aspessoascomeçaramaesfregarocorpo,tremendo.Issoeraofrio.Assimcomeçoudepois,parece.Então,naquaseescuridão,desacostumados,assustados,oshomenscaíamemsuasprópriasarmadilhas,comiamcarnedeveadopensandoqueeradeantaenãoreconheciamocaminhoderegressodomandiocalasuacasa.Ondeestou?,desesperavam-se,ambulandoàscegas, tropeçando,onde estarão meus parentes? Que está acontecendo no mundo? Tinha começado a soprar o vento.Uivando,agitando,levavaaspalmasdaspalmeirasearrancavapelaraizaslupunas.Achuvacaíacomestrépito,provocandoinundações.Via-semanadasdehuanganasafogadas,flutuandodepatasparacimanacorrente.Osriosmudavamdecurso,aspaliçadasrebentavamasbalsas,oscharcosviravamrios.Asalmasperderamaserenidade.Issonãoeramaisir.Eramorrer.Éprecisofazeralgumacoisa,diziam.E,olhandoàdireitaeàesquerda,quecoisa?quefaremos?diziam."Pôr-seaandar",ordenouTasurinchi.Estavamemplenatreva,rodeadosdedano.Amandiocacomeçaraafaltar,aáguafedia.Osqueiamjá

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nãovoltavam,afugentadospelascalamidades,perdidosentreomundodasnuvenseonosso.Sobosoloquepisavamouviamcorrer,espesso,oKamabiría,riodosmortos.Comoqueseaproximando,comoqueos chamando. Pôr-se a andar? "Sim, disse o seripigari, engasgando-se de tabaco namareada. Andar,andar.E,lembrem-se,odiaquedeixaremdeandar,irãodefinitivamente.Trazendoabaixoosol."

Assimcomeçou.Omovimento,amarcha.Avançarcomousemchuva,porterraouporágua,subindoomorrooudescendoaladeira.Nasflorestas,tãoespessas,eranoitesendodia,easplaníciespareciamlagoasporquenãotinhamqualquervegetação,comocabeçadehomemqueodiabinhokamagarinideixousemcabelo."Osolnãocaiuainda,animava-osTasurinchi.Tropeçaeselevanta.Cuidado,estádormindo.Vamos despertá-lo, vamos ajudá-lo." Temos sofrido danos e mortes, mas continuamos andando.Bastariam todasas faíscasdocéuparacontaras luasquesepassaram?Não.Estamosvivos.Nósnosmovemos.

Paraviverandando,eles,antes,precisaramsetornarlevesesedespojardoquetinham.Eles.Casas,animais, plantações, a abundância que os rodeava. A prainha onde iam virar as tartarugas de carnesalobra;omatofervilhandodepássaroscantores.Ficaramcomoindispensávelesepuseramaandar.Foicastigo a marcha pela selva? Antes uma celebração, como ir à pesca ou à caça na estação seca.Conservaram flechas e arcos, os cornos com o veneno, seus canudos de tinta de urucu, as facas, ostambores, asblusasquevestiam,asbolsase as tirasde fazendaparacarregar as crianças.Os recém-nascidosnasciamandando,osanciãosmorriamandando.

Quandoassomavaaluzjáestavamexendo-seagalhariacomapassagemdeseuscorpos,jáestavameles,umatrásdooutro,andando,andando,oshomenscomasarmaspreparadas,asmulherescarregandoasgamelaseoscestos,osolhosdetodospostosnosol.Aindanãoperdemosorumo.Odesapegonosterámantido puros, então.O sol não caiu, não acaba de cair. Vai e volta, como as almas com sorte.Aquece o mundo. As pessoas da terra não caíram, também. Aqui estamos. Eu no meio, vocês merodeando.Eufalando,vocêsescutando.Vivemos,andamos.Issoéafelicidade,parece.

Mas eles, antes, deveriam sacrificar-se pelo mundo daqui. Suportar catástrofes, padecimentos edanosqueaqualqueroutropovooteriamaniquilado.

Essavez,oshomensqueandamfizeramaltoparadescansar.Nanoite rugiuo tigreeo senhordotrovãoroncoucomroucavoz.Haviamaussinais.Asborboletasmetiam-sepelasmoradiaseasmulheresdeviamafastá-lasdasgamelasdecomidasacudindoasesteiras.Ouvirampiaracorujaeachícua.Oqueé que vai acontecer?, diziam, assustados. Na noite, o rio cresceu tanto que ao amanhecer eles seencontraramrodeadosdeáguasrevoltas,armadasdepaus,arbustos,matoecadáveresquesedesfaziamestalando contra asmargens. Depressa cortarammadeiras, improvisando balsas e canoas antes que ainundaçãoengolisseailhotaemquesetinhaconvertidoaterra.Tiveramqueselançaràságuaslodosaseremar.Remavam,remavam,e,enquantounsempurravamaspértigas,osoutrosiamgritando,apontando,àdireita, as investidasdaspaliçadas, àesquerda, abocados redemoinhos, e, aqui, aqui, a rabanadada

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yacumama[5] que espera,manhosa, quietinha, sob a água, omomento de virar a canoapara engolir osremadores. Dentro da floresta, o senhor dos demônios, Kientibakori, louco de alegria, bebiamasato,dançandoentreamultidãodekamagarinis.Muitosseforamafogadosnasenchentes,quandoalgumtroncoafundado,invisível,rachavaabalsaeroubavaasfamílias.

Esses,nãovoltavam.Seuscorpos,inchados,mordidospelaspiranhas,apareciamàsvezesemumapraia,oupenduradosempedaçosnasraízesdeumaárvoredamargem.Nãodevemosnosenganarcomasaparências.Osquevãoassim,vãoenãovoltam.Sabiamdissoentãoos seripigaris?Quemsabe se jáhavia chegado a sabedoria. Uma vez que os pássaros e as alimárias comam sua casca, a alma nãoencontraocaminhoderegresso,parece.Ficaperdidaemalgummundo,torna-seumdiabinhokamagariniedesceatéosmaisdebaixoousetornadeusinhosaankariteesobeaosmundodecima.Porisso,eles,antes, desconfiavam do rio, da lagoa, até do canal pouco fundo. Tinham-lhes inimizade. Por isso, sósulcavamosriosquandotodososcaminhossefechavam.Seriaporquenãoqueriammorrer, talvez.Aságuassãotraiçoeiras,dizem.Irnaságuasserámorrer.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Ofundodorio,noGranPongo,estárepletodenossoscadáveres.Serãomuitíssimos,talvez.Aíossoprarame aí regressariamparamorrer.Aí estarão, embaixo, ouvindooprantoda águaque cabeceiacontraaspedrasesedesfaznasrochaspontiagudas.PorissonãohaverátartarugasdepoisdoPongo,nasterrasmontanhosas.Sãoboasnadadorase,apesardisso,nenhumaterápodidoirdesulcadanessaságuas.Asquetentaram,teriamseafogado.Agoratambémelasestarãonofundo,ouvindoestremeceromundodecima.Alicomeçamosealiacabaremos,nós,osmachiguengas,parece.NoGranPongo.

Outrosseforamlutando.Hámuitasmaneirasdelutar.Dessavez,oshomensqueandamtinhamfeitoaltoparaganhar forças.Estavam tãocansadosquemalpodiamfalar.Tinhamficadoemumpedaçodemorroquepareciaseguro.Eelesotinhamlimpadoetinhamconstruídosuascasas,tecidoseustetos.EraaltoeelesachavamqueaságuasmandadasporKientibakoriparaafogá-losnãochegariamatéaliouque,seviessem,elesasveriama tempoepoderiamescapar.Depoisderoçarequeimaromato,plantarammandiocaesemearammilhoebanana.Haviaalgodãosilvestreparatecerasblusasepésdefumo,cujocheiromantinhaafastadasascobras.Asararasvinhamacomodar-senosombrosdaspessoas.Osfilhotesdaonçamamavamnastetasdasmulheres.Asmãesiamatéomaisfundodaselvaepariam,banhavam-seevoltavamcomcriançasquemexiammãos epés, choramingando, contentes comocalorzinhodo sol.Não haviamashcos.Kashiri, a lua, não provocava danos ainda; já tinha estado na terra, ensinando acultivaramandioca.Tinhadeixadosuamásemente,talvez.Nãoosabiam.Tudopareciabem.

Então,umanoiteumvampiromordeuTasurinchienquantodormia.Cravousuasduaspresasnacaradele e ainda que ele o golpeasse com os punhos, não quis se desprender. Teve que despedaçá-lo,sujando-secomseusossosmacios,pegajososcomococô."Éumaviso",disseTasurinchi.Quediziao

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aviso? Ninguém o entendeu. Perdera-se ou não havia começado a sabedoria. Não se foram. Alicontinuaram, amedrontados, esperando.Antesque crescessemosmandiocais eosmilharais, antesquedessemfrutosasbananeiras,chegaramosmashcos.Nãoossentiramvir,nãoouviramamúsicadeseustamboresdecourodemacaco.De repente, choveramflechas sobreeles,dardosepedras.De repente,grande labaredas incendiaram suas casas. Antes que soubessem defender-se, os inimigos já tinhamcortadomuitascabeças,játinhamroubadobastantemulheres.Etinhamlevadotodososcestosdesalqueeles foramenchernoCerra.Osque iamassim,voltavamoumorriam?Quemsabe?Morreriam, talvez.Seu espírito iria darmais fúria emais força aos que os roubaram, talvez.Ou aí estarão ainda dandovoltaspelaselva,desamparados.

Quemsabequantosnãoterãovoltado.Osflechados,osapedrejados,oscaídosemtremedeirapeloveneno dos dardos e pelasmareadas ruins. Cada vez que osmashcos atacavam e via diminuírem aspessoas, Tasurinchi apontava o céu: "O sol está caindo, dizendo. Algo de mau temos feito. Nós nosteremoscorrompido,ficandotantotempoemummesmolugar.Háquerespeitarocostume.Háquevoltaraserpuros.Continuemosandando."Easabedoriavoltava,felizmente,quandoelesiamdesaparecer.

Então,esqueciam-sedesuasplantações,de suascasas,de tudooquenãosepudesseguardarnasbolsas. Punham-se os colares, os cocares, queimavam o resto, e, tocando os tambores, cantando,dançando,começavamaandar.Outravez,outravez.Então,osolsedetinhaemsuaquedaporentreosmundos do céu. Logo sentiam que despertava, que se enfurecia. "Já está aquecendo de novo a terra",diziam."Estamosvivos",diziam.Eelescontinuavamandando.

AssimchegaramaoCerroaquelavez,oshomensqueandam.Aíestava.Altíssimo,puro, subindo,subindoatéoMenkoripatsa,omundobrancodasnuvens.Cinco rioscorriambailandoentreaspedrassalgadas. Rodeavam o Cerro uns matinhos de palha amarela, com pombinhas e perdizes, ratinhosbrincalhõeseformigasdegostodemel.Asrochaseramdesal,osoloeradesal,ofundodosrioseratambémdesal.Oshomensdaterraenchiamoscestos,asbolsas,asredes,tranqüilos,sabendoqueosalnuncaseacabaria.Estavamcontentes,parece.

Partiam,voltavameosalsehaviamultiplicado.Semprehaviasalparaoquesubisseparabuscá-lo.Subiam muitos. Ashaninkas, amueshas, piros, yaminahuas. Os mashcos subiam. Todos conheciam oCerro.Nóschegávamoseosinimigosestavamaí.Nãobrigávamos.Nãohaviaguerrasnemcaçadas,masrespeito,dizem.Issoé,pelomenos,oqueeusoube.Seráverdade,talvez.Igualquenascollpas,igualquenosbebedouros.Poracasonesseslugaresescondidosdaselva,ondeaterraésalgadaeavãolamber,osanimais lutam?Quem já viu em uma collpa o sajino investir contra omajaz ou a capivaramorder oshimbillo?Nadasefazem.Aíseencontrameaíficam,cadaumemseulugar,lambendotranqüilamentedosolo seu sal ou sua água, até que se fartam. Por acaso não é tão bom descobrir uma collpa ou umbebedouro?

Comoéfácilcaçarosanimais,então.Aliestão,descuidados,confiantes, lambendo.Nãosentema

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pedra,nãofogemquandosilvaa flecha.Caemfácil.OCerroeraacollpadoshomens,eraseugrandebebedouro. Tinha sua magia, quem sabe. Os ashaninkas dizem que é sagrado, que, dentro da pedra,conversamosespíritos.Talvezseja, talvezconversassem.Eleschegavamcomoscestoseasbolsaseninguémoscaçava.Olhavam-seapenas.Haviasalerespeitoparatodos.

DepoisjánãosepodiamaissubiraoCerro.Depois,elesficaramsemsal.Depois,oquesubiaeracaçado.Amarrado,eralevadoaosacampamentos.Issoeraasangriadeárvores.Força,porra!Depois,aterraseencheudeviracochasprocurandoecaçandohomens.Eoslevavameelessangravamaárvoreecarregavamocaucho.Força,porra!Nosacampamentosfoipiorquenaescuridãoenaschuvas,parece,piorquequandoodanoeosmashcos.Tivemosmuitíssimasorte.Nãoestamosandando?Eramespertososviracochas,dizem.SabiamqueaspessoassubiriamcomseuscestoseredespararecolherosaldoCerro.Esperavam-noscomarmadilhaseescopetas.Levavamoquecaísse.Ashaninka,piro,amahuaca,yaminahua,mashco.Nãotinhampreferências.Oquecaísse,senãofaltariammãosparasangraraárvore,dedosparaabrir-lheferidas,colocarsua latae recolherseu leite,ombrosparacarregarepernasparacorrercomasbolasdecauchoaoacampamento.Algunsescapavam,quemsabe.Muitopoucos,dizem.Não era fácil.Mais que correr, havia que voar.Morra, merda! Ao que fugia, derrubava-o o balaço.Machiguengamorto, porra! "É inútil fugir dos acampamentos, diziaTasurinchi.Osviracochas têm suamagia. Algo está nos acontecendo. Algo teremos feito. A eles os espíritos amparam, e a nós, nosabandonam.Somos culpadosde algumacoisa.Melhor cravar-se uma espinhade chambira ou tomarosucodocumo.Indoassim,comespinhoouveneno,porvontadeprópria,háesperançasdevoltar.Oquevaidetironãovolta,ficaflutuandonorioKamabiría,mortoentreosmortos,parasempre."Pareciaqueoshomensiamdesaparecer.Mas,nãosomosafortunados?Aquiestamos.Aindaandando.

Sempre felizes. Desde então não mais voltaram a recolher o sal do Cerro. Aí estará sempre,altíssimo,suaalmalimpa,olhandoaosolasuacara.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Tasurinchi,oquevivenocotovelodoarroio,oqueantesviviana lagoaonde,aosedesaguar,naestaçãoseca,ficamtantastartarugasmeiomortas,estáandando.Fuieovi.Sopreiocomodelonge,paraanunciar-lhequevinhavisitá-lo,e,jámaisperto,euofizsaberagritos:"Euvim!Euvim!"Meulourinhorepetiu:"Euvim!Euvim!"Nãoveiomerecebereeupenseique,talvez,tivesseidoviveremoutrolugarequeminhacaminhadaatéaliera inútil.Não.Aícontinuavaacasadele, juntoaocotovelodoarroio.Parei de costas diante dela, para esperar que me recebesse. Tive que esperar muito. Ele estava láembaixo,norio,escavandoumtroncoparafazerumacanoa.

Enquantooesperava,estiveobservandosuamulher.Aí,pertinho,sentadajuntoaotear,tingiaumasfibras de algodão com as raízes esmagadas do palillo. Não se levantou nem me olhou. Continuoutrabalhandocomoseeunãotivessechegadooufosseinvisível.Tinhapostomaiscolaresquedaúltimavez."Vocêusatantoscolaresparaqueosdiabinhoskamagarinisnãoseaproximemdevocêouparaqueo

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bruxo machikanari não possa enfeitiçá-la?", perguntei-lhe. Mas ela não me respondeu e continuoutingindo as fibras como se também nãome ouvisse. Levava tambémmuitos adornos nos braços, nostornozelosenosombrosenopeitodesuablusa.Oaltodesuacabeçaeraumarco-írisdepenasdearara,tucano,papagaio,paujilepavitakanari.

AfinalchegouTasurinchi."Euvim",disse-lhe."Estáaí?""Aquiestou",merespondeu,contenteporme ver, emeu lourinho repetiu: "estou, estou". Então, amulher dele se pôs de pé e desenrolou duasesteirasparaquenossentássemos.Trouxeumapanelademandiocasassadashápoucoequeesvaziouemfolhas de bananeira e uma vasilha de masato. Também ela parecia contente por me ver. Estivemosfalandoatéaluaseguinte,semparar.

Amulherestáprenhaedestavezofilhonasceránotempodevidoenãoseirá.Umdeusinhodisseissoaoseripigarinamareada.Elhefezsaberquesedestavezofilhomorreantesdenascer,comodasoutrasvezes,seráculpadamulherenãodeumkamagarini.Nessamareadaoseripigariverificoumuitascoisas. Nas outras vezes, os filhos nasceram mortos porque ela tinha tomado beberagens para quemorressemdentrodelaebotá-losantesdotempo."Éverdadeisso?",pergunteiàmulherdele.Eelamerespondeu: "Não me lembro. Talvez seja. Quem sabe." "Sim, é verdade", garantiu-me Tasurinchi.Preveniu-adequesedestavezofilhonascermorto,eleamatará."Senascermorto,cravaráemmimumasetaenvenenadaemeporájuntoaoarroio,paraqueascapivarasmecomam",meconfirmouamulher.Eria,nãoestavaassustada,antespareciaestarzombandodenós.

PergunteiaTasurinchiporquequeriatantoquesuamulherparisse.Ofilhonãoopreocupa,éelasuainquietação. "Não é estranho que todos os filhos dela nasçam mortos?", diz. Perguntou-lhe de novo,diantedemim:"Vocêosbotoumortosporquetomoubeberagens?"Elalherepetiuoquemehaviadito:"Nãome lembro." "Às vezes penso que não é umamulhermas uma diaba, uma sopai", confessou-meTasurinchi.Nãosóoassuntodos filhoso fazmaliciarqueela temumaalmadiferente.Tambémessaspulseiras, colares e adornos de cabeça que usa. E é verdade, nunca vi ninguém usar tantas coisas nocorpoenablusa.Quemsabecomopodeandarcomtodoessepesoemcima."Olheoquetemagora",medisse Tasurinchi. Fez que amulher se aproximasse e foi apontando: soalhas de sementes, colares deossosdeperdiz,dentesdecapivara,canelasdemacaquinhos,caninosdemajaz,conchasemuitasoutrascoisasquenãomelembro."Dizqueessescolaresaprotegemcontraobruxomau,omachikanari,contou-meTasurinchi.Masemcertosmomentos,vendo-a,parecequeelaé,antes,oprópriomachikanarieestápreparandofeitiçocontraalguém."Ela,rindo,dissequenãoacreditavaserbruxanemdiaba,masapenasumamulher,comoasoutras.

Tasurinchinãoseimportariadeficarsó,sematassesuamulher."Épreferível,acontinuarvivendocom alguém que pode roubar todos os pedaços de minha alma", explicou-me.Mas pensava que nãoaconteceria,umavezque,segundoaveriguouoseripigarinamareada,destavezofilhonasceráandando."Talvezsejaassim",ouviamulherdeledizer, rindoagargalhadas, sem levantaroolhardas fibrasde

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algodão.Estãobemosdois.Andando.Tasurinchimedeuestaredinhadefibras."Paraquevocêpesqueumpouco",disse-me.Emedeu,também,mandiocaemilho."Nãotemmedodeviajarsó?",perguntou-me. "Nós,machiguengas, sempre atravessamosa selva acompanhados,peloque sepossa encontrarnocaminho.""Eutambémviajoacompanhado",respondiaele."Nãoestávendomeulourinho,poracaso?""Lourinho,lourinho",repetiuopapagaio.

Contei tudo isto a Tasurinchi, o que vivia antes no rioMitaya e vive agoramato adentro do rioYavero.Pensativo,refletindo,elecomentou:"Nãoocompreendo.Temequesuamulhersejaumasopaiporquepariucriançasmortas?Masestastambémseriamdiabas,então,porquenãosóparemmortosmas,às vezes, sapos e lagartixas. Quem ensinou que uma mulher é bruxa má porque usa muitos colares?Desconheço essa sabedoria. O machikanari é bruxo mau porque serve ao soprador dos demônios,Kientibakori, e porque os kamagarinis, seus diabinhos, ajudam-no a preparar feitiços, assim como aoseripigari,bruxobom,osdeusinhosqueTasurinchisoprouajudam-noacurardanos,desfazerfeitiçosedescobriraverdade.Mastantoomachikanaricomooseripigariusamcolares,queeusaiba."

Asmulheres sepuserama rir,ouvindo-o.Nãodeve serverdadeque tenhamfilhosmortosporquehaviaum formigueirodemeninos, aí,nacasadoYavero. "Sãomuitasbocas",queixava-seTasurinchi.Antes,norioMitaya,semprecaíampeixesnarede,aindaqueaterranãofosseboaparaamandioca.Masondefoisemeteragora,remontandobemacimaumdoscanaisquedeságuamnoYavero,nãohápeixes.Éumlugarescuro,cheiodesaposetatus.Umaterraúmidaqueapodreceasplantas.Sempresoubequeacarnedotatunãosedevecomer,poisotatutemmãeimpura,trazdanoseocorpodoqueocomecobre-sedemanchas.Mas,aí,elesocomiam.Asmulherestiraramocourodeumtatuelogoassaramsuacarne,cortadaempedacinhos.Tasurinchimeenfiouumpedaçonabocacomseusdedos.Custeieengoli-lo,pelaapreensãoquesentia.Nãoparecequetenhameacontecidonada.Senão,nãoestariaaquiandando,talvez.

"Porquevocêveiotãolonge,Tasurinchi?,perguntei-lhe.Custeiaencontrá-lo.Alémdisso,porestaregião, aí pertinho, vivem os mashcos." "Você esteve em minha casa do Mitaya e não encontrou osviracochas?",espantou-se."Estãoportodaparte,lá.Sobretudo,naregiãoopostaaolugarondeeuvivia."

Os forasteiros começaram a passar pelo rio, subindo e descendo, descendo e subindo, hámuitasluas. Havia punarunas, vindos da serra, e muitos viracochas. Não estavam de passagem. Ficaram.Fizeramcasas,derrubaramárvores.Caçamanimaisatirosqueretumbamnaselva.

Vinhamcomeles,também,algunshomensqueandam.Dessesquevivemláemcima,dooutroladodoGranPongo,essesquejádeixaramdeserhomensesãotambémumpoucoviracochaspelamaneiracomo se vestem e falam. Vinham ajudá-los, lá, no Mitaya. Chegaram a visitar Tasurinchi. Queriamconvencê-lodequefossetrabalharcomeles,roçandoomatoecarregandopedrasparaumcaminhoqueestão abrindo, pegado ao rio. "Não farão nada a você", animavam-no, dizendo-lhe. "Traga tambémasmulheres,paraquepreparemsuacomida.Olheparanós:nos fizeramalgumacoisa,poracaso?Nãoémaiscomoasangriadeárvores.Então,sim,essesviracochaseramdiabos,queriamnosdessangrarcomo

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àsárvores,queriamroubarnossasalmas.Agoraédiferente.Comestes,vocêtrabalhaotempoquequiser.Elesnosdãocomida,dãofaca,dãofacãoeatéarpãoparapescar.Seficar,podeterumaescopeta."

Os que tinham sido homens pareciam contentes, talvez. "Somos gente afortunada", dizendo. "Olhepara nós, toque em nós. Você também não quer ser assim? Aprenda, então. Faça como nós, então."Tasurinchi deixou-se convencer. "Muito bem", disse-lhes, vou ver." E, atravessando o rio Mitaya,acompanhou-osaoacampamentodosviracochas.

Nahora,aochegar,descobriuquetinhacaídoemumaarmadilha.Estavarodeadodediabos.Comoéquevocênotou,Tasurinchi?Porqueoviracochaqueestava lheexplicando,deumamaneiradifícildeentender,oquequeriaquefizesse,derepente,semmaisnemmenos,mostrou-lheasujeiradesuaalma.Mascomo,Tasurinchi?Quefoiquehouve,então?Estavalheperguntando:"Vocêébommateiro?"...esecaloudesúbito,acaradesfigurada,franzida.Abriumuitoabocaeatchim!atchim!atchim!

Trêsvezesseguidas,parece.Seusolhossemolharam,vermelhoscomofogo.Tasurinchinuncahaviatido tantomedo, antes. "Estou vendo um kamagarini", pensou. "Essa é sua cara, esse seu ruído.Hojemesmovoumorrer."Pensando"édiabo,diabo",sentiuqueapeleseenchiadegotinhas,comosesaíssedaágua.Ofriofezcomqueseusossosrangessemeeleseviupordentro,comonamareada.Tevequefazeromaior esforçode suavida, diz, para semexer.Aspernasnão lhe respondiamde tanto tremer.Pôde,afinal.Oviracochaestavafalandodenovo,semsaberquesetinhadelatado.Umfiozinhoderanhoverdecorriadosburacosdeseunariz.Falavacomosenãotivesseacontecidonada,falavacomofaloeuagora.Assustou-se,certamente,aoverqueTasurinchisaíacorrendoeodeixavacomapalavranaboca.Osquetinhamsidohomenseestavamporali,tentaramsegurá-lo."Nãoseassuste,nãoaconteceránadaavocê",enganavam-no."Ésóespirro.Elesnãomorremdisso.Têmremédios."Tasurinchientrouemsuacanoa,disfarçando:

"Sim, bem,hei devoltar, volto logo, esperem-me."Ainda se chocavam seusdentes, parece. "Sãodiabos",pensava."Hojeheidemorrer,talvez."

Mal chegou à outramargem, reuniu-se com asmulheres e os filhos. "Já chegou o dano, estamosrodeados de kamagarinis", anunciou-lhes. "Temos que ir longe. Vamos, talvez não seja tarde, talvezpossamos andar, ainda."Assimo fizerame agoravivemnesse canal,mato adentrodo rioYavero.Osviracochasnãochegarãoatéali,segundoele.Tampoucoosmashcos,nemmesmoelesseacostumariamemumlugarassim."Sóoshomensqueandampodemosviveremlugarescomoeste",dizia,orgulhoso.

Estavacontentepormever. "Temiquenuncaviriamevisitar aqui",dizia.Asmulheres, enquantocatavamoscabelosumadaoutra,repetiam:"Sortequeescapamos,oqueseriadenossasalmassenão."Pareciamcontentespormever, também.Comemos,bebemoseconversamosmuitas luas.Nãoqueriamquemefosse."Comoéquepodeir,ora",diziaTasurinchi,"seaindanãoacaboudefalar.Fale,fale,aindatemmuitoparamedizer."Porele,meteriaaindanoYavero,falando.

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***

Nãoterminoudefazersuacasaainda.Masjálimpouoterrenoecortouamadeiraeasfolhasepreparouosatadosdepalhaparao teto.Teveque trazê-la ládebaixo,porqueondeestánãohápalmeirasnempalha.Umjovemquequersecasarcomumadasfilhasdeleestávivendoali,perto,eajudaTasurinchiabuscarumaterranapartemaisalta,parasemearmandioca.Abundamosescorpiõeseelesosfazemiremborafumandonosburacosdeseusesconderijos.Tambémhámuitosmorcegos,denoite;jámorderamumadascriançasque,nosono,afastou-sedofogo.Dizqueosmorcegosdalisaemabuscarcomidaatécom chuva, uma coisa que nunca se viu em outra parte. É uma terra onde os animais têm diferentescostumes,essadoYavero."Aindaestouconhecendotudoisso",disse-meTasurinchi."Avidaficadifícilquando a gentemuda de lugar", comentei com ele. "Assim é", replicou ele. "Ainda bemque sabemosandar.Aindabemquetemosandadohátantotempo.Aindabemquesempreestivemosmudandodelugar.Queseriadenóssefôssemosdessesquenãosemovimentam?Teríamosdesaparecidoquemsabeparaonde. Assim aconteceu a muitos, durante a sangria de árvores. Não há palavras para dizer queafortunadossomos."

"QuandovoltaravisitarTasurinchi,recorda-lhequeédiabooquefazatchim!enãoamulherquepare crianças mortas ou usa muitos colares de contas de vidro", zombou Tasurinchi, fazendo rir asmulheres. Eme contou esta história que agora vou lhes contar. Aconteceu hámuitas luas, quando osprimeirosPadresBrancoscomeçaramaaparecerporesteladodoGranPongo.Elesjáestavamvivendodooutro,láemcima.TinhamsuascasasemKoribenieChirumbia,masnãotinhamvindoporaqui,rioabaixo.OprimeiroqueatravessouoGranPongofoiaorioTimpíasabendoqueláhaviagentequeanda.Tinhaaprendidoafalar.Falava,parece.Agenteentendiaoquequeriadizer.Faziamuitasperguntas.Alificou.Eoajudarama limparo terreno,a levantar suacasa,acomeçarachácara. Iaevoltava.Traziacomida, anzóis, facões. Os homens que andam entendiam-se bem com ele. Pareciam contentes. O solestavaemseulugar,tranqüilo.Masaoregressardeumadesuasviagens,oPadreBrancojátinhamudadodealma,mesmoqueacarafosseamesma.Tinhaviradokamagarinietraziadano.Masninguémpercebia,e,porisso,ninguémsaiuaandar.Tinhamperdidoasabedoria,quemsabe.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

OPadreBrancoestavaestiradoemsuaesteiraeoviamfazercaretas.Atchim!Atchim!Quandoseaproximavamparaperguntar-lhe"Oqueéquetem?Porqueentortaassimacara?Queruídossãoesses?",respondia: "Nãoénada, jávaipassar."Odano tinhasemetidonaalmade todos.Crianças,mulheres,anciões.Etambém,dizem,asararas,ospaujiles,osporquinhos-do-mato,asperdizes,todososanimaisque tinham. Eles também:Atchim!Atchim!Riam, no princípio.Achavam que era como umamareadaalegre.Batiamnopeito e se empurravam,brincando.E, entortandoas caras:Atchim!Saíao ranhode

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seusnarizes,saíaababadesuasbocas.Cuspiameriam.

Masnãopodiammaisandar.Tinhapassadootempo.Jásuasalmas,quebradasempedaços,tinhamcomeçado a sair de seus corpos pelo alto de suas cabeças. Só lhes restava resignarem-se ao quesucederia. Sentiam como se dentro do corpo tivessem acendido fogueiras. Ardiam, chamejando.Banhavam-senoriomasaágua,emvezdeapagarofogo,aumentava-o.Depoissentiamumfrioterrível,comose tivessemrecebidooaguaceiro todaanoite.Mesmoqueo solestivesseali,olhandocomseuolho amarelo, eles tremiam, tontos, assustados, não vendo o que viam, sem reconhecer o conhecido.Enfureciam-se,adivinhandoquetinhamodanometidodentro,comoobicho-de-pénaunha.Nãohaviamentendidooaviso,nãosaíramaandaraoprimeiroatchim!doPadreBranco.Morreramatéospiolhos,parece.Asformigas,osescaravelhoseasaranhasquepassavamporalitambémmorreram,dizem.NuncaninguémvoltouavivernaquelelugardorioTimpía.Aindaquejánãosesaibabemqualé,porqueomatootapoudenovo.Nãoconvémpassarporali,melhordarumavolta,evitando-o.Podeserreconhecidoporumafumacinhabrancaquefedeeunsassobiosestridentes.Easalmasdosquevãoassim,voltam?Quemsabe.Talvezvoltem.Ou,talvez,fiquemflutuandonoKamabiría,caminhodeáguadosmortos.

Eu estou bem. Andando. Agora estou bem. Estive com dano há algum tempo e pensei que tinhachegadoahoradearmarmeurefúgioderamosjuntoaorio.IaacaminhodacasadeTasurinchi,ocego,oque vive no rumodoCashiriari.De repente, aquilo foime saindo, enquanto andava. Sómedei contaquando vi minhas pernas manchadas. Que dano é este? Que foi que se meteu dentro do meu corpo?Continueiandando,masaindafaltavamuitoparachegaraoCashiriari.Quandosenteiparadescansar,meveioatremedeira.Estivevendoquepodiafazer,espiandoosarredores.Porfim,encontreiumaárvoredefloripôndio[6]earranqueidela todasas folhasquepude.Fizumcozimentoesalpiqueimeucorpocomele.Amorneioutravezaáguadavasilhaemetidentrodela,fervendo,apedraqueoseripigaritinhamedado.Respireiseuvaporatéqueosonomeveio.Estiveassimmuitasluas,quemsabequantas,estendidosobreaesteira,semforçasparaandar,semforçasnemsequerparamesentar.Asformigaspasseavampelomeucorpoeeunãoasafastava;quandoalgumaseaproximavamuitodeminhabocaeuaengolia,eessa foi todaaminhacomida.Entresonhos,ouviao lourinho,chamando-me:"Tasurinchi!Tasurinchi!"Meiodormidomeioacordadoesempremortodefrio.Sentiaumagrandetristeza,talvez.

Nisso,apareceramunshomens.Viacaradelesemcimademim,agachando-separameolhar.Ummemexeu com seu pé e eu não podia falar com ele. Não eram homens que andam. Não eram mashcostambém,felizmente.Ashaninka,podeser,acho,porquepudeentenderumpoucodoquediziam.Estiveramme observando, me fazendo perguntas que eu não tinha forças para responder, ainda que as ouvisse,longe.Emepareciaquediscutiamsobreseeuseriaumkamagarini.Etambémoquesedevefazerquandoagenteencontraumdiabinhonaselva.Discutiam.Umdissequelhestrariadanootervistoalguémcomoeuemseucaminhoequeoprudenteeramematar.Nãochegavamaumacordo.Conversaramepensarammuitotempo.Porfim,decidiramtratarbemdemim,paraminhasorte.Elesmedeixaramumasmandiocas

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ecomoviramqueeunão tinha forçasparapegá-las,umdelesmemeteuumpedaçonaboca.Nãoeraveneno.Eramandioca.Envolveramasoutrasemumafolhadebananeiraeapuseramnestamão.Talveztenhasonhadotudoisso.Nãosei.Mas,depois,quandomesentimelhoreasforçasvoltaram,aliestavamasmandiocas.Euascomietambémolourinhocomeu.Puderecomeçaraviagem.Iadevagar,parandoatodoinstanteparadescansar.

Quando cheguei à casa de Tasurinchi, o cego, o do rio Cashiriari, contei-lhe o que me tinhaacontecido.Elejogoufumosobremimepreparouumcozimentodetabaco.

"Oqueaconteceuavocêfoiquesuaalmasedividiuemmuitas",explicou-me."Odanoentrounoseucorpo, porque algum machikanari o mandou ou porque, só de desprevenido, você se atravessou nocaminho dele.O corpo é a blusa da alma, só isso.A envoltura dela, como a do bicho-da-seda. Já ládentroodano,aalmatratoudesedefender.Deixoudeserumaeseconverteuemmuitas,paraconfundirodano.Esteroubouasquepôde.Uma,duas,várias.Nãoterálevadomuitas,porquevocêteriaidotodo.Foibomquetomasseumbanhocomáguadetohéeaspirasseseuvapor.Masdeviaterfeitoalgomaisesperto.Esfregarcomtinturadeurucuoaltodacabeça,atéqueficassebemvermelho.Então,odanonãoteriapodidosairdeseucorpocomocarregamentodealmas.Poraíéporondesai,essaéaportadele.Ourucufecha-lheocaminho.Aosesentirprisioneiro,ládentro,perdeaforçaemorre.Nocorpoéigualquenascasas.Osdiabosqueentramnascasasnãoroubamasalmasescapandopelapartemaisalta,pelacumeeiradoteto?Paraquearrumamoscomtantocuidadoessamadeira,noaltodoteto?Paraqueodiabonãopossa escapar, levandoas almasdosquedormem. Igual comocorpo, então.Você se sentiu fracopelasalmasqueperdeu.Maselasjávoltaramparavocêdenovoeporissoestáaqui.TeriamescapadodeKientibakori,aproveitandoumdescuidodeseuskamagarinis.Regressariamparaprocurarvocê,poisvocênãoéacasadelas?Eoencontrariamali,nomesmolugar,agonizando,moribundo.Entraramnoseucorpoevocêrenasceu.Agora,dentrodevocê,todasasalmasjásejuntaram.Agorasãodenovoumasó."

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

***

Tasurinchi,ocego,oquevivepeloCashiriari,estábem.Aindaquenãovejaquasenadaamaiorpartedotempo,podelimparsuachácara.Anda.Dizquenamareadaagora,vêmaiscoisasqueantesdeficarcego.Seráumasorteoqueaconteceuaele,talvez.Nissoacredita.Estádomesticandoascoisasdemaneiraquesuacegueiracauseomenordanoaeleeaosseus.Ofilhomenor,oqueengatinhavadaúltimavezquefuivê-lo,sefoi.Umavíborapicouapernadele.Quandonotaram,Tasurinchipreparouumcozimentoefezoquepôdeparasalvá-lo,masjátinhasepassadomuitotempo.Foimudandodecor,ficoupretocomoohuitoesefoi.

Masseuspaistiveramaalegriadevê-loumavezmais.

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Aconteceuassim.

Foramaoseripigarielhedisseramqueestavammuitotristescomapartidadacriança.Pediram-lhe:"Averiguaoquefoifeitodele,emqualdosmundosestá,dizendo-lhe.Epede-lhequevolteanosvisitar,pelomenos uma vez." O seripigari assim o fez. A alma dele, namareada, guiada por um saankarite,viajou até o rio dos espíritos puros, o Meshiareni. Lá encontrou a criança. Os saankarites o tinhamlavado,tinhacrescido,tinhaumacasaelogoteriatambémumaesposa.Contando-lhecomotinhamficadotristesseuspais,oseripigariconvenceu-odequevoltasseaestaterraparafazer-lhesumaúltimavisita.Prometeuecumpriu.

Tasurinchi, o cego,dizquena casadoCashiriari apresentou-se logoum jovem,vestido comumablusanova.Todosoreconheceram,apesardequejánãoeracriançamasumjovem.Tasurinchi,ocego,soubequeeraelepeloperfumequeexalava.Sentou-seentreeleseprovouumpedaçodemandiocaeumasgotasdemasato.Estevecontandosuaviagem,desdequesuaalmaescapoudeseucorpopeloaltodacabeça.Estavaescuromaselepôdereconheceraentradadacovaporondesedesceaoriodasalmasmortas.Atirou-seaoKamabiríaeflutuounaságuasespessas,semafundar.Nãonecessitavamexerospésnem asmãos.A corrente, prateada como teia de aranha, levava-o devagar.À sua volta, outras almasviajavamtambémpeloKamabiría,riolargoemcujasmargens,talvez,hajarochasmaisescarpadasqueasdoGranPongo.Porfimchegouaolugarondeaságuassedividem,arrastandoporseudespenhadeirodecascataseredemoinhososquedescemaoGamaironi,asofrer.Aprópriacorrentedorioiaseparandouns dos outros. Aliviado, o filho de Tasurinchi, o cego, sentiu que as águas o afastavam dodespenhadeiro; feliz, soubeque ele seguiria viajandopeloKamabiría, comosque iam subir, pelo rioMeshiareni,atéomundomaisacima,omundodosol,oInkite.Parachegarlá,viajoumuitoainda.Tevequepassarpelofimdestaterra,oOstiake,ondedeságuamtodososrios.Éumaregiãopantanosa,cheiademonstros;Kashiri,alua,baixaàsvezesparaurdiraliseusmalefícios.

Esperaramqueocéuestivesselimpodenuvensequeasestrelasserefletissemnaságuas,nítidas.Então,ofilhodeTasurinchipôdeascendercomoscompanheirosdeviagem,peloMeshiareni,queéumaescadade luzeiros, atéo Inkite.Os saankariteso receberamcomuma festa.Comeuum frutode sabordoce,queofezcrescer,elhemostraramacasaondeviveria.Agora,aoregressar,teriampreparadaumaesposaparaele.Estavacontente,parece,nomundomaisdecima.Nãoselembravadapicadadavíbora.

"Nãosentefaltadenadadestaterra?",perguntaram-lheseusparentes.Sim,dealgo.Afelicidadequesentiaquandoamãelhedavademamar.Eentão,contou-meocegodoCashiriari,pedindo-melicençapara fazê-lo, o jovem se aproximou de suamãe, abriu sua blusa e, commuita delicadeza, chupou ospeitosdela,comofaziaderecém-nascido.Saiudelaoleite?Quemsabe?Maselesesentiufeliz,talvez.Despediu-sedeles,contente.

TambémseforamasduasirmãsmaisjovensdamulherdeTasurinchi.UmadelasfoiraptadaporunspunarunasqueaparecerampelorumodoCashiriarieamantiveramparacozinhar,usando-acomomulher,

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muitasluas.Eraoperíodoemquedeviaestarpura,comoscabeloscortados,semcomer,semfalarcomninguémesemqueomaridoa tocasse.DisseTasurinchiqueelenãoaenvergonhoupeloquelhetinhaacontecido.Maselaseatormentavacomsuamorte."Jánãomereçoqueninguémfalecomigo,dizendo.Nãosei,também,semereçoviver."Ànoitinha,foidevagarinhoatéamargem,fezsuacamacomraminhosecravouemseucorpoumaespinhadechambira.

"Estavatãotristequeeususpeitavaquefariaisso",disse-meTasurinchi,ocego.Envolveram-naemduasblusas,paraqueosabutresnãoabiquem,e,emvezdesoltá-laemumacanoanomeiodorioouenterrá-la,penduraram-nanoaltodeumaárvore.Deumamaneiramuitosábia,poisosraiosdosoldamanhãeda tarde lambemseusossos.Tasurinchimostrou-meondeeeumeespantei. "Quealto!Comopôdechegaratélá?""Nãotereivista,masparasubirumaárvorenãoseprecisadeolhos,masdepernasebraços,eosmeusestãoaindafortes",respondeu-me.

A outra irmã damulher de Tasurinchi, o cego doCashiriari, caiu de uma quebrada, voltando domandiocal.Tasurinchimandara-averasarmadilhasquepõeaoredordachácaraenasquais,diz,semprecaemosporquinhos-da-índia.Passavaamanhãeelanãovoltava.Saíramparabuscá-laeaencontraramnofundodaquebrada.Tinha rolado, resvalando talvez,porumdeslizamentosobseuspés.Maseumesurpreendi.Nãoéumbarrancoprofundo.Qualquerumpoderiasaltarourolaratéofundo,semsematar.Elamorreuantes, talvez,eseucorpovazio, semalma, rolariaquebradaabaixo.Tasurinchi,ocegodoCashiriari, diz: "Sempre pensamos que essamoça iria sem explicação." Passava a vida cantarolandoumascançõesqueninguémtinhaouvido.Tinhadelíriosestranhos,falavadelugaresdesconhecidos,e,aoqueparece,osanimaislhecontavamsegredosquandonãohavianinguémpertoparaescutá-los.Essessãoindícios de que uma pessoa vai logo, segundo Tasurinchi. "Agora que essas duas se foram, há maiscomidapararepartir,quesortetemos",brincava.

***

Ensinouosfilhospequenosacaçar.Eleosmantémpraticandotodoodia,peloquepossalheacontecer.Pediu-lhesquememostrassemoquetinhamaprendido.Éverdade,jámanejamoarcoeafaca,mesmoosquecomeçamaandar.Tambémsãohábeis fazendoarmadilhasepescando."Comovocêpodever,nãolhesfaltaráoquecomer",disse-meTasurinchi.Gostodacoragemqueeletem.

É um homem que nada entristece. Estive vários dias com ele, acompanhando-o a preparar seusanzóis, a armar suas armadilhas, e o ajudei a limpar sua chácara. Trabalhava dobrado em dois,arrancandoaerva,comoseseusolhosvissem.Tambémfomosaumalagoaondehásúngaros,masnadapescamos.Nãosecansavademeescutar.Emefaziarepetirasmesmashistórias:"Assim,quandovocêsefor,voltareiacontar-meeumesmooqueagorameconta",dizendo."Quemiseráveldeveseravidadosquenãotêm,comonós,pessoasquefalem,pensava.Graçasaoquevocêconta,écomoseoquepassou

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voltasseapassarmuitasvezes."

A uma de suas filhas, que dormiu enquanto eu falava, ele despertou com um golpe: "Escute, nãodesperdice estas histórias, crianças, dizendo-lhe. Conheça as maldades de Kientibakori. Aprenda osdanosquenostêmfeitoeaindapodemfazerosseuskamagarinis."

AgorasabemosmuitascoisasdeKientibakorique,eles,antes,nãosabiam.Sabemosquetemmuitosintestinos,comoorenacuajoinkiro.Sabemosquenosodeia,osmachiguengas.

Játentounosdestruirmuitasvezes.Sabemosqueelesoproutodoomalqueexiste,dosmashcosatéodano.Asrochaspontiagudas,asnuvensescuras,achuva,obarro,oarco-íris,elesoprou.Eospiolhos,aspulgas,osbichos-de-pé,ascobraseasvíborasvenenosas,osratõeseossapos.Elesoprouasmoscas,osmosquitos,ospernilongos,osmorcegoseosvampiros,asformigaseosurubus.Elesoprouasplantasque fazem a pele arder e as que não se podem comer; e as terras vermelhas, que servem para fazervasilhasmasnãoparaplantaramandioca.IstoeuaprendinorioShivankoreni,pelabocadoseripigari.AquelequemaissabesobreascoisaseosseressopradosporKientibakori,talvez.

A vez em que esteve mais perto de nos destruir foi essa vez. Já não era tempo da abundância.Também não da sangria de árvores.Antes que este e depois que aquele, parece.Veio um kamagarinidisfarçadodegenteedisseaoshomensqueandam:"Quemnecessitaverdadeiramentedeajudanãoéosol. Mas Kashiri, a lua, que é o pai do sol." Deu-lhes suas razões, com palavras que os deixaramdesconfiados.Osol,tãoforte,nãofaziachoraraquelesqueseatreviamaolhá-lofixamente,sempiscar?

Queajudaianecessitar,então?Issodequecaíaelevantavaeramanha.Kashiri,emcompensação,comsualuztênue,bondosa,estavasemprelutandocontraastrevas,emcondiçõesdifíceis.Sealuanãoestivesseali,nasnoites,espiandonocéu,aescuridãoseriacompleta,umatravaespessa:ohomemcairianoprecipício,pisarianavíboraenãopoderiaencontrarsuacanoanemsairparacultivaramandiocaoucaçar.Viveriaprisioneiroemummesmolugareosmashcospoderiamcercá-lo, flecha-lo,cortar-lheacabeçaeroubar-lheaalma.Seosolcaíadetodoserianoite,talvez.Masenquantohouvesselua,anoitenuncaserianoitedetodo,sómeiaescuridão,eavidacontinuaria,talvez.NãodeviamoshomensajudaraKashiri,emvezdisso?Nãoeraessaasuaconveniência?Seofaziam,aluzdaluabrilhariamaisintensa,eanoiteseriamenosnoite,umapenumbraboaparaandar.

Aquele que lhes dizia essas coisas parecia um homem mas era um kamagarini. Um desses queKientibakori soprou para que andem por este mundo semeando desgraças. Eles, antes, não oreconheciam.Apesardequechegouemmeiodeumagrandetormenta,comochegamsempreosdiabinhosàsaldeias.Eles,antes,nãooentendiam,talvez.

Sealguémaparecequandoosenhordotrovãoestárugindoecaemtrombas-d'água,nãoéhomem,ékamagarini.Agora sabemos. Eles não o reconheciam ainda.Deixaram-se convencer. E,mudando seuscostumes,começarama fazerdenoiteoque faziamantesdediaedediaoque faziamantesdenoite.

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Pensandoque,assim,Kashiri,alua,brilhariamais.

Mal assomava seuolhodo sol no céupunham-se sob teto, dizendo-seuns aosoutros: "Éhoradedescansar", "Éhorade acender o fogo", "Éhorade sentar para escutar aoque fala.'Assimo faziam:descansavam com o sol ou se reuniam para ouvir o falador até que começava a escurecer. Então,espreguiçando-se,diziam:"Chegouomomentodeviver."Denoiteviajavam,denoitecaçavam,denoiteconstruíamsuasmoradiasedenoiteroçavamomatoe limpavamdecapimosmandiocais.Eforamseacostumandoaonovomododevida.Tanto,que jánão resistiamestar ao ar livrenashorasde luz.Ocalordosolfaziaapeledelesardereofogodeseuolhooscegava.Coçando-se,diziam:"Nãovemos,quehorríveléestaluz,nósaodiámos."Emcompensação,denoite,osolhosdelestinhamseacostumadoàescuridãoeviamnelacomovocêseeuduranteodia.Diziam:"Eraverdade,Kashiri,alua,agradece-nos a ajuda que lhe prestamos."Começaram a se chamar, já não homens da terra, já não homens queandam,jánãohomensquefalam.Senãohomensdatreva.

Tudoestavamuitobem,talvez.Pareciamcontentes,quemsabe.Avidatranscorriasemocorrências.Sentiam-se serenos.Osque se iam,voltavam,e,bemoumal,não lhes faltavacomida. "Fomossábiosfazendo o que fizemos", diziam. Estavam enganados, parece. Haviam perdido a sabedoria. Todosestavamvirandokamagarinis,masnãoosuspeitavam.Atéquecomeçaramaacontecer-lhescertascoisas.EmTasurinchi,umbelodia, amanheceramescamaseum raboonde tinhaospés.Pareciaumaenormecarachama.Sim,essepeixequevivenaáguaenaterra,essepeixequenadaeanda.Arrastando-secomdificuldade, foimeter-se no lago,murmurando pesaroso que não podia suportar a vida na terra, poissentia falta da água. Em Tasurinchi, ao despertar, umas luas depois, tinham saído asas no lugar dosbraços.Deuumpequenopuloeviramqueseelevavaedesapareciasobreasárvores,batendoasascomoumbeija-flor.EmTasurinchicresceuumatrombaeseusfilhos,desconhecendo-o,gritaramdesatinados:"Umsajino,vamoscomê-lo."Quandotentoudizer-lhesquemera,emitiuumroncoegrunhiu.Tevequefugir, trotando. Torpe trotava nas quatro patas que mal de fato sabia usar, perseguido pela genteesfomeadaquelheatiravaflechasepedras,"Vamospegá-lo,vamoscaçá-lo",dizendo.

Esta terra foi ficando semhomens.Uns viravampássaros, outros peixes, outros tartarugas, outrosaranhas,eiamfazeravidadosdiabinhoskamagarinis."Queéqueestánosacontecendo,quedesgraçassão estas?", perguntavam-se, aturdidos, os sobreviventes. Estavam amedrontados e cegos, nãocompreendiam.Umavezmais,tinhaperdidoasabedoria."Vamosdesaparecer",lamentavam-se.Tristes,talvez.Então,emmeiodetantaconfusão,osmashcoslhescaíramemcimaefizeramumagrandematança.Cortaram as cabeças de muitos deles e levaram suas mulheres. Parecia que as catástrofes nãoterminariamnunca.Então,emseudesespero,umdeleslembrou-se:"VamosvisitarTasurinchi."

Eraumseripigarijávelho,queviviasó,pelorioTimpía,atrásdeumacascata.Ouviu-ossemdizernada.Foi comeles atéo lugarondeviviam.Comseusolhos remelentos contemplouodesamparo e adesordem que reinavam no mundo. Jejuou várias luas, mudo, abstraído, meditando. Preparou os

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cozimentosparamareada.Esmagoutabacoverdenopilão,espremeuasfolhassobreumcoador,colocouágua e pôs a vasilha a ferver até que o cozimento engrossou e ferveu.Amassou a raiz do ayahuasca,espremeuseusucopardo,ferveu-oedeixouqueesfriasse.Apagaramofogo,rodearamacasacomfolhasdebananeiraparaqueaescuridãofossecompleta.Oseripigarifumou-osumporum,atodos,ecantou,eeles lhe responderam, cantando. Logo, tomou seus cozimentos, sempre cantando. Eles aguardavam,ansiosos.Elecontinuavaagitandoomolhodefolhasecantando.Nãoentendiamoquedizia.Porfim,játornadoespírito,viramsuasombraescalaropaudocentrodachoçaedesaparecernoteto,pelomesmolugarporondeodiabolevaasalmas.Poucodepois,voltou.Tinhaseumesmocorpo,masjánãoeraele,eraumsaankarite.Eosrepreendeu,furioso.

Recordou-osoquetinhamsido,oquetinhamfeito,tantossacrifíciosdesdequecomeçaramaandar.Comotinhampodidodeixar-seenganarpelasastúciasdoinimigodesempre?ComotinhampodidotrairosolporKashiri,alua?Aomudaremsuamaneiradeviver,perturbaramaordemdomundo,desorientandoasalmasdosqueseforam.Naescuridãoemquesemovimentavam,asalmasnãoosreconheciam,nãosabiam se estavam erradas. Por isso ocorriam as desgraças, talvez. Os espíritos dos que se iam evoltavam, confundidos com asmudanças, se iam de novo. Erravam pela floresta, órfãos, gemendo novento.Noscorposabandonados,semosustentodasalmas,okamagarinisemetiaparacorrompê-los;porissolhessaíampenas,escamas,focinhos,garras,aguilhões.Masaindaestavamatempo.Adissoluçãoeaimpurezatinhamsidotrazidasporumdiabo,vivendoentreelesvestidodehomem.Saíramemsuabusca,decididos a matá-lo. Mas o kamagarini já havia fugido para o fundo da floresta. Eles então,compreenderam. Envergonhados, voltaram a fazer o que haviam feito antes, até que omundo, a vida,foramoqueeramedeviamser.Desolados,arrependidos,puseram-seaandar.Nãodevefazercadaqualoquelhecorresponde?

Nãolhestocavaandar,ajudandoosolaselevantar?Suaobrigaçãoelesatêmcumprido,talvez.Nósaestamoscumprindo?Andamos?Vivemos?

Entre todas as classes de kamagarinis que Kientibakori soprou, o pior dos diabinhos é okasibarenini,parece.Pequeninhocomocriança,seaparececomsuablusacordeareiaporalgumlugar,éporquealiháalgumdoente.Querseapoderardesuaalmaparaobrigá-loafazercrueldades.Porissonãose deve deixar os enfermos nem um momento sozinhos. E basta um pequeno descuido para que okasibareninifaçadassuas.Tasurinchidizqueissoaconteceuaele.Aquelequevoltou,aquelequeestávivendo agora pelo rio Camisea. Tasurinchi. Segundo ele, um kasibarenini teve a culpa do que lheaconteceu lá em Shivankoreni, onde ainda a gente se enfurece lembrando-o. Fui vê-lo, na prainha doCamisea onde fez sua casa. Assustou-se ao me ver aparecer. Pegou a escopeta. "Vem me matar?",dizendo."Cuidado,olheoquetenhonasmãos."Nãoestavaenraivecido,mastriste."Venhovisitarvocê",tranqüilizei-o."Eparafalarcomvocê,sequisermeouvir.Sepreferequemevá,irei.""Comonãovouquererquemefale?",respondeu-me,estendendoduasesteiras."Venha,venha.Comatodaminhacomida,

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levetodaamandiocaquetenho.Tudoéseu."Queixou-seamargamentedequenãolhepermitamregressara Shivankoreni. Aproxima-se e li seus antigos parentes vêm ao seu encontro com flechas e pedras,gritando-lhe:"Diabo,malditodiabo."

Alémdisso,pediramaumbruxomau,ummachikanari,quelhefaçadano.Tasurinchisurpreendeu-o,metendo-se às escondidas em sua casa, de noite, para roubar umamecha de seus cabelos, ou algumacoisa sua, e assim conseguir fazê-lo enfermar e morrer de morte horrível. Teria podido matar omachikanari,massóofezcorrer,disparandoparaoar.Issoprova,segundoele,quesuaalmaiestádenovopura."Nãoéjustoquetenhamtantoódiodemim",diz.Contou-mequefoiatéTasurinchi,rioacima,levando-lhecomidaepresentes.Oferecendo-separa lheabrirumachácaranovanafloresta,pediuquelhe desse por mulher qualquer das filhas dele. Tasurinchi insultou-o: "Lêndea, cocô, falso, como seatreveaviraqui?Voumatarvocêagoramesmo."Etinhatentadoesfaqueá-lo.

Queixou-se, chorando, de sua sorte. Disse que não era verdade que fosse um diabo kasibareninidisfarçado de homem. Tinha-o sido por um tempo, talvez, antes.Mas, agora, é igual a qualquer dosmachiguengasdeShivankoreniquenãoodeixamaproximar-se.Suadesgraçacomeçouaquelavezqueteveodano.Estavatãomagroetãofracoquenãopodialevantar-sedaesteira.Tambémnãopodiafalar;abriaabocaenãolhesaíaavoz."Estareivirandopeixe",parecequepensava.Masviaeentendiaoqueacontecia a sua volta, nas outras moradias de Shivankoreni. Assustou-se muito quando percebeu quetodos,nacasa,tiravamaspulseiraseosadornosdepulsos,braçosetornozelos.Ouvia-osdizendo:"Vaimorrerlogo.Mas,antesdeir,seuespíritotiraráasveiase,comelas,quandoestivermosdormindo,nosamarrarápelaspartesdocorpoondetínhamosadornos."Elequeriatranqüilizá-los,dizer-lhesquenuncafariaissocomelesequetambémnãoestavamorrendo.Masnãolhesaíaavoz.E,nisso,avistou-osobachuva.Andavapelo povoado, fazendo-se de inocente.Era uma criança comumablusa cor de areia epareciaentretidobrincandocomumassementesdefloripôndioeimitando,comamão,orevoardeumcolibri.

Tasurinchinãopensouquepodiaserumdiabinho.Por isso,nãoseassustouquandoseusparentespartiram para pescar rumo ao lago. Então, quando o viu sozinho, o kasibarenini transformou-se emformigaemeteu-senocorpodeTasurinchipeloburaquinhodonarizporondeseaspiraosucodotabaco.Aímesmosentiu-securadododanoquetinha,aímesmovoltaram-lheasforçaseengordou.Massentiu,também,umimpulsoirresistíveldefazeroquefez.E,semmaisnemmenos,correndo,uivando,batendo-senopeitocomoummacaco,começouaqueimarasmoradiasdeShivankoreni.Dizquenãoeraele,maso diabinho, o que acendia a palha e espalhava o fogo de um lado a outro, rugindo e pulando, feliz.Tasurinchi lembra-sedoberreirodospapagaiosedasufocaçãoquesentia,entreasnuvensdefumaça,enquanto à frente, atrás, à direita e à esquerda, tudo ardia. Se não tivessemchegadoos demais, hoje,Shivankoreninãoexistiria.Dizquemalviuviraspessoas,arrependeu-sedoque tinhafeito.Tevequefugir,assustadíssimo,dizendo-se:"Queestámeacontecendo?"Queriammatá-lo,perseguiam-nogritando-

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lhe:"Diabo,diabo."

Mas,segundoTasurinchi,issoéhistóriavelha.OdiabinhoqueofezbotarfogoemShivankorenifoisugadoporumseripigarideKoribeni:tirou-opelaaxilaeovomitou,depois.Tasurinchiviu-o:tinhaaformadeumossinhobranco.Dizque,desdeentão,eleédenovocomoeuoucomoqualquerdevocês."Por que pensa que não me deixam viver em Shivankoreni?", perguntou-me. "Porque desconfiam devocê", expliquei-lhe. "Todos se lembramdaqueledia emquevocê se curou sóparaqueimar as casasdeles. E, além disso, sabem que você andou vivendo, lá, do outro lado do Gran Pongo, entre osviracochas."PorqueTasurinchinãoestavavestidocomblusa,mascalçaecamisa."Lá,entreeles,eumesentiaumórfão",disse-me."SonhavacomvoltaraShivankoreni.Eagoraqueestouaquimeusparentesmefazemsentirumórfãotambém.Vivereisempreemumasolidãoassim,semfamília?Aúnicacoisaqueeuqueroéumamulherqueasseamandiocaetenhafilhos."

***

Estivecomeletrêsluas.Éumhomemestranhoedistraído,que,àsvezes,falasozinho.Alguémqueviveucomumdiabokasibarenini dentro do corponãopodevoltar a ser o que era, talvez. "Quevocê tenhavindome visitar é o princípio de umamudança, quem sabe", disse-me. "Você acredita que dentro depoucooshomensqueandammepermitirãoandarcomeles?"Quemsabe?,respondi-lhe."Nãohánadamaistristequesentir-sealguémquejánãoéumhomem",disse-me,quandonosdespedimos.QuandojáiapelorioCamiseaeuovi,delonge.Subiraaummontinhoemeseguiacomoolhar.Eumelembravadesuacaracarrancuda,desamparada,masnãoaviamais.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

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IV

CONHECIaselvaamazônicaemmeadosde1958,graçasaminhaamigaRositaCorpancho.Suasfunçõesna Universidade de San Marcos eram indefinidas; seu poder, incomensurável. Andava entre osprofessores sem ser um deles e todos faziam o queRosita lhes pedia; graças às suas habilidades, asenferrujadasportasdaadministraçãoseabriameostrâmitessefacilitavam.

—HáumlugarnumaexpediçãopeloAltoMaranhão,organizadapeloInstitutoLingüísticoparaumantropólogomexicano—medisseela,umdiaemqueaencontreinopátiodaFaculdadedeLetras.—Vocêquerir?

Eu tinhaconseguido, afinal, a ansiadabolsanaEuropaedeviaviajar àEspanhanomês seguinte.Mas,semhesitarumsegundo,aceitei.

Rositaéloretanae,sealguémprestaratenção,aindanotanelaumrestinhodosaborosocantadodosperuanosdoOriente.Era—continuasendo,semdúvida—protetoraepromotoradoInstitutoLingüísticode Verão, uma instituição que, nos quarenta anos de vida no Peru, tem sido objeto de virulentascontrovérsias. Entendo que agora, enquanto escrevo estas linhas, faz asmalas para sair do país.Nãoporqueatenhamexpulsado(istoesteveapontodeocorrer-lhequandodaditaduradoGeneralVelasco);de motu próprio, porque considera que cumpriu a missão que a levou a Yarinacocha, sua base deoperações,àsmargensdoUcayali,aunsdezquilômetrosdePucallpa,e,dali,estendeu-opraticamenteportodasasdepressõesemeandrosdaAmazônia.

EmqueconsisteamissãodoInstituto?Segundoseus inimigos,éumbraçodoimperialismonorte-americano, que, sobopretextodapesquisa científica, realiza trabalhosde inteligência e umaaçãodepenetraçãoculturalneocolonialistaentreosindígenasamazônicos.Estasacusaçõesprocedem,sobretudo,daesquerda.MastambémsãoseusadversáriosalgunssetoresdaIgrejaCatólica—principalmente,osmissionários da selva —, que o acusam de ser nada mais que uma falange de evangelizadoresprotestantesdisfarçadosdelingüistas.Entreosantropólogos,háquemlhereproveofatodeperverterasculturas aborígines, tratar de ocidentalizá-las e incorporá-las a uma economia de mercado. AlgunsconservadorescriticamapresençadoInstitutonoPerualegandorazõesnacionalistasehispânicas.Eradessesúltimosmeuprofessorechefedeentão,ohistoriadorPorrasBarrenechea,que,aoseinteirardequeeupartianaquelaexpedição,mepassouumsermão:"Tenhacuidado,essesgringostentarãocomprá-lo." Para ele, era intolerável que, por culpa do Instituto, os indígenas das selvas aprendessemprovavelmenteafalaringlêsantesqueespanhol.

Seus amigos, comoRositaCorpancho,defendiamo Instituto comargumentospragmáticos.Aaçãodoslingüistas—estudaraslínguaseosdialetosdaAmazônia,estabelecervocabuláriosegramáticasdas

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diferentes tribos — servia ao país, e, além disso, pelo menos em teoria, estava controlada peloMinistériodaEducação,quedeviaaprovarseusprojetoserecebiacópiasdetodoomaterialrecolhidopelo Instituto.EnquantoopróprioMinistérioouasUniversidadesperuanasnão fizessemoesforçoderealizaresse trabalho,convinhaaoPeruquealguémofizesse.Deoutraparte,a infraestruturamontadapeloInstitutonaAmazônia,comumalinhadehidroaviõeseumsistemadecomunicaçõespelorádioentreabasedeYarinacochaearededelingüistasvivendonastribos,tambémeraaproveitadapelopaís,umavez que os professores, funcionários emilitares de remotas localidades da selva costumavam, e nãoapenasemcasosdeemergência,recorreraela.

Acontrovérsianãoacabounemacabará,naturalmente.Aquelaexpediçãodepoucassemanas,emquetivea sortedeparticipar, causou-meuma impressão tãograndeque,vinte e sete anosdepois, aindaalembrocomluxodedetalheseaindaescrevosobreela.Comoagora,emFlorença.EstivemosprimeiroemYarinacocha,conversandocomoslingüistas,e,logo,aumagrandedistânciadelá,naregiãodoAltoMaranhão, percorrendo uma série de casarios e aldeias de duas tribos de origem jíbaro: aguarunas ehuambisas.Depois,subimosatéolagodeMoronaparavisitarosshapras.

Viajávamos em um pequeno hidroavião e, em certos lugares, em canoas indígenas, através deestreitoscanaisdeáguassubmersassobumavegetaçãotãoembaraçadaque,emplenodia,parecianoite.AforçaeasolidãodaNatureza—asaltíssimasárvores,astersaslagoas,osriosimutáveis—sugeriamummundorecém-criado,virgemdehomens,umparaísovegetaleanimal.Quandochegávamosàstribos,emcompensação,tocávamosnapré-história.Aliestavaaexistênciaelementareprimeiradosdistantesancestrais: os caçadores, os agricultores, os flecheiros, os nômades, os irracionais, os mágicos, osanimistas.TambémissoeraoPeruesóentãotomavaeucabalconsciênciadisso:ummundoaindanãodomado, a IdadedaPedra, as culturasmágico-religiosas, apoligamia, a reduçãodecabeças (emumalocalidade shapra, de Moronacocha, o cacique Tariri explicou-nos, através de um intérprete, acomplicada técnica de recheio e cozimentos que a operação exigia), isto é, o despontar da históriahumana.

Aolongodetodootrajeto,estoucertodequepenseicontinuamenteemSaúlZuratas.Etambémfaleimuitosobreelecomseuprofessor,oDoutorMatosMar,queparticipavadaexpediçãoedequem,desdeaquelaviagem,nosfizemosamigos.MatosMarcontou-mequeconvidaraSaúlavirconoscomasqueestesenegouporqueopunha-seseveramenteàaçãodoInstituto.

Aviagempermitiu-meentendermelhorodeslumbramentodeMascaritacomaquelasterraseaquelagente,adivinharaforçadoimpactoquemudouorumodavidadele.E,alémdisso,deu-meexperiênciasconcretasparajustificarmuitasdasdiscrepânciasque,maisporintuiçãoqueporconhecimentorealdoassunto, tinha tido comSaúl sobre as culturas amazônicas.Que ilusão era aquela de querer preservarestastribostalcomoeram,talcomoviviam?Emprimeirolugar,nãoerapossível.Umasdemodomaislento,outrasmaisrápido,todasestavamsendocontaminadasporinfluênciasocidentaisemestiças.

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E,depois,eradesejávelaquelaquiméricapreservação?Dequeserviriaàquelastriboscontinuaremvivendocomoofaziamecomoosantropólogospuristas,tipoSaúl,queriamquecontinuassemvivendo?Seuprimitivismofazia-as,antes,vítimasdospioresespóliosecrueldades.

NaaldeiaaguarunadeUrakusa,ondechegamosemumentardecer,vimos,dasjanelasdohidroavião,oespetáculocostumeiro,cadavezqueaquatizávamosnasproximidadesdealgumatribo:opovointeirode homens e mulheres seminus e pintados, atraídos pelo ruído do motor, seguindo as evoluções doaparelho,enquantosegolpeavamcarasepeitos,comambasasmãos(paraespantarosinsetos).Mas,emUrakusa, alémdos corpos acobreados, tetaspenduradas, criançasdeventres inchadospelosparasitas,pelesriscadasdevermelhooupreto,esperava-nosumespetáculoquenuncaesqueci:odeumhomemhápoucotorturado.Tratava-sedocaciquedolugar,chamadoJum.

UmaexpediçãodebrancosemestiçosdeSantaMaríadeNieva—umafeitoriaàsmargensdorioNieva,ondetambémestivemos,alojadosemumamissãocatólica—tinhachegadoumassemanasantesdenósaUrakusa.Todasasautoridadescivisdopovoado,maisummilitardeumaguarniçãodefronteira,a integravam. Jum, que foi recebê-los, teve a testa partida com uma lanternada violenta. Em seguida,queimaramascabanasdeUrakusa,bateramnosindígenasquepuderampegareviolaramváriasdesuasmulheres. Levaram Jum para SantaMaría de Nieva, onde o submeteram à humilhação de raspar seucabelo. Depois o torturaram em público. Foi açoitado; queimaram suas axilas com ovos quentes e,finalmente, içaram-noaumaárvore,comose fazcomospaichesdo rioparaque todaaáguaescorra.Depoisdemantê-loaliporalgumashoras,soltaram-noepermitiramqueelevoltasseaoseupovo.

Acausaimediatadestaselvageriaeraumincidentemenor,ocorridoemUrakusa,entreosaguarunaseumgrupodesoldadosquepassouporlá.Masnofundo,arazãoeraqueJumtinhatentadoorganizarumacooperativaentreospovosaguarunasdoAltoMaranhão.Ocaciqueeraumhomemdisposto,dementeágil, e o lingüista do Instituto que trabalhava entre os aguarunas encorajou-o a fazer um curso emYarinacocha, para ser um professor bilíngüe. Este era um programa planejado pelo Ministério daEducação,comaajudadoInstitutoLingüístico.Levava-seaYarinacochahomensdas tribosque,comoJum, pareciam capacitados a desenvolver um trabalho pedagógico em sua aldeia. Em Yarinacocharecebiamumtreinamento—bastantesumário,imagino—,dadopeloslingüistaseprofessoresperuanos,para que pudessem alfabetizar os seus em sua própria língua. Depois, eram devolvidos ao lugar deorigemcommaterialdidáticoeotítulo,umpoucootimista,deprofessorbilíngüe.

Oprogramanãoalcançouoobjetivoaquesehaviaproposto—aalfabetizaçãodos indígenasdaAmazônia —, mas, no que concerne a Jum, teve conseqüências imprevisíveis. Sua passagem porYarinacocha,seucontatocoma"civilização", fezocaciquedeUrakusadescobrir—porsimesmooucoma ajudade seus instrutores—queele eos seus eram iniquamente exploradospelospatrões comquemcomerciavam.Ospatrões,brancosoumestiçosdaAmazônia,percorriamperiodicamenteastribosparacomprarseucauchoeseucouro.Elesmesmosfixavamopreçodoquecompravamepagavamcom

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mercadorias facões, anzóis, roupas, espingardas —, cujos preços também fixavam à sua vontade econveniência.ApassagemporYarinacochafezJumcompreenderquese,emvezdecomerciarcomospatrões, os aguarunas assumissem o trabalho de ir vender o caucho e os couros nas cidades— nosescritóriosdoBancoHipotecário,porexemplo—, receberiamporessasmercadoriasumpreçomuitomaiselevado.Equelápoderiamcomprarmaisbaratoaquelesprodutosqueospatrõeslhesvendiam.

***

Descobrir o valor do dinheiro foi trágico para os urakusas. Jum fez os patrões saberem que nãocontinuariamaiscomerciandocomeles.Estadecisãosignificava,puraesimplesmente,aruínadaquelesviracochasdeSantaMaríadeNievaquenostinhamrecebidotãocordialmente.Unsbrancosemestiçosmiseráveis,alémdomais,semianalfabetosedescalços,queviviamemcondiçõesquasetãoruinscomosuasvítimas.Osexcessosferozesqueperpetravamcomosaguarunasnãoosfaziamricos,eramapenasparasobreviver.Aexploração,nessecantodomundo,aconteciaaumnívelpoucomenosquesubumano.Por isso organizara-se a expedição punitiva contra Urakusa e por isso, enquanto supliciavam Jum,tinham-lherepetido:"Esqueça-sedacooperativa."

Aquiloacabavadeacontecer.AsferidasdeJumaindasupuravam.Ocabelonãolhetinhacrescido.Enquanto,naaprazívelclareiradeUrakusa,nos traduziamestahistória—Jummalarranhavaumaqueoutra fraseemespanholeupensava:"Tenhoquecontar istoaSaúl."OquediriaMascarita?Admitiriaque,emumcasoassim,via-semuitoclaro,queoqueconvinhaaUrakusaeaJumnãoeraomovimentopara trásmasparaa frente? Istoé,estabelecerumacooperativa,comerciarcomascidades,prosperareconômica e socialmente, de modo que não mais pudessem fazer com eles o que tinham feito os"civilizados"deSantaMaríadeNieva.OuSaúlmediria, com irrealidade,quenão,queaverdadeirasolução era que aqueles viracochas fossem embora dali e deixassem os urakusas retomarem sua vidatradicional?

Naquelanoite,MatosMareeupassamosacordados,conversandosobreahistóriadeJumeohorrorqueelemostravasobreacondiçãodofracoedopobreemnossopaís.Invisívelemudo,participoudessaconversaofantasmadeSaúlZuratas,aquemambosgostaríamosdeterali,opinandoediscutindo.MatosMaracreditavaque,dadesgraçadeJum,Mascaritaextrairiarazõesparaafirmarsuasteses.Nãoprovavaaquiloqueacoexistênciaera impossível,quefatalmenteconvertia-seemdomíniodeviracochassobreindígenas,emgradualesistemáticadestruiçãodaculturamaisfrágil?EssesbêbadosselvagensdeSantaManadeNievanãoabririamnunca,emnenhumcaso,aosurakusas,ocaminhodamodernidade,sóodesuaextinção;sua"cultura"nãotinhamaistítulosàhegemoniaqueadosaguarunas,que,porprimitivosquefossem, tinhamdesenvolvidoosconhecimentoseasartessuficientesparacoexistir—elessim—comaAmazônia.Porrazõesdeantigüidade,dehistóriaedemoraleraprecisoreconhecer-lhessoberania

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sobreesseterritórioeexpulsardaliosforasteirosintrusosdeSantaManadeNieva.

EunãoestavadeacordocomMatosMar;pensavaque,antes,ahistóriadeJumtalvezinduzisseSaúlaconsideraçõesmaispráticas,aresignar-seaomalmenor.Havia,talvez,amaisremotaprobabilidadedeque algum governo peruano, da orientação que fosse, concedesse às tribos um direito deextraterritorialidadenaselva?Eraóbvioquenão.Porqueentãonãomudarosviracochas,paraquesuamaneiradetratarosindígenasfosseoutra?

Dormíamosnochãodeterra,dividindoummosquiteiro,emumacabanaimpregnadapelocheirodocaucho (eraodepósitodeUrakusa), cercadospela respiraçãodenossos companheiros edos rumoresdesconhecidosdaselva.MatosMareeucompartilhávamostambém,naqueletempo,entusiasmoseidéiassocialistasenocursodaconversacompareceram,éclaro,essasfamosasrelaçõessociaisdaproduçãoque,comoumavarinhamágica,serviamparaexplicareresolvertodososproblemas.Odosurakusasodetodasastribos—devia-seentendê-locomopartedoprogramageralderivadodaestruturaclassistada sociedade peruana. O socialismo— ao substituir a obsessão do lucro econômico— a ganânciaindividual—pelanoçãodeserviçoàcoletividadecomoincentivodotrabalhoereintroduzirumsentidosolidárioehumanonas relações sociais,permitiraaquelacoexistênciaentreoPerumodernoeoPeruprimitivo queMascarita acreditava impossível e indesejável. No novo Peru, inspirado na ciência deMarx e deMariátegui, as tribos amazônicas poderiam, simultaneamente modernizar-se e conservar oessencial de sua tradição e seus costumes dentro desse mosaico de culturas que constituiria a futuracivilização peruana. Acreditávamos, de verdade, que o socialismo garantiria a integridade de nossasculturas mágico-religiosas? Não havia já bastante provas de que o desenvolvimento industrial, fossecapitalista ou comunista, significava fatidicamente o aniquilamento daquelas culturas? Havia uma sóexceção no mundo a esta terrível, inexorável lei? Pensando-o bem e desde a perspectiva dos anostranscorridosedagaleriadestaFlorençacalorosa—éramos tão irreaise românticoscomoMascaritacomsuautopiaarcaicaeanti-histórica.

Essa longaconversacomMatosMar,debaixodomosquiteiro,olhandoarquearem-seumasbolsasescuras,penduradasdotetodefolhasdepalmeiraquemisteriosamentedesapareceramaoamanhecer—eramcentenasdeararas,soubemosdepois,quevinhamencolher-seànoite,aocalordofogodacabana—éumadasimagensimorredourasdaquelaviagem.Outra:alembrançadeumprisioneiro,deumatriboinimiga, a quem os shapras do lago de Morona mantinham em liberdade, permitindo-lhe andartranqüilamentepelaaldeia.Emcompensação,ocachorrodeleestavapresoemumajaulaeeraobjetodeumacuidadosavigilância.Capturadoecaptoresestavamevidentementedeacordocomosentidodaquelametáfora;paraaqueleseparaeste,oanimalenjauladoimpediaqueoprisioneirofugisse,amarravaesteaseuscaptorescommaisforça—aforçadorito,dacrença,damagia—queumacorrentedeaço.Eoutramais: os rumores e as fantasias que nos perseguiram em toda a viagem em torno de um aventureiro,malandroesenhorfeudal,umjaponêschamadoTushía,dequemsediziaquemoravaemumailhadorio

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PastazacomumharémdemeninasroubadasportodaaAmazônia.

Mas,foradedúvida,alembrançamaismemorávelerecorrentedaquelaviagem—umalembrançaque,nestatardeflorentina,ardequasecomamesmaviolênciaqueobraseirodosolestivaldaToscana—seriaoqueouvi,emYarinacocha,deumcasaldelingüistas:osSchneil.Noprincípio,acheiqueeraaprimeiravezqueouviamencionaraquelatribo.Mas,emseguida,compreendiaqueeraamesmasobreaqual tinha ouvido Saúl contar tantas histórias, aquela com que entrou em contato desde sua primeiraviagemaQuillabamba:osmachiguengas.E,entretanto,excetononome,ambasnãopareciamtermuitacoisaemcomum.

Poucoapouco,fuiadivinhandoarazãodadiscordânciadeimagens.Emborasetratassedamesmatribo, osmachiguengas— cujo número se calculava, no escuro, entre quatro e cincomil— estavamdesigualmente vinculados ao resto do Peru e entre si mesmos. Era um povo fraturado. Uma linhadivisória,quetinhacomomarcoprincipaloPongodeMainiqui,diferenciavaosmachiguengasdispersosnocumedemontanha,confinantecomaserra—zonamontanhosa,ondeapresençadebrancosemestiçosera abundante—, dos machiguengas da zona oriental, mais além do Pongo, onde começa a planícieamazônica. O acidente geográfico, aquela passagem estreita entre montanhas onde o Urubamba seembraveciaeenchiadeespuma,redemoinhoseruídos,separavaàqueles,decima,quetinhamcontatoscomomundobrancoemestiçoehaviamentradoemumprocessodeaculturação,dosoutros,espalhadosnasselvasdaplanície,queviviamquaseemtotalisolamentoeconservavammaisoumenosintactasuaformadevida tradicional.Os dominicanos tinhamerguidomissões entre aqueles—comoChirumbia,Koribeni e Panticollo —, e nessa zona havia, também, chácaras de viracochas, nas quais algunsmachiguengastrabalhavam.EsseseramosdomíniosdocélebreFidelPereiraeomundomachiguengaaquesereferiamasevocaçõesdeSaúl:omaisocidentalizadoeexpostoaoexterior.

Ooutro setordacomunidade—mas,podia-se falar, em tais condições,deumacomunidade?—,disseminado no extensíssimo território dos leitos dos rios Urubamba e Madre de Dios, mantinha-seainda,nofinaldosanoscinqüenta,cuidadosamenteisoladoeresistiaatodotipodecomunicaçãocomosbrancos.Atéelesnãotinhamchegadoosmissionáriosdominicanosenaquelazonanãohavia,então,nadaque atraísse os viracochas.Mas nemmesmo esse setor era homogêneo.Havia, entre osmachiguengasmaisprimitivos,umpequenogrupooufraçãoaindamaisarcaico,inimizadocomoresto.Oschamados"kogapakori". Concentrados na zona banhada por dois afluentes do Urubamba — os rios Timpía eTikompinía—,oskogapakorisandavamtotalmentenus,excetoalgunshomensqueusavamestojosfálicosfeitosdebambu,eatacavamaquempenetrasseemseusdomínios,mesmosefossemdamesmaetnia.Seucaso era excepcional, porque, comparados com qualquer outra tribo, os machiguengas tinham sidotradicionalmente pacíficos. Seu caráter suave, dócil, fez deles as vítimas privilegiadas da época docaucho,duranteasgrandescaçadasdeíndiosparaproverdebraçososestabelecimentoscaucheiros—períodoemqueatribofoiliteralmentedizimadaeesteveapontodeextinguir-se—,eporissotinham

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levado sempre a pior nas escaramuças com seus inimigos inveterados, os yaminahuas e os mashcos,sobretudoestesúltimos,famososporsuabelicosidade.Esteseramosmachiguengasdequenosfalavamos Schneil. Há dois anos e meio faziam esforços para serem admitidos no meio deles mas aindaencontravamdesconfiançae,àsvezes,hostilidadenosgruposcomosquaistinhamconseguidocontatar.

Yarinacocha,àhoradocrepúsculo,quandoabocavermelhadosolcomeçaaafundaratrásdascopasdasárvoreseolagodeáguasverdosasfulgurasobocéuazulanil,ondepalpitamasprimeirasestrelas,éum dos espetáculos mais belos que eu já vi. Estávamos na sotéia de uma casa de madeira econtemplávamos, por sobre o ombro dos Schneil, o horizonte da selva, escurecendo. A visão erabelíssima. Mas todos, acredito, nos sentíamos desconfortáveis e deprimidos. Porque aquilo que noscontava o casal — ambos bastante jovens e com o ar esportivo, inocente, puritano e diligente quemostravam,comoumuniforme,todososlingüistas—eraumahistórialúgubre.

Atémesmo os dois antropólogos do grupo—MatosMar e omexicano JuanComas— estavamsupresos pelo grau de prostração e pessimismo em que, segundo os Schneil, se achava a divididasociedademachiguenga.Ajulgarpeloqueouvíamos,pareciaestarvirtualmentedesintegrando-se.

Quasenãotinhamsidoestudados.Excetoumpequenolivro,publicadoem1943porumdominicano,oPadreVicentedeCenitagoya,ealgunsartigosdeoutrosmissionáriossobreseufolcloreesualíngua,aparecidos nas revistas daOrdem, não existia um trabalho etnográfico sério sobre eles. Pertenciam àfamíliaarawakeconfundiam-seumpoucocomoscampasdosriosEneePereneeoGranPajonal,poisseusidiomastinhamraízessemelhantes.Suaorigemeraummistériototal;suaidentidade,confusa.

VagamentedenominadosAntis,pelosIncas,queosexpulsaramdaparteorientaldoCuscomasnãopuderamnuncainvadirseusdomíniosselváticosnemsubjugá-los,figuravamnasCrônicaseRelaçõesdaColônia,comnomesarbitrários—Manaríes,Opataris,Pilcozones—atéquenoséculoXIX,porfim,osviajantescomeçaramachamá-losporseunome.UmdosprimeirosfoiofrancêsCharlesWiener,que,em1880,encontrou"doiscadáveresmachiguengasabandonadosritualmentenorio",aosquaisdecapitoueincorporou à sua coleção de curiosidades recolhidas na selva peruana.Estavamemmovimento desdetemposremotoseeraprovávelquejamaishouvessemvividodemaneiragregária,emcoletividades.Ofatodeteremsidodesalojados,detemposemtempos,portribosmaisaguerridas,epelosbrancos—nosperíodosdas "febres": adocaucho,adoouro, adopau-vermelho,adacolonizaçãoagrícola—pararegiõescadavezmaisinsalubreseestéreis,ondeeraimpossívelasobrevivênciaparagruposnumerosos,tinhaacentuadosuafragmentaçãoedesenvolvidonelesumindividualismoquaseanárquico.Nãoexistiaumsópovoadomachiguenga.Não tinhamcaciquesenãopareciamconheceroutraautoridadequeadecadapainaprópriafamília.Estavampulverizadosemminúsculasunidadesde,nomáximo,umadezenadepessoas,nessevastíssimoperímetroqueabarcavatodasasselvasdoCuscoedeMadredeDios.Apobrezadazonaobrigavaaestascélulashumanasasemovimentaremcontinuamente,conservandoumaconsiderável distância uma das outras, a fim de não se consumir a caça. Devido à erosão e ao

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empobrecimentodaterra,deviammudarsuasplantaçõesdemandiocaacadadoisanos,nomáximo.

OqueosSchneiltinhampodidoaveriguardesuamitologia,crençasecostumes,insinuavaadurezadaexistênciaquetinhamlevadoedeixavaentrevermigalhasdesuahistória.TinhamsidosopradospelosdeusTasurinchi,criadorde todooexistente,ecareciamdenomespróprios.Onomedeleserasempreprovisório,relativoetransitório:oquechegaouoquesevai,oesposodaqueacabademorrerouoquedescedacanoa,oquenasceuouoquedisparouaflecha.Oidiomadelessóadmitiaestasquantidades:um,dois,trêsequatro.Todasasoutrasexpressavam-secomoadjetivo"muitas".AnoçãodoParaísoeramodesta: um lugar onde os rios tinham peixes e as selvas, animais para caçar. Associavam sua vidanômadeaotrânsitodosastrospelofirmamento.Oíndicedemortesvoluntáriasentreeleseraaltíssimo.

Os Schneil relatavam-nos alguns casos que tinham presenciado de machiguengas — homens emulheres, mas, principalmente, estas últimas — que se matavam cravando espinhas de chambira nocoraçãoounasfontes,outomandobeberagensvenenosas,pormotivosfúteis,comoumadiscussão,errarodisparocomaflechaouhaveremsidorepreendidosporumfamiliar.Umacontrariedadeinsignificantepodia impelir um machiguenga ao suicídio. Era como se a vontade deles de viver, seu instinto desobrevivência,setivessereduzidoasuamínimaexpressão.

Amais levedas doenças costumava acabar comeles.Tinhamummedo enormedo catarro, comomuitastribosdaAmazônia—espirrardiantedelessignificava,sempre,espantá-los—mas,diferentedeoutras,negavam-seasecurarquandocaíamenfermos.Àprimeiradordecabeça,hemorragia,acidente,dispunham-seamorrer.Recusavam-seatomarremédiosouaseremtratados."Paraque,sedequalquermaneira temosde ir", respondiam.Seusbruxosecurandeiros—os seripigaris—eramconsultadoseprocuradosparaexorcizarosmausespíritoseosdanosdaalma;masumavezqueestessemanifestavamemmalesdocorpo,consideravam-nospoucomenosqueirreparáveis.Eraumespetáculofreqüente,entreeles,veroenfermodeitar-sejuntoaorio,aesperarpelamorte.

Asuscetibilidadeeadesconfiançadosmachiguengasemrelaçãoaosforasteiroseramextremadas,assimcomoseufatalismoetimidez.Ossofrimentosexperimentadospelacomunidadeduranteaépocadocaucho,quandoeramcaçadospelos"habilitadores"dosestabelecimentosoupelosíndiosdeoutrastribosque,destemodo,pagavamsuasdívidascomospatrões,tinhamdeixadoumaimagemdehorroremseusmitos e lendas que se referem àquela época, a que chamavam de a sangria de árvores. Talvez fosseverdade,comosustentavaummissionáriodominicano,oPadreJoséPioAza—oprimeiroaestudaroidioma dos machiguengas—, que eles eram os últimos vestígios de uma civilização pan-amazônica(sobreaqualtestemunhariamosmisteriosospetroglifosdispersospeloAltoUrubamba)que,desdeseuchoquecomosIncas,vinhasofrendoderrotaapósderrotaepaulatinamenteextinguindo-se.

OsSchneiltiverammuitotrabalhoparaestabeleceremosprimeiroscontatos.Sóumanodepoisdeiniciaremsuastentativas,conseguiu,ele,serhospedadoporumafamíliamachiguenga.Eelenoscontouadelicada experiência que foi, a aflição e a expectativa daquelamanhã, emumadas cabeceiras do rio

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Timpía, quando, totalmente nu, avançou rumo à solitária cabana de tiras de casca de árvore e teto depalha,ondejáhaviaestadoantes,emtrêsocasiões,paradeixarpresentes—semencontrarninguém,massentindoàssuascostasosolharesdosmachiguengasqueoobservavamdafloresta—eviuqueameiadúziadehabitantes,destavez,nãocorria.

Desdeentão,osSchneiltinhampassadocurtastemporadas—separadosoujuntos—comaquelaeoutrasfamíliasmachiguengasdoAltoUrubambaeafluentes.Tinhamacompanhadoosgrupos,naestaçãoseca,quandosaíamparapescaroucaçar,erealizaramgravaçõesquenosfizeramouvir.Umacrepitaçãosonora,comsúbitasnotasagudas,e,àsvezes,umagrandedesordemguturalque,nosexplicaram,eramcantos.Tinhamatranscriçãoeatraduçãodeumadaquelascanções,feitaporummissionáriodominicano,nosanostrinta,equeosSchneiltinhamvoltadoaescutar,umquartodeséculodepois,emumaquebradadorioSepahua.Otextoilustravaadmiravelmenteaqueleestadodeânimodacomunidadequenoshaviamdescrito.Tantoqueocopiei.Desdeentão,euotenholevadocomigo,dobradoemquatro,emumcantodeminha carteira, comoamuleto.Aindapode ser decifrado: opampogyakiena shinoshinonkarintsi estámeolhando a tristeza opampogyakiena shinoshinonkarintsi está me olhando a tristeza ogakyena kabakoshinoshinonkarintsiestámeolhandobematristezaogakyenakabakoshinoshinonkarintsiestámeolhandobem a tristeza okisabintsatana shinoshinonkarintsi muito me desagrada a tristeza okisabintsatanashinoshinonkarintsimuitome desagrada a tristeza amakyena tampia tampia tampiame trouxe ar, ventoogaratinganaatampiatampiamelevantouoarokisabintsatanashinoskinonkarintsimuitomedesagradaatristezaokisabintsatanashinoshinonkarintsimuitomedesagradaa tristezaamaanatyomba tampia tampiame trouxeoar,oventoonkisabintsatenatyoshinonkamuitomedesagradaa tristezashinoshinonkarintsitristezaamakyenapopyentipogyentimapogyentimetrouxevermezinhovermezinhotampiatampiatampiaoar,ovento,oar.

Emborativessemsuficientesconhecimentosdalínguamachiguenga,faltavaaindamuitosaosSchneilparadominarossegredosdesuaestrutura.Eraumalínguaarcaica,devibrantesonoridadeeaglutinante,naqualumaúnicapalavra,compostademuitasoutras,podiaexpressarumvastopensamento.

***

A senhora Schneil estava grávida. Essa era a razão pela qual os dois se encontravam na base deYarinacocha.Umavezquetivessenascidooprimeirofilho,ocasalvoltariaaoUrubamba.Omeninoouamenina,diziam,secriarialáedominariaomachiguengamelhore,talvez,antesqueeles.

Os Schneil tinham recebido seu diploma, assim como os demais lingüistas, na Universidade deOklahoma,mas eram, acima de tudo, como seus colegas, seres animados por umprojeto espiritual: adifusãodaBíblia.Nãoseiqualerasuaexata filiaçãoreligiosa,poisháentreos lingüistasdoInstitutomembrosdediferentesigrejas.

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A intenção que os induzia a estudar as culturas primitivas era religiosa: traduzir a Bíblia paraaquelaslínguasafimdequeessespovospudessemouvirapalavradeDeusnoscompassoseinflexõesde sua própria música. Este foi o desígnio que levou o Doutor Peter Townsend— um interessantepersonagem,misturademissionário,amigodoPresidentemexicanoLázaroCárdenaseautordeumlivrosobre ele— a fundar o Instituto, e o incentivo quemove ainda os lingüistas a realizarem o pacientetrabalhoquerealizam.Oespetáculodafésólida,inabalável,quelevaumhomemadedicar-lhesuavidaeaaceitarporelaqualquersacrifício,sempremecomoveueassustou,poisdestaatituderesultamporigualoheroísmoeofanatismo,açõesaltruístasecrimes.Mas,nocasodoslingüistasdoInstituto,suafémepareceu,naquelaviagem,benigna.Aindamelembrodaquelamulher—quaseumamenina—queviviaháanosentreosshaprasdoMorona,edaquelafamíliainstaladaentreoshuambisascujosfilhos—unsgringuinhos ruivos—mergulhavam nus, nas margens do rio, com as acobreadas crianças da aldeia,falandoecuspindocomoestas.(Oshuambisascospemenquantofalamparamostrarquedizemaverdade.Umhomemquenãocospeaofalaréparaelesummentiroso.)

Averdadeéque,porprimitivasquefossemascondiçõesemqueviviamnastribos,gozavamdeumainfraestruturaqueosprotegia:aviões,aparelhosderádio,médicos,remédios.Mas,mesmoassim,havianeles uma convicção profunda e uma capacidade de adaptação nada comum.Os lingüistas que vimosinstaladosnastribos,comadiferençadeestaremvestidoseseushospedeirosseminus,viviamquasedamesmamaneira:emidênticaschoçasounaquase-intempérie,sobumpamacari,compartilhandoadietafrugal eo regimeespartanodosnativos.Havia em todoseles, também,algodessapredisposiçãopelaaventura—aatraçãodafronteira—tãofreqüentenamentalidadenorte-americanaequeédenominadorcomum de pessoas da mais diversa condição e profissão. Os Schneil eram muito jovens, estavamcomeçandosuavidamatrimonial,epeloquenosderamaentendernaquelaconversa,nãoconsideravamsuavindaàAmazôniaalgotransitóriomasumcompromissovitaldelongoalcance.

O que nos contaram sobre os machiguengas ficou martelando em minha cabeça em todo nossopercursopeloAltoMaranhão.Eraumassuntoqueeuqueria comentar comSaúl;precisavaouvir suascríticas e observações ao testemunho dos Schneil. Daria a ele uma surpresa, além do mais. Porqueaprendi de memória o texto daquela canção e a recitaria em machiguenga. E ficava imaginando seuespanto,agrandegargalhadacordial...

As tribos que visitamos, no Alto Maranhão e em Moronacocha, eram muito diferentes das doUrubambaedoMadredeDios.OsaguarunasmantinhamcontatosdomorestodoPeruealgumasdesuasaldeiasexperimentavamumprocessodemestiçagemevidenteaosimplesolhar.Osshaprasestavammaisisoladose,atéhápouco—sobretudoporquereduziamcabeças—tinhamfamadeviolentos,masnãosepercebianelesnenhumdessessintomasdedesânimo,decolapsomoral,queosSchneil tinhamdescritonosmachiguengas.

QuandoretornamosaYarinacocha,paracomeçaravoltaaLima,passamosumaúltimanoitecomos

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lingüistas.Foiumasessãodetrabalho,quandoestesinterrogaramMatosMareJuanComassobresuasimpressões de viagem. Ao terminar a reunião, perguntei a Edwin Schneil se não se importava queconversássemosumpouco.Levou-mea sua casa.Aesposapreparou-nosuma taçade chá.Viviamemumadasúltimascabanas,ondeoInstitutoterminavaecomeçavaaselva.Achiadeiraregular,harmoniosa,simétrica,dosinsetosdoexterior,serviudemúsicadefundoanossaconversa,queduroubastanteedaqual,pormomentos,participoutambémasenhoraSchneil.

Foielaquemefaloudacosmogoniafluvialdomachiguenga,ondeaVia-LácteaeraorioMeshiarenipeloqualdesciamos inúmerosdeuses edeusinhosde seupanteãopara a terra epeloqual subiamaoparaíso as almas de seus mortos. Perguntei-lhes se tinham fotografias das famílias com que tinhamvivido.Disseram-mequenão.

Masmemostrarammuitosobjetosmachiguengas.Tamborinsebumbosdecourodemacaco,flautasdebambueumaespéciedepífaro,compostode tubinhosdecipó,amarradosemgradientecomfibrasvegetais,que,apoiadonolábioinferioresoprado,davaumaricaescaladesons,doagudoextremoaumgraveprofundo.Peneirasde folhasde juncoem tirinhase tecidasem trança,comocestas,paracoaramandioca com que faziam masato. Colares e brincos de sementes, dentes e ossos. Tornozeleiras,pulseiras.Cocares de penas de papagaio, arara, tucano e paujil, enfiadas emaros demadeira.Arcos,pontasdeflechaslavradasempedraeunscornosondeguardavamocurareparaenvenenarasflechaseastinturasdatatuagem.OsSchneiltinhamfeitounsdesenhos,emcartolinas,reproduzindoasfigurasqueosmachiguengaspintavamemsuascarase corpos.Eramgeométricas, algumasmuito simpleseoutrascomoarrevesadoslabirintos;explicaram-mequeelesospintavamsegundoascircunstânciaseacondiçãodapessoa.Suafunçãoeraatrairaboasorteeconjuraramá.Estascorrespondiamaossolteiros,estasaoscasados,estaseramparairàcaçaesobreoutrasaindanãotinhamumaidéiamuitoclara.Asimbologiamachiguengaerasumamentesutil.Haviaumafigura—doisriscoscruzadoscomoumxis,dentrodemeiacircunferência—que,pelovisto,pintavam-seosqueiammorrer.

Foi só já ao final, quando buscava um intervalo na conversa parame despedir, que, demaneiracasual, surgiu o assunto que, de longe, torna menos importantes todos os outros daquela noite e é,certamente,arazãodequeeudediqueagorameusdiasdeFlorençanãotantoaDante,Maquiaveleàarterenascentista,masa teceras lembrançase fantasiasdestahistória.Nãoseicomobrotou.Eu lhes faziamuitasperguntasealgumasdelasdevemterversadosobreosbruxosecurandeirosmachiguengas(havia-osdeduasespécies:osbenéficos,seripigaris,eosmaléficos,machikanaris).Talvezistoosuscitou.Ou,talvez, quando lhes perguntei sobre os mitos, lendas, histórias, que teriam podido recolher em suasviagens,produziu-seaassociaçãodeidéias.Nãosabiamgrandecoisasobreaspráticasdefeitiçariadeseripigaris e machikanaris, exceto que ambos, como acontecia com os chamanes de outras tribos,serviam-sedotabaco,oayahuascaeoutrasplantasalucinógenas—acascadokobuiniri,porexemplo—nocursodesuassessões,quechamavamdemareada,nemmaisnemmenosqueasimplesbebedeirade

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masato.Osmachiguengaserampornaturezamuitoloquazes,magníficosinformantes,masosSchneilnãotinhamqueridoinsistirdemaissobreoassuntodosbruxos,temerososdeviolentá-los.

—Bem,é,alémdoseripigariedomachikanari,hátambémentreelesessepersonagemestranho,quenãoparececurandeironemsacerdote—disse,de repente,asenhoraSchneil.Virou-separaomarido,hesitando.Bem,talvezsejaumpoucodasduascoisas,nãoéverdade,Edwin?

—Ah,você se refere ao...—disseo senhorSchneil, evacilou.Articulouum forte ruído, longo,guturalecomesses.Ficouemsilêncio,procurando.—Comosepoderiatraduzir?

Elasemicerrouosolhoselevouumnódosdedosàboca.Eraloira,deolhosmuitoazuiselábiosfiníssimos;tinhaumsorrisoinfantil.

—Talvezconversador.Ou,melhor, falador—disse, afinal.Epronuncioudenovoo ruído: rude,sibilante,longuíssimo.

—Sim—sorriuele.—Achoqueéomaisapropriado.Falador.

Nunca tinhamvistonenhum.Por suaexigentediscrição—seu temora irritá-los—nuncahaviampedido a seus hospedeiros uma explicaçãodetalhadadas funções que cumpria entre osmachiguengas,nemquelhesdefinissemsesetratavadeumoudemuitos,ou,inclusive,emboratendessemadescartaresta hipótese, se, em vez de seres concretos e contemporâneos, tratava-se de alguém fabuloso, comoKientibakori, senhor dos demônios e criador de todo o venenoso e não comestível. O certo é que apalavra "falador" se pronunciava com extraordinárias demonstrações de respeito por todos osmachiguengasecadavezquealguématinhaproferidodiantedosSchneil,osoutrosmudavamdeassunto.Mas não acreditavam que se tratasse de um tabu. Pois o fato era que a famosa palavrinha vinha-lhesmuitofreqüentemente,oquepareciaindicarqueofaladorestavasempreemsuasmentes.Eraumchefeoumentor de toda a comunidade? Não, não parecia exercer nenhum poder específico sobre aquelearquipélagotãolasso,tãodisperso:asociedademachiguenga.Alémdomais,estasociedadecareciadeautoridades. Sobre isso os Schneil não tinham a menor dúvida. Só tinham tido caciques quando osviracochas lhes impuseram, como nas pequenas aglomerações de Koribeni e Chirumbia, organizadaspelos dominicanos, ou na época das fazendas e dos estabelecimentos caucheiros, quando os patrõesdesignavamumdeles como chefe para controlá-losmelhor.Talvez o falador exercesse uma liderançaespiritual,talvezrealizassecertaspráticasreligiosas.Mas,poralusõescaptadasaquieali,emumafrasesolta de um e na resposta de outro, a função do falador parecia ser sobretudo aquela inscrita em seunome:falar.

À senhora Schneil tinha acontecido um curioso fato, há poucos meses, às margens do rioKompiroshiato.Subitamente,afamíliamachiguengacomqueestavavivendooitopessoas:doisanciãosvarões,umadulto,quatromulhereseumamenina—desapareceu,semlhedarqualquerexplicação.Elaestranhoumuito,poisnuncaantestinhamfeitonadasemelhante.Osoitovoltaramalgunsdiasdepois,tão

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misteriosamentecomoseforam.Paraondetinhamidodaquelamaneira?"Paraouvirofalador",disseamenina.Osentidodafraseeraclaro,masasenhoraSchneilnãoconseguiusabermais,porqueninguémacrescentoumaisdetalhesnemelaospediu.Entretanto,nosdiasseguintes,osoitomachiguengastinhamestado sumamente excitados, cochichando semcessar.E a senhoraSchneil, vendo-os concentrados emseusintermináveisconciliábulos,sabiaqueestavamlembrandodofalador.

OsSchneiltinhamfeitoconjecturas,misturadohipóteses.Ofalador,ouoscontadores,deviamserumpoucoassimcomooscorreiosdacomunidade.Personagensquesedeslocavamdeumaoutrocasario,pelovastoterritórioondeestavamespalhadososmachiguengas,referindoaunsoquefaziamosoutros,informando-lhes reciprocamente sobre os acontecimentos, as aventuras e desventuras desses irmãos aquem viam muito raramente ou nunca. O nome os definia. Falavam. Suas bocas eram os vínculosaglutinantesdessasociedadeaquealutapelasobrevivênciatinhaobrigadoadividir-seedispersar-seaosquatroventos.Graçasaosfaladores,ospaissabiamdosfilhos,osirmãosdasirmãs,egraçasaelesinformavam-sedasmortes,nascimentosedemaisacontecimentosdatribo.

—E, também, de alguma coisamais—disse o senhor Schneil.—Tenho a impressão de que ofalador não traz só notícias atuais. Também do passado. É provável que seja, ao mesmo tempo, amemóriadacomunidade.Querealizeumafunçãoparecidaàdostrovadoresejograismedievais.

AsenhoraSchneilinterrompeu-oparaesclarecer-mequeaquiloeradifícildeestabelecer.Osistemaverbalmachiguenga era intrincado e desorientador, entre outras razões porque confundia facilmente opassado e o presente. Assim como a palavra "muitos"— tobaiti — servia para expressar todas asquantidadessuperioresaquatro,o"agora"abrangia,freqüentemente,ohojeeoontemeoverbonotempopresenteerausadocomfreqüênciaparareferir-seaaçõesdopassadopróximo.Eracomosesóofuturofosseparaelesalgonitidamentedelimitado.Aconversaderivouparaotemalingüísticoeacaboucomumrosáriodeexemplosqueelesmederamsobreasrisonhaseinquietantesimplicaçõesdeumamaneiradefalarnaqualoanteseoagorapoucosediferenciavam.

Aidéiadesseser,dessesseres,nasflorestasinsalubresdoOrientecusquenhoedeMadredeDios,quefaziamextensíssimastravessiasdediasesemanaslevandoetrazendohistóriasdeunsmachiguengasaoutros,recordandoacadamembrodatriboqueosdemaisviviam,que,apesardasgrandesdistânciasque os separavam, formavam uma comunidade e compartilhavam uma tradição, umas crenças, unsancestrais, uns infortúnios e algumas alegrias, a silhueta furtiva, talvez lendária, desses faladores quecom o simples e antiqüíssimo expediente — trabalho, necessidade, capricho humano — de contarhistórias, eram a seiva circulante que fazia dos machiguengas uma sociedade, um povo de seressolidáriosecomunicados,comoveu-meextraordinariamente.Comove-meainda,quandopensoneles,e,agoramesmo,aqui,enquantoescrevoestaslinhas,noCaffèStrozzidavelhaFlorença,sobocalortórridodejulho,ficotodoarrepiado.

—Masporqueficatodoarrepiado?—disseMascarita.—Queéquechamatantoasuaatenção?

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Quetêmdeparticularosfaladores?

Defato,porquenãopodiatirá-losdacabeça,desdeaquelanoite?

—Sãoumaprovapalpáveldequecontarhistóriaspodeseralgomaisqueumameradiversão—ocorreu-medizer-lhe.—Algoprimordial,algodequedependeaprópriaexistênciadeumpovo.Talveztenhasidoissooquemeimpressionoutanto.Agentenemsempresabeporqueascoisasnoscomovem,Mascarita.Tocamemumafibrasecreta,epronto.

Saúl riu, dando-me um tapinha no ombro. Eu tinha lhe falado a sério, mas ele o tomou porbrincadeira.

—Ah,épeloladoliterárioqueoassuntointeressavocê—exclamou,decepcionado,comoseessaconexãodesvalorizasseminhacuriosidade.—Bem,nãoalimenteilusões.Omaisprováveléqueaquelesquecontaramavocêahistóriadoscontadoresdehistóriassejamessesgringos.Ascoisasnãopodemsercomoelespensamquesão.Garantoavocêqueosgringosentendemosmachiguengasmenosaindaqueosmissionários.

***

Estávamos em um pequeno café da Avenida Espanha, comendo um pão com lingüiça. Já se tinhampassado vários dias do meu regresso da Amazônia. Logo que voltei, por mais que o procurasse naUniversidade e lhe deixasse recados em La Estrella, não pude encontrá-lo. E já estava temendo queviajaria à Europa semme despedir de Saúl, quando, na véspera de minha partida paraMadri, eu oencontrei,saindodeumônibus,emumaesquinadaAvenidaEspanha.Fomosatéaquelecaféonde,disse,ele me ofereceria uma despedida de sanduíches de lingüiça e cerveja gelada cuja lembrança meacompanharia durante toda a estada na Europa.A lembrança queme ficou gravada, porém, foi a dasevasivas dele e seu incompreensível desinteresse por um assunto, os faladoresmachiguengas, que, eutinhapensado,oentusiasmariamuitíssimo.Eraumdesinteresse real?Naturalmentequenão.Agoraseiquefingianãoseinteressarpelotemaequementiuquando,acossadoporminhasperguntas,assegurou-menãohaverouvidojamaisumapalavrasobreostaisfaladores.

A memória é uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o passado em função dopresente.Tenhotentadotantasvezesreconstruiraquelaconversadeagostode1958commeuamigoSaúlZuratas,naquelebotequinhodecadeirasfuradasemesasbambasdaAvenidaEspanha,queagorajánãoestoucertodenada,salvo,talvez,desuagrandemanchacordevinho-vinagre,queimantavaosolharesdos outros fregueses, de sua alvoroçada mecha de cabelos vermelhos, de sua camisinha de flanela,quadriculadaemvermelhoeazul,edeseussapatõesdegrandecaminhador.

Mas minha memória não pode ter fabricado totalmente a feroz catilinária deMascarita contra o

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InstitutoLingüísticodeVerão,quemepareceestarouvindovinteeseteanosdepois,nemmeuespantoaoverainsensívelcóleracomquefalava.Foiaúnicavezqueoviassim:lívidodefúria.NaquelediasoubequetambémoangélicoSaúleracapaz,comoorestodosmortais,decederàquelasraivasque,segundoseusamigosmachiguengas,podiamdesestabilizarouniverso.Eudisseissoaele,tentandodistraí-lo:

—Vocêvaiprovocarumapocalipsecomessaexplosão,Mascarita.

Maselenãomeouviu.

—Elessãoospioresdetodos,essesseusapostólicoslingüistas.Elesseincrustamnastribosparadestruí-las de dentro, igualzinho que os bichos-de-pé. Em seus espíritos, em suas crenças, em seusubconsciente, nas raízes de seumodode ser.Os outros tiramdeles o espaço vital e os exploramouempurramparaointerior.Nopiordoscasos,elesosmatamfisicamente.Essesseuslingüistassãomaisrefinados, queremmatá-los de outromodo. Traduzindo a Bíblia para omachiguenga; que é que vocêacha?

Euovitãoalterado,quenãodiscuti.Váriasvezes,ouvindo-o,mordialínguaparanãocontradizê-lo.Sabia que no caso de Saúl Zuratas as objeções ao Instituto não eram frívolas nem inspiradas empreconceitospolíticos;que,pordiscutíveisqueparecessem,refletiamumpontodevistaprofundamentemeditado e sentido. Por que a tarefa do Instituto parecia-lhe ainda mais nociva que a daquelesdominicanosbarbudosedaquelasfreirinhasespanholasdeQuillabamba,KoribenieChirumbia.

Deveterdemoradoarespostadele,poisasenhoraqueatendiaaproximou-senaquelemomentocomumanovarodadadesanduíches.Depoisdecolocaropratonamesa,ficouolhandoumbomtempoosinaldeSaúl,enfeitiçada.Euaviretirando-seemdireçãoaofogão,persignando-se.

—Nãome parecemais nociva, você se engana— respondeu-me afinal, com sarcasmo, semprefrenético.— Eles também querem roubar-lhes a alma, naturalmente. Mas, a selva está engolindo osmissionários,comoaoArturoCovadeLavorágine[7].Vocênãoosviu,emsuaviagem?Meiomortosdefome e, além disso, pouquíssimos. Vivem num tal desamparo que já não estão em condições deevangelizaraninguém,felizmente.Oisolamentoembotounelesoespíritocatequizador.Nãofazemmaisquesobreviver.Aselvacortou-lhesasunhas,compadre.E,dojeitoquevãoascoisasnaIgrejaCatólica,logonãohaverámaiscurasnemparaLima,oquedizerdaAmazônia.

***

Os lingüistas eram alguma coisa muito diferente. Tinham, atrás de si, um poder econômico e umaengrenagemeficientíssima,quelhespermitiriatalvezimplantarseuprogresso,suareligião,seusvalores,suacultura.Aprenderaslínguasaborígines,oraquelogro!Paraquê?Parafazerdosíndiosamazônicosbonsocidentais,bonshomensmodernos,bonscapitalistas,bonscristãosreformados?Nemmesmoisso.

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Sópara apagar domapa suas culturas, seus deuses, suas instituições e adulterar-lhes até seus sonhos.Como tinham feito comos peles-vermelhas e os outros, lá nopaís deles. Isso é o que euqueria paranossoscompatriotasdaselva?Queseconvertessemnoqueeram,agora,osaboríginesdaAméricadoNorte?Quesetornassemcriadoseengraxatesdosviracochas?

Fezumapausaporquenotouque,namesavizinha,trêshomenstinhamdeixadodefalarparaescutá-lo,atraídosporseusinaleseufuror.Ametadesadiadorostodeleestavacongestionada; tinhaabocaentreabertaeolábioinferior,espichado,tremia.Levantei-meparaurinarsemtervontade,pensandoqueminhaausênciaoacalmaria.Asenhoradofogãoperguntou-me,quandopassei,baixandoavoz,seoquemeuamigotinhanacaraeramuitograve.Sussurrei-lhequenão,erasóumsinal,nemmaisnemmenosqueoqueasenhoratemnobraço."Coitadinho,quepenadávê-loassim",murmurou.RetorneiàmesaeMascaritatentousorrirenquantolevantavaocopo:

—Saúde,compadre.Desculpequeamostardametenhasubidoumpouco.

Mas,naverdade,nãoseacalmaraeagenteoviatenso,apontodeexplodirdenovo.Disse-lhequesua animação trazia-meàmemóriaumpoemae lhe recitei, emmachiguenga, osversosque recordavadaquelacançãosobreatristeza.Conseguiquesorrisse,ummomento.

—Vocêfalaomachiguengacomumlevesotaquecaliforniano—brincou.—Porqueserá?

Um instante depois voltou à carga contra aquilo que o tinha inflamado. Sem querer, tinha eurevolvido em algo profundo, que o angustiava e feria. Falou sem pausas, como que segurando arespiração.

Atéagoraninguémotinhaconseguido,maspodiaserquedestavezoslingüistastivessemsucesso.Emquatrocentos,quinhentosanosdetentativas,todososoutrostinhamfracassado.Nuncatinhampodidosubmeter essas tribos pequeninas que desprezavam. Eu teria lido isto nas Crônicas que fichava comPorrasBarrenechea,nãoé,compadre?OqueaconteceuaosIncas,cadavezquemandaramexércitosaoAntisuyo.ATúpacYupanqui, sobretudo, não o tinha lido?Como seus guerreiros se desvaneceram naselva,comoosAntisescorreramporentreseusdedos.Nãotinhamsubmetidoaumsóe,despeitados,oscivilizadoscusquenhoscomeçaramentãoamenosprezá-los.

Por isso inventaram todos esses vocábulos pejorativos em quíchua contra os índios amazônicos:selvagens,depravados.E,apesardisso,oqueaconteceuaTahuantinsuyoquandoprecisouenfrentarumacivilizaçãomaispoderosa?OsbárbarosdoAntisuyo,pelomenos,continuavamsendooqueeram,não?EporacasoosespanhóistinhamtidomaisêxitoqueosIncas?Todasassuas"entradas"nãotinhamsidoumfracasso absoluto? Matavam-nos quando conseguiam pegá-los, o que aconteceu muito raramente. Osmilharesdesoldados,aventureiros,fugitivos,missionáriosquedesceramaoOrienteentre1500e1800,puderam,poracaso,incorporarumaúnicatriboàmuitoilustrecivilizaçãocristãeocidental?Tudoissonãosignificavanadaparamim?

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—Diga-me,emvezdisso,oqueissosignificaparavocê,Mascarita—respondi-lhe.

—Queessasculturasdevemserrespeitadas—disse,suavemente,comose,porfim,começasseaficarsereno.—Eaúnicamaneiraderespeitá-lasénãoseaproximardelas.Nãotocá-las,Nossaculturaéfortedemais,agressivademais.Noquetoca,devora.Éprecisodeixá-lasempaz.Jánãodemonstraramdesobraquetêmodireitodecontinuarsendooquesão?

—Vocêéumindigenistaquadrado,Mascarita—brinqueicomele.—Bemotipodaquelesdosanostrinta. Como o Doutor Luis Valcárcel, quando jovem, pedindo que se demolissem todas as igrejas econventos coloniais porque representavam o anti-Peru. Quer dizer que temos que ressuscitar oTahuantinsuyo? Também os sacrifícios humanos, os quipos, a trepanação dos crânios com facas depedra?ÉengraçadoqueoúltimoindigenistadoPerusejaumjudeu,Mascarita.

—Bem,um judeuestámelhorpreparadoqueoutrosparadefenderodireitoaexistirdasculturasminoritárias — retrucou-me. — Afinal de contas, como diz meu velho, o problema dos boras, dosshapras,dopiros,éonossoproblemahátrêsmilanos.

Eledisseissoassim?Podia-se,nomínimo,doqueiamedizendo,inferirumaidéiadestanatureza.Não estou certo. Talvez seja pura elucubração minha, posterior. Saúl não era praticante, nem sequercrente,muitas vezes ouvi-o dizer que ia à sinagoga só para não decepcionarDomSalomón.De outraparte, aquela associação, leve ou profunda, deve ter existido. O fato de haver ouvido, em casa, nocolégio,na sinagoga,nos inevitáveis contatos comoutrosmembrosda comunidade, tantashistóriasdeperseguiçãoedediáspora,astentativasdesubmissãodafé,dalínguaedoscostumesjudeusporculturasmais fortes, tentativas às quais, ao preço de grandes sacrifícios, o povo judeu havia resistido,preservandosuaidentidade,nãoexplicava,pelomenosemparte,adefesarecalcitrantequeSaúlfaziadavidaquelevavamosperuanosdaIdadedaPedra?

***

— Não, não sou indigenista à maneira daqueles dos anos trinta. Eles queriam restabelecer oTahuantinsuyoeeuseimuitobemqueparaosdescendentesdosIncasnãohávoltaatrás.Aelessórestaintegrarem-se.Queessaocidentalização,queficoupelametade,seacelere,equantomaisrápidoacabe,melhor.Para eles, agora, é omalmenor.Está vendo, não souumutópico.NaAmazônia, entretanto, édiferente.NãoseproduziuaindaograndetraumaqueconverteuosIncasemumpovodesonâmbulosedevassalos. Nós temos batido muito neles, mas não estão vencidos. Agora sabemos a atrocidade quesignifica issode levar oprogresso, dequerermodernizar umpovoprimitivo.Simplesmente, acaba-secom ele.Não cometamos esse crime.Deixemo-los com suas flechas, penas e tangas.Quando você seaproximadeleseosobserva,comrespeito,comumpoucodesimpatia,percebequenãoéjustochamá-losdebárbarosnematrasados.Paraomeioemqueestão,paraascircunstânciasemquevivem,acultura

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deles é suficiente. E, além disso, têm um conhecimento profundo e sutil de coisas que nós temosesquecido.Arelaçãodohomemeanatureza,porexemplo.Ohomemeaárvore,ohomemeopássaro,ohomemeorio,ohomemeaterra,ohomemeocéu.OhomemeDeus,também.Essaharmoniaqueexisteentreeleseessascoisasnósnemsabemosoqueé,poisarompemosparasempre.

Isto sim, ele o disse. Não com estas palavras, certamente. Mas em uma forma que se poderiatranscreverassim.FaloudeDeus?Sim,estoucertodequefaloudeDeusporquerecordo-medelhehaverperguntado, surpreso pelo que disse, tentando levar na brincadeira algo que era sumamente sério, seaquiloqueriadizerqueagoratínhamosquetambémacreditaremDeus.

Ficou em silêncio, cabisbaixo.Uma varejeirametera-se café adentro e atirava-se aos encontrõescontraasparedessujas.AsenhoraqueatendianãoparavadeobservarMascaritadobalcão.QuandoSaúllevantouavista,pareciadesagradado.Avozdelesoavamaisalto:

—Bem,eunãoseimaisseacreditoounãoacreditoemDeus,compadre.Éumdosproblemasdanossaculturatãopoderosa.ElafezdeDeusalgoprescindível.Paraeles,Deuséoar,aágua,acomida,umanecessidadevital,algosemoquenãoseriapossívelavida.Sãomaisespirituaisquenós,aindaquevocênãooacredite.Inclusiveosmachiguengas,que,comparadoscomosdemais,acabamsendobastantematerialistas.Por issoé tãograndeodanoque lhe fazopessoaldo Instituto, tirando-lhesseusdeusesparasubstituí-lospeloseu,umDeusabstratoquenãolhesserveparanadanavidadiária.Oslingüistassãoosdestruidoresdeidolatriasdonossotempo.Comaviões,penicilina,vacinasetudooquefazfaltaparaderrotaraselva.E,comosãofanáticos,quandolhesaconteceoqueaconteceuàquelesgringosnoEquador,sentem-semaisinspirados.Nadacomoomartírioparaestimularosfanáticos,nãoé,compadre?

OquehaviaacontecidonoEquador,semanasatrás,eraquetrêsmissionáriosnorte-americanos,dealguma igreja protestante, tinham sido assassinados por uma tribo jíbara, onde um dos três vivia.Osoutrosdoisestavamdepassagem.Nãoseconheciadetalhesdoepisódio.Oscadáveres,decapitadoseflechados,teriamsidoencontradosporumapatrulhamilitar.Comoosjíbaroseramredutoresdecabeças,omotivodadecapitaçãoeraóbvio.Istohaviaprovocadoumgrandeescândalonaimprensa.AsvítimasnãopertenciamaoInstitutoLingüístico.PergunteiaSaúl,intuindooquemeresponderia,oquepensavadaquelestrêscadáveres.

—Pelomenos,possogarantirumacoisaavocê—disse-me.—Foramdecapitadossemcrueldade.Não ria! Foi assim, pode acreditar. Sem o ânimo de fazê-los sofrer. Quanto a isso, apesar de seremdiferentesastribos,todasseparecem.Sómatampornecessidade.Quandosesentemameaçados.Quandose tratademataroumorrer.Ouquando têmfome.Masos jíbarosnãosãocanibais,nãomataramparacomer.Algumacoisadisseram,algumacoisafizeramosmissionáriosquefezosjíbarossentirem-sederepenteemgrandeperigo.Umahistória triste,naturalmente.Masnão tireconclusõesapressadas.NadanessahistóriaseparececomascâmarasdegásdosnazistasouabombaatômicasobreHiroshima.

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Estivemosjuntosbastantetempo,talveztrêsouquatrohoras.Comemosmuitossanduíchese,aofinal,adonadocafénos serviuumamazamorramorada[8] "comobrindedacasa".Quandonosdespedimos,sem poder conter-se, a senhora perguntou a Saúl, apontando-lhe o sinal, "se essa sua desgraça doíamuito".

—Não,senhora,felizmentenãodóinada.Nemnotoqueelaestáaí—Saúlsorriuparaela.

Demosumacaminhada,falandoaindadoúnicotemadaquelatarde,esobreissotambémnãotenhodúvidas.Despedimo-nos,naesquinadaPlazaBolognesicomoPaseoColón,enosabraçamos.

—Tenho que pedir desculpas a você— disse-me, de repente, compungido.— Falei como umacaturritaenãoodeixeiabriraboca.VocênãopôdesequermecontarseusplanosparaaEuropa.

Ficamosdenosescrever,aindaqueumpostaldequandoemquando,paranãoperderocontato.Euofiztrêsvezes,nosanosseguintes,maselenuncamerespondeu.

Essa foi a última vez que vi Saúl Zuratas.A imagem sobrenada, indene, o turbilhão dos anos.Aatmosferacinzenta,océuencobertoeaumidadecorrosivadoinvernodeLima,servindo-lhedefundo.Atrásdele,amultidãoconfusadecarros,caminhõeseônibusenroscadosnomonumentoaBolognesi,eMascarita,comsuagrandemanchaescuranacara, seuscabelos flamíferosesuacamisaquadriculada,dando-meadeuscomamãoegritando:

—Vamos ver se você volta ummadrilenho, falando con vosotros y con zetas[9]. Olhe, uma boaviagem!Quetudolhesaiabemporlá,compadre!

Passaramquatroanossemquesoubessedele.Nunca,ninguém,entreosperuanosdepassagemporMadriouParis,ondevividepoisde terminar após-graduação, soubedar-menotíciasdeSaúl.Eumelembravadelecomfreqüência,sobretudonaEspanha,enãosópeloapreçoquelhetinha,masporcausadosmachiguengas.AhistóriadosfaladoresqueouvidosSchneilvoltavasempreàminhamemória,cheiade incitações.Excitavaminhafantasiaemeusdesejoscomoumabelamulher. IaàUniversidadesónaparte da manhã; à tarde, costumava passar umas horas na Biblioteca Nacional, na Castellana, lendoromancesdecavalaria.Umdialembrei-medonomedomissionáriodominicanoquetinhaescritosobreosmachiguengas:FreiVicentedeCenitagoya.Procureinocatálogoeláestavaolivro.

Euolideumasentada.Erabreveeingênuoeosmachiguengas,aquemobomdominicanochamavafreqüentemente de selvagens e aos quais repreendia paternalmente por serem infantis, indolentes ebêbados,eporsuasbruxarias—queFreiVicentequalificavade"conciliábulosnoturnos"—,apareciamvistosdeforaedemuitolonge,emboraomissionáriotenhavividoentreelesmaisdevinteanos.MasFreiVicenteelogiavasuahonradez,seurespeitoàpalavraempenhadaesuadelicadezademaneiras.E,além disso, o livro corroborava algumas informações que acabaram por me decidir. Tinham umapropensão pouco menos que doentia para escutar e contar histórias, eram uns conversadoresincorrigíveis.Nãopodiamestarquietos,nãosentiamomenorapegopelolugarondeviviamesepoderia

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dizê-lospossuídospelodemôniodalocomoção.Aselvaexerciasobreelesumaespéciedefeitiço.Osmissionários,valendo-sedetodotipodeengodos,atraíam-nosparaoscentrosdeChirumbia,KoribeniePanticollo.Cansavam-setentandoenraizá-los.

Davam-lhesespelhos,comida,sementes,instruíam-nossobreasvantagensdeviveremcomunidadedo ponto de vista de sua saúde, de sua educação, de suamera sobrevivência. Pareciam convencidos.Levantavamsuascasas,faziamsuaschácaras,aceitavammandarosfilhosàescolhinhadamissãoeelesmesmos compareciam, lambuzados de tinta e pontuais, ao rosário das tardes e àmúsica dasmanhãs.Acreditava-sequeestavamrumandopelasendadacivilizaçãocristã.Mas,derepente,umbelodia,semdizer obrigado nem adeus, desapareciam na selva. Era mais forte que eles: um instinto ancestralempurrava-osirresistivelmenteàvidaerrante,dispersava-ospelasemaranhadasflorestasvirgens.

Naquelamesma noite escrevi aMascarita, comentando o livro doPadreCenitagoya.Contava-lhequedecidiraescreverumcontosobreosfaladoresmachiguengas.Meajudaria?Aqui,emMadri,quemsabeseporsaudadeouporquederamuitasvoltasanossasconversas,as idéiasdelenãomepareciammaistãodisparatadasnemtãoirreais.Nomeuconto,emtodocaso,fariaomáximoesforçoparamostraraintimidademachiguengadamaneiramaisautêntica.Vocêmedaráumamão,compadre?

Pus-me a trabalhar com muito entusiasmo. Os resultados, porém, foram pobríssimos. Como sepoderia escrever uma história sobre os faladores sem ter um conhecimento sequer sumário de suascrenças,mitos,usos,história?Oconventodosdominicanos,naRuaCláudioCoello,proporcionou-meuma ajuda utilíssima. Conservavam ali a coleção completa de Misiones Dominicanas, órgão dosmissionáriosdaOrdemnoPeru,ealiencontreiabundantesartigossobreosmachiguengas,bemcomoosestudossobrealínguaeofolcloredatribo,doPadreJoséPioAza,sumamentevaliosos.

Mas, talvez, a colaboração mais instrutiva foi a conversa, na vasta e retumbante biblioteca doconvento—detetoaltíssimo,ondeoeconosdevolviaoquedizíamos—,comummissionáriobarbudo;Frei Elicerio Maluenda tinha vivido muitos anos no Alto Urubamba e interessara-se pela mitologiamachiguenga.Eraumanciãoatentoeerudito,comosmodosumpoucosilvestresdequempassouavidaàintempérie, vivendo a vida rude da selva. A cada instante, como que para me impressionar mais,entremeavaseucastiçoespanholcompalavrasmachiguengas.

Fiqueiencantadocomsuasinformaçõessobreacosmogoniadatribo,riquíssimaemsimetriase—descubro-oagora,emFlorença,lendopelaprimeiravezaCommediaemitaliano—comreverberaçõesdantescas.Aterraeraocentrodocosmosehaviaduasregiõesemcimadelaeduasembaixo.Cadaumacomseuprópriosol,sualuaeseuemaranhadoderios.Namaiselevada,Inkite,viviaTasurinchi,oquetudo pode, o soprador das pessoas, e por ali circulava, banhando férteis margens, com árvorescarregadasdefrutos,oMeshiareniouriodaimortalidade,quesepodiadivisardaterrapoiseraaVia-Láctea.DebaixodeInkite,flutuavaaleveregiãodasnuvensouMenkoripatsa,comseuriotransparente,oManaironchaari. A terra, Kipacha, era a vivenda dos machiguengas, povo peripatético. Por debaixo,

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aninhava-sealôbregaregiãodosmortos,cobertaquasetodaelapelorioKamabiría,ondenavegavamasalmasdosfalecidosantesdeseinstalarememsuanovamorada.E,finalmente,aregiãomaistemíveleprofunda,adoGamaironi,riodeáguasnegras,sempeixes,edeparamosondetampoucohavianadaquecomer.EramosdomíniosdeKientibakori,criadordeimundícies,espíritodomalechefedeumalegiãode demônios: os kamagarinis. O sol de cada região ia perdendo força, brilho, em relação com aprecedente.OdeInkiteeraumsolfixoeradiante,branco.OdeGamaironi,umsolescuroegelado.Ohesitante sol da terra ia e voltada: sua sobrevivência estavamiticamente vinculada ao comportamentomachiguenga.

QuantohaveriadeverdadenistoenosoutrosdadosqueFreiMaluendamedeu?Nãoteriaoamávelmissionário procedido a acréscimos e adaptações demais no material que recolheu? Perguntei-o aMascarita,emminhasegundacarta.Tambémnãoteveresposta.

Enviei-lheaterceira,maisoumenosumanodepois,eagoradeParis.Repreendia-oporseusilênciocontumazeconfessava-lhequetinharenunciadoaescrevermeucontosobreosfaladores.Fizeraborrõese passara muitas horas na Place de Trocadero, na Biblioteca e nas vitrinas doMusée du L'Homme,tentandoentendê-loseadivinhá-los,emvão. Inventadaspormim,asvozesdosfaladoresdesafinavam.Demodoquemeresigneiaescreveroutrashistórias.Maseele,oqueestavafazendo,comoia,oqueandavafazendotodoestetempo,queprojetostinha?

Foi só em fins de 1963, quandoMatosMar apareceu por Paris, convidado de um congresso deantropologia,quetivenotíciasdoparadeirodeSaúl.Oqueouvi,deixou-meatônito.

—SaúlZuratasfoiviveremIsrael?

EstávamosnoOldNavy,emSaint-Germain-des-Prés, tomandoumgrog[10]pararesistiraofrioeàtristíssima tarde cinzenta de dezembro. Fumávamos e eu o comia de perguntas sobre os amigos e osassuntosdoremotoPeru.

— Coisa do pai, parece — explicou-me Matos Mar, encolhido dentro de um cachecol e umsobretudotãovolumososquepareciaumesquimó.—DomSalomón,otalarenho,vocêoconheceu?Saúlgostavamuitodele.VocêselembraqueelerecusouabolsaparaBordéusparanãodeixaropaisozinho?Depois, o velhinho decidiumorrer em Israel, pelo visto. E, com a devoção que lhe tinha, claro queMascarita fezavontadedele.Decidiramtudomuitodepressa,damanhãparaanoite.QuandoSaúlmedisse,játinhamvendidoalojinhadeBreña,LaEstrella,eestavamdemalasprontas.

MasSaúl acharia alguma graça nessa história de se instalar em Israel? Porque, lá, teria tido queaprenderhebreu,fazeroserviçomilitar,reordenartodasuavida.

Matos Mar pensava que, talvez, pela mancha seria dispensado do serviço militar. Procurei namemória,tentandorecordarsealgumavezotinhaouvidofalardesionismo,defazerumaaliá[11].Nunca.

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—Bem,talveznãotenhasidoumacoisamuitoruimparaSaúlcomeçartudodozero—especulouMatosMar.—Deveter-seadaptadoaIsrael,umavezquejásepassaramquatroanose,queeusaiba,nãovoltouaoPeru.Euoimaginovivendomuitobememumkibutz.AverdadeéqueSaúlnãofazianadaem Lima. Tinha-se decepcionado com a Etnologia e a Universidade por uma razão que nunca pudeentender. Deixou inacabada sua tese de doutorado. E até acho que desapareceu sua paixão pelosmachiguengas. "Você não sentirá falta dos pelados do Urubamba?", perguntei-lhe, quando nosdespedimos. "Com certeza que não", disse-me ele. "Eu me adapto a tudo. Lá em Israel deve haver,também,muitagentepelada."

AocontráriodoqueMatosMarpensava,acheiquenãoteriasidotãofácilparaSaúlfazerumaaliá.PorqueestavavisceralmenteintegradoaoPeru,dilaceradoeinstigadodemaisporassuntosperuanos—porumdeles,pelomenos—paradesprender-sedetudoissodamanhãparaanoite,comoquemmudadecamisa. Muitas vezes tentei imaginá-lo no Oriente Médio. Conhecendo-o, era previsível supor quedeviam ter se apresentado ao cidadão israelense Saúl Zuratas, na nova pátria, todo tipo de dilemasmoraissobreaquestãopalestinaeosterritóriosocupados.Divaguei,tentandovê-lononovoambiente,engrolandonanovalíngua,exercendoumanovaprofissão—qual?—epediaTasurinchiquenenhumabalativessetropeçadonelenasguerraseincidentesfronteiriçosdeIsraeldesdequeMascaritaestavalá.

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V

UM KAMAGARINI travesso, disfarçado de vespa, picou a ponta do pênis de Tasurinchi enquantourinava.Eleestáandando.Como?Nãosei.Masanda,euovi.Nãoomataram.Pôdeperderosolhoseacabeça,pôdesairsuaalmapeloquefez,lá,entreosyaminahuas.Nadalheaconteceu,parece.Estábem,andando,contente.Semraivaerindo,talvez."Nãohárazãoparatantoalvoroço",dizendo.Enquantoiarumoao rioMishahuaparavisitá-lo, eupensava: "Nãoo encontrarei.Se é verdadeque fez isso, teráfugidoparabem longe,ondeosyaminahuasnãooachem.Ou jáo terãomatado, talvez,aeleea seusparentes."Masaíestavaeamesmacoisasuafamíliaeamulherqueeleroubou."Estáaí,Tasurinchi?""Eê,eê,estouaqui."

Elaestáaprendendoafalar."Vamos,queofaladorvejaquevocêtambémfala",ordenou-lhe.Malsecompreendia o que a yaminahua dizia, e as outras mulheres, zombando, "que ruídos são esses queestamos ouvindo?", fazendo que procuravam, "que animal terá se metido na casa?", levantando asesteiras.Elasafazemtrabalhareatratammal."Quandoabreaspernas,delatambémdevemsairpeixes,comoaPareni",dizendo.Ecoisaspioresainda.Mas,éverdade,estáaprendendoafalar.Algumascoisasquedizia,entendi."Ohomemanda",entendi.

"Então,éverdade,vocêroubouumayaminahua",comenteicomTasurinchi.Dizquenãoa roubou.Trocou-a por uma sachavaca, uma saca de milho e outra de mandioca, é verdade. "Os yaminahuasdeveriamestarcontentes,issoquedeiaelesvalemaisqueela",garantiu-me.Eperguntouàyaminahuanaminhafrente:"Nãoéassim?"Eelaconcordou:"Sim,é",dizendo.Tambémissoentendieladizer.

Desde que o kamagarini travesso picou o pênis dele, Tasurinchi tem que fazer coisas de que,bruscamente, sente vontade, sem saber como nem por quê. "É uma ordem que ouço e tenho que aobedecer",diz."Devevirdeumdeusinhooudeumdiabinho,dealgoquesemeteupelomeupênis, lábemdentro,comonãosei."Roubaraquelamulherfoiumadessasordens,parece.

Opênisestá igualaantes.Masficoucomele,naalma,umespíritoque lhemandaserdiferenteefazercoisasqueosoutrosnãocompreendem.Mostrou-meondeestavaurinandoquandookamagariniopicou.Ai!,ai!,eofezgritar,ofezpular,elogonãopôdemaiscontinuarurinando.Espantouavespacomumtapaeaouviurir,talvez.Uminstantedepois,seupêniscomeçouacrescer.Cadanoiteinchavamais,cadamanhãmais.Todos riamdele.Envergonhado, fez comque tecessemumacushmamaiorpara ele.Escondia-oemseubolsogrande.Masopêniscontinuavacrescendo,enãopôdemaisocultá-lo.Doía-lhequando semexia, arrastava-o como o animal seu rabo.Às vezes a gente pisava nele só para ouvi-logritar:Ai! aiaiai!Teveque enrolá-lo e colocá-lonoombro, comoeu aomeu lourinho. Iamassimnasviagens,cabeçacomcabeça,acompanhando-se.Tasurinchifalava-lhe,parasedistrair.Ooutrooouvia,

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calado,atento,comovocêsouvematuim,olhando-ocomseuolhogrande.Vesgo!vesguinho!Eoolhavafirme,então.Tinhacrescidomuitíssimo.Acreditandoquefosseárvore,ospássarospousavamneleparacantar.QuandoTasurinchiurinava,saíadesuabocarraumacascatadeáguaquente,espumantecomoascataratas do Gran Pongo. Tasurinchi podia banhar-se, e a família dele, talvez. Servia-lhe de assentoquandosedetinhaparadescansar.Nasnoites,decama.Esesaíaàcaça,deestilingueedelança.Podiadispará-loatéacopadaárvoreparaderrubarosshimbillose,usando-ocomoumapedra,matarcomeleopuma.

Parapurificá-lo,oseripigariembrulhouopênisdeleemfolhasdesamambaiaaquecidasnasbrasas.Osucodocozimentoeleofeztomaraosgolinhos,cantando,todaumanoite,enquantoelebebiatabacoeayahuasca,dançava,desapareciapelotetoevoltava,transformadoemsaankarite.Então,pôdechupar-lheo mal e cuspi-lo. Era amarelo, espesso e cheirava a vômito de bebedeira. De manhãzinha, o pêniscomeçouaafinar,eumasluasdepoiseraoanãozinhodeantes.MasdesdeentãoTasurinchiouveaquelasordens."Emalgumasdeminhasalmas,háumamãecaprichosa",diz."Por issoeu trouxeayaminahua,então."

Parecequeelaseacostumouaonovomarido.Aliestá,noMishahua, tranqüila,comosehouvessesido sempre mulher de Tasurinchi. As outras, em compensação, andam brigando, insultando-a, e aqualquerpretextobatemnela.Euasvieasouvi."Estanãoécomonós",dizendo,"nãoégente,masquemserá,ora?Talvezumamacaca,talvezopeixequeseatravessounagargantadeKashiri."Elacontinuavamastigandoamandiocacomosenãoasouvisse.

Outra vez, estava trazendo um cântaro comágua e, semnotar, deu um encontrão emuma criança,derrubando-a.Então,todasvoltaram-secontraela."Vocêfezissodepropósito,quismataressacriança",dizendo.Nãoeraverdademasassimelasdiziam.Elapegouumporreteeasenfrentou,semseenfurecer."Umdiaamatarão",eudisseaTasurinchi."Sabedefender-se",respondeu-me."Caçaanimais,coisaquenunca soube que asmulheres fizessem. E é a que agüentamais carga nas costas, quando trazemos asmandiocasdachácara.Meumedoédequeela,enãoasoutras,matetodas.Osyaminahuassãogentedebriga,igualqueosmashcos.Asmulheresdelestambém,quemsabe."

Disse-lheque,porissomesmo,deveriaestarinquieto.Precisavasemudarparaoutrolugarquantoantes.Osyaminahuasdeviamestarfuriososcomoquefez.Esevinhamvingar-se?Tasurinchificourindo.Tudoestavacerto,parece.Omaridodayaminahuaveiovê-lo,comdoisoutros.Conversaram,bebendomasato.Entendiam-se,ora.Nãoqueriamamulhermasumaescopeta,alémdasachavaca,domilhoedamandioca que lhes deu. Os Padres Brancos tinham dito a eles que tinha uma escopeta. "Procurem",ofereceu-lhes."Seaencontrarem,podemlevar."Aofinal,foramembora.Econtentes,parece.Tasurinchinão vai devolver a yaminahua aos parentes. Porque ela já está aprendendo a falar. "As outras seacostumarão a ela quando tiver um filho", diz Tasurinchi. Porque as crianças já se acostumaram.E atratamcomosefossegente,mulherqueanda,"Mãe",chamando-a.

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Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

QuemsabeseessamulherdaráfelicidadeaTasurinchi,odoMishahua?Podetrazer-lhedesgraça,também.AKashiri,alua,desceraestemundoparasecasarcomumamachiguengaodesgraçou.Issoéoquedizem,pelomenos.Nãodeveríamosnoslamentar,talvez.AsdesditasdeKashirinosdãodecomerenospermitemaquecer-nos.Nãoéaluaopaidosolemumamachiguenga?

Issoeraantes.

Jovemforte,sereno,Kashiriaborrecia-senocéudemaisemcima,o Inkite,ondeaindanãohaviaestrelas.Oshomens,emvezdemandiocaebanana,comiamterra.Erasuaúnicacomida.Kashiridesceupelo rioMeshiareni,vogandocomseusbraços, sempértiga.Acanoaesquivava-sedos redemoinhosedas pedras. Descia, flutuando. O mundo estava às escuras, ainda, e soprava muito vento. Chovia acântaros.NoOskiaje, onde esta terra se junta comosmundos do céu, onde vivemosmonstros e vãomorrertodososrios,Kashiripulouparaamargem.Olhouàsuavolta.Nãosabiaondeestavamasvia-seque estava contente. Começou a andar.Nãomuito depois viu, sentada, tecendo uma esteira, cantandobaixinhoumacançãoparaafugentaracobra,amachiguengaquelhetrariaafelicidadeeainfelicidade.Tinhaasfaceseatestapintadas;doisriscosvermelhossubiamdesuabocaàsfontes.Era,então,solteira;aprenderia,então,acozinharefazermasato.

Paraagradá-la,Kashiri,alua,mostrou-lheoqueéamandioca,oqueéabanana.Mostrou-lhecomoeramplantadas,colhidasecomidas.Desdeentãohánomundocomidaemasato.Assimcomeçoudepois,parece.Logo,Kashiriapresentou-senacasadopaidajovem.Levavaosbraçoscarregadosdeanimaisquetinhapescadoecaçadoparaele.Finalmente,ofereceu-separaabrir-lheumachácaranapartemaisalta da selva e trabalhar, semeando e arrancando erva, até que as mandiocas crescessem. Tasurinchiaceitouquelevasseafilha,mastiveramqueesperaroprimeirosanguedajovem.Demorouachegare,enquantoisso,aluaroçou,queimouelimpouomatoesemeoubanana,milho,mandioca,paraaquelaqueseriasuafamília.

Tudoiamuitobem.

Ajovemcomeçou,então,asangrar.Permaneceuencerrada,semdizerumapalavraaosparentes.Aanciãqueaprotegianãoseseparavadelanemdedianemdenoite.Ajovemfiavasempararasfibrasdoalgodão,semdescanso.Nemumaúnicavezaproximou-sedofogonemcomeupimentão,paranãoatrairdesgraçassobreelaeseusparentes.Nemumasóvezolhouparaoqueseriaseumaridonemtampoucolhefalou.Assimesteveatéquedeixoudesangrar.Emseguida,cortouoscabeloseaanciãajudou-aasebanharemáguamorna;iamolhandoocorpodelacomosesguichosdocântaro.Porfim,ajovempôdeirvivercomKashiri.Porfim,pôdesermulherdele.

***

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Tudo continuava andando. O mundo estava tranqüilo. Os bandos de papagaios passavam sobre eles,ruidososecontentes.Masnocasariohaviaoutra jovemquenãoera, talvez,mulhermasumitoni,essediabinhoperverso.Agorasevestedepombamas,então,vestia-sedemulher.Encheu-sederaiva,parece,vendoospresentesdeKashiriaosnovosparentes.Elateriaqueridoqueelefosseseumarido,elateriaquerido,pois,parirosol.Porqueamulherdaluatinhaparidoessacriançarobustaque,crescendo,dariacaloreluzaonossomundo.Paraquetodossoubessemdesuafúria,elapintouacaradevermelho,comtinturadeurucu.Efoicolocar-seemumlugardocaminhoporondeKashiritinhaquepassarregressandodo mandiocal. Acocorada, esvaziou seu corpo. Fazia força, inchando-se. Logo enterrou as mãos nasujeiraeesperou,derramandoraiva.Quandooviuaproximar-se,atirou-sesobreKashiri,domeiodasárvores.Eantesquealuapudesseescapar,esfregou-lhenacaraococôqueacabavadecagar.

Kashiri soubenamesmahoraquenuncaseapagariamessasmanchas.Oque ia fazernestemundocomsemelhantevergonha?Entristecido,voltouaoInkite,océudemaisemcima.Alificou.Sualuzseapagouporcausadessasmanchas.Masofilhoresplandece,éverdade.Nãobrilhaosol?Nãoesquenta?Nósoajudamosandando.Levante-se,dizendo-lhe,cadanoitequecai.Amãedelefoiumamachiguenga,então.

Isso,pelomenos,éoqueeusoube.

***

MasoseripigarideSegakiatoconta-odeoutramaneira.

Kashiridesceuàterraeviuajovemnorio.Banhava-se,cantando.Aproximou-sedelaejogouumpunhadode terraquelhebateunoventre.Zangada,elacomeçouaapedrejá-lo.Começaraachover,derepente.Kientibakoriestarianaselva,dançando,cheiodemasato."Mulherlouca",diziaaluaàjovem,"atirei barro emvocê para que tenha um filho."Todos os diabinhos estavam felizes entre as árvores,peidando. E assim aconteceu. A jovem ficou prenha. Mas, quando lhe tocou parir, morreu. Tambémmorreuofilhodela.Osmachiguengasteriamficadofuriosos,então.Apanhariamsuasflechas,suasfacas.IriamatéKashiriedizendo-lhe"Temquecomerestecadáver"elesocercariam.Eoameaçariamcomseusarcos, fariamcomquecheirasseseusenjeitados.Aluaresistiria, tremendo.Eeles:"Coma-a, temquecomeramorta."

Por fim, chorando, comuma faca abriria o ventre de suamulher.Ali estava a criança, faiscando.Tirou-a e ela ressuscitou, parece. Mexia-se e berrava, agradecida. Viva estava. Ajoelhado, Kashiricomeçouacomerocorpodaesposapelospés."Estábem, jápodeir", lhedisseramosmachiguengas,quandotinhachegadoàbarriga.Então,alua,atirandoaoombroosrestos,regressouaocéudemaisemcima,caminhando.Láestará,olhando-nos.Ouvindo-me,estará.Asmanchasdelesãoospedaçosquenãocomeu.

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FuriosopeloquefizeramcomKashiri,seupai,osol,manteve-sequieto,queimando-nos.Secavaosrios,faziaarderemaschácaraseasflorestas.Aosanimaismatavadesede."Nuncamaisvaisemover",diziamosmachiguengas,arrancandooscabelos.Estavammedrosos."Teráquemorrer",cantando,tristes.Então,oseripigarisubiuaoInkite.Faloucomosol.Convenceu-o,parece.Elesemoveriadenovo,então."Andaremosjuntos",dizemquelhedisse.Avidafoidesdeentãoassim,sendocomoé.Aíterminouantesecomeçoudepois.Porissocontinuamosandando.

"PorissoétãofracaaluzdeKashiri?",pergunteiaoseripigaridorioSegakiato."Sim",respondeu-me. "A lua é um homempelametade, só isso.Outros dizem que, comendo um peixe, uma espinha secravounagargantadele.Edesdeentãoseapagou."

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Quandoestavavindo,emboraconhecesseocaminho,meperdi.SeriaculpadeKientibakori,deseusdiabinhosoudealgummachikanaricommuitospoderes.Achuvacomeçouderepente,semaviso,semqueantesescurecesseocéuesemsetornarúmidooar.Euestavavadeandoumrioeachuvajácaíacomtanta força que não me deixava subir à margem. Dava dois ou três passos, escorregava, a terra sedesmanchavasobmeuspésemedevolviaao fundodo leito.Assustado,o lourinhosepôsaadejare,gritando, fugiu. Logo, a margem foi torrente. Lodo e água, também pedras, ramos, mato, árvoresquebradaspelatormenta,cadáveresdepássaroseinsetos.Tudorolandocontramim.Océuficounegro;de quando em quando havia um incêndio de raios. Estrondava como se todos os animais da selvativessemcomeçadoarugir.Quandoosenhordotrovãoseenfureceassim,coisagraveestáacontecendo.Eu continuava querendo subir para a margem. Poderia? Se não subo a uma árvore muito alta, sereilevado,pensava.Logo tudo istoseráumfervedourodeáguadocéu.Jánão tinha forçaspara forcejar;minhaspernasebraçosestavamcheiosdeferidasdasbatidasquesofrianasquedas.Engoliaáguapelonariz e pela boca. Até pelos olhos e pelo ânus estaria entrando água no meu corpo. Será seu fim,Tasurinchi,suaalmaescaparáquemsabeparaonde.Etocavanomeucocurutoparasenti-lasair.

Não sei quanto tempo estive assim, subindo, rolando, voltando a subir, voltando a cair. O canaltornara-se um rio larguíssimo, depois de engolir as margens. Até que, de tão cansado, eu me deixeiafundar. "Voudescansar", dizendo, "basta de luta inútil."Masos que se vão assimdescansam?Não éafogar-seapiormaneiradeir?Logo,logo,estariaflutuandonoriodosmortos,oKamabiría,emdireçãoao abismo sem sol e sem peixes que é o mundo de mais embaixo, a terra escura de Kientibakori.Enquantoisso,semperceber,minhasmãostinhamseprendidoaumtroncoqueatormentateriaatiradonorio, talvez. Não sei como pude me encarapitar. Também não sei se naquele mesmo momento fiqueiadormecido.Osoltinhacaído.Aescuridãoestavafria.Sobreminhascostas,asgotaspareciampedras.

Nosono,descobriaarmadilha.Oqueeupensavaserumtroncoeraumjacaré,ora.Aquelacrostatão dura, tão pungente, que casca podia ser? É o lombo de um jacaré, Tasurinchi. Tinha percebido ojacaréquemetinhasobreele?Teriacomeçadoarabear,talvez.Outeriamergulhadoparaobrigar-mea

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soltá-lo e me morder debaixo da água, como fazem sempre os jacarés. Estaria morto, talvez? Seestivesse, flutuaria de patas para cima. Que é que vai fazer, Tasurinchi? Deslizar para a água,devagarinho,enadaratéamargem?Nuncateriachegado,comaquelatempestade.Nemsequerasárvoressepodiaver.Talveznemrestassemaisterranestemundo.Tentarmatarojacaré?Nãotinhacomquê.Lánocanal,enquantolutavaparasubiràmargem,tinhaperdidominhasacola,minhafacacminhasflechas.Melhorficarquieto,montadinhonojacaré.Melhoresperarquealguémoualgodecidisse.

Estivemos flutuando, ao capricho da água. Sentiamuito frio, tremia emeus dentes batiam. "Ondeestarálourinho",pensando.Ojacarénãomexiaaspatasnemorabo,deixava-selevarparaondequisesseorio.Poucoapoucofoiclareando.Águaslodosas,cadáveresdeanimais,paliçadasdetetos,decasas,árvoresecanoas.Dequandoemquando,homensmeiocomidospelaspiranhaseoutras ferasdaágua.Haviagrandesnuvensdemosquitos,haviaaranhasdaáguacaminhandopormeucorpo.Euassentiamepicarem.Tinhamuitafomeeteriapodido,talvez,pegarumdaquelespeixesmortosqueaáguaarrastava,mas,e sechamavaaatençãodo jacaré?Beberia, só.Paraaplacarasedenãoprecisavamexer-me, sóabriraboca.Achuvaenchia-adeáguafresquinha.

Então, pousou no meu ombro um passarinho. Pela crista vermelha e amarela, as penas, o peitodouradoeobicotãopontiagudo,pareciaumkirigueti.Masera,talvez,umkamagariniou,quemsabe,umsaankarite.Porque,quemjáviupassarinhofalando?"Vocêestáemumasituaçãomuitodifícil",disseavozinha estridente dele. "Se se solta, o jacaré o descobrirá.Os olhinhos tortos dele vêem longe. Eledeixarávocê tontocomumarabanada,pegarápelabarrigacomsuabocarradentudaeocomerá.Comossosecabelos,eleocomerá,porqueestácomtantafomecomovocê.Mas,vocêpodeficarpresoaessejacarétodasuavida?"

"Dequemeservequedigaoquejáseidesobra?",respondiaele."Nãopoderia,emvezdisso,medarumconselho?Diga-meoquefaçoparasairdaágua."

"Voando",piou,agitandoacristaauri-rubra."Nãoháoutrojeito,Tasurinchi.Comoseulourinhofeznamargemou,assim,comoeu."E,dandoumpulinho,fazendocírculos,desapareceu.

Por acaso é tão fácil voar?Os seripigaris e osmachikanaris voam, namareada.Mas eles têm asabedoria;oscozimentos,deusinhosediabinhosajudam-nos.Eu,quetenhoeu?Ascoisasquemecontamequeeuconto,nadamais.Isso,talvez,nãofezaindaninguémvoar.Estavaamaldiçoandookamagarinivestidodekiriguetiquandosentialgoarranharasoladospés.

Haviaumagarçanorabodojacaré.Visuascompridaspatasrosadas,viseubicotorcido.Escarvavaemmeuspés,buscandovermesoupensandotalvezquefossecomida.Esfomeadatambémelaestava.Pormaismedoquesentisse,veiooriso.Nãopudemeconter,então.Comeceiarir.Assimcomovocês,agoraeuria.Torcendo-meemeretorcendodegargalhadas.Igualzinhoavocê,Tasurinchi.Eojacaréacordou,então. Ali mesmo notou que nas suas costas aconteciam coisas que não via nem entendia. Abriu a

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bocarra, roncou, rabeou raivoso e eu, sem saber o que fazia, já estava agarrado à garça. Como ummacaquinhodamacaca,comoumrecém-nascidodamãequeestálhedandodemamar.Assustadacomasrabanadas, a garça tentava ir embora, voando.Mas, como não podia, pois eu estava agarrado a ela,guinchava.Seusguinchosassustavamaindamaisojacaré,etambémamim.Ostrêsberrávamos,parece.Erasóguinchoeberro,qualdostrêsfaziamaisbarulho?

E,derepente,vi,maisembaixo,afastando-se,ojacaré,orio,alama,eumventofortíssimomalmedeixavarespirar.Aíestavaeu.Sim,noar,láemcima.AíiaTasurinchi,ofalador,voando.Agarçavoavaeeu,penduradoaseupescoço,minhaspernasenroscadasnaspatasdela,também.Láembaixovia-seaterra,amanhecendo.Brilhavadeáguaportodasaspartes.Aquelasmanchinhasescurasseriamasárvores;aquelas serpentes, os rios. Faziamais frio que nunca.Tínhamos saído da terra? Isto devia ser, então,Menkoripatsa,omundodasnuvens.Nãoapareceuseurio?OndeestavaoManaironchaari,deáguasdealgodão?Eraverdadequeestavavoando?Agarçateriacrescidoparapodermesustentar.Outalvezeuteriametornadodotamanhodeumrato.Quemsabecomoseria?Elavoava,tranqüila,mexendoasasas,deixando-se levar pelo vento. Sem que sentissemeu peso, talvez. Fechei os olhos para não ver quãolongetinhaficadoaterra.Tãofundo,tãoembaixo.Sentindotristezaporela,talvez.Quandoosabri,visuasasasbrancas,debeirasrosadas,eoadejarcompassado.Ocalorzinhodesuaspenasmedefendiacontraofrio.Elaexpectoravadequandoemquando,esticandoopescoço,levantandoobico,comoquefalando consigo mesma. Este era o Menkoripatsa, então. Até este mundo subiam os seripigaris nasmareadas; entre estas nuvens consultavam com os deusinhos saankarites sobre os danos e ascomplicaçõesdosmausespíritos.Comoteriaqueridoverumseripigariali,flutuando."Ajude-me,tire-medesteaperto,Tasurinchi",dizendo-lhe.Porque,aliemcima,voandoentreasnuvens,nãoestavaaindapiorquemontadosobreumjacaré?

Quemsabequantotempoestivevoandocomagarça?Eagora,Tasurinchi?Nãoresistirámuito.Osbraços e as pernas já estão ficando cansados. Você se soltará, seu corpo, no ar, irá se desfazendo equandochegaràterraseráágua.Tinhaparadodechover.Osolestavaselevantando.Issomedeuânimos.Força, Tasurinchi! Dei chutes, puxões, cabeçadas e até mordi a garça para obrigá-la a descer. Nãoentendia,ela.Assustada,jánãoexpectorava;começouaguinchar,bicandoaquieali.Fazendopiruetas,assim,assim,paramesoltar.Quasemevencenaforça,então.Váriasvezesesteveapontodeselivrardemim.Mas,derepente,eupercebiquequandoapertavaaasadela,caíamos,comose tropeçassenoar.Issomesalvou,talvez.Comasforçasquemerestavam,enredeimeuspésemumadesuasasasparando-a.

Aquela asa não pôde adejar, quase. Força, Tasurinchi! Aconteceu o que eu queria, então.Movimentando só a outra, por mais que o fizesse rapidinho, rapidinho, não voava mais como antes.Cansou-se, começou a descer. Descendo, descendo, entre guinchos; desesperada, quem sabe. Eu, emtroca,feliz.Aterraaproximavá-se.Mais,mais.Quesortevocêtem,Tasurinchi.Aíestá,agora.Quando

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roceinacopadasárvores,soltei-me.Caindo,caindo,viagarça.Tagarelando,adejandofelizoutravezcom suas duas asas, elevando-se. Ia repicando entre os galhos, quebrava-os, descascava os troncos esentiaqueestavamequebrandotambém.Tentavameseguraremalgumacoisa,comasmãos,comospés."Quesorte têmosmacacos, se tivesseumraboparamependurar",pensando.As folhas,os ramos,oscipós,astrepadeiras,asteiasdearanha,iriammeparandonaqueda,talvez.Quandomeestateleinochãoogolpenãomematou,acho.Quealegria,sentindoa terrasobomeucorpoEramacia,morna.Úmida,também.Ehé,aquiestou,cheguei.Esteémeumundo.Estaéminhacasa.Omelhorquemeaconteceuéviveraqui,nestaterra,nãonaágua,nãonoar.

Quandoabriosolhos,aíestavaTasurinchi,oseripigari,olhando-me."Seulourinhooesperoumuitotempo", disse-me. E aí estava ele, resmungando. "Como sabe que é o meu?", zombei. "Há muitospapagaios na selva." "Este se parece com você, ora", respondeu-me. Era o meu lourinho, sim.Tagarelava,contentepormever."Vocêdormiunãoseiquantasluas",contou-meoseripigari.

"Aconteceram-memuitascoisasnestaviagem,vindoparavervocê,Tasurinchi.Foidifícilchegaratéaqui.Nuncapoderiaterchegado,nãofosseporumjacaré,umkiriguetieumagarça.Vamosversevocêmeexplicacomoissofoipossível."

"Oquesalvouvocêfoinãoterraivadurantetodaaaventura",comentouele,depoisquelheconteioqueacabodecontaravocês.Eassimdeveser,então.Araivaéumdesarranjodomundo,parece.Seoshomens não tivessem raiva, a vida seria melhor do que é. "Ela é culpada de que haja cometas —kachiborérine—nocéu",garantiu-me."Comseusrabosdefogoesuascorridas,elessãoumaameaçadeconfusãoparaosquatromundosdoUniverso."

EstaéahistóriadeKachiborérine.

Issoeraantes.

Ocometaeraummachiguenga,noprincípio. Joveme sereno.Andava.Contenteestaria.Amulherdelemorrera,deixando-lheumfilho,quecresceusadioe forte.Eleocrioue tomouumamulhernova,irmãmenordaquetinhaperdido.Umdia,quandoretornavadepescarboquichicos,encontrouojovemmontadosobresuasegundaesposa.Osdoisestavamofegantes,bemcontentes.Kachiborérineafastou-sedacabana,preocupado."Tenhoqueconseguirumamulherparameufilho",pensando."Necessitadeumaesposa,então."

Foiconsultaroseripigari.Estefaloucomosaankariteeregressou:"Oúnicolugarondevocêpodeconseguirumaesposaparaseufilhoénaregiãoondevivemoschonchoites",dizendo-lhe."Mas, tenhacuidado,jásabeporquê."

Kachiborérine foi lá, sabendomuitobemqueos chonchoites afiamosdentes com facas e comemcarnehumana.Logoqueentrouno territóriodeles, foi sóatravessaro lagoondecomeça, sentiuqueoengolia a terra. Viu tudo escuro. "Caí em uma tseibarintsi", pensou. Sim, ali estava, em um buraco

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disfarçado no chão com galhos e folhas e lanças para que nelas se enfiem o javali e a anta. Oschonchoites tiraram-nodali ferido e amedrontado.Tinhammáscaras de diabos quedeixavamver suasfacesesfomeadas.Estavamcontentes,cheirando-oeolambendo.Portodasasparteseleslhepassavamosnarizeseaslínguas.Semmaisnemmenos,tiraramdeleosintestinos,comoaumpeixe.Enoatoelesos puseram para assar sobre pedras quentes. Enquanto os chonchoites, aturdidos, felizes, comiam astripasdele,apelesemivaziadeKachiborérinefugiueatravessouolago.

Naviagemdevoltaàcasa,preparoucozimentodetabaco.Tambémeraseripigari,talvez.Amareadaofezsaberquesuamulherestavaesquentandoumapoçãocomvenenodecumo,paramatá-lo.Semsedeixaraindadominarpelaraiva,Kachiborérinemandouaelaummensageiro,aconselhando-a."Porquequermatarseumarido?",dizendo.

"Nãofaçaisso.Sofreumuito.Emvezdisso,prepare-lheumcozimentoparareporosintestinosqueoschonchoitescomeram."Elaescutavasemdizernada,olhandodeladoojovemqueagoraeramaridodela.Contentesestavamosdoisvivendojuntos.

Poucodepois,Kachiborérinechegouasuacasa.Cansadodetantoviajar;tristeporseufracasso.Amulherpassouaeleumavasilha.Olíquidoamareladopareciamasatomaserachichademilho.Soprandoa espuminha da superfície, ele bebeu, ansioso.Mas o líquido saiu de seu corpo, que era pura pele,misturadocomjorrosdesangue.Chorando,Kachiborérinecompreendeuqueestavavazio;chorando,queeraumhomemsemtripasnemcoração.

Então,teveraiva.

Choveu,houverelâmpagos.Todososdiabossairiamàselvaparadançar.Assustada,amulhersaiucorrendo.Nadireçãodachácara,morroacima,tropeçandoelacorria.Eláocultou-senotroncodeumaárvorequeomaridotinhaescavadoparafazerumacanoa.Kachiborérineprocurava-a,gritandoraivoso:"Vou despedaçá-la." Perguntava pelo paradeiro dela àsmandiocas domandiocal e, como não sabiamresponder-lhe,eleasarrancavaaospuxões.Perguntavaàmaguna,aofloripôndio:nãosabemos.Nemasplantas nem as árvores diziam-lhe o paradeiro dela.Então, com seu facão ele as cortava e depois asesmigalhava.Nofundodaselva,bebendomasato,Kientibakoridançava,feliz.

Porfim,tontodeprocurar,cegodetantaraiva,Kachiborérinevoltouparacasa.Pegouumpedaçodebambu, esmagou uma de suas pontas, empapou-a bem com resina da árvore de ojeé e lhe pôs fogo.Quandoachamaaumentou,pegouobambupelaoutrapontaeoenfiounoânus,bemdentro.Olhavaochão, olhava a selva, pulando e rugindo. Por fim, afogado de raiva, apontando para o céu, exclamou:"Para onde hei de ir, então, que não seja nestemundomaldito? Lá para cima irei, lá estareimelhor,talvez."Jáfeitodiabo,começouasubir,asubir.E,desdeentão,láestá.Desdeentãoéessequevemos,dequandoemquando,noInkite:Kachiborérine,ocometa.Nãosevêacaradele.Nãosevêocorpodele.Sóobambuchamejantequelevanoânus.Deveandarsemprerabiando,talvez.

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***

"Aindabemquenãoseencontroucomele,quandovoavaagarradoàgarça",zomboudemimTasurinchi,oseripigari."Eleoteriaqueimadocomorabo,então."Segundoele,Kachiborérinedesceaestemundo,àsvezes,para recolher cadáveresdemachiguengas,dasmargensdos rios.Carrega-osnas costas eoslevaparacima,paralá.Eostransformaemestrelasfurtivas,dizem.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Estávamosconversandonaquelaregiãoondehátantosvaga-lumes.TinhaanoitecidoenquantofalavacomTasurinchi,oseripigari.Aselvaseacendiapor lá,apagava-seporaqui,acendia-semaisadiante.Piscando-nos,parecia."Nãoseicomopodevivernestelugar,Tasurinchi.Eunãoviveriaaqui.Indodeumladoaoutro,vimuitascoisasentreoshomensqueandam.Maseugarantoavocêqueemnenhumapartevitantosvaga-lumes.Todasasárvoresestãofaiscando.Nãoseráanúnciodedesgraça?Cadavezquevenhovisitarvocê,tremolembrando-medestesvaga-lumes.Parecequeestãonosolhando,ouvindooquedigoavocê."

"Claroqueestãonosolhando",garantiu-meoseripigari."Claroqueouvemcomatençãooquevocêfala.Assimcomoeu,esperamsuavinda.Esealegramvendo-ochegareouvindosuashistórias.Têmboamemória, diferente do que acontece comigo. Eu estou perdendo a sabedoria aomesmo tempo que asforças.Elesseconservamjovens,parece.Quandovocêsevai,elesmeentretêm,recordando-medoqueouviramvocêcontar."

"Vocêestázombandodemim,Tasurinchi?Tenhovisitadomuitosseripigarisedetodostenhoouvidoalgoextraordinário.Masnuncasoubedenenhumqueconversassecomvaga-lumes."

"Poisaquiestávendoum",disse-meTasurinchi,rindocomaminhasurpresa."Paraouvir,éprecisosaber escutar. Eu aprendi. Se não, teria deixado de andar há tempo.Lembre-se, eu tinha uma família.Todos se foram, mortos pelo dano, o rio, o raio e o tigre. Como pensa que pude resistir a tantasdesgraças? Escutando, falador. Aqui, neste ponto da selva, nunca vem ninguém.Muito de quando emquando, algummachiguenga das quebradas lá de baixo, procurando ajuda.Vem, vai embora e volto aficarsó.Ninguémvirámemataraqui;nãoháviracocha,mashco,punarunaoudiaboquesubaestemorro.Masavidadeumhomemtãosóacabarápido.

"Quepodiafazer?Rabiar?Desesperar-me?Iràmargemdorioecravaremmimmesmoumaespinhadechambira?Fiqueipensandoemelembreidosvaga-lumes.Emmimtambémdavamcertainquietação,comoavocê.Porquehaviatantos,então?Porqueemnenhumaoutrapartedaselvaelessereuniamcomonestelugar?Namareadaeuaveriguei.Pergunteiaoespíritodeumsaankarite,lánotetodeminhacasa."Nãoseráporvocê?",respondeu-me."Nãoterãovindoparaacompanharvocê?Umhomemprecisadesua família, para andar."Deixou-mepensando, então.E, então, falei comeles.Eume sentia estranho,

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falandoaumas luzesqueseapagavameacendiam,semmeresponder."Soubequeestãoaquiparamefazercompanhia.Odeusinhomeexplicou.Burrofuipornãoadivinharantes.Agradeçoavocêsporteremvindo,eestejamaminhavolta."Passouumanoite,outranoiteeoutra.Cadavezqueaselvaescureciaeseenchiadeluzinhas,eumepurificavacomágua,preparavaotabaco,oscozimentos,efalavacomeles,cantando. Toda a noite cantava para eles. E, ainda que não me respondessem, eu os escutava comatenção. Com respeito. Logo fiquei certo de que me entendiam. "Compreendo, compreendo. Estãoprovando a paciência de Tasurinchi." Calado, imóvel, sereno, fechando os olhos, esperando. "Eu osescutava,semouvir.Porfim,umanoitedepoisdemuitas,aconteceu.Aí,agora.Unsruídosdiferentesdosruídosda selvaquandoanoitece.Estáouvindo?Murmúrios, sussurros, queixas.Umacascatadevozesbaixinhas. Redemoinhos de vozes, vozes que se atropelam e se atravessam, vozes quemal se podemouvir.Escute,escute,falador.Sempreéassim,noprincípio.Comoumaconfusãodevozes.Depois,jáseentende.Tinhaganhoaconfiançadeles,talvez.Logo,pudemosconversar.Eagorasãomeusparentes."

Assim foi, parece. Acostumaram-se eles e Tasurinchi. Agora passam as noites conversando. Oseripigari conta-lhes dos homens que andam e eles lhe contam sua história de sempre. Não estãocontentes, os vaga-lumes. Antes, estariam. Perderam a felicidade há muitas luas, embora continuemfaiscando.Porquetodososvaga-lumesdaquisãomachos.Essaéadesgraçadeles,então.Suasfêmeassãoasluzesládecima.Sim,asestrelasdoInkite.Quefazemelasnomundoládecimaeelesneste?Essaéahistóriaquecontam,segundoTasurinchi.Olhem,olhem-nas.Luzinhasqueaparecemedesaparecem?Suaspalavras,talvez.

Agora mesmo, aqui, à nossa volta, devem estar contando como perderam as mulheres. Não secansamdefalarnisso,dizele.VivemrecordandosuadesgraçaeamaldiçoandoKashiri,alua.

Estaéahistóriadosvaga-lumes.

Issoeraantes.

Nesse tempo formavamuma só família, osmachos tinham suas fêmeas e as fêmeas seusmachos.Haviapaz,comidaeosqueseiamvoltavamsopradosporTasurinchi.Nós,osmachiguengas,aindanãocomeçávamosaandar.Aluaviviaentrenós,casadocomumamachiguenga.Insaciável,sóqueriaestaremcimadela.Emprenhou-aenasceuosol.Kashirimontava-amaisemais.Oseripigariadvertiu-o:"Umdanoocorrerá,nestemundoenosdecima,secontinuaassim.Deixedescansarsuamulher,nãosejatãoesfomeado."Kashirinão lhedeu importância,masosmachiguengasassustaram-se,ora.Osolperderiasualuz,talvez.Aterraficariaàsescuras,fria;avidairiadesaparecendo,quemsabe.Eassimfoi.Houvetranstornosterríveis,derepente.Omundotremeu,osriostransbordaram,doGranPongoemergiramseresmonstruososquedevastaramasregiões.Oshomensqueandam,confundidos,mal-aconselhados,estavamvivendoànoite,fugidosdodia,paraagradaraKashiri.Porquealua,invejosadofilho,detestavaosol.Íamostodosmorrer?Parecia.Então,Tasurinchisoprou.Soproudenovo.Continuousoprando.NãomatouKashirimasapagou-o,deixando-ocoma luz fracaqueagora tem.Eodespachoudevoltaa Inkite,de

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ondetinhadescidoàprocurademulher.Assimcomeçariadepois.

Masparaquealuanãosesentissesolitária,"Leveumacompanhia,aquequiser",disse-lheseupai,o sol. Kashiri, então, apontou às fêmeas destes vaga-lumes. Porque brilhavam com luz própria?Recordariamaluzqueperdeu,talvez.AregiãodoInkiteparaondeopaidosolfoiexpulso,seráanoite.As estrelas de lá em cima, as fêmeas destes vaga-lumes. Ali estarão elas, lá em cima. Deixando-semontarpelalua,machoinsaciável,devemestar.Eeles,aqui,semsuasmulheres,esperando-as.

Seráporissoquequandosevêumaestrelacaindo,rolando,osvaga-lumesenlouquecem?Porissochocam-seunscomosoutros,estatelam-secontraasárvores,revoluteando?

"Éumadenossasmulheres",pensarão."EscapoudeKashiri",dizendo.Todososmachossonhando:"Aqueestáfugindo,aqueestávindo,éminhamulher."

Assim começaria depois, talvez. O sol vive sozinho, também; ilumina e dá calor. Por culpa deKashirihouvenoite.Osolgostariadeterfamília,àsvezes.Estarpertodopai,pormalvadoquetenhasido. E irá buscá-lo. Então, cai, uma vez, outra vez. Essas são as quedas do sol, parece. Por issocomeçamosaandar.Parapôrordemnomundoeevitaraconfusão.Tasurinchi,o seripigari, estábem.Contente.Andando.Rodeadodevaga-lumes,está.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Muitoaprendoemcadaviagem,escutando.Porqueoshomenspodemplantarecolheramandiocanomandiocalenãoasmulheres?Porqueasmulherespodemplantarearrancaroalgodãonachácaraenãooshomens?Atéque,umavez,lápelorioPoguintinari,escutandoosmachiguengas,euentendi."Porqueamandioca émacho e o algodão é fêmea, Tasurinchi.As plantas gostam de tratar com seu igual, ora."Fêmeacomfêmea,machocommacho.Essaéasabedoria,parece.Verdade,lourinho?Porqueamulherqueperdeuomaridopodepescare,emcompensação,nãopodecaçarsemqueperigueomundo?Quandoflecha um animal, a mãe das coisas sofre, dizem. Sofrerá, talvez. Nas proibições e nos perigos eupensava enquanto vinha. "Não temmedo de viajar sozinho, falador?", perguntam-me. "Acompanhe-secomalguém,émelhor."Estouacompanhado,àsvezes.Sealguémvainaminhadireção,andamosjuntos.Sevejoumafamíliaandando,andocomela.Masnemsempreéfácilacharcompanhia.

"Nãotemmedo,falador?"Nãotinha,antes,porquenãosabia.Agoratenho.Agoraseiquepoderiame encontrar, em uma quebrada, em um canal, com um kamagarini ou com um dos monstros deKientibakori. Que faria então? Não sei. Às vezes, quando já preparei o refúgio, finquei os paus namargemdorio,pusemcimaasfolhasdepalmeiras,começaachover.Eseapareceodiabinho,oquefará?,penso.Epassoanoiteacordado.Atéagoranãoapareceu.Quemsabeaservasdeminhabolsaoespantem; quem sabe o colar que o seripigari pendurou emmim, dizendo: "Protegerá você contra osdemônioseasmanhasdomachikanari."Nuncaotireidesdeentão.Aquelequevêumkamagariniperdidonaselva,alimesmomorre,garantem.Nãodevotervistonenhumainda.Talvez.

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Tambémnãoébomviajarsópelaselvaporcausadasproibiçõesdecaça,explicou-meoseripigari."Como fará quando caçar ummacaco ou flechar uma peruazinha?", dizendo. "Quem há de recolher ocadáver, então? Se tocar no animal quematou, você se corromperá." É perigoso, parece. Escutando,aprendioquesedevefazer.Limparosangueprimeiro,comervasouágua."Limpebemosangueepodetocarnele.Porqueacorrupçãonãoestánacarnenemnosossos,masnosanguedoquemorreu."Assimofaçoeaquiestou.Falando.Andando.

Graças a Tasurinchi, o seripigari dos vaga-lumes, nunca me aborreço quando estou viajando.Também não sinto tristeza, "Quantas luas faltarão ainda para encontrar o primeiro homem que anda",pensando. Antes, fico a escutar. E aprendo. Escuto com atenção, como ele fazia. Com cuidado, comrespeito,escutando.Umpoucodepoisaterrasesoltaafalar.Talcomonamareada,solta-sealínguadetodos e de todas.As coisas emque a gentemenos acreditaria, falam.Aí estão: falando.Os ossos, asespinhas.Ospedregumos,oscipós.Osarbustoseasfolhasqueestãobrotando.Oescorpião.Afiladeformigasquearrastaamosca-varejeiraaoformigueiro.Aborboletacomarco-írisnasasas.Obeija-flor.Falaoratotrepadonogalhoefalamoscírculosdaágua.Quietinho,deitado,comosolhossemabrir,ofaladorestáescutando.Quetodosseesqueçamdemim,pensando.Umademinhasalmassevai,então.Evemmevisitaramãedealgoquemerodeia.Ouço,começoaouvir.Jáestouentendendo.Todostêmalgoquecontar.Issoé,quemsabe,oqueaprendiescutando.Oescaravelho,também.Apedrinhaquemalsevê,sobressaindo-sedobarro,também.Atéopiolhodocabeloqueagenteparteemdoiscomaunha,temumahistóriaacontar.Oxalárecordassetudooquevououvindo.Nãosecansariamdemeouvir,talvez.

Algumascoisassabemsuahistóriaeashistóriasdasdemais;outras,sóasua.Oquesabetodasashistórias terá a sabedoria, semdúvida.Dealguns animais eu aprendi ahistória.Todos foramhomens,antes.Nasceramfalando,ou,melhordizendo,dofalar.Apalavraexistiuantesqueeles.Depois,oqueapalavradizia.Ohomemfalavaeoqueiadizendo,aparecia.Issoeraantes.Agora,ofaladorfala,esóele.Osanimaiseascoisasjáexistem.Issofoidepois.

OprimeirofaladorseriaPachakamue,então.TasurinchitinhasopradoPareni.Eraaprimeiramulher.Banhou-senoGranPongoevestiuumablusabranca.Aíestava:Pareni.Existindo.Depois,Tasurinchisoprouo irmãodePareni:Pachakamue.Banhou-senoGranPongoevestiuumablusacordeareia.Aíestavaele:Pachakamue.Aqueleque,falando,nasceriatantosanimais.Semnotar,parece.Davá-lheumnome,pronunciavaapalavraeoshomenseasmulherestornavam-seoquePachakamuedizia.

Nãoquisfazê-lo.Mastinhaessepoder.EstaéahistóriadePachakamue,decujaspalavrasnasciamanimais,árvoreserochas.Issoeraantes.

Umavezfoivisitarsuairmã,Pareni.Quandocomeçavamatomarmasato,sentadosnasesteiras,elelheperguntouporseusfilhos."Estãobrincandolá,trepadosnaárvore",disseela."Cuidadoparaquenãoviremmacaquinhos", riuPachakamue.E, foi sódizer,queosque tinhamsidocrianças,agorapeludos,agoracomrabo,estremeceramodiadetantoberrar.Epresosdosgalhoscomseusrabos,balançavam-se,

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contentes.

Emoutravisitaàirmã,PachakamueperguntouaPareni:"Esuafilha?"Ajovemtinhatidooprimeirosangue e estava purificando-se, em um refúgio de folhas e bambus, nos fundos de sua casa. "Você amantémencerradacomoumasachavaca",comentouPachakamue."Quequerdizersachavaca?",exclamouPareni. Naquele instante escutaram ummugido e um escavar de patas na terra. E aí saiu, apavorada,farejandooar,rumoàselva."Issohádequererdizer,então",murmurouPachakamue,apontando-a.

Então Pareni e seumaridoYagontoro assustaram-se com as palavras que dizia, Pachakamue nãodesarrumava o mundo? Era prudente matá-lo. Que danos aconteceriam se continuasse falando!Convidaram-noatomarmasato.Quandoficoubêbado,commanhaslevaram-noàbeiradeumbarranco."Olhe,olhe",disseram-lhe.Eleolhoueentãooempurraram.Pachakamuerolou.Aochegaraofundo,nemsequertinhaacordado.Continuavadormindoearrotando,ablusavomitadademasato.

Aoabrirosolhossurpreendeu-semuito.Pareniespiava-odabeira."Ajude-measairdaqui,ora!",pediu-lhe."Transforme-seemumanimaleescaleoprecipício",zombouela."Vocênãofazissocomosmachiguengas?"Seguindooconselhodela,Pachakamuepronunciouapalavra"Sankori".Eaímesmoelese transformou em formiga sankori, a que constrói galerias suspensas nos troncos e nas rochas.Mas,desta vez, as construções da formiguinha tinham algum mistério; desfaziam-se cada vez que seaproximavamdotopodobarranco."Quefaçoagora?",gemeuofalador,desesperado.Pareniaconselhou-o:"Falando,façacresceralgoentreaspedras.Esubaporaí."Pachakamuedisse"Carriço"eumcarriçobrotouecresceu.Mascadavezqueeleseiçava,ocarriçosepartiaemdoiseofaladorrolavaaofundodaquebrada.

Então,Pachakamuesaiuemoutradireção, seguindoacurvadoprecipício.Estavacheiode raiva."Heide causardesgraças", dizendo.Yagontoroperseguiu-oparamatá-lo.Foiumaperseguiçãodifícil,longa.PassavamasluaseorastrodePachakamueseperdia.Umamanhã,Yagontoroencontrouumpédemilho.Namareada, soubeque aplanta tinha crescidodeunsgrãosdemilho torradoquePachakamuelevavanabolsa;teriamcaídoaochãosemqueeleonotasse.Jáoestavaalcançando,porfim.E,defato,nãomuito depois ele o viu. Pachakamue represava um rio, fechado-o comárvores e pedras que faziarolar.Queriadesviá-loparainundarumcasarioeafogarosmachiguengas.Peidava,cheioderaiva.Lánafloresta,Kientibakori e seus kamagarinis estariamdançando, bêbados de felicidade.Yagontoro, então,falou-lhe.Eofezreconsiderar,convencendo-o,parece.Convidou-oavoltaremjuntosatéPareni.Mas,poucodepoisdeiniciadaaviagem,matou-o.

Houveumatormentaqueenfureceuosriosearrancoumuitasárvorespelaraiz.Choveuacântaros,comtrovões.Yagontoro,impassível,continuavacortandoacabeçadocadáverdePachakamue.Depois,transpassou a cabeça com dois espinhos de chonta, um vertical, outro horizontal, e enterrou-a em umlugarsecreto.Esqueceu-se,porém,de lhecortara língua,eesseerronósopagamosainda.Atéqueacortemos,continuaremosemperigo,parece.Porqueaquelalínguaàsvezesfala,desarrumandoascoisas.

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Ondeestaráenterradaessacabeça,nãosesabe.Olugarfedeapeixepodre,dizem.Eassamambaiasdasproximidadesfumegamsempre,comoumafogueiraapagando-se.

Yagontoro, depois de decapitar Pachakamue dispôs-se a retornar para junto de Pareni. Estavacontente,acreditavatersalvoestemundodadesordem.Agoratodosviverãotranqüilos,pensaria.Mas,compoucodeestarandando,sentiu-sepesado.Eporque,alémdisso,tãolerdo?Assustado,notouqueseuspéserampatas;asmãos,antenas;osbraços,asas.Emvezdehomemqueanda,erajácarachupa[12],comoseunomeindica.Debaixodomato,engasgando-secomterra,atravésdasduassetas,a línguadePachakamueteriadito:"Yagontoro."EYagontorotinhavirado,então,yagontoro.

Mortoedecapitado,Pachakamuecontinuavatransformandoascoisasparaqueseparecessemasuaspalavras.Queseriadestemundo,assim?Porentão,Parenitinhaoutromaridoeestavaandando,contente.Uma manhã, enquanto ela tecia uma blusa, laçando e entrelaçando as fibras do algodão, o maridoaproximou-separalamberosuorquelhecorriapelascostas."Vocêpareceumaabelhinhachupadoradeflores",disseumavozdedentrodaterra.Elenãopôdemaisescutá-la,porquerevoluteavaezumbia,levenoar,abelhafeliz.

Pareni casou-se pouco depois comTzonkiri, que ainda era homem.Ele notou que suamulher lhedava de comer, cada vez que voltava de desmaiar o mandiocal, uns peixes desconhecidos: osboquichicos.Dequerio,dequelagoasaíam?Parenijamaisprovavapedaçodeles.Tzonkiridesconfiouquealgograveacontecia.Emvezdeiràchácara,escondeu-senomatoeespiou.Assustou-semuitocomo, que viu: os boquichicos saíam de entre as pernas de Pareni. Ela os paria, como a filhos. Tzonkiriencheu-sederaiva.Eatirou-sesobreelaparamatá-la.Masnãopôdefazê-lo,porqueumavozremota,subidadaterra,disseantesonomedele.Eacasoosbeija-florespodemmatarumamulher?"Nuncamaiscomeráboquichicos,zombouPareni.Agoraandarádefloremflor,sorvendopólen."Tzonkirié,desdeentão,oqueé.

Pareninãoquismaisteroutromarido.Acompanhadadesuafilha,saiuaandar.Subiuemumacanoaeremontouosrios;subiuquebradas,atravessouflorestasemaranhadas.Depoisdemuitasluas,chegaramaoCerrodoSal.Ali,ambasescutaram,pronunciadaslonge,longe,aspalavrasdacabeçaenterradaqueaspetrificaram.Agorasãoduasrochasenormes,cinzentas,cobertasdemusgo.Aindaestarão lá,quemsabe.À sombra delas sentavam-se, para tomarmasato e conversar, osmachiguengas, parece.Quandosubiamparaapanharosal.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

***

Tasurinchi,oervateiro,oqueviviapelorioTikompinía,estáandando.Aservasquelevoemminhabolsafoi ele que me deu. Para que serve cada folhinha e cada molho, explicando-me. Esta, a das beiras

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queimadas,fechaonarizdotigre,quenãopoderáfarejarohomemqueanda.Estaoutra,aamarelenta,protegecontraavíbora.Sãotantasquemeconfundem.Cadaumaserveparaumacoisadiferente.Contraodanoeosforasteiros.Paraqueospeixesdolagoentremnarede.Paraqueaflechanãosedesviedoalvo.E,esta,paranãotropeçarnemcairdobarranco.

Fuivisitaroervateirosabendoqueessaregiãoencheu-sedeviracochas.Éverdade;aíestãoainda.Ehámuitos.Quandome aproximava, vi botes no rio, roncando, de sulcada e de descida, repletos deviracochas.Nosbancosdeareia,deondesaíamastartarugasànoiteparaporemascriaseondeiamoshomensparavirá-Ias,vivemagoraosviracochas.E,também,ondeficavaacasadoervateiro.Masestesnãoforamparalápelastartarugasnemparafazerchácarasoucortarárvores,parece.Masparalevaraspedrinhaseaareiadorio.Procurandoouro,parece.Nãomeaproximei,nãomedeixeiver.Mas,emboradistante,noteiqueerammuitos.Fizeramsuascasas.Estãoaliparaficar,quemsabe.

NãoencontreirastrodeTasurinchi,oervateiro,nemdosparentesdelenemdenenhumhomemqueandapelosarredores."Vocêfezumaviageminútil",pensei.Estavainquietocomtantosviracochasperto.Esetopavacomalgumdeles,oqueaconteceria?Porissomeescondi,atéquefossenoite,paraafastar-medeTikompinía.

Subiemumaárvoree,ocultoentreosramos,fiqueiespiando-os.Nasmargensdoriotiravamterraepedras,commãos,pauseenxadas.Eascoavamemumaspeneirasgrandes,comosecoaamandiocaparaomasato.Moíamtambémaspedrinhasemumabateia.Algunsentravamnaflorestaparacaçareseouviaostirosquedavam.Oruídoestremeciaasárvoreseospássarospiandoespantavam-se.Comtantoruído,logonãorestaráumanimalnessaregião.Todosseirão,comoTasurinchi,oervateiro.

Umavezqueescureceu,descidaárvoreeafastei-merápido.Quandoestavabastantelonge,fizumrefúgiodefolhasdeungurabi,edormi.Aodespertar,vi,acocorado,umdosfilhosdoervateiro."Quefazaqui?",pergunteiaele."Esperandoqueacorde",disse-me.Tinhameseguidodesdeque,navéspera,viraeumeaproximardorioondeestãoosviracochas.

Afamíliadelemudou-se,atrêsluasdecaminho,águasacimadeumcanaldoTikompinía.Fizemosaviagemdevagar, para não encontrar comos forasteiros.A floresta, lá, é difícil de atravessar.Não hácaminho.Asárvoresestãojuntinhaseseenredamumasnasoutras,brigando.Agentecansaosbraçosdetanto cortar ramos e mato que se fecham como quem diz, "Você não há de passar". Estava tudoenlameado.Nasladeiras,escorregadiascomachuva,afundávamoserolávamos.Rindo,pornosvertãosujosearranhados.Porfim,chegamos.Aíestava,então,Tasurinchi."Vocêestáaí?""Ehé,aquiestou."Amulherdeleestendeuesteirasparaquesentássemos.Comemosmandiocaebebemosmasato.

"Você andou tão para dentro que aqui, sim, não chegarão nunca os viracochas", disse-lhe."Chegarão", respondeu-me. "Pode ser que tardem, mas aparecerão também por aqui." Você tem queaprenderisso,Tasurinchi.Eleschegamsempreondeestamos.Temsidoassimdesdeoprincípio.Quantas

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vezestivequeiremboraporquechegavam?Desdeantesdenascer,parece.Eassimseráquandomeváevolte,seéqueminhaalmanãoficanosmundosdelá.Sempreestamosindoporquealguémestávindo.Em quantos lugares vivi? Quem sabe?, mas foram muitos. "Vamos procurar um lugar tão difícil, tãoemaranhado,aoqualnuncachegarão",dizendo."Ou,sechegarem,noqualnuncahãodequererficar."Eeles semprechegavame semprequeriam ficar.Écoisa sabida.Nãoháengano.Virãoeeu irei. Issoémau?bom,euacho.Seránossodestino,Tasurinchi.Nãosomososqueandam?Seráprecisoagradeceraos mashcos e aos punarunas, então. Também aos viracochas. Invadem os lugares onde vivemos?Obrigam-nosacumprirnossaobrigação.Semelesnoscorromperíamos.Osolcairia, talvez.Omundoseriaescuridão;aterra,deKashiri.Nãohaveriahomensesimmuitofrio."

Tasurinchi,oervateiro,falacomoumfalador.

Otempopior foiodasangriadeárvores,segundoele.Nãooviveu,masopaieasmães,sim.Eouviutantashistóriasqueécomoseotivessevivido."Tantasqueàsvezesmeparecequeeutambémferios troncos para tirar deles o leite, e que tambémme caçaram como a um sajino parame levarem aoacampamento."Quando acontecemcoisas assim, nãodesaparecem.Permanecem, emalgumdos quatromundos, e o seripigari pode ir vê-las namareada.Os que as vêem, retornarão perturbados, os dentesbatendodeasco.Omedoeratãograndeetantaaconfusãoqueseperdeuconfiança.Ninguémacreditavaemninguém,osfilhosdesconfiandoqueospaisiamcaçá-loseospaisqueosfilhos,aomenordescuido,oslevariamamarradosaosacampamentos."Nãoprecisarãodemagiapararoubaremaspessoasquelhefazemfalta.Comesperteza,nãomais,conseguiramtodaaquequeriam.Osviracochasdevemsersábios",disseTasurinchi,admirado.

Ao princípio, eles percorriam a terra caçando gente. Entravam nos casarios, atiravam com suasescopetas.Seuscãesladravamemordiam:eramcaçadores,também.Assustadoscomoruído,oshomensqueandamespantavam-se,comoospássarosquevinorio.Maselesnãopodiamvoar.Entãooslaçavamnas casas; laçavam-nos nos caminhos e nas canoas se estavam fugindo pelo rio. Força, porra! Força,machiguenga!Levavamosquetinhammãosparatirarosanguedaárvore.Masnãoosrecém-nascidosouos velhos. "Estes não servem", dizendo.Levavam asmulheres também, para cuidaremdas chácaras efazerema comida. Força!Força!Amarrados pelos pescoços entravamnos acampamentos.Aí estavamtodos os que haviam caído. Força,machiguenga!Força, piro! Força, yaminahua!Força, ashaninka!Aíficavam,misturados. Serviam-lhes bem, parece. Estavam contentes os viracochas.Dos acampamentospoucos saíam. Depressa eles se iriam, tão enraivecidos ou tão tristes que suas almas não voltariam,talvez.

Opior,contaTasurinchi,oervateiro,foiquandonosacampamentoscomeçouafaltargenteportantosqueseiam.Força,porra!Jánãotinham,ora.Tinha-seacabado.Sempoderlevantarosbraços,morriam.Osviracochasficavamfuriosos."Quefaremossembraços?",dizendo."Quevamosfazer?"Mandavamosamarrados, então, para caçar mais gente. "Compre sua liberdade, dizendo-lhes. E presentes. Aí está

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comida.Aíestãoroupas.Aíestáescopeta,também.Ébomparavocê?"Todosachavamquesim,parece.Ao piro, aconselhando-o: "Cace uns quantos piros e pode voltar para casa, levando amulher e estespresentes. Tome o cachorro, para que o ajude." Estavam felizes, talvez.Desde que pudessem sair doacampamento,tornavam-secaçadoresdehomens.Igualqueasárvores,asfamíliascomeçaramasangrar.Todos caçavam todos. Com escopeta, com flecha, com armadilhas, com laço e faca. Força, porra! Eapareciamnosacampamentos:

"Aíestá,cacei-osparavocê.Medêminhamulher",dizendo."Medêminhaescopeta.Opresente.Agoravouembora."

Perdeu-seaconfiança,assim.Todoseraminimigosdetodos,então.Kientibakoriestavadançando,feliz?Tremeriaa terra?Osrios levariamascasas?Quemsabe."Todosaindavamosrir",diziameles,assustados. Tinham perdido o conhecimento também. "Fazendo com que nos corrompêssemos tanto,então", choravam. Haviamatanças cada dia. Os rios andariam vermelhos e as árvores salpicadas desangue,também.Asmulherespariamcriançasmortas;elesiamantesdenascer,nãoquerendoviverondetudoeradanoeconfusão.Muitoseramoshomensqueandam,antes;depois,poucos.Issoeraasangriadeárvores."Omundosetornoudesordem",enfureciam-se."Osolcaiu."

Ascoisasqueacontecerampodemvoltaraacontecer?Oervateirodizquesim."Estãoaíemalgumdos mundos, e, como as almas, podem regressar. Será nossa culpa se acontece, talvez." Melhor serprudenteeteramemóriaesperta.TrêsdosfilhosdeTasurinchi,oervateiro,jáseforamdesdequeviveláemcima.Aoverquese iamumatrásdooutro,pensou:"Estarávoltandoodanoquelevavafamíliainteiras?" Não pôde averiguar se as almas deles voltaram. "Como será, isso?", disse-me. Ainda nãoconhecebemolugaremqueviveenãosabeporqueocorremcertascoisas.Tudoéaindamisteriosoali,para ele. Mas há muitas ervas, também. Algumas, ele já conhecia; outras, não. Está aprendendo aconhecê-las. Ele as recolhe, passa muito tempo observando-as, comparando-as, cheirando-as, e, àsvezes,mete-asnaboca.Mastiga-asecospe,ouasengole."Estaserve",dizendo.

Ostrêsfilhosdeleforamdamesmamaneira.Acordandoaturdidos,tremendoesuando.Etãofracoscomosehouvessemestadobêbados.Nãopodiamsemanterempé.Tentavamandar,dançar,ecaíam.Nemsequerpodiamfalar,parece.Tasurinchi,quandoissoaconteceuaomaior,pensouqueeraumavisoparaquesefosse.Olugarnãodeviaserbomparaviver,talvez."Nãopudesaber",diz."Eraumdanodiferentedosoutros,nãohavia ervacontra isso."Maldadesdekamagarini, quemsabe.Essesdiabinhos sempresaemparafazerdanosquandochove.Kientibakoriosespiadabocadafloresta,rindo-se.Tinhahavidotrovões e caído muita água na véspera e é sabido que quando isso acontece há algum kamagariniaproximando-se.

Quando esse filho se foi, a família deTasurinchi subiu umpoucomais para cima, nomorro.Empoucotempocomeçouosegundofilhoatonteareacair.Igualqueoprimeiro,foi.Quandoestemorreu,novamentemudaramdelugar.Eentãoaconteceuamesmacoisaaoterceiro.Decidiunãoandarmais."Os

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queseforamvãoseencarregardenosprotegercontraokamagariniquequernostirardaqui",dizendo.Assimterásido,pois.Ninguémmaisvoltouaficartontoeacair,desdeentão.

"Isso temumaexplicação",dizoervateiro."Tudotem.Acaçadadehomensquandodasangriadeárvores,também.Masnãoéfácilaveriguá-la.Enemoseripigariaaveriguasempre.Quemsabeostrêsseforamparaconversar,lá,comasmãesdestelugar.Comtrêsmortosaqui,elasnãonosolharãocomointrusos.Somosdaqui,agora.Nãonosconhecemestasárvores,estespássaros?Nãonosconhecemaáguaeoardaqui?Talvezessasejaaexplicação.Desdequeseforam,nãotemossentidoinimizade.Comosenostivessemaceitado,aqui."

Estivemuitasluascomele.Poucofaltouparaqueficassevivendolá,pertodoervateiro.Ajudava-oa pôr armadilhas para as peruazinhas e ia com ele à lagoa, para pescar boquichicos. Trabalhei comTasurinchi roçando omato, onde vai fazer uma nova chácara para quando a que tem agora necessitedescansar. Nas tardes, falávamos. Enquanto as mulheres se matavam as lêndeas, fiavam, teciam asesteiraseasblusas,emastigavamecuspiamamandioca,preparandomasato,conversávamos.

Oervateirofaziacomqueeulhecontassesobreoshomensqueandam.Sobreosqueconheceueosquenuncaviu, também.Sobrevocês,conteiaele,comoavocêssobreele.Passavamas luaseeunãotinha vontade de ir embora. Estava acontecendo uma coisa que não tinhame acontecido antes. "Estácansadodeandar?",perguntou-me."Issoaconteceamuitos.Vocênãodevesepreocupar, falador.Seéassim,mudedecostumes.Fiqueemum lugar e crie família.Levanteumacasa, roceomato, cuidedachácara.Filhosterá.Deixedeandare,também,defalar.Aquinãopodeficar,emminhafamíliasomosmuitos.Maspodeirmaisparacima,desulcada,aduasoutrêsluasdeviagem.Háumaquebradaqueestáesperandovocê,acredito.Possoacompanhá-loatélá.Querumafamília?Tambémpossoajudá-lo,seéoquequer.Leveestamulher.Évelhaetranqüilaeoajudará,porquesabecozinharefiarcomopoucas.Ou,se preferir, aí está a menor de minhas filhas. Não poderá tocar nela ainda, porque não sangrou. Semontassenelaagora,algumadesgraçaocorreria,quemsabe.Mas,espereumpouco,eenquantoissoelairáaprendendoasersuamulher.Asmãesdelaaensinarão.Depoisquesangre,vocêmetraráumsajino,unspeixes,frutosdaterra,mostrando-mereconhecimentoerespeito.Éissooquequer,Tasurinchi?"

Estivepensandonapropostadele.Sentivontadedeaceitá-la.Atésonheiqueaceitariaemudavadevida.Estaquelevoéumaboavida,eusei.Oshomensqueandammerecebemcomalegria,medãodecomeremefazemfestas.Masvivoviajando,equantotempomaispodereifazê-lo?Asdistânciasentreasfamílias são cada vez maiores. Ultimamente penso muito, enquanto ando, que um dia as forças mefaltarão. Não é, lourinho? E eu ficarei aí, esgotado, em um caminho qualquer. Por onde não passaránenhummachiguenga, talvez.Minhaalmase iráemeucorpovaziocomeçaráaapodrecerenquantoospássarosobicameasformigasocaminham.Cresceráomatoentremeusossos,quemsabe.Acapivaracomerá a veste de minha alma, também. Quando a um homem lhe vem esse temor, deve mudar decostumes?AssimpensaTasurinchi,oervateiro.

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"Aceito sua proposta, sim", disse-lhe. Eleme acompanhou até o lugar que estavame esperando.Demoramosduasluasparachegar.Eraprecisosubiredescerporumasflorestasondeseperdiaorumo,e,aosubirumaladeira,doaltodeunsgalhos,unsmacacosshimbillos,quefaziamumberreiroterrível,nosatacaramcomcascas.

Na quebrada, encontramos um filhote de tigre enredado em um mato cheio de espinhos. "Essetigrinhoquerdizeralgumacoisa",preocupou-seoervateiro.Masnãosoubeaveriguaroquê.Porisso,emvezdematá-loearrancarsuapele,soltou-onafloresta."Nãoéesteumlugarparaviver?",perguntou-me,mostrando-o."Podeprepararomandiocalnaquelemorroalto.Lánãohaveránuncainundação.Hámuitasárvoresepoucomato,assimquea terradeveserboaeamandiocacrescerábem."Sim,eraum lugarondesepodiaviver.Embora,ànoite,fizessemaisfrioqueoquejamaissentiemoutrolugar."Antesquevocêsedecida,vamosverseháanimaisparacaçar",disseTasurinchi.Pusemosarmadilhas.Caíramumacapivaraeummajaz.Depois,deumabrigonacopadeumaárvore,flechamosumaperuakanari.Decidificaraliefazerminhacasa.

Mas antes de começar a derrubar árvores, apareceu o filho do ervateiro, omesmo que tinhameguiado até sua nova casa. "Aconteceu algo", dizendo.Regressamos.A velha que Tasurinchime dariacomomulherestavamorta.Tinhamoídobarbascoepreparadocozimento,murmurando:"Nãoqueroquetenhamraivademim,dizendo'Porcausadelaficamossemfalador'.Dirãoquefizastúcias,quelhedeiencantamentosparaquemetomassepormulher.Prefiroir."

Ajudei o ervateiro a queimar a casa, a blusa, as panelas, os colares e as demais coisas quepertenciamàmulher.Nósaenrolamosemváriasesteiraseapusemosemumabalsinhadepedaçosdechonta.Eaempurramosatéqueacorrentedorioalevou,águasabaixo.

"É um aviso que você deve aceitar ou recusar", disse-me Tasurinchi. "Se eu fosse você, não orecusaria.Cadahomemtemsuaobrigação,então.Paraqueandamos?Paraquehajaluzecalor,paraquetudoestejaempaz.Essaéaordemdomundo.Aquelequeconversoucomosvaga-lumesfazoquedevefazer.Eumudode lugarquandoaparecemosviracochas.Serámeudestino, talvez.Eoseu?Visitaraspessoas, falando-lhes. É perigoso desobedecer ao destino. Preste atenção, já se foi a que ia ser suamulher.Seeufossevocê,começariaaandaroquantoantes.Oquedecide?"

Decidi o queTasurinchi, o ervateiro,me aconselhou.E namanhã seguinte, quando o olho do solcomeçouaolharestemundodoInkite,jáestavaeuandando.Agorapensonaquelamachiguengaquesefoiparanãoserminhamulher.Agorafaloavocês.Amanhãcomoserá?

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

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VI

EM1981tive,seismeses,natelevisãoperuana,umprogramaintitulado"LaTorredeBabel".Odonodocanal,GenaroDelgado, umvelho amigo, embarcou-me nessa aventura fazendo brilhar diante demeusolhostrêsbugigangas;anecessidadedemelhoraroníveldosprogramas,que,nosdozeanosprecedentes,enquantoatelevisãopermaneciaestatizadapeladitaduramilitar,tinhamtocadofundonoqueconcerneaburriceevulgaridade;oexcitantedeexperimentarcomummeiodecomunicaçãoque,emumpaíscomooPeru,eraoúnicocapazdechegarsimultaneamenteaospúblicosmaisdiversos;eumbomsalário.

Foi, de fato, uma experiência extraordinária para mim, embora, também, a mais cansativa eenervanteque jamais tive. "Sevocêseorganizabemededicameiodiaaoprograma, será suficiente",Genaro previra. "Poderá continuar escrevendo à tarde." Também neste caso a prática não esteve deacordocomateoria.Naverdade,tivequededicara"LaTorredeBabel"todasasmanhãs,tardesenoitesdaqueles meses, e, sobretudo, as horas em que aparentemente não fazia nada determinado, senãoangustiar-merecordandooquetinhasaídoaocontrárionoprogramaanterioretentandoanteciparoquesairiapiornoseguinte.

Fazíamos"LaTorredeBabel"quatropessoas:LuisLlosa,quecuidavadaproduçãoedadireçãodecâmeras;MoshédanFurgang,queeraoeditor;ocâmeraAlejandroPérezeeu.QuantoaLuchoeMoshé,euosleveiàtelevisão.Ambostinhamexperiênciadecinema—osdoistinhamfeitocurtas-metragens—mas,comoeu,tambémnãotinhamtrabalhadonatelevisão.Otítulodoprogramarevelavasuasingênuasambições;tratardetudo,fazerumcaleidoscópiodetemas.Pretendíamosprovaraostelespectadoresqueumprogramaculturalnãotinhaqueserobrigatoriamenteanestésico,esotéricooupedante,maspodiaserdivertido e ao alcance de qualquer um, já que "cultura" não era sinônimo de ciência, literatura ouqualqueroutroconhecimentoespecializado,sendo,antes,umamaneiradeaproximar-sedascoisas,umpontodevistasuscetíveldeabordartodososassuntoshumanos.Nossaintençãoera,nahorasemanaldoprograma—horaquecomfreqüênciaalongava-separahoraemeia—,tratardedoisoutrêsassuntos,osmais opostos um do outro, para mostrar ao público que um programa cultural não estava brigado,digamos,comofutebolouoboxe,nemcomamúsicasalsaouohumor,equeumareportagempolíticaouumdocumentáriosobreastribosdaAmazôniapodiaseramenoaomesmotempoqueinstrutivo.

Quando, com Lucho e Moshé, fazíamos listas de temas, pessoas e lugares dos quais se deveriaocupar"LaTorredeBabel"eplanejávamosamaneiramaiságildeapresentá-los,tudofuncionavaàsmilmaravilhas.Estávamoscheiosdeidéiasecommuitavontadededescobriraspossibilidadescriativasdomais popular meio de comunicação do nosso tempo. O que descobrimos foram, em vez disso, asservidõesdosubdesenvolvimento,omodosutilcomquedesnaturalizaasmelhoresintençõesefrustraos

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maisárduosesforços.

Semexagerar,possodizerqueamaiorpartedotempoqueLucho,Moshéeeudedicamosa"LaTorredeBabel" foigasto—desperdiçou-se—nãoemtrabalhoscriativos, tentandoenriquecer intelectualeartisticamenteoprograma,mastentandoresolverproblemasverdadeiramenteinsignificantes,indignosdeserem levados em consideração. Como fazer, por exemplo, para que as camionetas da TV nosrecolhessem na hora certa, demodo que não perdêssemos os encontros, os aviões, as entrevistas?Asoluçãofoiiracordarpessoalmenteosmotoristasemsuascasas,acompanhá-losàestaçãopararecolheroequipamentodegravaçãoe,logo,aoaeroportoouparaondefosse.Masessaeraumasoluçãoquenostirava horas de sono e também nem sempre funcionava, pois podia acontecer, além do mais, que asbenditas camionetas estivessemcomabateria arriadaouque a administraçãonão tivesseordenado, atempo,atrocadocárter,docanodedescargaoudaroda,furada,navéspera,nosburacoshomicidasdaAvenidaArequipa...

Desde a primeira reportagem que gravamos, notei que as imagens saíam prejudicadas por umasestranhasmanchas.Oqueeramaquelasmeias-luassujas?AlejandroPérezexplicou-nosquesetratavadeumproblemadosfiltrosdacâmera.Estavamgastoseeraprecisotrocá-los.Muitobem,queostrocassem,então.Quearmasempregarparaconsegui-lo?Foramatar, tentamos todasenenhumaserviu.EnviamosmemorandosàManutenção,suplicamos,fizemosgestõestelefônicasedevivavoz,comosengenheiros,técnicos,administradoresechegamos,acredito,atéoprópriodonodaestação.Todosnosderamrazão,todos se indignaram, todos ordenaram de modo peremptório que os filtros fossem trocados. Mas asmeias-luasacinzentadasmancharamtodososnossosprogramas,doprimeiroaoúltimo.Aindaasvejo,àsvezes,aquelassombrasintrusas,comcertamelancolia,quandoligootelevisorepenso:"Ah,acâmeradeAlejandroPérez."

NãoseiquemdecidiunaestaçãoqueAlejandroPéreztrabalhasseconosco.Acabousendoumaboadecisão, porque— levando em consideração, é claro, as servidões do subdesenvolvimento, que eleaceitavacomimperturbávelfilosofia—Alejandroéumhomemmuitohábilcomumacâmeranasmãos.Seutalentoétotalmenteintuitivo,umsensodacomposição,domovimento,doângulo,dadistância,quelhesãoinatos.PorqueAlejandroacaboucâmeraporacaso.Eraumpintordeparedes,vindodeHuánuco,ealguémlhepropôsumdiaganharalgumdinheiroextraajudandoacarregaroequipamentodeTV,noestádio,nosdiasdefutebol.Detantocarregá-lo,aprendeuamanejarascâmeras.Umdiasubstituiuumcâmeraquefaltara,outrodiaaoutro,ecomoquemnãoquernada,acabousendooprimeirocâmeradaestação.

Nocomeço,seumutismomedeixavanervoso.SóLuchoconseguiaconversarcomele.Ou,emtodocaso,entendiam-sesubliminarmente,porqueeunãorecordohaverouvido jamais,naquelesseismeses,Alejandro pronunciar uma frase inteira, com sujeito, verbo e predicado. Só pequenos grunhidos, deaprovaçãooudesencorajamento,eumaexclamação,queeutemiacomoàpestebubônica,porquequeria

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dizerquetínhamossido—umavezmaisderrotadospelosimponderáveistodo-poderososeubíquos:

"Já se fodeu!"Quantas vezes se "fodeu" o gravador, a fita, o refletor, a bateria, omonitor?Tudopodia"foder-se"inumeráveisvezes:eraumapropriedadedascoisascomasquaistrabalhávamos,talvezaúnica a que todosmostraram sempre uma fidelidade canina.Quantas vezes projetosminuciosamenteplanejados, pesquisados, entrevistas acertadas após extenuantes gestões, forampara o diabo porque olacônicoAlejandropronunciouoseufatídicogrunhido:"Jásefodeu!"?

Recordo sobretudo o que nos aconteceu em Puerto Maldonado, uma cidade da Amazônia, ondetínhamosidofazerumpequenodocumentáriosobreamortedopoetaeguerrilheiroJavierHeraud.AlaínElías,companheirodeHeraudechefedodestacamentoguerrilheiroquefoidesbaratadooucapturadonodia em quemataram o poeta, tinha concordado em contar, diante das câmeras, tudo o que aconteceranaquelaocasião.Seudepoimentofoi interessanteeemocionado—AlaínestavacomJavierHeraudnacanoa onde este foi baleado e ele próprio acabou saindo ferido no tiroteio— e tínhamos decididocompletá-locomimagensdoslugaresondeaconteceramosfatose,sefossepossível,comtestemunhosdemoradoresdePuertoMaldonadoquelembrassemdoepisódioocorridovinteanosatrás.

Além de Lucho, Alejandro Pérez e eu, até Moshé que sempre ficava em Lima adiantando ostrabalhosdeediçãodosprogramas—viajouconoscoàselva.EmPuertoMaldonado,váriastestemunhasaceitaramserentrevistadas.Nossograndeachadofoiumdospoliciaisquetinhaparticipado,primeiro,no incidente inicial,nocentrodacidade,querevelouàsautoridadesapresençaemPuertoMaldonadodos guerrilheiros — episódio no qual morreu um policial civil — e, em seguida,-na perseguição etiroteio de Javier Heraud. Era um homem já aposentado do serviço policial, que trabalhava em umachácara.Persuadi-loasedeixarentrevistarfoidificílimo,poisoex-policialestavacheiodereticênciase temores. Por fim, nós o convencemos. E conseguimos, inclusive, que nos autorizassem a realizar aentrevistanarepartiçãopolicialdeondetinhamsaídoaspatrulhas,naquelaocasião.

No exato instante em que começava a entrevista com o ex-policial, começaram a estourar, comobalõesdocarnaval,osrefletoresdeAlejandroPérez.Equandorebentaramtodos,paraquenãorestassedúvidadequeosdeusesmanesdaAmazôniaestavamcontra"LaTorredeBabel",arriouabateriadonossomotorzinhoportátileoregistradordesonsficouafônico.Jásefodeu!Sim,etambémumdosfurosdoprograma.TivemosqueretornaraLimacomasmãosvazias.

Exagero as coisas para fazê-las mais visíveis? Talvez.Mas acho que nãomuito. Poderia contardezenas de histórias como esta. E, também, outras, para ilustrar o que é talvez o emblema dosubdesenvolvimento:odivórcioentreateoriaeaprática,asdeterminaçõeseosfatos.Duranteaquelesseismeses nós experimentamos esta irredutível distância em todas as fases do nosso trabalho.Haviaumas tabelas que distribuíam eqüitativamente as ilhas de edição e os estúdios de gravação entre osdiferentes realizadores de programas.Mas, na verdade, não eram aquelas tabelas,mas o engenho e aespertezadacadaprodutoroutécnicooquedeterminavaquesedispusessedemaisoumenostempopara

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editaregravarecontassecomamelhorequipe.

Aprendemosrapidamente,éclaro,asarmadilhas,astúcias,pilhériasougraçasdequeeraprecisosevalerparaconseguir,nadaquefosseumprivilégio,mas,apenas,fazercomummínimodedecoroaquilopeloquenospagavam.Todaseramestratagemasexeqüíveis,mastodastinhamodefeitodeprivar-nosdeumtempoprecioso,quepoderíamos terdedicadoaopuramentecriativo.Depoisdehaverpassadoporaquela experiência, quando me acontece, alguma vez, ver na televisão um programa bem gravado eeditado,ágil,original,minhaadmiraçãonãotemlimites.Porqueseique,atrásdisso,hámuitomaisqueempenho e talento: feitiçaria,milagre.Algumas semanas, logo depois de haver conferido a edição doprogramaumaúltimavez,embuscadoretoquefinal,nósnosdizíamos:"Muitobem,afinalsaiuredondo."E, entretanto, naquele domingo, na tela do televisor, desaparecia o som, a imagem corria, irrompiamvazios...Oqueéquetinhase"fodido"destavez?Otécnicodeplantão,encarregadodepassarasfitas,teria se embriagado ou adormecido, apertado o botão errado ou programado tudo ao contrário? Paraquemtemumamaniaperfeccionistaemseutrabalho,atelevisãoéperigosa,causadeinfinitasinsônias,taquicardia,úlcera,ataquescardíacos...

E, entretanto, fazendoobalanço, aqueles seismeses foramapaixonantes e intensos.Recordo comemoção a entrevista comBorges, em seu apartamento do centro deBuenosAires—nãome perdooununca, ao que parece, ter dito que sua casa era modesta e tinha goteiras—, onde o quarto da mãeconservava-se tal como ela o deixou no dia de suamorte (um vestido violeta, de senhora de idade,estendidosobreacama);eosretratosdeescritorespintadosporSabato,queestenosdeixoufilmar,emsuacasinhadeSantosLugaresondefomosvisitá-lo.DesdequemoreinaEspanha,noiníciodossetenta,tinha querido entrevistar uma escritora de melodramas e romances cor-de-rosa, Corín Tellado, cujashistórias eramdevoradas em livros, radionovelas, fotonovelas e telenovelas por uma incomensurávelmultidãonaEspanhaenaAméricaEspanhola.Aceitouaparecerem"LaTorredeBabel"epasseiumatarde com ela, nas cercanias de Gijón, emAstúrias mostrou-me o sótão commilhares de novelinhasarrumadas: terminava uma cada dois dias, sempre de cem páginas—, onde permanecia em reclusãoporque,naquelemomento,eravítimadeumatentativadeextorsão,nãoestavaclarosedepartedeumgrupopolíticooudedelinqüentescomuns.

Dascasasdeescritores,levávamosascâmerasaosestádios—fizemosumprogramasobreumdosmelhoresclubesdofutebolbrasileiro,oFlamengo,eentrevistamosZico,ocraquedomomento,noRiode Janeiro—ou aoPanamá, onde investigamos, percorrendoos ringuesde amadores e profissionais,como e por que esse pequeno país centro-americano tinha sido o berço de tantos campeões latino-americanosemundiaisdeboxeemquasetodasascategorias.NoBrasil,metemo-nosnaexclusivaclínicado atlético Doutor Pitangui, cujos bisturis tornavam belas e jovens todas as mulheres do mundo emcondições de pagar seus serviços, e em Santiago do Chile conversamos com os Chicago Boys dePinochet e com os oposicionistas democrata-cristãos que, em meio a uma severíssima repressão,

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resistiamàditadura.

FomosàNicarágua,parafazerumareportagemsobreossandinistaseseusadversários,nosegundoaniversário da revolução, e à Universidade de Berkeley, em São Francisco, onde, em um pequenocubículo do Departamento de Línguas eslavas, trabalhava um grande poeta, CzeslawMilosz, recentePrêmioNobeldeLiteratura.EstivemosemCoclecito,noPanamá,nacasaque tinha láogeneralOmarTorrijos,umhomemque, emboraem teoriaafastadodogoverno,continuava sendooamoe senhordopaís. Passamos todo o dia com ele, e, ainda que se mostrasse muito amável comigo, não me deu aimpressãotãogrataquedeixouemoutrosescritoresseushóspedes.Pareceu-meotípicocaudilholatino-americanode ingratamemória,o"homemforte"providencial,autoritárioemachista,aoqual todaumacortedecivisemilitares(que,duranteodia,foramdesfilandopelolugar)adulavacomumservilismoquedavanáuseas.Opersonagemmaisatraente,nacasadeCoclecito,eraumadasamantesdogeneral,uma loura curvilínea que descobrimos atirada em uma rede. Estava ali como um objeto a mais domobiliário,porqueogeneralnemlhedirigiaapalavranemaapresentavaanenhumdoscomensaisqueentravamesaíam...

DoisdiasdepoisdehaverchegadoaLima,devoltadoPanamá,LuchoLlosa,AlejandroPérezeeuficamosfrios:TorrijosacabavadesematarnopequenoaviãonoqualnosmandoulevardeCoclecitoàcidadedoPanamá.Opilotoeraomesmocomquemtínhamosviajado.

EmPuertoRico,umdia,logoapósterminardegravarumapequenareportagemsobreamaravilhosareconstrução do velho San Juan, guiados pelo homem que foi seu animador, Ricardo Alegría, caídesmaiado.Estavadesidratadoporcausadeumaintoxicaçãocontraídanaschicheríasdeumpovoadinhodonorteperuano,Catacaos,ondefomosfazerumprogramasobreosfabricantesdechapéusdepalha—umaartequeoscataquenhoscultivamháséculos—,sobreossegredosdotondero,umadançaregional,esobre suas casas de boa chicha e comidas picantes (foram estas últimas que me intoxicaram,naturalmente).Nãotenhopalavrasparaagradeceratodososamigosporto-riquenhosque,praticamente,ameaçaramos amáveismédicos doHospital São Jorge ame curarem a tempo para que "LaTorre deBabel"fosseaoarpontualmentenaqueledomingo.

Osprogramassempreforamaoar,cadasemana,e,levando-seemcontacomotrabalhávamos,aquilopode ser considerado uma grande façanha. Escrevia os roteiros nas camionetas ou nos aviões e dosaeroportospassavaaosestúdiosdegravaçãoouàsilhasdeediçãoesaíadeláparatomaroutroaviãoefazercentenasdequilômetrosa fimdeestaremumacidadeouumpaísàsvezesmenos tempodoquelevara para chegar lá. Naqueles seis meses esqueci-me de dormir, de comer, de ler e, é claro, deescrever. Como a verba de produção de que dispunha era limitada, várias daquelas viagens aoestrangeiro eu as fazia coincidir com algum convite para participar de um congresso literário ou darconferências,demodoqueassimaliviavaaTVcomminhaspassagenseestada.Oproblemaeraqueestesistemaobrigava-meaumadivisãoesquizofrênicadapersonalidade,poistinhaquemudar,emsegundos,

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do papel de conferencista a jornalista, de escritor ao qual ofereciam omicrofone para que falasse aentrevistadorque,comoemrepresália,entrevistavaseusentrevistadores.

Ainda que tenhamos feito um bomnúmero de programas sobre o estrangeiro, amaioria tratou detemas peruanos. Danças e festas populares, problemas universitários, centros arqueológicos pré-hispânicos,umvelho sorveteiro cujo triciclo,depoisdemeio século, continuapercorrendoas ruasdeMiraflores,alendadeumprostíbulopiurano,osubmundopenitenciário.Descobrimosque"LaTorredeBabel"tinhachegadoaterboaaudiênciapelasrecomendaçõesepressõesquecomeçávamosareceberdepersonalidadeseinstituiçõesdiversasparaquenosocupássemosdelas.Amaisinesperadafoi,talvez,adaPolíciade Investigações (PIP).Umcoronelcompareceuumdiaameuescritórioparaproporquededicasse uma "Torre de Babel" à PIP, a pretexto de algum aniversário: para que o programa fossemovimentado, a instituição simularia uma operação de captura de traficantes de cocaína com tiros etudo...

Umdostelefonemasquerecebi,jáquandooprazodeseismesesaquemehaviacomprometidocomaTVestavaporterminar,foiodeumaamigaquenãoviaháumséculo:RositaCorpancho.Aliestavasuavozcalorosa,comvestígiospreguiçosamente loretanos,nemmaisnemmenosquecomonosmeusanosuniversitários. E aí estava, intacto e talvez aumentado, o zelo entusiástico de Rosita Corpancho peloInstitutoLingüísticodeVerão.Lembrava-medoInstituto,nãoéverdade?Mas,Rosita...Muitobem,então.OInstitutoestavaporfazernãoseiquantosanosnoPeru,e,alémdisso,logoarrumariaasmalas,dandopor encerrada sua missão na Amazônia. Não seria possível, quem sabe, que a "Torre de Babel"...?Interrompi-aparadizerquesim,commuitoprazerfariaumdocumentáriosobreotrabalhodoslingüistas-missionários. E aproveitaria a viagem à selva, também, para fazer uma reportagem sobre alguma dastribosmenosconhecidas,coisaquefiguravaemnossosplanosdesdeoprincípio.Feliz,Rositadisse-mequecoordenaria tudocomo Institutoa fimdequepudéssemosmovimentar-nospelo interiorda selva.Tinhaidéiadealgumatriboemespecial?Sempensarduasvezes,respondi-lhe:"Osmachiguengas."

***

Desde minhas frustradas tentativas, no começo dos anos sessenta, de escrever uma história sobre osfaladoresmachiguengas, o tema continuara sempreme rondando.Voltava, cada certo tempo, comoumvelho amornunca apagadode todo, cujas brasas se acendemde repente emuma labareda.Continuaratomandonotasegaratujandoborrõesqueinvariavelmenterasgava.Elendo,cadavezqueconseguiapôramão em cima, os estudos e artigos que apareciam, aqui e ali, em revistas científicas, sobre osmachiguengas. O desconhecimento de que tinham sido vítimas dava passagem a uma curiosidadediferente.Uma antropóloga francesa, France-Marie Casevitz-Renard e outro norte-americano, JohnsonAllen,tinhampassadolongoperíodoentreelesedescritosuaorganização,seusmétodosdetrabalho,seu

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sistema de parentesco, seus símbolos, seu sentido do tempo. Um etnólogo suíço, Gerhard Baer, quetambémviveuentreeles, tinhaestudadoa fundosua religião,eoPadreJoaquínBarrialescomeçavaapublicar, traduzida ao espanhol, uma copiosa recopilação de mitos e canções machiguengas. Algunsantropólogos peruanos, companheiros deMascarita, comoCaminoDíezCanseco eVíctor J.Guevara,tambémtinhaminvestigadoosusoseascrençasdatribo.

Mas nunca, em nenhum destes trabalhos contemporâneos, encontrei amenor informação sobre osfaladores.Curiosamente,asreferênciasaelesinterrompiam-seaípelosanoscinqüenta.Tinhadefinhadoaté desaparecer a instituição do falador, justamente na época em que os Schneil a descobriram?Nostextosdosmissionáriosdominicanosqueescreveramsobreelesnosanostrintaequarenta—osPadresPioAza,VicentedeCenitagoyaeAndrésFerrero—haviaabundantesalusõesao falador.E, também,antes,emalgunsviajantesdoséculoXIX.UmadasprimeirasmençõesfiguravanolivrodoexploradorPaulMarcoy,que,namargemdoUrubamba,encontrou-secomumorateur,aquemoviajantefrancêsviuliteralmentehipnotizarumauditóriode"antis"durantehorasafio."Vocêacreditaqueaquelesantiseramosmachiguengas?"perguntou-meoantropólogoLuísRomán,mostrando-meacitação.Euestavacertodeque sim.Porqueos etnólogosmodernos jamaismencionaramos faladores?Eraumaperguntaquemefaziacadavezquechegavaaminhasmãosalgunsdessesestudosoutrabalhosdecampoedescobriaquetampoucodestavezsemencionava,sequerdepassagem,aquelesambulantescontadoresdehistóriasqueamimpareciamotraçomaisdelicadoepreciosodaquelepequenopovoeoque,emtodocaso,haviaforjadoessecuriosovínculosentimentalentreosmachiguengaseminhaprópriavocação(paranãodizersimplesmenteminhavida).

Por que tinha sido incapaz, no curso de todos aqueles anos, de escrever um conto sobre osfaladores? A resposta que costumava dar a mim mesmo, toda vez que despachava para o lixo omanuscritopelametadedaquelafugidiahistória,eraadificuldadequesignificavainventar,emespanholedentrodeesquemasintelectuaislógicos,umaformaliteráriaqueverossimilmentesugerisseamaneirade contar de um homem primitivo, de mentalidade mágico-religiosa. Todas as minhas tentativasacabavamsempreemumestiloquemepareciatãoobviamentefraudulento,tãopoucopersuasivocomoaquelesnosquais,noséculoXVIII,quandoentrounamodanaEuropao"bomselvagem", faziamfalarseuspersonagensexóticososfilósofoseromancistasdoIluminismo.Mas,apesardosfracassos, talvezpor causa deles, a tentação estava sempre ali e cada certo tempo, reavivada por uma circunstânciafortuita,ganhavabrioseasilhuetarumorosa,transeunte,selváticadofaladorinvadiaminhacasaemeussonhos.Comonãoseriaemocionanteaperspectivadever,porfim,acaradosmachiguengas?

***

Desde aquela viagem demeados de 1958, queme fez descobrir a selva peruana, tinha estado várias

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vezesnaAmazônia:emIquitos,emSanMartín,noAltoMaranhão,emMadredeDios,emTingoMana.Mas não voltara a Pucallpa. Nos vinte e três anos intermediários, aquela localidade pequeninha eempoeirada;queeurecordavacheiadecasasfuneráriase igrejasevangélicas,experimentaraumboomindustrialecomercial,depoisumacrise,e,naquelemeio-diadesetembrode1981emqueLuchoLlosa,AlejandroPérez e eu aterrissamosnela para fazer o que seria o penúltimoprogramade "LaTorre deBabel",começavaaviverumnovoboom,masdestavezpormausmotivos:otráficodecocaína.Obafodecalorealuzígnea,emcujoabraçoaspessoaseascoisasseperfilamtãonítidas(àdiferençadeLima,ondeatéosolradiantetemalgodecinzento),éumacoisaque,tãologopisonaAmazônia,mefazsempreoefeitodeumtônicodoentusiasmo.

Entretanto, mais ainda que a paisagem amazônica e sua temperatura, impressionou-me descobrirnaquelamanhã,noaeroportodePucallpa,aspessoasqueo Instituto tinhaenviadoparanosesperar:ocasal Schneil. Eles mesmos, em pessoa. Tinham feito um quarto de século na Amazônia e, sempre,trabalhando entre os machiguengas. Surpreenderam-se de que eu me lembrasse deles — tenho aimpressãodequeeles,emabsoluto,lembravam-sedemim—edequeconservassenamemóriatantosdetalhes do que me contaram, aquela vez, nas duas conversas na Base de Yarinacocha. EnquantosacolejávamosnojiperumoaoInstituto,mostraram-mefotografiasdosfilhos,umgrupodejovens,algunsjá formados, que viviam nos Estados Unidos. Todos falavam o machiguenga? Naturalmente, era osegundoidiomadafamília,antesmesmoqueoespanhol.Alegrou-mesaberqueosSchneilnosserviriamdeguiasetradutoresnasaldeiasquevisitaríamos.

***

OlagodeYarinacontinuavasendoumavistadecartãopostale seuscrepúsculosaindamaisbelos.Asuasmargens,osbangalôsdoInstitutotinhamsemultiplicado.Logoquedeixamosojipe,comLuchoeAlejandro começamos a trabalhar e acertamosque, ao anoitecer, comoumaantecipaçãodaviagemàsselvasdoAltoUrubamba,osSchneilnosdariamalgumainformaçãosobreoslugaresepessoasqueláveríamos.

AlémdosSchneil,nãopermaneciaemYarinacochanenhumdoslingüistasqueeutinhaconhecidonaviagemanterior.AlgunstinhamvoltadoaosEstadosUnidos,outrosestavamfazendotrabalhodecampoemoutrasselvasdomundo,e,um,comoofundadordoInstituto,oDoutorTownsend,tinhafalecido.Masoslingüistasqueconhecemoseentrevistamos,enosserviramdeciceronesenquantofazíamosdiferentesimagensdolugar,pareciamirmãosgêmeosdosqueeurecordava.Eles,comoscabelosmuitocurtoseumsemblanteatléticoesaudável,depessoasque fazemexercíciosdiariamente,comemdeacordocomasinstruçõesdeumdietista,nãofumamnembebemálcoolnemtomamcafé,e,elas,embutidasemvestidostão simples como pudicos, sem traço de maquiagem nem sinal de coqueteria e um ar incômodo de

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eficiência.Masunseoutrascomessesolharessemprerisonhosecomoqueinquebrantáveisdepessoasqueacreditam,queestãofazendooqueacreditamesabemverdadeiramentesuaparte,queamimsempretêmfascinadoeassustado.

TodootempoqueopermitiramaluzeoscaprichosdoequipamentodeAlejandroPérezestivemosreunindomaterialparaoprogramasobreoInstituto.Umsemináriodeprofessoresbilíngüesdediferentesaldeiasqueserealizavanaquelesdias;ascartilhasegramáticaselaboradaspeloslingüistas;testemunhosdesteseumpanoramadapequenacidadequeeraaBasedeYarinacocha,comescola,hospital,campodeesportes,biblioteca,igrejas,centrodecomunicaçõeseaeroporto.

***

Aoanoitecer,apósumjantartambémdetrabalho,quandoencerramosapartedoprogramadedicadaaoInstituto, começamos a preparar a outra, a que gravaríamos nos dias seguintes: osmachiguengas. EmLima, eu tinha desenterrado e consultado a documentação que acumulara sobre eles há anos.Mas foisobretudoaconversacomosSchneil—outraveznacabanadeles,outravezenquantotomávamosumataça de chá com bolachinhas feitas pela senhora Schneil— a que nos proporcionou ummaterial deprimeiramãosobreoestadodaquelacomunidadequeelesconheciamcomoapalmadesuamão,poistinhasidoolardelesnosúltimosvinteecincoanos.

Tinhammudadobastante as coisas para osmachiguengas doAltoUrubamba e deMadre deDiosdesdeodia emque,nu,EdwinSchneil aproximou-sedaquela família e elanão fugiu.Tinhamsidoasmudançasparamelhor?

Estavam firmemente convencidos de que sim. E, naturalmente, também para os machiguengas dealémPongodeMainiquetinhacessadoemboaparteadispersãoemqueantesviviam,essadiásporaemgrupinhos errantes espalhados aqui e ali, quase semcontato entre eles, lutando isolada epenosamentepela sobrevivência, que, a continuar assim, teria significado pura e simplesmente a desintegração dacomunidade,adeliqüescênciadeseuidioma,aassimilaçãodeseusmembrosaoutrosgruposeculturas.

Depois de muitos esforços, de parte das autoridades, missionários católicos, antropólogos eetnólogos, e do próprio Instituto, os machiguengas foram aceitando a idéia de formar aldeias, de secongregarememlugaresaparentesparatrabalharaterra,criaranimaisedesenvolverocomérciocomorestodoPeru.Ascoisasestavamevoluindorapidamente.Haviajáseispovoados,algunsderecentíssimonascimento.Nósvisitaríamosdois:NuevoMundoeNuevaLuz.

Doscincomilmachiguengas—cálculoaproximadocercadametadeviviajánaquelasaldeias.Umadestas,alémdisso,erametademachiguengaemetadecampa(ashaninka)e,atéagora,aconvivênciadenaturaisdessasduastribosnãosuscitavaomenorproblema.OsSchneileramotimistaseacreditavamqueosrestantesmachiguengas,inclusiveosmaisariscosentreeles—oschamadoskogapakori—,àmedida

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quevissemcomoohaverformadocomunidadestraziaaseusirmãosumasériedebenefícios—umavidamenosincerta,apossibilidadedereceberajudaemcasodeemergência—iriamtambémabandonandoseusrefúgiosnointeriordasflorestasparaformarnovosassentamentos.Comverdadeiroentusiasmo,osSchneilnosrelataramospassosconcretosquetinhamsidodadosnospovoadosparaintegrá-losaopaís.As escolas e as cooperativas agrícolas, por exemplo. Tanto em NuevoMundo como em Nueva Luzfuncionavamescolasbilíngües,comprofessoresnativos.Jáosveríamos.

Significavaissoqueosmachiguengascomeçavamadeixardeseropovoprimitivo,fechadosobresimesmo,pessimista,derrotado,quemetinhamdescritoem1958?Decertaforma,sim.Havianeles,pelomenosnosmachiguengasqueagoraviviamemcomunidade,menosreticênciasaexperimentaronovo,aprogredir, talvezmais amoràvida.Mas,quantoao isolamento,não sepodiaainda falardemudançasradicais. Porque, embora pudéssemos chegar a seus povoados em duas ou três horas, nos aviões doInstituto,umaviagempor rioatéaquelasaldeias,dequalquer localidade importantedaAmazônia,eracoisadediaseàsvezesdesemanas.Demodoque,ofatodesehaveremincorporadoaoPeruera,agora,algomenosremotoquenopassado,masaindanãoumarealidade.

Poderiaentrevistaremespanholalgunsmachiguengas?Sim,alguns,aindaquepoucos.Porexemplo,o cacique ou governador deNueva Luz falava-o fluentemente. Como?Agora havia caciques entre osmachiguengas?Nãotinhasido,poracaso,distinçãomaiordatribonãohavertidonuncaumaorganizaçãopolíticahierárquica,comchefeesubordinados?Sim,certo.Antes.Masessesistemaanárquicoqueeraodelesexplicava-sepeladispersãoemqueviviam;agora,reunidosemaldeias,necessitavamautoridades.OadministradorouchefedeNuevaLuzeraumhomemjovemeummagníficolídercomunitário,formadonaEscolaBíblicadeMazamari.Pastorprotestante,então?Bem,decertaforma.ExistiajáumatraduçãodaBíbliaaomachiguenga?Naturalmente,eeraobradeles.EmNuevoMundoeNuevaLuzpoderíamosfilmarosexemplaresdoNovoTestamentoemmachiguenga.

Lembrei-medeMascarita,denossaúltimaconversanaquelebardaAvenidaEspanha.Torneiaouvirseusinsultoseprofecias.SegundooquenoscontavamosSchneil,ostemoresdeSaúlZuratas,naquelatarde, vinham se confirmando. Tal como outras tribos, os machiguengas encontravam-se em plenoprocessodeaculturação:aBíblia,escolasbilíngües,umlíderevangelizador,apropriedadeprivada,ovalor do dinheiro, o comércio, sem dúvida roupas ocidentais... Tudo isso tinha sido para o bem?Trouxera-lhesbenefíciosconcretoscomoindivíduosecomopovo,segundoasseguravamosSchneil?Ou,aocontrário,de"selvagens"livresesoberanostinhamcomeçadoaseconverterem"zumbis",caricaturasdeocidentais,segundoaexpressãodeMascarita?Umavisitadedoisoutrêsdiasseriasuficienteparaqueeuconhecesseoproblema?Não,naturalmentequenãoseriasuficiente.

Naquelanoite,nobangalôdeYarinacocha,permanecimuito tempoacordado, refletindo.Pela telametálicanajanelaviaumpedaçodolago,comumaesteiradourada,masalua—queimaginavaredondaebrilhante—estavacobertaporummaciçodeárvores.ErabomoumausinalqueKashiri,esseastro

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macho,malignoàsvezeseoutrasbenfazejo,damitologiamachiguenga,ocultassedemimcommanchassuacara?Tinhampassadovinteetrêsanosdesdequedormiemumdessesbangalôsaprimeiravez,e,emtodo esse tempo, não só eu tinha mudado, vivido mil experiências, envelhecido. Também essesmachiguengas que conhecia,mal, por dois breves testemunhos deste casal de norte-americanos,minhaconversamadrilenhacomumdominicanoeumaporçãodetrabalhosetnológicos,tinhamexperimentadograndesmudanças.Pelovisto,jánãoseencaixavamnaquelasimagensqueeuformaradeles.Jánãoeramessepunhadodeseres indômitose trágicos,essasociedade fraturadaemminúsculas famílias, fugindo,fugindosempre,dobranco,domestiço,doserrano,deoutrastribos,esperandoeaceitandoestoicamentea fatídica extinção individual e comunitária, mas sem renunciar a seu idioma, a seus deuses, a seuscostumes.Umairreprimíveltristezaapossou-sedemimaopensarqueessasociedadepulverizadanoseiodas úmidas e imensas florestas, para a qual uns contadores de histórias migrantes serviam de seivacirculante,estariadesaparecendo.

Quantasvezes,nestesvinteetrêsanos,tinhapensadonosmachiguengas?Quantasvezestinhatentadoadivinhá-los,escrevê-los,quantosprojetos tinhafeitoparaviajarasuas terras?Porculpadeles, todospersonagensouinstituiçõesquepudessemparecer-seoudealgumamaneiraassociarem-senomundocomofaladormachiguengatinhamexercidoumainstantâneafascinaçãosobremim.

Comoostrovadoresambulantesdossertõesbaianos,que,acompanhadospelobordãodeseuviolão,misturavam,nasempoeiradasaldeiasdoNordestebrasileiro,velhosromancesmedievaisebisbilhoticesdaregião.Bastou-meverumdeles,naquelatarde,nomercadodeUauá,parareconhecer,sobrepondo-seà silhueta do caboclo com casaco e chapéu de couro que contava, cantando, diante de uma rodabrincalhona, a história da Princesa Magalona e os doze Pares de França, a pele amarelo-verdosa,decoradacomsimétricos traçosvermelhosemanchasescuras,dofaladorseminuque, longíssimodali,emumaprainhaoculta sob a ramagemdoMadre deDios, referia a uma família atenta, de cócoras, adisputa a sopros de Tasurinchi e Kientibakori da qual resultaram todos os seres bons e maus destemundo.

Masaindamaisqueotrovadordosertão,foioseanchaíirlandêsquemmehaviaevocado,ecomqueforça, os faladores machiguengas. Seanchaí: "dizedor de velhas histórias", "aquele que sabe coisas",traduziu ao inglês, distraidamente, alguém, em um bar de Dublin. Como explicar, se não é pelosmachiguengas, aquela emoção, aquele aceleramento brusco no peito, queme levou a intrometer-me, aperguntar e,mais tarde, a insistir e enlouquecer conhecidos e amigos irlandeses até queme puseramfrenteaumseanchaí?RelíquiavivadosvelhosaedosdeHibérnia,que,comoaquelesantepassadosseuscujassilhuetasseconfundem,nanoitedostempos,comosmitoseaslendascélticasquesãoosalicercesculturaisda Irlanda,oseanchaíaindaconta,emnossosdias,nocalorenfumaçadodeumpub,emumafesta suspensa de repente ante o feitiço de sua palavra, ou em uma casa de família, junto à lareira,enquantoforagotejaachuvaourugeatormenta,antiqüíssimasfábulas,históriasépicas,paixõesterríveis,

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inquietantesmilagres. É um dono de bar, ummotorista de caminhão, um pastor, ummendigo, alguémmisteriosamentetocadopelavarinhamágicadasabedoriaeaartedecontar,derecordar,dereinventareenriquecerojácontadoaolongodosséculos,ummensageirodostemposdomitoedamagia,anterioresàhistória,aquemosirlandesescontemporâneosescutamainda,horasafio,maravilhados.SempresoubequeaquelaemoçãointensacomqueviviessaviagemàIrlandagraçasaoseanchaí,foimetafórica,umamaneira de escutar, através dele, o falador e de viver a ilusão de fazer parte, apertado entre seusouvintes,deumauditóriomachiguenga.E,afinal,amanhã,destamaneiranãopremeditada,eguiadonadamenosquepeloprópriocasalSchneil,conheceriaosmachiguengas.Avidatinhaelementosderomance,então?Simsenhor,tinha."Jádisseavocêquequeroterminarcomumzoom,porra,Alejandro!",delirouLuchoLlosa,nacamaaolado,remexendo-sesobomosquiteiro.

Partimosaoamanhecer,emdoismonomotoresCessnadoInstituto,comtrêspassageirosemcadaum.O piloto do avião em que eu ia, apesar da cara de adolescente, tinha vários anos com os lingüistasmissionáriose,antesdepilotarseusaviõesnaAmazônia,fizera-onasselvasdaAméricaCentralenasdeBornéu.Eraumamanhãdiáfana,que, ládecima,nospermitiaacompanharcomperfeição todososmeandrosdoUcayali,primeiro,e,depois,doUrubamba—suas ilhotas,suas lanchasgaguejantescommotor fora da borda ou peque-peques, suas canoas, seus canais, seus pongos, seus afluentes— e asdiminutas aldeias que,muito espaçadamente, abriam uma clareira de cabanas e de terra vermelha nainterminávelplanícieverde.PassamossobreaColôniaPenaldoSepaeamissãodominicanadeSepahuaelogoabandonamosocursodoAltoUrubamba,paraseguiraarrevesadatrajetóriadorioMipaya,umaserpente lodosa a cujas margens, aí pelas dez da manhã, avistamos nosso primeiro destino: NuevoMundo.

O nome do Mipaya ressoava historicamente. Sob este emaranhado vegetal proliferaram, há umséculo,empresascaucheiras.Depoisda terrívelmortandadesofridapela tribo,passivamente,nosanosdo caucho, os ex-caucheiros arruinados tentaram, na década de vinte, instalar fazendas nesta zona,provendo-sedebraçosmedianteovelhosistemadecaçaaosindígenas.Foientãoque,aqui,àsmargensdo Mipaya, produziu-se o único caso conhecido na história de resistência machiguenga. Quando umfazendeirodaregiãoveioparalevarosjovenseasmulheres,osmachiguengasosreceberamaflechadasematarameferiramváriosviracochas,antesdeseremexterminados.Aselvatinhacobertoocenáriocomsuaespessamassadetroncos,galhos,folhagens,enãoficaramaisrastrodaquelasignomínias.Antesdeaterrissar,opiloto traçouvárioscírculossobreavintenadecabanasde tetoscônicosa fimdequeosmachiguengasdeNuevoMundoretirassemascriançasdaúnicaruadopovoado,queserviadepistadeaterrissagem.

***

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OsSchneilvinhamnomesmoaviãoqueeu,e,malosviramdescerdoaparelho,umacentenadevizinhoscercou-os, dando mostras de muita excitação e alegria. Todos lutavam por tocar neles, dar tapinhasamistosos, e uns e outros falavam ao mesmo tempo em uma linguagem cadenciada, áspera, cheia demodulações extremas. Exceto a professora, que vestia saia e blusa e calçava sandálias, todos osmachiguengasandavamdescalços,elescomumacurtatangaoucomblusa,eelastambémcomessatúnicadealgodão,cordeareiaoucinzenta,comumamuitas tribos.Sóalgumasanciãsusavamapampanilla,finamanta apanhada na cintura que lhes deixava os peitos de fora. Quase todos, homens emulheres,mostravamtatuagensavermelhadasounegras.

Aíestavam,então.Esseseramosmachiguengas.

Não tivenem tempodemecomover.Paraaproveitaraomáximoa luz,começamosa trabalhardeimediato e, felizmente, nenhuma catástrofe impediu-nos de fazer as imagens das cabanas — todasidênticas:umasimplesplataformadetroncossustentadaporestacas,unsfrágeistabiquesdebambu,quecobriam apenas ametade dos lados, o penacho de folhas de palmeira que era o teto, e uns interioresausteros,poissóalbergavamesteirasenroladas,gamelas,redesdepescar,arcoseflechasepunhadinhosdemandioca,milhoeporongos—ouentrevistaraprofessora,aúnicaquepodiaexpressar-se,emboracom dificuldade, em espanhol. Ela era também a administradora da loja do povoado, até onde, duasvezes por mês, chegava uma lancha trazendo provisões. Minhas tentativas de obter dela algumainformaçãosobreosfaladoresforaminúteis.Conseguiaentenderaquemeumereferia?Pareciaquenão.Olhava-me com uma expressão de surpresa, ligeiramente inquieta, como que pedindo para me fazerinteligível.

Ainda que não pudéssemos conversar diretamente com eles, senão através dos Schneil, os outrosmachiguengasmostraram-se bastante serviçais e pudemos gravar alguns cantos e danças e a refinadaoperaçãomedianteaqualumaanciã iapintando,nacara,desenhosgeométricos,com tinturadeurucu.Filmamossuasplantações,gaiolasdeaves,aescola,eaprofessoraempenhou-seemqueescutássemososalunoscantandooHinoNacionalemmachiguenga.Umadascriançastinhaacaradestruídaporessaespécie de lepra que é a uta — os machiguengas a atribuem à picada de um vaga-lume de coravermelhada,comoabdomefervilhandodepontinhosbrilhantes—e,pelamaneiradesinibidaenaturalcomqueagiaecorriaentreosoutrosmenininhos,nãoparecia,à simplesvista,pelomenos,objetodediscriminaçãoebrincadeirasporcausadesuadeformação.

Quando, ao começar a tarde, carregávamos já nosso equipamento para empreender viagem aopovoadoondepernoitaríamos—NuevaLuz—,soubemosqueNuevoMundo,provavelmente,teriaquemudarlogosualocalização.Oquetinhaacontecido?Umadessasarbitrariedadesgeográficasquesãoopãodecadadianaselva.OrioMipaya,naúltimaestaçãodechuvas,porcausadagrandeenchente,tinhamodificado radicalmente seu curso, afastando-se tanto de NuevoMundo que, agora, quando as águasdesceramaseunível invernal,osvizinhos tinhamque fazeruma longuíssimacaminhadaparachegara

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suasmargens. Estavam, assim, procurando outro lugar, sujeito a menos contingências, para instalar aaldeia.Nãoseriacomplicadoparaaquelesquetinhampassadoavidamudando-se—ascidadesdeles,pelovisto,nasciamtambémsobosignoatávicodamarcha,dodestinoperipatético—,e,deoutraparte,essascabanasdetroncos,bambuefolhasdepalmeira,erammaisfáceisdedesarmaredetornaraarmarqueascasinhasdomundocivilizado.Explicaram-nosqueosvinteminutosdevôoquelevamosparairdeNuevoMundoaNuevaLuzeramenganosos,pois,andandopelaselva,essadistânciaexigia,nomínimo,umasemanadeviagem,e,emcanoa,unsdoisdias.

NuevaLuz eraomais antigodospovoadosmachiguengas—acabavade comemorar seu segundoaniversário—etinhaumpoucomaisdodobrodecabanasedemoradoresqueNuevoMundo.Tambémaqui,sóMartín,ocaciquegovernadoreprofessordaescolabilíngüe,vestiacamisa,calçaesapatosetinhaoscabeloscortadosàmaneiraocidental.Erabastante jovem,miúdo,deumaseriedadefuneral,efalavaumespanholágil,soltoesincopado,cheiodeapócopes.Igualquenaaldeiaanterior,emNuevaLuzarecepçãodosmachiguengasaosSchneilfoiexuberanteeruidosa,etodoorestododiaeboaparteda noite vimos grupos e indivíduos esperando pacientemente que outros se despedissem para seaproximaremdeleseentãoestabeleceramumaconversacrepitante,adornadadegestosetrejeitos.

TambémemNuevaLuzgravamosdanças,cantos,solosdebombo,aescola,aloja,asplantações,osteares,astatuagens,eumaentrevistacomodirigenteegressodaEscolaBíblicadeMazamari,umhomemjovem, muito magro, com o cabelo cortado quase rente, de gestos cerimoniosos. Era um discípulodiligentedeseusprofessores,pois,antesquedosmachiguengas,preferiafalardaPalavra,doVerbo,doEspíritoSanto.Tinhaummodogrosseirode sairpela tangenteeeternizar-seem imprecisõesbíblicas,todavezquenãoqueriaresponderaumapergunta.Duasvezestenteipuxaralínguadelesobreotemadosfaladorese,nasduas,olhando-mesemcompreender,voltouaexplicarqueaquelelivroquetinhasobreosjoelhoseraapalavradeDeuseseusapóstolosnalínguamachiguenga.

Terminado o trabalho, fomos nos banhar em uma quebrada doMipaya, a uns quinze minutos demarchadopovoado,guiadospelosdoisaviadoresdoInstituto.Eraocomeçodocrepúsculo,ahoramaismisteriosaemaisbeladaAmazôniadesdequenãoestejasobumaguaceiro.Olugareraumverdadeiroachado.Um braço doMipaya desviava-se, por obra de um arrecife natural de rochas, formando umaespécie de enseada, na qual se podia nadar em águas calmas emornas, ou, se se preferisse, receber,protegido pela defesa de pedras, o impacto da corrente. Até o lacônico Alejandro Pérez começouchapinharearir,loucodefelicidadenaquelejacuzziamazônico.

QuandoretornamosaNuevaLuz,ojovemMartín(suacortesiaeraextraordináriaeosgestosdeumaelegânciareal)convidou-meaumainfusãodeerva-cidreira,emsuacabana,contíguaàescolaeàlojadopovoado. Tinha um transmissor de rádio, com o qual se comunicava com a Base de Yarinacocha.EstávamososdoissozinhosnoquartocujoasseioeratãometiculosocomoodopróprioMartín;LuchoLlosaeAlejandroPéreztinhamidoajudarospilotosadescarregarasredeseosmosquiteirosemque

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dormiríamos.A luz caía rapidamente e cresciamasmanchasde sombra ànossavolta.A selva inteiratinha começado a zumbir sincronicamente, igual que sempre a esta hora, recordando-nos que, sob suamaranhaverde,miríadesdeinsetosdominavamomundo.Logo,océuseencheriadeestrelas.

Acreditavamdeverdadeosmachiguengasqueasestrelaseramofulgorexpedidopelascoroasdosespíritos?Martín,imutável,assentiu.Queasestrelascadenteseramasflechasdefogodessesdeusinhos-crianças, osAnaneriite, e o orvalho do amanhecer, sua urina?Martín riu desta vez: sim, acreditavamnisso.E,agoraqueosmachiguengashaviamdeixadodeandar,paradeitarraízesemaldeias,osolcairia?Certamente que não: Deus se encarregaria de sustentá-lo. Examinou-me ummomento, com expressãodivertida:comotinhaeuconhecimentodessascrenças?Disse-lhequeosmachiguengasmeinteressavamháquaseumquartodeséculo;que,desdeentão,procuravalertudooqueseescreviasobreeles.Elheconteiporquê.Enquantoeufalava,suacara,benevolenteerisonhaaoprincípio,foisetornandograve,desconfiada.Escutou-mecomseveraatenção,semmexerummúsculodorosto.

—Estávendoqueminhasperguntassobreosfaladoresnãoeramumasimplescuriosidade,masumacoisamuitomaisséria.Elessãomuitoimportantesparamim.Talveztantocomoparaosmachiguengas,Martín.—Elepermaneciamudoequieto,comumaluzinhavigilantenofundodaspupilas.—Porquenãoquismecontarnadasobreeles?AprofessoradeNuevoMundotambémnãoquismedizerumaúnicapalavra.Porquetantomistériocomosfaladores,Martín?

Garantiu-me que não compreendia o que estava lhe dizendo.Que era isso de "faladores"?Nuncatinhaouvidofalardeles,nemnestepovoadonememnenhumoutrodacomunidade.Talvezexistissememoutrastribos,masnãoentreosmachiguengas.Estavamedizendoisto,quandoosSchneilentraram.Nãotínhamostomadotodaessaervacidreira,queeraamaisperfumadadaAmazônia,não?Martínmudoudeassuntoeacheiprudentenãoinsistir.

Mas,umahoramais tarde,quandonosdespedimosdeMartín, e, logoapósarmarminha redeeomosquiteiro na cabana que nos tinham emprestado, saí com os Schneil para tomar o fresco da noite,passeandopelodescampadocercadopelasvivendasdeNuevaLuz,oassuntovoltouameuslábiosoutravez,irresistível.

—Naspoucashorasqueestiveentreosmachiguengasnãopudeentendermuitascoisas—disseaeles.—Mas,pelomenosuma,sim,euentendi.Umacoisaimportante.

Océueraumbosquedeestrelaseumamanchadenuvensocultavaalua,quesósepressentiaporumdifusoresplendor.EmNuevaLuztinhamacendidoumafogueiranumadasextremidadesdaaldeia,e,emseu contorno, insinuavam-se de repente fugitivas silhuetas.Todas as cabanas estavamàs escuras, comexceçãodaquelaquenostinhamemprestado,iluminada,acinqüentametrosdenós,comaluzverdosadeuma lâmpada portátil.Os Schneil esperavam que eu continuasse. Caminhávamos devagar, sobre areiamaciaegramaalta.Apesardasbotas,começaraasentir,nostornozelosepeitosdospés,aspicadasdos

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mosquitos-pólvora.

—Equalé?—perguntou,afinal,asenhoraSchneil.

—Que tudo istoémuito relativo—prossegui,desorientado.—Querodizer, issodebatizarestepovoadocomonomedeNuevaLuzeocaciquecomodeMartín.IstodeescreveroNovoTestamentoemmachiguenga,istodeenviarosnativosàsescolasbíblicasetransformá-losempastores.Atransiçãodavida nômade à sedentária. A ocidentalização e a cristianização aceleradas. A suposta modernização.Compreendiqueépuraaparência.Pormaisquehajamcomeçadoacomerciar,aseserviremdodinheiro,opesodesuaprópriatradiçãoémuitomaisfortenelesquetudoisso.

Calei-me.Euosestavaofendendo?Eumesmonãosabiaqueconclusãotirardetodoessediscursoarrebatado.

—Sim,éclaro—tossiuEdwinSchneil,umpoucoconfuso.—Naturalmente.Centenasdeanosdecrenças,costumes,nãodesaparecemdodiaparaanoite.Levarátempo.Oimportanteéquecomeçaramamudar.Osmachiguengasdeagorajánãosãooqueeramquandochegamosaqui,eulhegaranto.

—Percebiqueháumpontoparaelesaindaintocável—interrompi-o.—TantoparaaprofessoradeNuevo Mundo como, aqui, para Martín, eu perguntei sobre os faladores. E a reação de ambos foiidêntica:negarqueexistissem,aparentarnãosabersequerdoquelhesfalava.Istoquerdizerque,mesmonosmachiguengasmais ocidentalizados, como a professora eMartín, resta um reduto de lealdade emrelação às crenças próprias.Certos tabus aos quais não estão dispostos a renunciar. Por isso eles osmantêmrigorosamenteocultosdosforasteiros.

—Osfaladores?—perguntouEdwinSchneil.Asurpresadelepareciagenuína.

Houveumalongapausa,duranteaqualozumbirdos invisíveis insetosnoturnospareceu tornar-seensurdecedor. Iria eleme perguntar quem eram os faladores? Também os Schneilme diriam, como aprofessoraeocacique-pastor,quenuncatinhamouvidofalardeles?Penseique,deverdade,osfaladoresnãoexistiam:euostinhainventadoelocalizadoemfalsasrecordaçõesparalhesdarrealidade.

—Ah, os faladores!— exclamou a senhora Schneil, por fim. E crepitou esse vocábulo ou frasecomofolhaspisoteadas.Pareceuquevinhaatémim,atravessandootempo,dobangalôàmargemdolagodeYarinaondeotinhaouvidopelaprimeiravezquandoerapoucomaisqueumadolescente.

—Ah—repetiuEdwinSchneil,arremedandoacrepitação,uma,duasvezes,comumressaibodeespanto.Osfaladores.Osspeakers.Sim,claro,éumatraduçãopossível.

—Mas,comoéquesabedeles?—disseasenhoraSchneil,virandoumpoucoacabeçaatéondeeuestava.

—Pelasenhora,porvocêsdois—murmurei.Adivinheique,napenumbra,abriammuitososolhosetrocavamumolharentreeles,sementender.Revelei-lhesentãoque,desdeaquelanoite,emseubangalô,

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namargemdolagodeYarina,emquemehaviamcontadosobreeles,osfaladoresmachiguengastinhamvividocomigo, intrigando-me, intranqüilizando-me, equedesde entãomil vezes tentei imaginá-los emsuasperegrinaçõesatravésdafloresta,recolhendoelevandohistórias,contos,mexericos,invenções,deumailhotamachiguengaaoutra,nessemaramazônicoondeflutuavam,àderivadaadversidade.Disse-lhesque,porumarazãodifícildeexplicar,aexistênciadessesfaladores,saberoquefaziameafunçãoque isso tinha na vida de seu povo, tinha sido nesses vinte e três anos um grande estímulo parameuprópriotrabalho,umafontedeinspiraçãoeumexemploqueteriagostadodeimitar.Sentiquefalavacomexaltaçãoemecalei.

Semqueotivéssemosdecidido,tínhamosparadojuntoaumapilhadetroncosegalhos,amontoadosnocentrodaclareiracomoqueparaacenderumafogueira.Nósnostínhamossentadoourecostadonessalenha.AgoraseviaKashiri,emquartocrescente,deumamarelo-alaranjado,rodeadadeseuvastoharémdevaga-lumesfaiscantes.Alémdosmosquitos-pólvorahaviamuitospernilongosetínhamosquenosdartapastodootempoparaafastá-losdenossosrostos.

— Muito bem, que curioso, quem poderia imaginar que se lembrasse disso, e, sobretudo, quechegasseatertantasignificaçãoemsuavida?—disseafinal,paradizeralgumacoisa,EdwinSchneil.Pareciaperplexoeumpoucodesconfortável.—Eunemmelembravaqueaquelaveztínhamosfaladodotemadoscontadores,não,dosfaladores,verdade?Quecurioso,quecurioso.

—NãomesurpreendenadaqueMartíneaprofessoradeNuevoMundonãotenhamqueridodizer-lhenadasobreeles—interveio,quaseemseguida,asenhoraSchneil.

—Éum temaquenenhummachiguengagostade tratar.Umassuntomuitoprivado,muito secreto.Nemconosco,queosconhecemoshátantotempo,quevimosnascermuitíssimosdeles.Eunãooentendo.Porqueelescontamtudo,suascrenças,seusritoscomoayahuasca,seusbruxos.Nãotêmreservassobrenada.Massobreosfaladores,sim.Éoúnicotemaqueevitamsempre.Edwineeutemosnosperguntadomuitasvezesporqueessetabu.

—Sim,éumacoisaestranha—concordouEdwinSchneil.—Nãosecompreende,porqueelessãomuito comunicativos e jamais hesitam em responder a qualquer pergunta.Osmelhores informantes domundo,pergunteaqualquerantropólogoquetenhaestadoporaqui.Talveznãogostemdefalardeles,nemqueiramqueagenteosconheça,porqueosfaladoressãodepositáriosdossegredosdafamília.Sabemtodasasintimidadesdosmachiguengas.Comoémesmoaqueleditado?Roupasujasódeveserlavadaemcasa,nãoéisso?Talvezotabusobreosfaladorescorrespondaaumsentimentoparecido.

Noescuro,asenhoraSchneilriu.

—Muitobem,éumateoriaqueamimnãoconvence—disse.—Porqueosmachiguengasnãosãonada reservados a respeitode coisas íntimas.Se soubesse as vezesquemedeixaramatônita e comorostoardendopeloquemecontavam...

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—Mas, em todo caso, garanto-lhe que se engana se acredita que é um tabu religioso—afirmouEdwin Schneil. — Não é. Os faladores não são bruxos nem sacerdotes, como o seripigari ou omachikanari.Sãosimplesmenteisso,faladores.

—Eusei—disseaele.—Jámeexplicounaprimeiravez.Masé isso,precisamente,oquemecomove. Que os machiguengas considerem tão importantes, a ponto de guardá-los em segredo, unssimplescontadoresdehistórias.

Dequandoemquando,uma sombra silentepassava junto anós, crepitavabrevemente,osSchneilcrepitavamumarespostaquedeviaequivaleraum"boanoite",easombradesaparecianatreva.Nenhumruídovinhadascabanas.Dormiajátodoopovoado?

—Masemtodosestesanosnãoouviramnuncaaumfalador?—perguntei-lhes.

—Eunãotiveessasorte—disseasenhoraSchneil.—Nuncativeestaoportunidadeatéagora.MasEdwin,sim.

—Eduasvezes—riuele.—Aindaque,emumquartodeséculo,nãosejamuito,nãoémesmo?Esperoqueistoquelhedigonãoovádecepcionar,masachoquenãogostariaderepetiraexperiência.

Aprimeiravez tinhasidoporpuracasualidade,eacontecerahápelomenosdezanos.OsSchneilestavamháalgunsmesesvivendoemumpequenoassentamentomachiguenganorioTikompinía,quando,certamanhã,ládeixandoaesposa,Edwinfoifazerumavisitaaoutrafamíliadacomunidade,aalgumashoras de canoa, rio acima. Viajou acompanhado de um garotinho, que o ajudava a remar. Quandochegaram,viramque,emvezdoscincoouseismachiguengasquealiviviam,eaquemEdwinSchneilconhecia,haviapelomenosunsvinte,algunsvindosdecasariosdistantes.Estavamacocoradosemmeio-círculo,velhosecrianças,homensemulheres,emtornodeumhomemqueperorava,sentadoecomaspernas cruzadas, encarando-os.Era um falador.Ninguém se opôs a queEdwinSchneil e omenino sesentassem também para escutar. E o falador não interrompeu seu monólogo enquanto eles seincorporavamaoauditório.

— Era bastante velho e falava tão rápido que tive trabalho para acompanhá-lo. Já devia estarfalandohátempo.Nãopareciacansado.Oespetáculodurouváriashorasainda.Dequandoemquando,passavam-lhe uma cabaça demasato para que limpasse a garganta com um golinho.Não, nunca tinhavisto antes esse falador.Muito velho, à primeira vista, embora, se saiba que, na selva, se envelhecerápido.Velho,entreosmachiguengas,podesignificar trintaanos.Eraumhomembaixo, robusto,muitoexpressivo.Eu,você,qualquerumque fale esse tempo todo, ficaria roucoe extenuado.Masele, não.Falavasemparar,commuitaenergia.Enfim,eraseuofícioesemdúvidaeleofaziabem.

De que falava? Bem, impossível lembrar. Que confusão! De tudo um pouco, das coisas que lhevinhamàcabeça.Doque tinhafeitonavésperaedosquatromundosdocosmosmachiguenga,desuasviagens,deervasmágicas,daspessoasquetinhaconhecidoedosdeuses,deusinhoseseresfabulososdo

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panteãodatribo.Dosanimaisquetinhavistoedageografiaceleste,umlabirintoderioscujosnomesnãohá quem recorde. E Edwin Schneil tinha trabalho para acompanhar, concentrado, aquela torrente depalavrasemquesepulavadeumacolheitademandiocasaosexércitosdedemôniosdeKientibakori,oespírito domal, e dali aos partos,matrimônios emortes nas famílias ou as iniqüidades do tempo dasangria de árvores, como chamavam eles a época do caucho.Muito cedo, Edwin Schneil ficoumaisinteressado que no falador, na atenção fascinada, estática, com que os machiguengas o escutavam,comemorandosuasanedotascomgrandesgargalhadasouentristecendo-secomele.Aspupilasávidas,boquiabertos,ascabeçaserguidas,nãoperdiamumapausa,umainflexão,daquiloqueohomemdizia.

Euescutavaolingüistacomoelesàquelehomem.Sim,existiam,esepareciamaosdosmaussonhos.

— Na verdade, lembro-me pouco do que contava — disse Edwin Schneil. — Dou-lhe só unsexemplos.Quemisturada!Lembro-me,sim,quecontouacerimôniade iniciaçãodeumjovemchamán,como ayahuasca, sob a direção de um seripigari.Relatou as visões que teve. Estranhas, incoerentes,comocertospoemasmodernos.Falou,também,daspropriedadesdeumpassarinho,ochobíburiti;seseenterramosossinhosdaasadele,moídos,nochãodacasa,estágarantidaaconcórdiafamiliar.

—Usamosareceitae,defato,nosdeutãobonsresultados—brincouasenhoraSchneil.—Vocênãoacha,Edwin?

Eleriu.

—Eles os entretêm, são seus filmes, sua televisão— acrescentou, agora sério, depois de brevepausa.—Seus livros, seuscircos,essasdiversõesdoscivilizados.Paraeles,adiversãoéumasónomundo.Osfaladoresnãosãonadamaisqueisso.

—Nadamenosqueisso—euocorrigi,suavemente.

—Sim?—disseele,desconcertado.—Poisbem,sim.Mas,desculpe-meseinsisto,nãoacreditoquehajanadadereligiosoatrásdisso.Eéporissoquechamaaatençãotodoessemistério,osegredocomqueoscercam.

—Cerca-sedemistériooqueparaumapessoaéimportante—ocorreu-medizer.

—Sobreissonãoháamenordúvida—afirmouasenhoraSchneil.—Paraeles,osfaladoressãomuitoimportantes.Masnãodescobrimosporquê.

Passou outra sombra furtiva, crepitou e os Schneil crepitaram. Perguntei a Edwin se tinhaconversado,naquelavez,comovelhofalador.

—Mal tive tempo.Naverdade,quando terminoude falar, jáestavaesgotado,medoíam todososossos. Por isso, não me demorei a dormir. Veja bem, quatro ou cinco horas sentado, sem mudar deposição,depoisderemarcontraacorrentequaseodiainteiro.Eouvindoesseestridordehistórias.Nãotinha coragem para mais nada. Dormi e, quando acordei, o falador já tinha ido embora. Como os

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machiguengasnãogostamdefalardoassunto,nãovolteiasaberdele.

Aí estava. Na rumorosa escuridão de Nueva Luz que me envolvia, eu o vi: a pele cobreada everdosa,encolhidapelosanosempregasincontáveis;ospômulos,onariz,atestaengalanadacomriscosecírculoscujafunçãoeraprotegê-lodasgarrasedosdentesdafera,dasinclemênciasdoselementosedamagiaedosdardosdoinimigo;baixinho,pernascurtasemarcadas,umpequenopanonacintura,e,sem dúvida, um arco e um bolsão cheio de flechas namão.Aí estava: andando entre omatagal e ostroncos,semi-invisívelnaespessavegetação,andando,andando,depoisdehaverfaladodezhoras,atéseu próximo auditório, para continuar falando. Quantos anos fazia isso? Como tinha começado? Eraaqueleummisterqueseherdava?Umapessoapodiaescolhê-lo?Eraimpostopelosdemais?

AvozdasenhoraSchneilapagouaimagem:

—Conte-lhedooutrofalador—disse.—Aquelequefoitãoagressivo.Oalbino.Vaiinteressá-lo,semdúvida.

—Bem,nãoseiseerarealmenteumalbino—riu,noescuro,EdwinSchneil.—Nósochamávamosogringo,entrenós.

Daquelaveznãotinhasidoporacaso.EdwinSchneilestavaemumassentamentodorioTimpía,comuma família de antigos conhecidos, quando surpreendentemente chegaram ali outras famílias dasproximidades,emestadodegrandeexcitação.Edwinnotoucochiches;apontavam-no,afastavam-separadiscutir. Adivinhou o motivo da apreensão deles. Disse-lhes que não se preocupassem, iria emboraimediatamente.Houveummomentâneoconsensoapesarde tudo,mas,a insistênciadosdonosdacasa,indicaram-lhe que podia permanecer.Quando, porém, chegou aquele que esperavam, surgiu uma novadiscussão, áspera, longa,porqueo falador exigiudemausmodos,gesticulando,queo forasteiro fosseembora,enquantoafamíliadolugarempenhava-seemqueficasse.EdwinSchneiloptouporsedespedirdeseushóspedes,dizendo-lhesquenãoqueriaseracausadeumabriga.Embrulhousuascoisasesaiu.Iaacaminhodeoutroassentamento,porumatalho,quandoosmachiguengasondeestiveraalojadovierambuscá-lo.Podiaregressar,podiaficar.Tinhamconvencidoofalador.

—Naverdade,nãoestavamconvencidos,unseoutros,dequeeuficasseemenosaindaofalador—acrescentou.—Este não achava nenhuma graça emminha presença ali. Fez com que eu sentisse suahostilidadenãomeolhandoumaúnicavez.Esseéocostumemachiguenga:tornarumapessoainvisívelcomseuódio.MasessafamíliadoTimpíaenóstínhamosumarelaçãoestreita,umparentescoespiritual,nósnostratávamosde"pais"e"filhos"...

—Émuitofortealeidehospitalidadeentreosmachiguengas?

—Aleidoparentesco,essasim—disseasenhoraSchneil.—Seuns"parentes"vãosehospedarnacasadeoutros,sãotratadoscomopríncipes.Nãoacontececomfreqüência,pelasgrandesdistânciasqueosseparam.PorissofizeramEdwinvoltareseresignaramaqueouvisseofalador.Nãoqueriamofender

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um"parente".

—Melhorquetivessemsidomenoshospitaleirosetivessemmedeixadopartir—suspirouEdwinSchneil.—Aindamedoemosossos,e,sobretudo,aboca,detantobocejar,recordandoaquelanoite.

Ofaladorcomeçaraseusrelatosaoentardecer,antesqueosolseocultasse,efaloutodoorestodanoite,seminterrupção.Quandosecalou,a luzacendiaascopasdasárvores.Epelametadedamanhã,EdwinSchneiltinhaaspernascomtaiscãibras,tantaspontadaspelocorpo,queprecisaramajudá-loparaselevantar,daralgunspassos,aprenderdenovoaandar.

—Nunca senti tão grandemal-estar emminha vidamurmurou.—Não suportavamais a fadiga,aqueledesconforto.Todaumanoiteresistindoaosono,àdordosmúsculos.Semetivesselevantado,elesteriamseofendidomuitíssimo.Sónaprimeirahora,outalveznasduasprimeiras,fiqueiacompanhandoashistórias.Depois,nãofizoutracoisaquelutarcomigomesmoparanãodormir.Mas,apesardosmeusesforços,todootempominhacabeçaandoudeumladoaoutro,comoobadalodeumsino.

Riu,baixinho,mergulhadoemsuaslembranças.

—Edwinaindatempesadelos,lembrandodaquelanoiteacordada,contendoosbocejosecocandoaspernas—riuasenhoraSchneil.

—Eofalador?—perguntei.

—Tinhaumgrandesinal—disseEdwinSchneil.Fezumapausa,procurandosuaslembrançasouaspalavrasparadescrevê-las.—Eunscabelosmaisvermelhosqueosmeus.Umtipoestranho.Oqueosmachiguengaschamamumserigórompi.Querdizerumexcêntrico,alguémdiferentedonormal.Poressescabeloscordecenouranósochamamosoalbino,ogringo,entrenós.

Nosmeus tornozelos, osmosquitos-pólvora estavam fazendoestragos.Sentia seus aguilhões emeparecia vê-los, afundando-se na pele, que agora se incharia em pequenos abscessos de intolerávelardência:eraopreçoquetinhaquepagarcadavezquevinhaàselva.AAmazônianãodeixaranuncadecobrá-lodemim.

—Umgrandesinal?—balbuciei,comdificuldade.Querdizer,auta?ComoadaquelemeninoquevimosestamanhãemNuevoMundo?

—Não,não,umsinal,umgrandesinalescuro—interrompeu-meEdwinSchneil,levantandoamão.—Cobria-lhetodooladodireitodacara.Umaaparênciaimpressionante,eulhegaranto.Nãotinhavistoumhomemcomumsinalassim,nunca,nementreosmachiguengasnememoutrolugar.Enãovolteiavê-lomais,também.

Senti, também, as picadas dos pernilongos em todas as partes descobertas do corpo: a cara, opescoço, os braços, asmãos.As nuvens que a ocultavam tinham andado e, agora,Kashiri estava ali,incompletaelúcida,olhando-nos.Umcalafriopercorreumeucorpo,dacabeçaaospés.

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—Tinhaoscabelosvermelhos?—murmurei,muito lentamente.Minhaboca ficarasecaeminhasmãos,emcompensação,suavam.

—Maisqueeu—riuele.—Umverdadeirogringo,eujuro.Talvezumalbino,afinaldecontas.Masnão tive muito tempo para observá-lo. Já lhe disse em que estado fiquei, depois daquela sessão dehistórias.Comoqueanestesiado.Equandoacordei,elejátinhaidoembora,naturalmente.Paranãoterquefalarcomigonemmevermaisacara.

—Queidadepodia terele?—articulei,comumgrandecansaço,comosefosseeuquehouvessefaladotodaanoite.

Edwinencolheuosombros.

—Quem sabe?— suspirou.— Já terá notado como é difícil adivinhar a idade deles. Eles nãosabem,nãoacalculamcomonós,e,alémdisso,todosalcançammuitodepressaaidademédia.Aidademachiguenga, vamos dizer. Mas mais jovem que eu, certamente. Como você, talvez, ou, quem sabe,menos.

Tossi, sem vontade, duas ou três vezes, dissimulandominha ansiedade. E senti, de repente, umavontadeferoz, insuportável,defumar.Comosetodososporosdocorpotivessemseabertoderepenteexigindoaspiraruma,miltragadasdefumaça.Faziacincoanosquetinhafumadoaquelequepenseiseriameu último cigarro, estava certo de me haver livrado para sempre do fumo, fazia já bastante que osimplescheirodocigarromeirritava,eeisaquique,derepente,nanoitedeNuevaLuz,denãoseiqueprofundidadesmisteriosas,surgia,avassalador,urgentíssimo,odesejodefumar.

—Falavabemomachiguenga?—eumeouvidizer,baixinho.

—Bem?—perguntouEdwinSchneil.—bom,falava,falavasemparar,sempausas,sempontos.—Riu,exagerando.—Comofalamosfaladores.Contandotodasascoisashavidaseporhaver.Eraoqueera,então.

—Sim—disseeu.—Querodizer,omachiguenga,eleofalavabem?Nãopodiaser...?

—Sim?—disseEdwinSchneil.

—Nada—disseeu.—Umabobagem.Nada,nada.

Ainda, como em sonhos, pensando estar muito atento às picadas dos mosquitos-pólvora e dospernilongos e à vontade de fumar, devo ter perguntado a Edwin Schneil, com uma estranha dor nasmandíbulasenalíngua,comoseastivesseextenuadasdetantousá-las,quantotempofaziaqueaconteceuaquilo—"Oh,devefazerunstrêsanosemeio",respondeu—esetornaraaouvi-lo,verousaberdele,etê-lo escutado responder que não às três perguntas: eu já o sabia, era um assunto sobre o qual osmachiguengasnãosemostravamloquazes.

QuandomedespedidosSchneil—dormiamnacasadeMartín,eles—efuiàcabanaondeestava

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minharede,acordeiLuchoLlosa,parapedir-lheumcigarro."Desdequandovocêfuma?",estranhouele,entregando-meum,commãoslentasdesono.

Nãooacendi.Fiqueicomeleentreosdedos,noslábios,imitandoosgestosdefumar,nocursodessalonga noite, enquanto me balançava suavemente na rede, ouvia a respiração pausada de Lucho, deAlejandro e dos pilotos, ouvia estridular a floresta e sentia passar, um por um, lentos, solenes,inverossímeis,impregnadosdepasmo,ossegundos.

RetornamosaYarinacochamuitocedo.Tivemosquefazerumaaterrissagemimprevista,nametadedo vôo, porque um temporal nos surpreendeu. No pequeno povoado campa onde nos refugiamos, àsmargens do Urubamba, havia um missionário norte-americano, que parecia um daqueles personagensfaulknerianosdeumasóidéia,teimosiaintrépidaealarmanteheroísmo.Vivianaquelassolidõesháanos,com a mulher e vários filhos pequenos, e, na memória, vejo-o ainda, sob o aguaceiro torrencial,dirigindo,comenérgicosmovimentosdosbraços,unshinosqueelemesmo,paradaroexemplo,entoavagritando, sob um telhado que as trombas-d'água ameaçavam arrancar a qualquer momento. Os vintecampasmexiamdeleveoslábios,dandoaimpressãodequenãoemitiamsomalgum,masolhavamparaelefixamente,comaatençãoeoencantamentocomquecertamenteosmachiguengasolhavamparaseusfaladores.

Quando recomeçamos o vôo, os Schneil perguntaram se nãome sentia bem.Respondi que estavamuitobem,emboraumpoucocansado,poistinhadormidopouco.EmYarinacochaestivemosapenasosminutosindispensáveisparaentraremumjipequenoslevasseaPucallpa,afimdealcançarovôodaFaucettparaLima.Noavião,Luchomeperguntou:"Quecaraéessa?Quefoiquesaiuerradodestavez?"Estive a ponto de lhe revelar por que eu andava mudo e abobalhado, mas logo que abri a bocacompreendi que não poderia. Não cabia numa história; era demasiado irreal e literário para serverossímiledemasiadosérioparabrincarcomosesetratassedeumsimplesacontecimento.

Agorasabiaarazãodotabu.Sabia?Sim.Podiaserpossível?Sim,podia.Porissoevitavamfalardeles, por isso os haviam ocultado cuidadosamente dos antropólogos, lingüistas, missionáriosdominicanos nos últimos vinte anos, por isso não apareciam nos trabalhos escritos dos etnólogoscontemporâneossobreosmachiguengas.Nãoprotegiamainstituição,ofaladoremabstrato.Protegiam-no. A pedido dele mesmo, sem dúvida. Não despertar a curiosidade do viracocha sobre esseextraordinárioenxertonatribo.Eelesvinhamfazendocomoelelhespedira,hátantosanos,guarnecendo-o dentro de um tabu que foi se comunicando à instituição toda, ao falador em abstrato. Se tinha sidoassim,elesorespeitavammuito.Seeraassim,paraeleselejáeraumdeles.

Começamosaeditaroprogramanaquelamesmameia-noite,naTV,depoisde termosidoanossascasaspáraumbanho,mudarderoupa,e,eu,aumafarmáciaembuscadepomadaseantialérgicosparaaspicadasdosmosquitos-pólvora.Decidimosqueoprogramateriaaformadeumdiáriodeviagem,ondeeu iria misturando comentários e lembranças com as entrevistas feitos em Yarinacocha e no Alto

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Urubamba.Comosempre,Moshé,enquantoviaomaterial,brigavaconoscopornãohavermosfeitoessasimagensdaquelaoutramaneiraoufeitodesta.Então,lembrei-mequeeletambémerajudeu.

—Comoéquevocêsedácomopovoescolhido,aquinoPeru?

—Comoamacaca,naturalmente—disse-meele.—Porquê?Vocêquersecircuncidar?

—Seráquemefazumfavor?HaveriaumjeitodesaberondeandaumafamíliadacomunidadequesemudouparaIsrael?

—Vamosfazeruma"TorredeBabel"sobreoskibbutzim?—perguntouLucho.—Entãovamosterquefazeroutrosobreosrefugiadospalestinos.Mas,como;oprogramanãoterminanapróximasemana?

—OsZuratas.Opai,DomSalomón,tinhaumalojinhaemBreña.Eueraamigodofilhodele,Saúl.ForamparaIsraelnoiníciodosanossessenta,parece.Sefossepossívelsaberoendereçodeles,seriaumgrandefavor.

—Vereioquepossofazer—respondeu-meMoshé.—Imaginoquenacomunidadeháumregistrodessascoisas.

OprogramasobreoInstitutoLingüísticoeosmachiguengassaiumaislongoqueoprevisto.Quandoo entregamos, advertiram-nos que naquele domingo havia um espaço vendido, a hora determinada, demodoquesenãooreduzíamosnósmesmosaumahoracerta,ooperadorofarianomomentodelevá-loao ar, e dequalquermodo.Tivemosque cortá-lo àspressas edemauhumor, poiso tempoera curto.Entãojáestávamoseditandooúltimo"LaTorredeBabel",dodomingoseguinte.Tínhamoscombinadoque este programa seria uma antologia dos vinte e quatro anteriores.Mas, como sempre, tivemos quemudardeplanos.Desdequeiniciamosoprograma,eutinhatentadoconvencerDorisGibsonadarumaentrevistaenosajudara fazerumanotasobresuavidadefundadoraediretoraderevistas,mulherdeempresa, inimigadeditadurasevítimadelas—emumacélebreocasião,esbofetearaospoliciaisquetinhamidorequisitarnúmerosdeCaretas—esobretudodemulherque,emumasociedadeentãomuitomais machista e preconceituosa que a de agora, tinha sido capaz de abrir caminho e obter êxito emdomíniosquesepensavammonopóliodohomem.Aomesmotempo,DoristinhasidoumadasmulheresmaisbelasdeLima,cortejadapormilionáriosemusadepintoresepoetascélebres.AimpetuosaDoris,queapesarde tudoémuito tímida,negou-seaatendermeupedido,pois,dizia,acâmeraa intimidava.Mas naquela nossa última semana mudou de opinião e mandou dizer-me que aceitava aparecer noprograma.

Entrevistei-a,então,eessaentrevista,juntocomaantologia,encerrouasérie"LaTorredeBabel".Fielaseudestino,oúltimoprograma,queMoshé,Lucho,Alejandroeeuvimosemminhacasa,àvoltadeumamesacompratoschinesesecoposdecervejagelada, fuivítimadeumimponderável técnico.Porumadessasmisteriosasrazões—asabotagemceleste—queeramopãodecadadianaTV,nomomentodatransmissãoumainesperadamúsicadejazzsefezpresenteeacompanhou,comofundomusical,todos

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osepisódiosqueDoriscontavasobreaditaduradoGeneralOdría,osseqüestrospoliciaisdeCaretasouapinturadeSérvuloGutiérrez.

Quando terminouoprogramae estávamosbrindandopor suamorte enão-ressurreição,o telefonetocou.EraDoris,paraperguntar-mesenãoteriasidomaisapropriadoque,emvezdaquelescompassosde jazzum tanto insólitos, tivéssemos animadoa entrevistadela comyaravíes arequipenhos[13] (ela é,entreoutrascoisas,umaarequipenhafanática).QuandoLucho,MoshéeAlejandroacabaramderirdasexplicaçõesqueeutinhainventadoparajustificarapresençadojazznoprograma,Moshédisse:

—Apropósito,ia-meesquecendo.Jácompleteiainvestigação.

Tinha-sepassadomaisdeumasemanaeeunemmelembravamais,porqueimaginavaarespostaemeassustavaumpoucoqueeleaconfirmasse.

—ParecequenãoforamparaIsrael—disse.—Deondevocêteveessainformação?

—OsZuratas?—perguntei-lhe,sabendomuitobemdoquefalava.

—Pelomenos,DomSalomónZuratasnãofoi.Morreuaqui.Estáenterradonocemitério judeudeLima,odaAvenidaColonial.—Moshétirouumpapelzinhodobolsoeleu.—A23deoutubrode1960.Foisepultadonessedia,sevocêprecisardemaisdados.Meuavôoconheciaeestevenoenterrodele.Arespeito do filho, seu amigo, talvez ele tivesse ido a Israel,mas não pude saber nada. Todos os queperguntei,nãosabemdenada.

Maseusim,pensei.Euseitudo.

—Tinhaumagrandemanchanacara?—perguntouMoshé.—Meuavôse lembraatédisso.Erachamadodefantasmadaópera?

—Umenorme.NósochamávamosdeMascarita.

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VII

ACONTECEMcoisasboaseacontecemcoisasmás.Umacoisamáéqueseestejaperdendoasabedoria.Antes, abundavamos seripigaris e se tinha dúvida sobre o que comer, amaneira de curar o dano, aspedrasqueprotegemcontraKientibakorieseusdiabinhos,ohomemqueandaiaperguntar.Semprehaviaalgum seripigari perto. Fumando, bebendo cozimento, pensando e conversando com o saankarite nosmundosdemaisemcima,eleverificavaaresposta.Agorahápoucosealgunsnãodeveriamsechamarseripigaris, pois, por acaso sabem dar conselhos?A sabedoria deles secou como raiz bichada, quemsabe.Istoestátrazendomuitaconfusão.Assimdizem,porondevou,oshomensqueandam.Seráquenãonosmovemos bastante?, dizendo. Teremos ficado, talvez, preguiçosos? Estaremos faltando com nossaobrigação,quemsabe.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Oseripigarimaissábioqueeuconhecijásefoi.Talvezterávoltado;talveznão.ViviadooutroladodoGranPongo, aí pelo rioKompiroshiato.Tasurinchi era o nome dele.Não havia segredos para elenestemundonemnosoutros.Sabiadiferenciarosgusanosqueagentepodecomerpelacordeseusanéise suamaneira de se arrastar.Olhava-os assim, enrugandoos olhos, com seuolhar profundo.Umbomtempo ele os olhava. E, então, sabia. Tudo que sei de gusanos soube por ele. O que se cria no ubá,chakokieni,ébom,emauoquevivenalupuna.Bom,odostroncospodres,shigopi,eodosramosdamandioca.Malíssimooqueseaninhanacarapaçadatartaruga.Omelhoreomaissaboroso,odobagaçoda mandioca e do milho esmagados para fazer masato. Esse gusano, kororo, adoça a boca, limpa oestômago,tiraafomeefazdormirseminquietações.Emcompensação,odocadáverdojacaréencalhadoàmargemdolago,abreferidasnocorpoeprovocaasvisõesdeumamareadaruim.

Tasurinchi,odoKompiroshiato,melhoravaavidadaspessoas.Tinhareceitasdetudoeparatudo,é.Elemeensinoumuitas.Agoramelembrodesta.Aquelequemorrepicadodevíboradeveserqueimadodepressa;senão,ocadáverdelecriará répteisea florestaàvolta fervilharádeanimaisvenenosos.Edestaoutra.Nãobastaqueimaracasadoquesevai,deve-sefazê-lodecostas.Olharparaaschamastrazdesgraça.Falarcomaqueleseripigaridavamedo.Agenteviaomuitoquenãosabia.Daignorânciaseusperigos, talvez. "Como aprendeu tantas coisas?", perguntava-lhe eu, dizendo: "Parece que você teriavividodesdeantesquecomeçássemosaandareteriavistotudoeprovadotudo."

"O importante é não impacientar-se e deixar que o que tem que acontecer, aconteça, ele merespondia.Seohomemvive tranqüilo,semse impacientar, temtempoderefletire recordar",dizendo.Assimencontraráseudestino,talvez.Viverácontente,quemsabe.Oaprendido,elenãoesquecerá.Seseimpacienta, adiantando-se ao tempo,omundo seperturba,parece.Ea almacai emuma teia. Isso é a

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confusão.Opior,dizem.Nestemundoenaalmadohomemqueanda.Entãonãosabeoquefazer,paraondeir.Nãosabedefender-se,também;oquefarei?Oqueheidefazer?dizendo.Entãoosdiaboseosdiabinhosintrometem-seemsuavidaebrincamcomela.Comoascriançasfazendoasrãspularem.Oserrossãocometidossemprepelaconfusão,parece.

"Oque sedeve fazerparanãoperder a serenidade,Tasurinchi?" "Comerodevido e respeitar asproibições,falador."Casocontrário,aqualquerumpodeaconteceroqueaconteceuaTasurinchi,aquelavez.

Oqueaconteceuaele?

Istoaconteceuaele.Issofoiantes.

Eraumgrandecaçador.Sabiao tamanhodaarmadilhaparao javali,onódecordaparaopaujil.Sabiadissimular a jaulaparaque entrasse a capivara.Mas sabia, principalmente,manejaro arco.Asflechasdeleacertavamnoalvonaprimeira,sempre.

Umdiaque saíradecaça,depoisde sealimentare sepintarcomodevia, sentiuqueas folhas semexiam a pouca distância. Pressentiu uma forma e se levantou — um animal grande! dizendo.Aproximava-se devagar, desprevenido. Sem verificar o que era, rapidamente, atirou a flecha. Correuparaver.Aliestava,morto.Oque tinhacaído?Umveado.Assustou-semuito,naturalmente.Agora lheaconteceriaalgumdano.Oqueaconteceaquemmataumanimalproibido?Nãohavianenhumseripigariperto para perguntar. Seu corpo se encheria de bolhas? Seria atormentado por dores horríveis? Oskamagarinis lhearrancariamumaalmaessanoite e a levariamparao altodeumaárvoreparaqueosabutres a bicassem? Passarammuitas luas e nada aconteceu a ele. Então, Tasurinchi se envaideceria."Issodequenãosedevematarveadoséengano",parentesdeleouviram-lhedizer,"conversafiadademedrosos,esó"."Comoseatreveadizerisso?",brigavamcomele,olhando-opeloslados,peloaltoeporbaixo,assustados."Eumateiumemesintotranqüiloefeliz",respondia-lhes.

Dizendo, dizendo,Tasurinchi passou a fazer o que dizia.Começou a caçar veados. Seguia-lhes orastroatéacollpaondeiamlamberterrasalobre.Seguia-osatéoremansoondesereuniamparabeber.Procurava as covas onde as fêmeas iam pari-los. Metia-se em um esconderijo e, vendo o veado,flechava-o.Elesagonizavamolhando-ocomseusgrandesolhostristes,comoquelheperguntando:"oquefoi que vocême fez?" Então ele os punha sobre o ombro. Contente, talvez. Sem se importar com asmanchasdosanguedoanimalquehaviacaçado.Nadamaisoimportaria,agora.Nadatemeria.Levava-opara casa e ordenava à mulher: "Cozinha-o. Como a sachavaca, igual", dizendo-lhe. Ela o obedeciatremendodemedo.Àsvezes,tentavapreveni-lo."Estacomidavainostrazerdanos",choramingando."Avocê e amim e a todos, talvez. É como se você comesse seus filhos e suasmães, então, Tasurinchi.Somos chonchoites, por acaso? Quando o machiguenga comeu carne humana?" Ele zombava dela.Engasgando-se com os nacos de carne, mastigando, dizia: "Se os veados são gente transformada, os

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chonchoitestêmrazão.Éalimento,ésaboroso.Olhesóobanquetequemedou,olhecomogozocomestacomida."Esoltavamuitospeidos.Nafloresta,Kientibakoribebiamasato,dançandonafesta.Ospeidosdelepareciamtrovões;oarroto,orugidodojaguar.

E, efetivamente, apesar dos veados que flechava e comia, nada acontecia a Tasurinchi. Algumasfamílias assustavam-se; outras, alertadas pelo exemplo dele, começaram a comer carne proibida. Omundosetornouconfuso,então.

Umdia,Tasurinchiencontrouumrastronafloresta.Ficoucontentíssimo.Eragrande,podiasegui-losemdificuldadeeaexperiênciaindicou-lhequeeraumamanadadeveados.Percorreu-adurantemuitasluas, iludido,ocoraçãobatendoforte."Quantoscaçarei?",sonhava."Quemsabetantosquantasflechaslevo.Eeuvouarrastá-losumporumatéminhacasa,elávoucortá-los,vousalgá-loseteremoscomidaparamuitotempo."

Orastroterminavaemumpequenolagodeáguasescuras;aumcanto,caíaumacascatameioocultapelos galhos e folhas das árvores. A vegetação abafava o ruído da água e o lugar não parecia destemundo mas do Inkite. Tão aprazível, talvez. Aqui vinha a manada para beber. Aqui se reuniriam osveadospara comeros despojos dodia.Aqui dormiriam, aquecendo-seuns contra os outros.Excitadocomseuachado,Tasurinchiexaminouosarredores.Aliestava,aquelaeraamelhorárvore.Láteriaumaboa visão, dali expediria suas flechas. Subiu, fez seu esconderijo com ramos e folhas. Quietinho,quietinho,comosesuasalmastivessemescorridoeseucorpofosseumpelegovazio,esperou.

Nãomuito tempo. Pouco depois, seu fino ouvido troc troc de grande caçador percebeu, longe, otambordaspatasdoveadonafloresta:troctroctroc.Logooviuaparecer:umveadoalto,arrogante,eseuolhartristedehomemquefoi.BrilharamosolhosdeTasurinchi,então.

Seus lábios, quem sabe, teriam se umedecido, "que macio, que saboroso", pensando. Apontou edisparou.Masaflechapassousilvandojuntoaoveado,comoquesedesviandoparanãotocá-lo,efoiperder-senofundodafloresta.Quantasvezespodemorrerumhomem?Muitas,parece.Aqueleveadonãomorreu.Nemseespantou.Oqueéqueestavaacontecendo?Emvezdefugir,dispôs-seabeber.Esticandoopescoçoatéabeiradolago,metendoe tirandoofocinhodaágua,estalandoa língua,bebiashhshh.Shh, shh, contente. Como se não houvesse sentido o perigo. Tranqüilo. Seria surdo, talvez? Seria umveadosemolfato?JáentãoTasurinchiestavacomasegundaflechapronta.Troc,troc.Aídescobriuqueoutroveadochegava,abrindoosgalhos,mexendoasfolhas.Foiessecolocar-sejuntoaoprimeiroesepôs a beber.Contentes pareciamos dois, tomando água. Shh shh shh.Tasurinchi arremessou a flecha.Tambémdestaveznãoacertou.Oqueéqueestavaacontecendo?Osdoisveadoscontinuavambebendo,sem se assustarem, sem fugir. Então, o que é que está acontecendo a você, Tasurinchi?Amão estarátremendo?Teráperdidoavista?Nãosaberámaiscalcularadistância?Oquefaria?Hesitava,incrédulo.Omundotornara-setrevaparaele.Eeleassimesteve,disparando.Disparoutodasasflechasquetinha.Troc,troc.Troc,troc.Osveadoscontinuavamchegando.Maisemais,tantos,muitíssimos.Nosouvidos

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deTasurinchi,ostamboresdeseuscascosressoavamsempre.Troc,troc.Nãopareciamvirdestemundomas do debaixo ou do de cima. Troc, troc. Então, compreenderia. Quem sabe. Eram eles ou você,Tasurinchi,osquetinhamcaídonaarmadilha?

Ali estavam os veados, tranqüilos e sem raiva. Bebendo, comendo, preguiçando, acasalando-se.Esfregando-se os pescoços, dando-se cabeçadas. Como se nada houvesse acontecido nem fosseacontecer. Mas Tasurinchi sabia que eles sabiam que ele estava aí. Assim vingariam seus mortos?Fazendo-osofrercomestaespera?Não,esteerasóocomeço.OquetinhaqueacontecernãoaconteceriacomosolnoInkite,masdepois,àhoradeKashiri.Oressentido,omanchado.Escureceu.Océuencheu-sedeestrelas.Kashirimandousualuzpálida.Tasurinchiviafaiscarnosolhosdosveadosessanostalgiadenãosermaishomens,atristezadenãoandar.Osanimais,derepente,comoqueouvindoumaordem,começaram a semovimentar.Aomesmo tempo, parece.Vinham todos até a árvore de Tasurinchi.Aíestavam a seus pés. Havia muitíssimos. Uma floresta de veados, era. Um após o outro, de maneiraordenada,semseimpacientar,semseestorvar,marravamaárvore.Primeirocomoquebrincando,depoismaisforte.Maisforte.Eleestavatriste."Assimvoucair",dizendo.Nuncapoderiaacreditarque,antesdeir,estariaigualaummacacoshimbilloagarradoaumgalho,tentandonãoafundarnaquelaescuridãodeveados.Resistiu toda a noite, entretanto. Suando e gemendo ele resistiu, antes que se cansassem seusbraços e suas pernas. Ao amanhecer, extenuado, deixou-se escorregar. "Devo aceitar minha sorte",dizendo.

Agora é umveado ele também, comoos outros. Por aí andará, assim, para cima e para baixonafloresta,troctroc.Fugindodotigre,medrosodaserpente.Troctroc.Cuidando-sedopumaedaflechadocaçadorque,porignorânciaoumaldade,mataecomeseusirmãos.

Quandoencontroumveado,lembrodahistóriaqueouvidoseripigaridorioKompiroshiato.Mas,eseesse fosseTasurinchi,o caçador?Quempoderia sabê-lo?Eu,pelomenos,não saberiadizer seumveadofoiounão,antes,homemqueanda.Eumeafasto,olhando-o.Talvezmereconheça;talvez,vendo-me,pensará:"Eufuicomoele."

Quemsabe.

Em umamareada ruim, ummachikanari do rio do arco-íris, oYoguieto, transformou-se em tigre.Comofoiquesoube?Pelaurgênciaquesentiu,derepente,dematarveadosecomê-los."Cegoderaivafiquei",dizia.E,rugindodefome,saiucorrendopelafloresta,norastrodeles.Atéquedeucomumeomatou.Quandovoltouasermachikanari,tinharestosdecarnenosdenteseasunhassangrandodetantousá-las."Kientibakorideveriaestarcontente,então",diziaele.Estaria,talvez.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Comooveado,cadaanimaldaflorestaterásuahistória.Opequeno,omédioeogrande.Oquevoa,comoobeija-flor.Oquenada,comooboquichico.Oquecorresempreemmanada,comoahuangana.

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Todosforamantesumacoisadiferentedoquesãoagora.Atodosteriaacontecidoalgumacoisaquesepodecontar.Gostariamdesaberashistóriasdeles?Eutambém.Muitasdasquesei,ouvidoseripigaridoKompiroshiato.Sefossepormim,aindaoestariaescutando,lá,comovocêsaqui,agora.

Masele,umdia,memandouemboradesuacasa:"Atéquandovaificaraqui,Tasurinchi?",brigandocomigo."Temqueirembora.Vocêéfalador,euseripigari,eagora,tantoperguntar,tantomefazerfalar,estáme fazendo ser o que você é.Gostaria de se tornar seripigari?Teria que nascer de novo, então.Passarportodasasprovas.Purificar-se.Termuitasmareadas,boasemás,e,sobretudo,sofrer.Chegaràsabedoriaédifícil.Vocêjáévelho,nãoacreditoqueaalcançaria.Alémdisso,quemsabeseseráesseseudestino.Váembora,váandar.Fale,fale.Nãomudeaordemdomundo,falador."

É verdade, eu sempre estava fazendo perguntas a ele. Sabia tudo e isso aumentava minhacuriosidade."Porqueoshomensqueandampintamocorpocomurucu?",perguntei-lheumavez. "Porcausadomoritoni",respondeu-me."Dessepassarinho,vocêquerdizer?""Sim,dessemesmo."E,então,elemefezpensar.Porquepensaqueosmachiguengasevitammataromoritoni,então?Porque,quandooencontramnaspastagens,procuramnãopisá-lo?Porque,quandoaparecenaárvoreevêsuaspatinhasbrancas,seupeitonegro,vocêsesenteagradecido?Graçasàplantadourucueaopassarinhomoritoniandamos,Tasurinchi.Semela,semele,oshomensqueandamteriamdesaparecido.

Fervido,teriam,ardendodebolhas,rebentando-lhesasborbulhas,então.Issofoiantes.Omoritoniera,então,criançaqueanda.UmadesuasmãesseriaInaenka.Sim,odanoquedesmanchaacarneeraentãomulher.Odanoquequeimaacaradeixando-acheiadeburacos.Inaenka.Elaeraessedanoeelaera a mãe do moritoni também. Parecia uma mulher igual às outras, mas mancava. Todos os diabosmancam?Pareceque sim.DizemqueKientibakori também.Amanqueira fazia Inaenkapadecer;vestiaumatúnicalonga,longuíssima,enuncaseviaospésdela.Nãoerafácilreconhecê-la,saberquenãoeramulhermas o que era. Tasurinchi estava pescando àmargem do rio. De repente, um súngaro enormemeteu-senarede.Eleficoucontentíssimo.Poderiatirarumagameladeóleo,talvez.

***

Nissoviu,àfrente,sulcandoaságuas,umacanoa.Distinguiuumamulherremando,eváriascrianças.Umseripigari,queaspiravatabacosentadonacabanadeTasurinchi,alimesmoadivinhouoperigo."Nãoachame",advertiu-o."NãoestávendoqueéInaenka?"MasjáTasurinchi,impaciente,tinhaassobiado,játinha feito o seu cumprimento.As tanganas que impulsionavam a canoa se levantaram. Tasurinchi viuaproximar-seaembarcaçãodamargem.Amulhersaltouàpraia,contente.

"Quelindosúngarovocêpescou,Tasurinchi",aproximou-sedele,dizendo.Caminhavadevagarinhoeelenãonotavaamanqueiradela."Ande,leve-oparacasa,euvoucozinhá-lo.Paravocê,ora."

Tasurinchiobedeceu,vaidoso.Atirouopeixeaoombroetomouocaminhodesuacabana,ignorante

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dequetinhaencontradoseudestino.Sabendooquelheaconteceria,oseripigariolhava-otriste.Faltandounspassosparachegar,osúngaroescorregoudoombro,atraídoporumkamagariniinvisível.Tasurinchiviuque,tocandoochão,oanimalcomeçavaaperderapele,comoselhetivessemjogadoáguafervendo.Estavatãosurpresoquenãoatinavaachamaroseripigarinemasemexer.Issoeraomedo.Osdentesdeleschocavam-se,talvez.Aturdia-o,impedia-odeperceberqueaeletambémcomeçavaaaconteceramesmacoisaqueaosúngaro.

Só quando sentiu um ardor e cheirou a carne queimada, olhou seu corpo: estava se pelando eletambém.Emalgunslugares,jápodiaverseuinteriorsanguinolento.Caiuaochão,aterrorizado,gritando.Esperneando e chorando estava Tasurinchi. Então, Inaenka aproximou-se dele e o olhou com suaverdadeiracara,umabolhadeáguafervendo.Molhou-obem,decimaparabaixo,gozandoaovercomoTasurinchi,assimcomoosúngaro,sepelava,ferviaemorriacomodano.

Inaenka começou a dançar, contente. "Sou a dona da enfermidade que mata rápido", gritava,desafiando os homens. Aumentavamuito a voz, para que toda a floresta o soubesse. "Eu osmatei e,agora,cozidosepreparadoscomurucu,voucomê-los",dizendo.Kientibakorieseusdiabinhosdançavamtambém,alegres,empurrando-seesemordendopelafloresta."Ehé,ehé,elaéInaenka",cantando.

Sóentãopercebeuamulhercomcaradebolhafervendoquealiestavatambémoseripigari.Olhavaserenooqueacontecia,semraiva,semmedo,aspirandootabacopelonariz.Espirrava,tranqüilo,comoseelanãoestivessealinemhouvesseacontecidonada.Inaenkadecidiumatá-lo.Aproximou-sedeleejáia espalhar um pouco de água fervendo quando o seripigari, imperturbável, mostrou-lhe duas pedrasbrancasquedançavampenduradasnoseupescoço.

—Nãopodemefazernadaenquantoeutiverestaspedras",lembrou-lhe."Elasmeprotegemdevocêedetodososdanosdomundo.Poracasonãosabedisso?"

"Éverdade", respondeu Inaenka. "Esperareiaqui,a seu lado,quevocêdurma.Então, tirareiestaspedras,jogareinorioemolhareivocêàvontade.Nadaosalvará.VaisepelarigualaosúngaroesuapelerebentaráembolhascomoadoTasurinchi."

Assim sucederia, talvez. Pormais que lutasse contra o sono, o seripigari não poderia resistir.Ànoite, estonteadocoma luzmentirosadeKashiri,omanchado, eledormiu. Inaenkaaproximou-sedelemancando.Commuitadelicadezatirou-lheasduaspedraseaslargouàcorrente.Então,jápôdesalpicar-lhe água da grande bolha que era sua cara e gozou vendo como o corpo do seripigari fervia,desmanchava-seemincontáveisbolhasecomeçavaapelar,arebentar.

"Quebombanquetemedareiagora",ouvia-seelagritar,saltandoedançando.Osfilhos,dacanoaatracada namargem, viram as desgraças de Inaenka. Preocupados estariam, quem sabe. Tristes, quemsabe.

Haviaporalipertoumpédeurucu.Umdosfilhosdamulher-danonotouqueaplantinhaestendia

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seus ramos e agitava suas folhas na direção dele. Queria dizer-lhe alguma coisa, talvez? O meninoaproximou-sedelaeseabrigousobobafoardentedeseusfrutos."EusouPotsotiki",ouviu-adizercomvoz trêmula. "Inaenka, sua mãe, acabará com o povo que anda se não fazemos alguma coisa." "Quepodemosfazer?",entristeceu-seomenino."Ela temessepoder,elaéaenfermidadequemata rápido.""Sequerajudar-measalvaroshomensqueandam,podemos.Seelesdesaparecem,osolcairá.Deixarádeaquecerestemundo.Ouprefereque tudoseja trevaeosdemôniosdeKientibakoriseapoderemdetudo?""Euaajudarei,disseomenino.Quedevofazer?"

"Coma-me",ensinou-lheaplantadourucu."Mudarádecaraesuamãenãooreconhecerá.Vocêseaproximará dela e lhe dirá: "Conheço um lugar onde os imperfeitos se tornamperfeitos; osmonstros,homens.Lá,seuspésserãocomoosdasoutrasmulheres."E,então,vocêalevaráaestelugar."Agitandocom sabedoria suas folhas e ramos, fazendo dançarem alegremente seus frutos, Potsotiki explicou aomeninoorumoquedeviaseguir.

Inaenka,ocupadaemdespedaçaros restosdosquehaviamatado,vendoaparecer suas tripas, seucoração,nãopercebiaoquetramavam.Umavezquecortouospedaços,assou-oseos temperoucomourucu, que lhe agradava muito. Por aí o menino já tinha comido a Potsotiki. Tornara-se um meninovermelho, vermelho terra, vermelho da cor do urucu.Aproximou-se damãe e esta não o reconheceu."Quem é você?", perguntou-lhe. "Como se aproxima demim sem tremer?Não sabe, por acaso, quemsou?"

"Claroquesei",dissoomenino-urucu."Vimbuscarvocê,porqueconheçoumlugarondepodeserfeliz.Bastaquealguémpiseessaterraesebanheemseusrioseotortoquetemseendireita.Então,todososmembrosqueperdeuvoltamacrescernele.Eulevareivocêlá.Acabaráessamanqueira.Seráfeliz,Inaenka.Venha,siga-me."

FalavacomtantasegurançaqueInaenka,maravilhadacomaquelemeninodecorestranha,quenãoatemia e lhe prometia o que mais ansiava — uns pés normais —, seguiu-o. Fizeram uma viageminterminável.Atravessaramflorestas,rios, lagos,pongos;subiramedescerammontesedenovooutrasflorestas. Choveu em cima deles muitas vezes. O raio relampejou sobre suas cabeças e a tormentaroncou, ensurdecendo-os. Depois de um lamaçal fumegante, com borboletas que sibilavam, eleschegaram.EraoOskiaje.

Alisejuntamtodososriosdestemundoedosoutros;oMeshiarenidesceatéalidocéudasestrelaseoKamabiría,cujaságuasarrastamasalmasdosmortosparaosmundosprofundos,passatambémporali.Haviamonstrosdetodasasformasetamanhos,chamandoInaenkacomsuastrombasegarras."Venha,venha,vocêéumadenós",grunhindo.

"Para queme trouxe aqui?",murmurou Inaenka, inquieta, zangando-se, farejando o engano. "Piseiestaterraemeuspéscontinuamtortos."

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"TrouxevocêaquiporconselhodePotsotiki,aplantadourucu, revelou-lheo filho.Paraquenãocontinuedestruindoopovoqueanda,então.Osolnãocairáporsuaculpa."

"Muitobem",disseInaenka,resignando-seasuasorte."Vocêpodetê-lossalvo,quemsabe.Masavocê,euperseguireidiaenoite.Diaenoite,atémolhá-locomminhaáguadefogo.Voucobrirvocêdebolhas.Verei você se pelar, esperneando.E de seus sofrimentos voume rir.Não poderá se livrar demim."

Mas ele se livrou.Éverdade,maspara escaparde Inaenka a almadele teveque renunciar à suaenvoltura de homem. Afastou-se e, vagando, vagando em busca de refúgio, foi hospedar-se nessepassarinhonegro,depatasbrancas.Agoraémoritoni.Agoravive juntoao rioedormenaspastagens,abrigadinhonagrama.GraçasaeleeaPotsotiki,oshomensqueandamsalvaram-sedodanoquepela,queimaematarápido.Porissonóspintamosocorpocomtinturadeurucu,parece.Buscandoaproteçãode Potsotiki, então. Ninguém pisa no moritoni que encontra adormecido na pastagem; em vez disso,afasta-se.

Quandoummoritoniéapanhadonavaraderesinaqueocaçadorcolocanosbebedouros,ohomemodesgruda,tira-lheofrioeomedocomsuarespiraçãoeasmulheresoacalentamentreseuspeitosatéquepossavoar.Porissoserá,então.

Nadadoquepassa,passaporquesim,diziaTasurinchi,oseripigaridoKompiroshiato.Tudotemsuaexplicação,tudoécausaouconseqüênciadealgumacoisa.Talvez.Hámaisdeusinhosediabinhosquegotasdeáguanosmaioreslagoserios,dizia.Andammisturadoscomascoisas.OsfilhosdeKientibakoripara desordenar omundo e os deTasurinchi para lhe conservar a ordem.O que sabe as causas e asconseqüênciastemasabedoria,talvez.Euaindanãoaalcancei,dizendo,emborasejaumpoucosábioepossafazercoisasqueorestonãopode.Quais,Tasurinchi?Voar,falarcomaalmadomorto,visitarosmundosdebaixo e de cima,meter-meno corpodosvivos, adivinhar o futuro e entender o idiomadecertosanimais.Émuito.Masoutrasmuitíssimasnãosei.Issoé,pelomenos,oqueeusoube.Éverdade,eleoadivinhou:senãofossefalador,teriagostadodeserseripigari.Dirigirasmareadascomsabedoriaparaquefossemsempreboas.Umavez,lá,noriodaanta,oKimariato,tiveumamareadaruimevivi,nela,umahistóriaquenãogostariaderecordar.Mas,apesardetudo,semprearecordo.Estaéahistória.Issofoidepois,noriodaanta.

Eu era gente. Eu tinha família. Eu estava dormindo. E nisso me acordei. Mal abri os olhoscompreendi, ai, Tasurinchi! Tinha me transformado em inseto, então. Uma cigarra-machacuy, talvez.Tasurinchi-gregórioera.Estavadeitadodecostas.Omundoteriasetornadomaior,então.Entendiatudo.Essas patas cabeludas, aneladas, eram minhas patas. Essas asas cor de barro, transparentes, queestalavamcommeusmovimentos,doendo-metanto,teriamsidoantesmeusbraços.Apestilênciaquemeenvolvia,meucheiro?Viaestemundodeumamaneiradiferente:seuembaixoeseuemcima,seuadianteeseuatrás,euviaaomesmotempo.Porqueagora,sendoinseto,tinhaváriosolhos.Masoqueaconteceu

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a você, Tasurinchi-gregório?Um bruxomau, comendo umamecha de seus cabelos,mudou você?Umdiabinhokamagarini,entrandoemvocêpeloolhodoseutraseiro,mudou-oassim?Sentimuitavergonhareconhecendo-me.Quediriaminhafamília?Porqueeutinhafamíliacomoosdemaishomensqueandam,parece.Oquepensariamaomeveremconvertidoemumanimalzinhoimundo?Umacigarra-machacuysóseesmaga.Poracasoserveparacomer?Paracurarosdanosserve?Nemparaprepararasbeberagenssujasdomachikanari,talvez.

Masmeusparentesnadadiziam.Dissimulando, iamevinhampela cabana,pelo rio, como senãopercebessemadesgraçaquemeacontecia.Elesseenvergonhariam,também.Comoomudaram!,dizendo,eporissonãomemencionariam.Quemsabe.E,enquantoisso,euviatudo.Omundopareciacontente,igualqueantes.Viaascriançaslevantaremaspedrasdosformigueirosecomerem,felizes,brigandoporelas,asformigasdecascadoce.Viaoshomens, indolimparomatodomandiocaloupintando-secomurucuemuitoantesdacaça.Viaasmulherescortandoamandioca,mastigando-a,cuspindo-a,deixando-arepousarnastigelasdemasatoedesenredandooalgodãoparatecerasblusas.Aoanoitecer,osvelhospreparavamofogo.Euosviacortardoiscipóseabrirumburaquinhopertodapontadomenor,colocá-lonochão,segurá-locomospés,apoiarooutrocipónoburacoefazê-logirar,compaciência,atéquesedesprendiaafinalafumacinha.Via-osapanharopóemumafolhadebananeira,embrulhá-laemalgodão,agitá-laatéqueofogobrotava.Entãoacendiamasfogueiraseàvoltadormiamasfamílias.Oshomenseasmulheres entravame saíam, continuando sua vida, contentes, talvez.Semcomentarminhamudança,semdemonstrardescontentamentoousurpresa.

Quemperguntavapelofalador?Ninguém.Alguémlevavaumabolsademandiocaeoutrademilhoaoseripigaridizendo"Transforme-odenovoemhomemqueanda"?Ninguém.Muitospassavamao largo.Evitandoolharparaolugarondeeuestava.Tasurinchi-gregório,ai,coitado!Mexendoasasaseaspatascomraiva,então.Tentandomedaravolta,lutandopormelevantar,ai,ai!

Como pedir ajuda sem falar? Não sabia. Esse seria o pior tormento, quem sabe. Sabendo queninguémviriameendireitar,sofreria.Nuncavoltariaaandar?Lembrava-medastartarugas.Quandoasiacaçar,naprainhaondevãoenterrarascrias.Comoasvirava,pegando-aspelacarapaça.Assimestavaeuagora,comoelas,esperneando,chutandooarsempodermeendireitar.Eracigarra-machacuyemesentiatartaruga. Igual que elas, tinha sede, tinha fome e depoisminha alma se iria.A alma de uma cigarra-machacuyvolta?Talvezvoltasse.

Derepente,notei.Tinhammeencerrado.Quem,quais?Meusparentes,então,eles.Tinhamfechadoacabana, tapado todososburacosporondepodiaescapar.Comoasmoçasnoprimeirosangueelesmetinham.MasaTasurinchi-gregório,quemviriabanhá-lo, tirá-lo logodavida,umavezpuro, já limpo?Ninguémviria, talvez.Porquetinhamfeitoissocomigo?Pelavergonhaseria.Paraquenenhumavisitapudessever-meesentirascodemimezombardeles.Meusparentestinhamarrancadodemimumamechade cabelos, e a tinham levado aomachikanari para queme tornasse Tasurinchi-gregório?Não, algum

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diabinho seria, ou talvez Kientibakori. Alguma culpa teria eu, talvez, para que, ainda por cima desemelhante dano, me encerrassem como a um inimigo. Por que não traziam um seripigari para quedevolvesseminha envoltura?Talvez tivessem ido ao seripigari, talvez tenhamme encerrado para nãosofrerdanosaindoàintempérie.

Estaesperançaajudava-me.Nãoseresigne,Tasurinchi-gregório,aindanão,umraiozinhodesolnomeiodatormentaera.E,enquantoisso,continuavatentandovirar-me.Doíam-measpatasdetantomexê-lasdeumladoparaoutroeasasasestalavamcommeusesforços,parecendoracharem-se.Quantotempopassariaassim,quemsabe?

Mas, de repente, eu o consegui. Força, Tasurinchi-gregório! Faria ummovimento mais enérgico,estenderiabastanteumadaspatas.Nãosei.Masmeucorposecontraiu,ficoudelado,giroueaíosenti,debaixodemim, duro.Firme, sólido. Isso era o chão.Fechei os olhos, bêbado.Mas a alegria demehaver endireitado aí mesmo desapareceu. E essa dor fortíssima nas costas? Como se me tivessemqueimado,então.Aosaltartãobruscamente,ouantes,enquantoforcejava,aasadireitadespedaçara-se.

Aíestava,pendurada,partidaemduas,arrastando-se.Issoeraminhaasa, talvez.Comeceiasentirfome, também. Tinha medo. O mundo tornara-se desconhecido. Perigoso, quem sabe. A qualquermomento poderiam esmagar-me. Pisar-me. Podiam comer-me. Ai, Tasurinchi-gregório! As lagartixas!Tremendo, tremendo.Não tinha visto, por acaso, como comiam as baratas, os escaravelhos, todos osinsetosquecaçavam?Aasaquebradadoíasempremaisemaldeixavaeumemexer.Esempredafomeoespinho,rasgando-meoventre.Tenteiengolirapalhasecametidanotabique,masmearranhouaboca,semsedesmanchar,porissoacuspi.Comeceiaescarvar,aquieali,naterraúmida,atéque,depoisdemuito tempo, encontrei um ninho de larvas. Pequeninas, movimentavam-se, querendo escapar. Eramlarvas de poço, o bicho das madeiras. Engoli-os devagar, fechando os olhos, feliz. Sentindo queretornavamaomeucorpoospedaçosdealmaqueestavamindo.Sim,feliz.

Não tinha acabado de engolir as larvas quando um fedor diferente me fez dar um grande salto,tentandovoar.Sentiaumofegarestranho,perto.Ocalordesseofegarmetia-sepelomeunariz.Cheiravaeera perigo, talvez.A lagartixa!Aparecera, então.Aí estava sua cabeça triangular, entre dois tabiquescarcomidos.Aíseusolhosremelentos,olhando-me.Defome,brilhando.Apesardadoreubatiaasas,sempoderme elevar, tentando, tentando.Uns pulinhos desajeitados eu dei, parece. Perdendo o equilíbrio,mancando. Aumentara a dor de minha ferida. Aí vinha, aí. Encolhendo-se como cobra, ladeando-se,passouocorpoporentreostabiqueseentrou.Aíestavaalagartixa,então.Foiseaproximandodemimdevagarinhoesemmeperderdevista.Comopareciagrande!Rápida,rápidaemsuasduaspatas,corriaparamim.Euavi abrir abocarra.Vi asduas fileirasde seusdentes, curvos, brancos, e seubafomecegou.Sentiseumordisco,sentiquemearrancavaaasaferida.Tinhatantomedoqueadorsefoi.Ficavamais mareado, como que dormindo eu ia.Mas via sua pele verde, desbotada, o bucho que latejava,digerindo,ecomoentrecerravaseusolhõesaoengoliressepedaçodemim.Eume resignariaaminha

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sorte,então.Eraisso.Comtristeza,quemsabe.Esperandoqueacabassedemecomer.Logo,jácomida,pudever,de seu interior,de suaalma, atravésde seusolhosesbugalhados, tudoeraverde,queminhafamíliaregressava.

Entravam na cabana com a apreensão de antes. Não estava mais! Para onde teria ido, então?,dizendo. Aproximavam-se do canto da cigarra-machacuy, olhando, procurando. Vazio! Respiravamaliviados,comoselivresdeumperigo.Sorririam,contentes.Jánosteremoslivradodetantavergonha,pensando.Não teriamnadaqueocultarmais às visitas. Já poderiam retomar a vida de todos os dias,talvez.

AssimterminouahistóriadeTasurinchi-gregório,lápeloKimariato,riodaanta.

Perguntei a Tasurinchi, o seripigari, o significado do que vivi nessa mareada ruim. Refletiu uminstanteefezumgestocomoqueparaafastaruminvisível."Sim,foiumamareadaruim",reconheceu,porfim,pensativo."Tasurinchi-gregório!Comoseráisso.Maudeveser.Virarcigarra-machacuyseráobradekamagarini.Nãosaberiadizeravocêcomcerteza.Teriaque subirpelopaudacabanaeperguntaraosaankarite nomundo das nuvens. Ele o saberia, talvez.Omelhor é que você esqueça.Não falemaisdisso.Oqueserecorda,vive,epodevoltarapassar."Maseunãopudeesquecer-meeandocontando-o.

Nemsemprefuicomoestãomevendo.Nãomerefiroaminhacara.Estamanchacordemilhoroxoeusempretive.Nãoriam,estoudizendoaverdade.Nascicomela.Deverdade,nãohámotivoparariso.Já sei que não acreditam em mim. Já sei o que estarão pensando. "Se você tivesse nascido assim,Tasurinchi, suasmãeso teriamatiradono rio, então.Seestá aqui, andando, éporquenasceupuro.Sódepois, alguém ou algo tornou você como é." E isso o que pensam? Estão vendo, adivinhei sem seradivinhoesemnecessidadedefumonemdemareada.

Aoseripigaritenhoperguntadomuitasvezes:"Oquesignificaterumacaracomoaminha?"Nenhumsaankaritesoubedarumaexplicação,parece.PorqueTasurinchimesoprariaassim?Calma,calma,nãosezanguem.Porquegritam?Muitobem,nãofoiTasurinchi.SeriaKientibakori,então?Não?Muitobem,ele também não.Não diz o seripigari que tudo tem sua causa?Não encontrei ainda a daminha cara.Algumascoisasnãoterão,então.Aconteceriam,apenas.Vocêsnãoestãodeacordo,jásei.

Posso adivinhar isso só olhando os olhos de vocês. Sim, é verdade, não conhecer a causa nãosignifica que ela não exista. Antes, estamanchame importavamuito. Não o dizia. Amim, apenas, aminhasalmas.Euoguardavaeessesegredomecomia.Aospouquinhoseleiamecomendo,aquidentro.Tristevivia,parece.Agoranãomeimporta.Pelomenos,achoquenão.Graçasavocês,hádeser.Assimfoi,talvez.Poispercebiqueaquelesqueiavisitar,paralhesfalar,tambémnãoseimportavam.Pergunteiissoaprimeiravez,hámuitasluas,aumafamíliacomqueestavavivendopelorioKoshireni."Vocêsseimportamdemever?Quesejaassimcomosou,vocêsseimportam?""Oqueaspessoasfazemeoquenão fazem, importa, explicou-me Tasurinchi, o mais velho. Dizendo: "Se andam, cumprindo com seu

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destino, importa. Se o caçador não toca o que caçou, nem o pescador o que pescou. O respeito àsproibições,então.Importasesãocapazesdeandar,paraqueosolnãocaia.Paraqueomundoestejaemordem,então.Paraquenãovoltemaescuridão,osdanos.Éoque importa.Asmanchasdacara,não,talvez."Issoéasabedoria,dizem.

Queriadizer-lhesemvezdissoqueeu,antes,nãofuioquesouagora.Tornei-mefaladordepoisdeserissoquesãovocêsnestemomento.Escutadores.Issoeraeu:escutador.Ocorreusemoquerer.Poucoapoucosucedeu.Semsequermedarcontafuidescobrindomeudestino.Lento,tranqüilo.Apareceuaospedacinhos.Nãocomosucodotabaconemocozimentodeayahuasca.Nemcomaajudadoseripigari.Sóeuodescobri.

Iadeumladoaoutro,procurandooshomensqueandam.Estáaí?Ehé,aquiestou.Alojava-menascasasdeleseosajudavaalimparomandiocaldomatoeacolocararmadilhas.Logoquemeinteiravaemquerio,emquequebradahaviaumafamíliadehomensqueandam,iavisitá-la,então.Aindaquetivesseque fazerumaviagemmuito longaeatravessaroGranPongo, ia.Chegava,por fim.Aíestavam.Vocêveio?Ehé, vim.Algunsme conheciam, outros foramme conhecendo. Faziam-me entrar, davam-me decomeredebeber.Umaesteiraparadormir,meemprestavam.Muitasluasficavacomeles.Eumesentiaumdafamília."Paraquevocêveioatéaqui?",perguntavam-me.

"Para aprender como se prepara o tabaco antes de aspirá-lo pelos buracos do nariz, eu lhesrespondia. Para saber como se pega com breu as pernas da peruazinha kanari para poder aspirar otabaco",dizendo-lhes.Elesmedeixavamescutaroquefalavam,aprenderoqueeram.Euqueriaconheceravidadeles,então.Ouvi-ladesuasbocas.Comosão,oquefazem,deondevêm,comonascem,comosevão,comovoltam.Oshomensqueandam."Estábem"elesmediziam."Andemos,então."

Ficavamaravilhadodeouvi-los.Recordavatudooquediziam.Destemundoedosoutros.Odeantese o de depois. As explicações e as causas, eu recordava. No princípio, os seripigaris não tinhamconfiança em mim. Depois, sim. Deixavam-me escutá-los também. As histórias de Tasurinchi. AsiniqüidadesdeKientibakori.Ossegredosdachuva,doraio,doarco-íris,dacoredaslinhascomqueoshomenssepintamantesdesairdecaça.Nadadoqueiaouvindoeuesquecia.Àsvezes,àfamíliaqueiavisitar, eu contava o que tinha visto e aprendido. Nem todos sabiam tudo e, ainda que o soubessem,gostavamdeouvirdenovo.Eeutambém.AprimeiravezqueouviahistóriadeMorenanchiite,osenhordo trovão,me impressionoumuito. Perguntava a todos por ela. Fazia com que a contassem uma vez,muitas vezes. Tem o senhor do trovão um arco? Sim, um arco. Mas em vez de soltar flechas, soltatrovões.Andarodeadodetigres?Sim.Depumastambém,parece.Esemserviracocha,tembarba?Sim,barba.EurepetiaahistóriadeMorenanchiiteporondeia,então.Elesmeescutavameficariamcontentes,talvez."Conte-nosissomesmodenovo",dizendo."Conte-nos,conte-nos."Poucoapouco,semsaberoqueestavaacontecendo,comeceiafazeroqueagorafaço.

Umdia,aochegaràcabanadeumafamília,àsminhascostasdisseram:"Aíchegaofalador.Vamos

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ouvi-lo."Euescutei.Fiqueimuitosurpreendido."Falamdemim?",perguntei-lhes.Todossacudiramascabeças"Ehé,ehé,devocêfalamos",concordando.Euera,então,ofalador.Fiqueicheiodesusto.Assimfiquei.Meu coração um tambor parecia. Batendo no peito: bum, bum. Tinhame encontrado commeudestino? Quem sabe. Assim seria, aquela vez. Em uma quebradinha do rio Timpshía, onde haviamachiguengas,foilá.Jánãohámaisnenhumporlá.Mascadavezquepassopertodessaquebrada,meucoraçãovoltaadançar."Aquinasciasegundavez",pensando."Aquivolteisemterido",dizendo.Assimcomecei a ser o que sou. Foi omelhor queme aconteceu, talvez.Nuncame acontecerá nadamelhor,acredito.Desdeentãoestoufalando.Andando.Econtinuareiatéquemevá,parece.Porquesouofalador.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

É dano uma cara como aminha?Nascer commais oumenos dedos do que os devidos, é dano?Desgraça,parecermonstronãoosendo?Serádesgraçaedanoaomesmotempo.Talvez.Aparentar,nãoosendo,umdesses tortos, inchados,corcundas,chagados,armadosdecaninosegarrasqueKientibakorisoprounodiadacriação,lánoGranPongo.AparentarserdemôniooudiabinhosendosóhomemsopradoporTasurinchi,danoedesgraçahádeser.Eserá,então.

Quandocomeçavaaandar,ouviaqueumamulhertinhaafogadonorioafilharecém-nascidaporquelhefaltavaumpéouonariz,porquetinhamanchasouporquetinhatidodoisfilhosemvezdeum.Nãoentendia,parece."Porquefazisso?Porqueomatou?""Nãoeraperfeito,então.Tinhaqueir."Eunãoentendia. "Tasurinchi só soprou mulheres e homens perfeitos", explicavam-me. "Os monstros, foiKientibakoriquesoprou."Nuncaentenderiabem,quemsabe.Porsercomosou,tendoacaraquetenho,será difícil para mim. Quando ouço "Atirei-a no rio porque nasceu diabinha, matei-o porque nasceudemônio",voltoanãoentender.Dequeestãorindo?

Se os imperfeitos eram impuros, filhos de Kientibakori, por que havia homens que mancavam,marcados na pele, cegos, com as mãos rígidas? Como estavam aí, andando? Por que não os tinhammatado, então? Por que nãomematavam, comminha cara?Eu perguntava a eles.Riam eles também:"Comovão ser filhos deKientibakori, comovão ser diabos oumonstros!Por acasonasceramassim?Erampuros;perfeitosnasceram.Ficaramassimdepois.Porsuaculpa,oudealgumkamagariniououtrodemônio deKientibakori. Quem sabe por que osmudaram? Só a envoltura deles é demonstros, pordentroserãosemprepuros."

Embora vocês não creiam, não foram os diabinhos deKientibakori queme fizeram assim.Nascimonstro. Minha mãe não me atirou no rio, ela me deixou viver. Isso que, antes, me parecia umacrueldade,agorameparecesorte.Cadavezquevouvisitarumafamíliaqueaindanãoconheço,imaginoqueseassustará!"Esteémonstro,esteédiabinho",dizendo,aomever.Jáestãorindooutravez.

Assimriemtodosquandopergunto:"Sereidiabo?Estacaraquererádizerisso?""Não,não,nãoé,nemtambémmonstro.VocêéTasurinchi,éofalador."Emefazemsentirtranqüilo.Contente,talvez.

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AalmadascriançasqueasmãesafogamnosriosenoslagosdesceaofundodoGranPongo.Issodizem.Parabaixo,aoprofundo.Paradentrodosredemoinhosedascascatasdeáguasuja,aumascovasrepletasdecaranguejos.Ali estarão, entre rochasenormes, surdoscom tanto ruído,padecendo.Ali sereunirão as almas daquelas crianças com os monstros que Kientibakori soprou quando brigou comTasurinchi.Essefoioprincípio,parece.Antes,omundoemqueandamos,estariavazio.OqueseafoganoGranPongo,regressa?Afunda,vaiafundandonoestrépitodaságuas,umredemoinhoapanhasuaalmae,fazendo-agirar,girar,desce-a.Atéofundoescuro,lodoso,descerá,aíondevivemosmonstros.Alisesentará entre as almas das outras crianças afogadas, então. E escutará o lamento dos diabos, dosmonstros, lembrandoaquelediaemqueTasurinchicomeçouasoprar.Naquelediaemqueapareceramtantosmachiguengas.

Estaéahistóriadacriação.

EstaéalutadeTasurinchieKientibakori.

Issoeraantes.

Ali aconteceu, no Gran Pongo. Ali o princípio principiou. Tasurinchi desceu do Inkite pelo rioMeshiareni com uma idéia na cabeça. Inchando o peito, começaria a soprar. As boas terras, os rioscarregadosdepeixes,as florestas repletas, tantosanimaisparacomer, iriamaparecendo.Osolestavafixonocéu,aquecendoomundo.

Contente, olhandoo que aparecia.EntãoKientibakori teve uma raiva terrível.Vomitaria cobras elagartosvendooqueacontecialáemcima.Tasurinchisopravaetinhamcomeçadoaaparecertambémosmachinguengas.Então,KientibakoriabandonouomundodeáguasenuvensnegrasdoGamaironiesubiuporumriodeurinaecocô.

Com raiva, fumegando de cólera: "Eu hei de fazer melhor", dizendo. Logo que chegou ao GranPongo, pôs-se a soprar. Mas de seus sopros não saíam machiguengas. Terras apodrecidas onde nãocrescianada, istosim;lagoaspantanosasondesóosvampirospodiamresistiraoartãofétido.Cobrassaíam.Víboras,lagartos,ratos,mosquitosemorcegos.Formigas,urubus.Todasasplantasqueproduziamardênciasaíam,asquequeimamapele,asquenãosepodecomer.Kientibakoricontinuavasoprandoe,em lugar de machiguengas, apareciam os kamagarinis, os diabinhos de pés curvos e pontudos, comesporões. As diabas apareciam com suas caras de asno, comendo terra e musgo. E os homensquadrúpedes,achaporo, tãopeludosesanguinários.Kientibakorienfurecia-se.Tanta raiva tinhaqueosseres que ia soprando saíam, como os danos e as alimárias, mais impuros, mais malvados. Quandoterminaramdesoprarevoltaram,TasurinchiaoInkiteeKientibakoriaoGamaironi,estemundoeraoqueé agora. Assim começou depois, parece. Assim começamos a andar. No Gran Pongo. Desde entãoestamos andando, então. Resistindo aos danos, sofrendo as crueldades dos diabos e diabinhos deKientibakoriestamos.OGranPongoeraproibido,antes.Sóretornavamparaláosmortos,almasqueiam

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voltar.Agorasãomuitos;viracochasepunarunasvão.Tambémmachiguengas.Commedoecomrespeitoirão.Pensarão:esseruídofortíssimoésóáguasechocandocontraasrochasaocair?Sórioaosefecharentreparedesdepedraé?Não,parece.Éruídoquesobedebaixo,também.Gemidosechorodecriançasafogadas será. Sobe das covas do fundo. Nas noites de lua se ouve. Estarão gemendo, tristes. OsmonstrosdeKientibakoriosmaltratarão,talvez.Eosfarãopagarcomtormentosporestaremali.Nãoosacreditarãoimpurosmasmachiguengas,quemsabe.Issoé,pelomenos,oqueeusoube.Umseripigarimedisse:"Opiordanonãoénascercomumacaracomoasua;énãosabersuaobrigação."

Não se encontrar com seu destino, então? Issome ocorria antes de ser o que sou agora. Era sóenvoltura,umacasca,corpodaquelequeaalmasaiupeloaltodacabeça.Tambémparaumafamíliaeparaumpovoseráopiordanonãosabersuaobrigação.Família-monstro,povo-monstroserá,aoquelhefaltamoulhesobrammãos,pés.Nósestamosandando,osolláemcimaestá.Seráanossaobrigação.Eaestamoscumprindo,parece.Porquesobrevivemosaosdanosdetantodiaboediabinho?Porissoserá.Porissoestaremosaquiagora,eufalando,vocêsescutando.Quemsabe?

Opovoqueandaéagoraomeu.Antes,euandavacomoutropovoepensavaqueeraomeu.Nãohavianascidoainda.Nascideverdadedesdequeandocomomachiguenga.Esseoutropovoficouparalá,atrás.Tinhasuahistória,também.Erapequenoeviviamuitolongedaqui,emumlugarquetinhasidooseu e já não era, mas de outros. Porque foi ocupado por uns viracochas espertos e fortes. Como nasangria de árvores? Assim mesmo. Apesar da presença do inimigo em sua floresta, eles viviamdedicados a caçar a anta, a semear amandioca, a preparar omasato, a dançar, a cantar.Um espíritopoderosooshavia soprado.Não tinha caranemcorpo.EraTasurinchi-jeová.Eleosprotegia, parece.Tinhaensinadoaelesoquedeviamfazeretambémasproibições.Sabiamsuaobrigação,então.Viveriamtranqüilos.Contentesesemraivaviveriam,quemsabe.

Atéqueumdia,emumaquebradinhaperdida,nasceuumacriança.Eradiferente.Umserigórompi?Sim,talvez.Começouadizer:"SouosoprodeTasurinchi,souofilhodeTasurinchi,souTasurinchi.Souessastrêscoisasaomesmotempo."Issodizia.EquetinhadescidodoInkiteaestemundo,enviadoporseu pai, que era elemesmo, paramudar os costumes pois as pessoas tinham se corrompido e já nãosabiamandar.Elesoescutariam,surpreendidos."Seráumfalador",dizendo."Serãohistóriasqueconta",dizendo.Ele iadeum lado aoutro, comoeu.Falando, falando ia.Enredava edesenredava as coisas,dandoconselhos.Tinhaoutrasabedoria,parece.Queria impornovoscostumesporque,segundoele,osque as pessoas praticavam eram impuros. Danos eram. Desgraça traziam. E a todos repetia: "SouTasurinchi."Deviaserobedecido,então;respeitado,então.Sóele,ninguémmaisqueele.OsoutrosnãoeramdeusesmasdiabosediabinhossopradosporKientibakori.

Eraumbomconvencedor,dizem.Umseripigaricommuitospoderes.Tinhasuamagia,também.Seriaumbruxomau,ummachikanari?Seriaumbom,umseripigari?Quemsabe?Podiaconverterumaspoucasmandiocas e uns quantos bagres emmuitíssimos, emmuitíssimasmandiocas e peixes para que toda a

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gentecomesse.Devolviaosbraçosaosmanetas,osolhosaoscegoseatéfaziaregressaraseumesmocorpoasalmasquetinhamido.Impressionados,algunscomeçaramasegui-loeaobedeceraoquedizia.Renunciavamaseuscostumes,nãoobedeciamàsantigasproibições.Elessetornariamoutros,talvez.

Osseripigarisassustaram-semuito.Viajaram,sereuniramnacasadomaisvelho.Tomarammasato,sentados nas esteiras, formando círculo, "nosso povo vai desaparecer", dizendo. Ele se desmanchariacomo uma nuvem, talvez. Vento seria, no final. "O que nos diferenciará dos outros?", assustavam-se.Seriamcomoosmashcos?Seriamashaninkaouyaminahua?Ninguémsaberiaquemeraquem,nemelesnem os outros saberiam. "Não somos o que cremos, os riscos que nos pintamos, a maneira comopreparamosasarmadilhas?",discutiam.Sim,levandoemconta,essefalador,tudofaziamdiferente,tudoaorevés,osolnãocairia?Oqueosmanteriaunidossesetornavamiguaisaosdemais?Nada,ninguém.Tudo seria confusão? Os seripigaris então, por haver vindo a empanar a claridade do mundo, ocondenaram."Éumimpostor,dizendo,ummentiroso;ummachikanariserá."

Osviracochas,ospoderosos, tambémseinquietavam.Haviamuitadesordem,aspessoasandavamagitadas,hesitantescomofalatóriodessefalador."Verdadeoumentiraserá?Devemosobedecer-lhe?"Eficavampensandonoquecontava.Então,acreditandoqueassimselivrariamdele,osquemandavamomataram.Segundoseucostume,quandoalguémfaziaumamaldade,roubavaouquebravaaproibição,osviracochasoaçoitaramepuseramneleumacoroadeespinhosdechambira.Depois,comoospaichesdorio,paraqueescorrasuaágua,cravaram-noemdoistroncosdeárvorecruzados,deixando-odessangrar.Enganaram-se.Porque,depoisdeir,essefaladorregressou.

Paracontinuardesarrumandoestemundoaindamaisqueanteseleregressaria.Começaramadizerentreeles:"Eraverdade.FilhodeTasurinchié,osoprodeTasurinchiserá,éopróprioTasurinchi.Astrêscoisas juntas,então.Veio.Foie tornouavir."E,então,começaramafazeroque lhesensinouearespeitarsuasproibições.Desdequeesseseripigarioudeusmorreu,seéquemorreu,terríveisdesgraçasaconteceramaopovoemquetinhanascido.Aquele,osopradoporTasurinchi-jeová.

Osviracochasoexpulsaramda florestaondeatéentãoviveu.Fora, fora!Comoosmachiguengas,tevequesairaandarpelosmontes.Osrios,oslagoseasquebradasdestemundooviramchegarepartir.Semsegurançadequepoderiaficarnolugaraoqualchegava,acostumou-seaviverandandoeletambém.Avida se tornouperigo, comoseaqualquermomentopudesseo tigre saltar sobreeleoua flechadomashco. Viveriam assustados eles, esperando o dano. Os feitiços dos machikanaris esperando.Lamentandosuasorteelesviveriam,talvez.

Detodososlugaresondeacampavamvinhamexpulsá-los.Armavamsuascabanaseaíapareciamosviracochas.Ospunarunas,osyaminahuasapareciam,acusando-os.Detodasasmaldadesedesgraçasosacusavam.AtédehavermatadoTasurinchi."Elese fezhomem,veioaestemundoevocêso traíram",diziam-lhes,apedrejando-os.SeporalgumlugarInaenkapassavaespalhandosuaáguafervendosobreaspessoaseestassepelavamemorriam,ninguémdizia:"Sãoascalamidadesdabolhafervente,osespirros

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epeidosdeInaenkasão.""AculpaédessesmalditosforasteirosquemataramTasurinchi,diziam.Agorafizeramfeitiço,paracumprircomseusenhorqueéKientibakori."Portodasasparteshaviacorridoessacrença: que ajudavam os diabinhos, dançando e bebendo masato juntos, quem sabe. Então, iam àscabanasdossopradosporTasurinchi-jeová.Então,batiamneles; tiravamoque tinham,flechavam-nos,queimavam vivos. E eles tinham que correr. Escapando, escondendo-se. Esparramados por todas asflorestasdomundoandavam."Quandovirãonosmatar?",pensariam,"Quemnosmatarádestavez?Osviracochas? Os mashcos?" Em nenhuma parte queriam alojá-los. Quando apareciam de visita eperguntavamaodonodacasa:"Vocêestáaí?",arespostasempreera:"Não,nãoestou."Igualqueopovoqueanda,tiveramquesesepararumadasoutrasasfamíliasparaquefossemaceitas.Seerampoucos,senão faziam sombra, outros povos deixavam-lhes um lugar para semear, caçar e pescar. Às vezesordenavamaeles:"Podemficarmassemsemear.Ousemcaçar.Esseéocostume."

Assimduravamumalua;muitas,talvez.Massempreterminavammal.Sechoviamuitoousehaviaseca, sealgumacatástrofeocorria,começavamaodiá-los. "Vocês têmaculpa",dizendo."Fora!"Eosexpulsavamdenovoepareciaqueiamdesaparecer.

Porqueestahistóriafoiserepetindoemmuitos lugares.Sempreamesma,comoumseripigariquenãopoderegressardeumamareadamáeficadandovoltas,desorientado,entreasnuvens.E,entretanto,apesardetantasdesgraças,nãodesapareceu.Apesardeseussofrimentos,sobreviveu.Nãoeraguerreiro,jamaisganhavaasguerras,eaíestá.Viviadisperso,suasfamíliasespalhadaspelasflorestasdomundo,eficou. Povos maiores, de guerreiros, povos fortes, de mashcos, de viracochas, de seripigaris sábios,povosquepareciamindestrutíveis,foram.Desaparecendo,então.Nemrastrorestavadelesnestemundo;ninguém os recordava, depois. Eles, em compensação, aí continuariam. Viajando, indo e vindo,escapando.Vivoseandando,então.Aolongodotempoeaolargodomundo,também.

Seriaporque,apesardetudooquelheaconteceu,opovodeTasurinchi-jeovánãosedesencontroudeseudestino.Cumpririasuaobrigação,sempre.Respeitandoasproibições,também.Porserdiferentedos demais seria odiado? Por isso os povos entre os que esteve não o aceitariam? Quem sabe? Aspessoas não gostam de viver com pessoas diferentes. Desconfiarão, talvez. Outros costumes, outramaneira de falar devem assustá-las, como se omundo fosse confuso, escuro, de repente. As pessoasgostariamquetodosfossemiguais,queosoutrosesquecessemseuscostumes,matassemseusseripigaris,desobedecessemàsproibiçõeseimitassemasdelas.Seotivessefeito,opovodeTasurinchi-jeováteriadesaparecido.Nãoteriaficadodelenemumfaladorparacontarsuahistória.Eunãoestariaaqui,falando,talvez.

"Ebomqueohomemqueanda,ande",dizoseripigari.Issoéasabedoria,acredito.Bomserá.Queohomemsejaoqueé,então.Nãosomososmachiguengasagoracomoéramosfazmuitíssimotempo?Comonaqueledia,noGranPongo,emqueTasurinchicomeçouasoprar,somos.Porissonãodesaparecemos,então.Porissocontinuamosandando,quemsabe.Issoaprendicomvocês.Antesdenascer,pensava:"Um

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povodevemudar.Fazerseusoscostumes,asproibições,asmagias,dospovosfortes.Apoderar-sedosdeuses e deusinhos, dos diabos e diabinhos, dos povos sábios.Assim todos se tornarãomais puros",pensava.Maisfelizes,também.Nãoeraverdade.Agoraseiquenão.Eoaprendidevocês,sim.Quemémaispuroemaisfelizrenunciandoaseudestino,então?Ninguém.Seremosoquesomos,melhor.Oquedeixadecumprirsuaobrigaçãoparacumpriradeoutro,perderásuaalma.Esuaenvolturatambém,quemsabe,comooTasurinchi-gregórioquesetornoucigarra-machacuynaquelamareadamá.Seráquequandoumapessoaperdea alma,os seresmais repugnantes, as alimáriasmaisdaninhas farão suaguaridanocorpo vazio? A mosca é comida pela vespa; a vespa pelo passarinho; o passarinho pela víbora.Queremosquenoscomam?Não.Queremosdesaparecersemdeixarrastro?Tambémnão.Seacabamos,seacabaráomundo também.Melhorcontinuarandando,parece.Segurandoo solnocéu,o riono seuleito,aárvorenaraizeomatonaterra,então.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

Tasurinchi está bem. Andando. Ia visitá-lo em sua casa, no rio Timpinía, quando o encontrei nocaminho com dois de seus filhos regressava de onde residem os Padres Brancos, os que vivem nasmargens do Sepahua. Tinha levado para eles sua colheita demilho. Está fazendo isso faz tempo,mecontou. Os Padres Brancos lhe dão sementes, facões para roçar omato, pás para trabalhar a terra esemearbatata,batata-doce,milho, fumo,caféealgodão.Depois, ele lhesvendeoquenãonecessitaeassimcompramaiscoisas.Mostrou-measquetinha:roupa,comida,umlampiãoaóleo,anzóis,umafaca."Talvezdapróximavezpodereicomprartambémumaescopeta",dizendo,eentãocaçariadetudopelomato.MasTasurinchinãoestavacontente.Preocupado,issosim;suatestacomrugaseosolhosduros,assim. "Nessas terras do Timpinía só se pode semear duas vezes no mesmo lugar, nunca mais",lamentando-se."Eemalgumaspartes,sóumavez.Éterraruim,parece.Aúltimaplantaçãodemandiocaebatatadeuumacolheitapobríssima."Éumaterraquesecansalogo,parece."Estáquerendoqueadeixeempaz",diziaTasurinchi.Queixou-seamimamargamente."TerraspreguiçosassãoestasdoTimpinía",dizendo."Malagenteasfaztrabalharejápedemdescanso.Assimsão."

Conversandosobreessaeoutrascoisas,chegamosàcasadele.Saiuaonossoencontrosuamulher,muitoagitada.Tinhapintadoacaradelutoe,sacudindoasmãos,apontando,dissequeorioeraladrão.Roubaraumadesuastrêsgalinhas,então.Elaatinhanosbraçosparaaquecê-la,porquepareciaenferma,enquantoapanhavaáguacomavasilha.E,derepente,tudocomeçouatremer.Aterra,afloresta,acasa,tudo,atremer."Comocomdano",dizia."Comoquedançandotremia."comosusto,soltouagalinhaeviuqueacorrentealevavaeacomia,semlhedartempoderesgatá-la.NessaquebradadoTimpinía,aáguaémuitotorrencial,éverdade.Aténasmargensandaalvoroçada,então.

Tasurinchicomeçouasurrá-la,furioso."Nãoasurroportê-ladeixadocairnorio,issoaconteceaqualquerum",dizendo."Maspormentir.Porque,emvezdeinventarqueaterratremeunãodizqueficouadormecida?Escorregoudeseusbraços,nãoéverdade?Ouvocêateriadeixadonamargemeelarolou.

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Ouvocê a atirouno rioporque ficou com raiva.Nãodigaoquenão aconteceu.Você é falador?Nãofazemmalàsfamíliasasmentiras?Quemvaiacreditarquea terrasepôsadançar?Euo teriasentidotambém,então."

E, quando Tasurinchi estava gritando com ela assim, enfurecido e surrando-a, a terra começou atremer.Nãoriam.Nãoéinvenção,nãosonheicomisso.Aconteceu.Pôs-seadançar.Ouvimosprimeiroumronco,fundo,comoseosenhordotrovãoestivesseaíembaixofazendorugirseusjaguares.Umrumorde guerra, uns tambores batidos aomesmo tempo, embaixo, no interior da terra. Um ruído profundo;ameaçador, foi.Eaí sentimosqueomundo jánãoestavaempaz.A terra semovia,dançava,pulandocomosetivesseseembriagado.Mexiam-seasárvores,acasadeTasurinchi,aságuasdoriovinhamaosborbotões,agitadas,comoamandiocafervendonagamela.

Havia raiva no ar, talvez. O céu encheu-se de pássaros apavorados, de papagaios berrando nasárvores, eda florestavinhamgrunhidos, assobios, grasnidos,de animais assustados. "Outravez, outravez",gritavaamulherdeTasurinchi.Enós,confusos,olhávamosparaumladoeoutro,nãosabendoseficaroucorrer.Ospequenostinhamcomeçadoachorar;agarradosaTasurinchichoravam.Eeletambémseassustou,eutambém."Omundoestaráacabando?",dizia,"Viráoutravezaescuridão,ocaosvirá?"

Quandoafinaldeixoudetremer,océuficouescurocomoseosoltivessecomeçadoacair.Rápidoescureceu,rapidíssimo.Elevantou-seumagrandepoeirada,detodasaspartes,cobrindoestemundodacordacinza.QuasenãopodiaverTasurinchiesuafamílianaqueletemporaldeterra.Tudoeracinzento."Estáacontecendoalgomuitograveenãosabemosoqueé",diziaTasurinchi,amedrontado."Seráofimdosqueandamos?Chegouahoradenosirmos,talvez.Osolcaiu.Jánãoselevantarámais,então."

Agoraseiquenãocaiu.Agoraseique,setivessecaído,nãoestaríamosaqui.Apoeiradapassou,océu ficou limpo de novo e a terra, afinal, aquietou-se. Havia um cheiro a salmoura e a plantasapodrecidas,umcheiroquedavanáuseas.Omundonãoestariacontente,quemsabe."Estávendoquenãomenti,estávendoquetremeu.Foiporissoqueoriocomeuagalinha",diziaamulherdeTasurinchi.Maseleteimou,dizendo:"Nãoéverdade."Estavaraivoso:"Vocêmentiu",gritavaàmulher,"talvezporissoaterra tremeriaagora."Voltouasurrá-la, inchando-se, rugindode tantaforçaquefazia.Tasurinchi,odoTimpinía,éumhomemmuito teimoso.Nãoéaprimeiraraivaque tem.Outraseu tenhovisto.Por issoseráquepoucosvãovisitá-lo.Nãoreconheceuquetinhaseenganado,maseupercebi,qualquerumteriapercebidoqueamulherdeletinhaditoaverdade.

Comemos,fomosdescansarnasesteiras,e,poucodepois,muitoantesdoamanhecer,sentiqueeleselevantava.Viqueiasentar-sesobreumapedra,apoucospassosdacabana.AliestavaTasurinchi,àluzda lua,pensativo.Levantei-menasemi-escuridãoe fuiconversarcomele.Estavamoendopóde fumoparaaspirar.Euovidepositaropozinhonacanelaocadaperuaemepediuqueosoprasse.Euapusprimeironoburacodeseunarizeasoprei;eleaspiravaforte,comânsia,fechandoosolhos.Emseguidafizomesmonooutro.Depois,opóquesobrava,eleosoprounomeunariz.Estavainquieto,Tasurinchi.

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Atormentado, estava. "Não posso dormir", dizendo, com a voz de um homem muito cansado."Aconteceramduascoisasquedãooquepensar.Orioroubouumademinhasgalinhaseaterracomeçoua tremer. Escurecendo-se o céu, além disso.Que devo fazer?" Eu não sabia, eu estava tão espantadocomoele.Porquemeperguntaisso,Tasurinchi?"Quetenhamacontecidoessascoisas,umajuntinhodaoutra,quaseaomesmotempo,significaquedevofazeralgo",disse-me."Masnãoseioquê.Nãoháporaquiaquemperguntar.Oseripigariestáamuitasluasdemarcha,águasacimadoSepahua."

Tasurinchipermaneceu todoodia sentadonaquelapedra, semfalarcomninguém.Sembebernemcomer. Quando a mulher foi levar-lhe umas bananas amassadas, nem sequer deixou-a aproximar-se;ameaçou-a com a mão, como se fosse surrá-la de novo. E nessa noite não entrou em casa. Kashiribrilhavamuitoacimaeeuoviasemsemexerdolugar,acabeçaafundadanopeito,esforçando-seporentender aquelasdesgraças.Oque lhemandavam fazer, então?Quemsabe?Todosna família estavammudos,inquietos,atéascrianças.Espiando-o,quietinhos,ansiosos.Oquevaiacontecer?,pensando.

Porvoltadomeio-dia,Tasurinchi,odo rioTimpinía, levantou-sedapedra. "Vamosandar.Agoramesmo. Devemos ir para longe daqui. Isso é o que significa. Se ficamos, danos virão, catástrofesacontecerão.Essaéamensagem.Porfim,euaentendi.Estelugarestáfartodenós.Temosqueir,então."

Difícil tinha sido para ele decidir. Pela cara das mulheres, dos homens, pela tristeza de seusparentes, via-se quanto lhe custava ir embora. Já estavamháumbom tempono rioTimpinía.ComascolheitasquevendiamaosPadresBrancosdoSepahuaestavamcomprandocoisas.Pareciamcontentes,talvez.Tinhamencontradoseudestino,quemsabe?Nãoeraassim,parece.Estariamsecorrompendoporsemanteremparadostantotempo?Quemsabe?Deixartudoisso,assim,derepente,semsaberparaondeiriam,semsabersevoltariamateroquedeixavam,grandesacrifícioseria.Dorparatodos,assim.

Masninguémnafamíliaprotestou;nemamulher,nemosfilhos,nemojovemqueestavavivendoalipertoporquequeriasecasarcoma filhamaisvelhadeTasurinchi,queixaram-se.Grandesepequenoscomeçaramnaquelemesmomomentoospreparativos."Depressa,depressa,precisamossairdaqui,estelugarsetornouinimigo",apressava-osTasurinchi.Notava-sequeestavaresoluto,impacienteporpartir."Sim,depressa,andemos,vamosescapar,agora",dizendo,apressando-se,empurrando-se.

Euosajudeinospreparativoseparticomeles,também.Antes,queimamosascabanasetudooquenão se podia carregar, como se houvesse morrido alguém. "Aqui fica todo o impuro que temos",assegurouTasurinchiasuafamília.Estivemosandandováriasluas.Haviapoucacomida.Osanimaisnãocaíamnasarmadilhas.Porfím,emumlago,pescamosunsbagres.Comemos.Denoite,nossentamosefalamos.Todaanoiteeulhesfalei,quemsabe.

"Agora eume sintomais tranqüilo", disse-meTasurinchi, quandomedespedi deles, algumas luasdepois."Nãotereimaisraiva,acho.Játivemuita,ultimamente.Agoranãomais,talvez.Fizbememsairaandar,parece.Aquinopeitoeuosinto.""Comosoubequetinhaquesairdelá?",perguntei-lhe."Eume

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lembreideumacoisaquenascisabendo",respondeu-me."Outeriaaprendidonamareada,talvez.Seumdanoacontecenaterraéporqueagentenãolheprestamaisatenção,porquenãoacuidacomosedevecuidá-la.Podeaterrafalar,comonós?Paradizeroquequer,algoteráquefazer.Tremer,quemsabe.Nãose esqueçamdemim, dizendo.Eu tambémvivo, dizendo.Não quero quememaltratem.Disso estariaqueixando-seenquantobalançava,então.Talvezeuatenhafeitosuardemais.TalvezosPadresBrancosnão sejam o que parecem, mas kamagarinis aliados de Kientibakori, e aconselhando-me que vivessesemprealiqueriamfazermalàterra.Quemsabe?Mas,seelasequeixava,algumacoisatinhaquefazereu,então.Comoajudamososol,osrios?Comoajudamosestemundo,eoquevive?Andando.Cumpriaobrigação,acho.Olhe,jáestarádandoresultado.Escuteosolodebaixodospés;pisenele,falador.Quequietoequefirmeestá!Teriaficadocontente,agoraquedenovonossenteandandosobreele."

OndeestaráagoraTasurinchi?Nãosei.Teráficadoporaquelaregiãoondenosdespedimos?Quemsabe?Algumdiaeuosaberei.Bemdeveestar.Contente.Andando,talvez.

Issoé,pelomenos,oqueeusoube.

QuandomesepareideTasurinchi,deimeia-voltaecomeceiaandarrumoaorioTimpinía.Nãotinhaidolávisitarosmachiguengashámuitotempo.Masantesdechegar,aconteceram-meváriassurpresasetivequemudarderumo.Porissoestareiaqui,comvocês,quemsabe...

Tentandopularummatagaldeurtigas,umespinhosecravouemmim.Aqui,nestepé.Euochupeieocuspi.Algumdanoficarialádentro,porque,empoucotempo,começouamedoer.Muitomedoía,então.Pareideandaremesentei.Porquetinhameacontecidoisto?Procureinaminhabolsa.Alicontinuavamaservasqueoseripigarimedeucontraapicadadavíbora,contraadoença,contracoisasestranhas.Enofundodabolsaestavaoiserepitoqueprotegecontraomaufeitiço.Estapedrinha,então,queaindalevocomigo.Porquenemaservasnemoiserepitomedefenderamcontraodiabinhodaurtiga?Opéinchara-semuito;pareciaoutro.Estariametransformandoemmonstro?Fizfogoepusopépertodachamaparaque,suando,saísseodanodeseuinterior.Doíamuito;rugindo,tenteiassustarador.Tantosuaregritar,teriaeudormido.E,nosonho,estiveouvindotagareliceerisadasdepapagaios,então.

Tivequeficarmuitasluasnaquelelugarenquantomeupédesinchava.Tentavaandareaiaimedoíamuitíssimo. Não me faltou de comer, felizmente; na minha bolsa tinha mandioca, milho e algumasbananas.Alémdisso,asortemeajudaria.Alimesmo,semnecessidadedemelevantar,arrastando-me,craveiumpauzinhomoleeocurveicomumacordaqueescondinochão.Empoucotempoumaperdizcaiunaarmadilha.Deuparacomerunsdoisdias.Masdiasde tormento foram,nãopeloespinho,maspelospapagaios.Porquehaviatantos,então?Porqueaquelavigilância?Erammuitososbandos;tinhamseinstaladoemtodososgalhosearbustosdosarredores.

A cadamomento chegavammais.Todosmeolhavam.Estaria acontecendo alguma coisa?Por quegritariamtanto?Essatagareliceteriaquevercomigo?Estariamfalandodemim?Dequandoemquando,

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davam risadas, dessasquedãoospapagaiosmasqueparecemdegente.Estariamzombandodemim?Daqui não sairá nunca, falador, dizendo? Atirei pedras para espantá-los. Inútil, alvoroçavam-se ummomentoevoltavamaseuslugares.Eláestavam,muitíssimos,sobreminhacabeça.Oquequerem?Oqueéquevaiacontecer?

Nosegundodia,de repente,elesse foram.Assustadíssimospartiramospapagaios.Todosdeumavez,gritando,perdendopenas,chocando-seunsnosoutros,comoseoinimigoseaproximasse.Tinhamfarejadooperigo,parece.Porqueaímesmopassousobremim,saltandodeárvoreemárvore,ummacacofalador.Oyaniri.Sim,elemesmo,essemacacovermelho,grandeeberrão,oyaniri.Enorme, ruidoso,rodeadoporseubandodefêmeas.Elaspulavam,agitavamasmãos,felizesdeestarcomele.

Felizesde ser suas fêmeas,quemsabe. "Yaniri, yaniri!", griteipara ele. "Ajude-me!Vocênão foiantesumseripigari?Desça,cure-meestepé,queroseguirmeucaminho."Masomacacofaladornãomedeuimportância.Seráverdadequefoi,antes,seripigariqueandava?Porissonãosedevecaçá-losnemcomê-los, talvez.Quando se assa ummacaco falador o ar se enche de cheiro a tabaco, dizem.Oqueaspirouebebeunasmareadasoseripigariquefoi.

Logoquedesapareceuoyaniri e seubandode fêmeas,voltaramospapagaios.Acompanhadosdeoutrosmais. Fiquei então a observá-los. Eram de todos os tipos. Grandes, pequenos, pequeninos; debicoscurvosemuitograndesedebicosachatados;haviaperiquitos,tucanosepapagaios.Mas,acimadetudo,caturritas.Tagarelavamaomesmotempo,alto,semparar,entrava-mepelosouvidosumtrovãodepapagaios. Inquieto estava eu, olhando. Olhava-os devagarinho. Que faziam ali? Alguma coisa iaacontecer, com certeza, apesar deminhas ervas contra coisas estranhas. "O que querem, o que estãodizendo?",comeceiagritar."Doquefalam,doquezombam?"

Assustado,masaomesmotempocurioso.Nuncatinhavistotantosassimjuntos.Nãoeraporacaso,tinhaummotivo.Qualeraomotivo,então?Quemostinhamandadoatémim?

Lembrando-medeTasurinchi,oamigodosvaga-lumes,tenteientenderaconversadeles.Seestavamali,aminhavolta,falandocomtantainsistência,nãoteriamvindopormim?Algumacoisaquereriammedizer? Fechava os olhos, prestava atenção, concentrava-me em sua conversa. Tentando sentir-mepapagaio então.Difícil era.Mas o esforço fazia-me esquecer a dor do pé. Imitei seus guinchos, seusgargarejos; seusmurmúrios imitei.Todos os seus ruídos.E, entre umapausa e outra, aos pouquinhos,palavrinhas soltas, luzinhas na escuridão, comecei a ouvir. "Acalme-se, Tasurinchi", "Não se assuste,falador","Ninguémvaifazermalavocê,então."Entendendooquediziam,talvez.Nãoriam,nãoestavasonhando.Oqueelesfalavam,sim.Cadavezmaisclaroentendi.Emesentitranqüilo.Meucorpodeixoude tremer. O frio se foi. Não estariam ali mandados por Kientibakori, então. Nem por feitiços demachikanari.Porcuriosidade,então?Paramefazercompanhia?

"Isso mesmo, Tasurinchi", tagarelou uma voz, destacando-se das outras. Agora não havia mais

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dúvida.Falava e eu a entendia. "Aqui estamospara acompanharvocê,para lhedar coragemenquantosara. Por que se assustou de nós? Seus dentes rangiam, falador. Já viu acaso um papagaio comer ummachiguenga? Em compensação, nós temos vistomuitosmachiguengas comerem papagaios. Você estárindo,nãoé,Tasurinchi?Jáfazmuitoqueoseguimos.Portodaparteparaondevai,aíestamos.Sóagoraéquenotou?"

Só agora é que notava. Com a voz tremendo perguntei-lhe: "Está zombando de mim?" "Digo averdade",insistiuopapagaio,agitandoafolhagemcomobaterdesuasasas."Vocêtevequecravarumespinhonopéparadescobrirseusacompanhantes,falador."

Tivemos uma longa conversa, parece. Todo o tempo que estive ali, esperando que o dano fosseembora,conversamos.Enquantofaziameupésuarnofogo,paraqueadorsaísse,falávamoscomaquelepapagaio;tambémcomosoutros.Nopalavrório,todosseatropelavam.Seguidamente,nãoentendiaoquemediziam."Calem-se,calem-se.Falemmaisdevagar,ora,eumdecadavez."Nãomeobedeciam.Eramcomo vocês, igual. Do que estão rindo tanto? Parecem papagaios, então. Não esperavam que umterminasseparafalaremtodos.Estavamcontentesdeque,porfim,nósnosentendêssemos.Atropelavam-se, batendo asas. Eume sentia aliviado. Contente. "Que coisa extraordinária o que está acontecendo,então",pensava.

"Muitobem,aindabemquevocêcompreendeuquesomosfaladores",disse,derepente,umdeles.Eficarammudososdemais.Haviaumgrandesilêncionafloresta."Agoravocêentenderáporqueestamosaqui,acompanhando-o.Agoravocêentenderáporque,desdequevoltouanascerecomeçouaandar,afalar,nósoseguimos.Diaenoite,então;pelasflorestasepelosrios,então.Vocêtambéméfalador,nãoé,Tasurinchi?Nãonosparecemos,poracaso?"

Lembrei-me,então.Todohomemqueandatemseuanimalqueosegue,nãoéassim?Aindaqueelenãoovejanemchegueaadivinhá-lo.Segundooqueé,segundooquefaz,amãedoanimaloescolhe,dizendoàcria:"Estehomeméparavocê,cuidedele."Oanimaltorna-seasombradele,parece.Omeueraopapagaio?Sim,era.Nãoéoanimalfalador?Euosoubeemepareceuquedesdeanteseuovinhasabendo.Porque,nãofosseassim,sentisemprepreferênciapelospapagaios?Muitasvezes,emminhasviagens, fiquei ouvindo a tagarelice deles, rindo do seu bater de asas e sua assuada. Éramos, pois,parentes,quemsabe.

Bomfoisaberquemeuanimaléopapagaio.Agora,viajomaisconfiado.Nuncamaismesentireisó,talvez.Sevemocansaço,otemor,sevemaraivaporalgumacoisa,jáseioquefazer.Levantarosolhosparaasárvoreseesperar.Nãomefalhará,acho.Comochuvinhadepoisdocalor,brotaráotagarelar.Aliestarão os papagaios, então. "Sim, aqui, não o abandonamos", dizendo. Por isso terei podido viajarsozinhotantotempo.Porquenãoviajavasó,então.

Quandocomeceiavestirablusaeamepintarcomhuitoeurucu,aaspirar tabacopelonarizea

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andar,muitosestranhavamqueviajassesozinho."Éumatemeridade",advertiam-me."Nãoestácheiaaselvadosdemônioshorríveisedasdiabas imundasqueKientibakori soprou?Oquevocê faráseelesvêmaseuencontro?Viajecomomachiguenga,émelhor.Comumacriançae,pelomenos,umamulher.Carregarão os animais que você caçar, tirarão os que caírem na armadilha. Não se corromperá,apanhandoocadáverdosquevocêmatou.Terácomquemconversar,alémdomais.Váriosseajudammelhorseaparecemoskamagarinis.Ondejáseviuummachiguengasozinhonaselva!"Eunãofaziacasoporque nunca me senti só em minhas andanças. Aí, entre os galhos, confundidos com as folhas dasárvores,olhando-mecomseusolhõesverdes,meuscompanheirosmeseguiram.Eeuos sentiria aindaquenãoosoubesse,talvez.

Masnãoéessaarazãopelaqualtenhoesselourinho.Essaéoutrahistória,parece.Eupossocontá-laagoraqueeledormiu.Sede repenteeumecalare falarbobagens,nãopensemqueperdiacabeça.Será,só,porqueo lourinhoacordou.Éumahistóriaquenãolheagradaouvir,umaquedevelhedoertantocomomedoeuoespinhodaurtiga.

Issofoidepois.

EstavaindoaoCashiriariparavisitarTasurinchietinhacaçadoumpaujil,comumaarmadilha.Euoasseiecomeceiacomê-lo,quandosentiumpalavróriopertodeminhacabeça.Haviaumninho,entreosgalhos,meio oculto por umagrande teia de aranha.Este aqui acabava de nascer.Não tinha aberto osolhos ainda; estava envolto emseumucobranco, como todas as crias ao romper a casca.Euo estiveespiando, sem me mexer, quietinho, para não irritar a papagaia, para não deixá-la com raivaaproximando-memuito de sua cria.Mas a papagaia não se preocupava comigo.Estava examinando orecém-nascido, muito séria. Desgostosa, parecia. E, de repente, começou a dar bicadas nele. Sim,bicadascomseubicocurvo.Queriatirar-lheomucobranco?Não.Queriamatá-lo.Estariacomfome?Euaapanheipelasasas,nãoadeixeibicar-me,afastei-adoninho.Eparaqueseacalmasse,eulhedeiumassobrasdopaujil.Contentecomeu;tagarelandoebatendoasasestevecomendo.

Masosgrandesolhosdelacontinuavamfuriosos.Umavezqueterminouacomida,retornouvoandoaoninho.Fuivereestavadandobicadasoutraveznacria.Vocêacordou,lourinho?Nãoacorde,deixe-meterminarantesestahistória.Porquequeriamataracria?Nãoeraporfome,então.Pegueiapapagaiapelasasasealanceiaoarcomforça.Depoisdedaralgumasvoltas,voltou.Parameenfrentar.Raivosa,bicandoeberrando,voltou.Tinhaseobstinadoemmataracria,parece.Sóaícompreendiporquê.Nãotinhanascidocomoelaesperava, talvez.Tinhaapata tortaeos trêsdedinhoscotos.Atéentãoeunãotinhaaprendidoissoquetodosvocêssabem:queosanimaismatamascriasquenascemdiferentes.Porque o puma crava as garras no filhote manco ou vesgo? Por que o gavião despedaça a cria de asaquebrada?Adivinharam que, não sendo perfeitos, a vida deles será difícil, com sofrimento, pois nãosaberãosedefender,voar,caçar,fugirnemcumprirsuaobrigação.Eviverãopouco,poisoutrosanimaisvãocomê-loslogo."Paraisso,como-aeu,e,pelomenos,quemealimente",dizendo.Ouseráque,como

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osmachiguengas,tambémelesnãoaceitamaimperfeição?TambémelesacreditarãoqueacriaimperfeitafoiKientibakoriquesoprou?Quemsabe?

Estaéahistóriadolourinho.Sempreestáassim,encolhidonomeuombro.Quemeimportaquenãosejapuro,quetenhaapataavariada,quemanque,quemalseeleveaestaalturaecaia.Porquetambémasasas lhe saíram muito curtas, parece. Sou eu perfeito? Parecendo-nos, nos entendemos e nosacompanhamos.Viajanesteombroe,de tempoemtempo,paradistrair-se, trepandoporminhacabeça,ele passa para o outro. Vai e volta, vem e vai. Agarra-se aos meus cabelos quando está trepando.Puxando-meoscabelos,comoquemeadvertindo:"Cuidadoquecaio,cuidadonãomerecolhadochão."Nãopesanada,nemosinto.Dormeaqui,dentrodaminha túnica.Comonãopossochamá-lopai,nemparente,nemTasurinchi, euochamocomumapalavraque inventeiparaele.Umrumordepapagaios,então.Vamosver,imitem-no.Vamosacordá-lo,vamoschamá-lo.Eleoaprendeueorepetemuitobem:Mas-ca-ri-ta,Mas-ca-ri-ta,Mas-ca-ri-ta...

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VIII

OSFLORENTINOStêmfama,naItália,deseremarroganteseodiaremosturistasqueosinundam,cadaverão,comoumrioamazônico.NestemomentoédifícilcomprovarseissoéverdadeporquequasenãorestamnativosemFlorença.Elestêmviajado,poucoapouco,àmedidaqueaumentavaocalor,cessavaabrisa das tardes, secavam as águas do Arno e os pernilongos tomavam conta da cidade. Estes sãoverdadeirasmiríades volantes que resistem vitoriosamente a repelentes e inseticidas e se encarniçamcontrasuasvítimasdiaenoite,sobretudonosmuseus.SãoaszanzaredeFlorençaosanimaistotêmicos,anjosprotetoresdeLeonardos,Cellinis,Botticellis,FilipposLippis,FrayAngélicos?Pareceria.Porqueéaopédestasestátuas,afrescosequadrosonderecebiamaiorpartedaspicadasquetêmmeavariadobraçosepernastantoquantocadavezqueviajoàselvaamazônica.

Ou são os pernilongos os instrumentos de que se valem os florentinos ausentes para tratar deafugentarseusdetestadosinvasores?Emtodocaso,éinútil.Nemosinsetosnemocalor,nadanomundoserviria de dique à multitudinária invasão. São apenas seus quadros, seus palácios, a pedras de seuintrincadobairroantigooquemagnetizadestemodoemFlorença,apesardodesconfortodoverão,anós,as hordas de estrangeiros? Ou é esse contubérnio de fanatismo e excesso, devoção e crueldade,espiritualismoerefinamentosensual,decorrupçãopolíticaeousadiadainteligência,deseupassado,oquenosmantémnestacidadesufocante,desertadaporseushabitantes?

Nestesdoismeses, tudofoisefechando:aslojas,aslavanderias,aincômodaBibliotecaNacionalpertodo rio, os cinemasque erammeu refúgiodasnoites, e, finalmente, os cafésonde ia lerDante eMaquiavelepensaremMascaritaeosmachiguengasdascabeceirasdoAltoUrubambaeMadredeDios.FechouprimeirooagradávelCaffèStrozzi,comseusmóveisesuadecoraçãoart-déco,que,alémdisso,tinhaar-condicionado,maravilhosooásisparaastardessufocantes;fechoudepoisoCaffèPaszkowski,onde,aindaquesuando,erapossível isolar-se,noseusegundoandardevelhaaparênciadémodé,comsuaspoltronasdecouroecortinasdeveludosangrento;fechouemseguidaoCaffèGillio,e,porúltimo,omaisturísticoeabarrotado,oCaffèRivoire,daPiazzadellaSignoria,ondetomarumcafémacchiatomecustavatantocomoumjantaremumatrattoriadebairro.Comonãoénemremotamentepossívellerouescreveremumagelateriaouemumapizzeria(sãopoucososlugareshospitaleirosqueestãoabertos),tivequeresignar-mealeremminhapensãodoBorgodelSantiAppostoli,transpirandoabundantemente,àfracaluzdeumvelholampiãoqueparecedesenhadocomopropósitodedificultaraleituraoucastigaroteimosoleitorcomumainstantâneacegueira.Sãoincômodosque,comoteriaditooterrívelfradinhodeSanMarcos—umainesperadaconseqüênciadestaestadaemFlorençaterásido,paramim,descobrir,graçasaseubiógrafoRodolfoRidolfi,queodesprestigiadoSavonarolaera,afinaldecontas,umafigurainteressanteetalvezmelhorqueadosqueoqueimaram—,predispõemfavoravelmenteoespíritopara

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entendermelhor, para quase vivê-los, os suplícios dantescos durante a peregrinação infernal ou parameditar, com a devida calma, sobre as aterrorizantes conclusões que, sobre a cidade dos homens e ogoverno de seus assuntos, tirou de suas experiências como funcionário desta república,Maquiavel, oglacialanalistadesuahistória.

Fechoutambém,naturalmente,apequenagaleriadaRuaSantaMargheritaonde,entreumaóticaeumarmazém,faceafacecomachamadaigrejadeDante,estiveramexpostasasfotografiasmachiguengasdeGabrieleMalfatti.Maseupudevê-lasváriasvezesainda,antesdesuachiusuraestivale.Naterceiravezquemeviuentrar,amoçamagra,deóculos,encarregadadagaleria,mefezsaberabruptamentequetinhaum fidanzato. Tive que garantir-lhe, emmeu mau italiano, que minha assiduidade a respeito daquelaexposição era desinteressada, de certo modo patriótica, e que nada tinha a ver com sua beleza masunicamente com as fotografias deMalfatti.Não conseguiu nunca engolir a história de que eu passavatantosminutos contemplando-as por pura nostalgia deminha terra.Epor que, sobretudo, aquela, a dogrupodeíndiossentadosemumaposiçãoparecidacomaoriental,queescutavamembevecidosaquelehomemgesticulante?Estoucertoquenuncalevouasériominhasafirmaçõesdequeessafotografiaeraumadefinitivaobra-prima,algumacoisaquesedeviadegustarlentamente,comonosUffizisecontempla"Aalegoriadaprimavera"ou"AbatalhadeSãoRomano".Mas,enfim,depoisdaquartaouquintavezquemeviunasolitáriagaleria,adesconfiançadelacedeuumpoucoeumdia,inclusive,teveumgestocordial, avisando-mequediantedaChiesadeSanLorenzo, todanoite, "umconjuntode Incas" tocavamúsicaperuanacominstrumentos típicos:porquenãoiavê-los,metraria lembrançasdaPátria. (Euaobedeci,fuiedescobriqueosIncaseramdoisbolivianosedoisportuguesesdeRomaquetentavamumamisturadefadosecarnavalitos.)HáumasemanaagaleriadeSantaMargheritafechoueamagrinhadeóculosveraneiaagoraemAncona,nacasadeseusgenitori.

Aquelafotografia,emtodocaso,nãoprecisomaisvê-la.Euaaprendidememória,emtodososseusdetalhes,milímetroamilímetro.Ejápenseitantosobreelaque,curiosamente,seiquesuasfigurasnuas,sentadas,decabeleiraslassas,asilhuetadofalantedepéeohorizontedecopasdeárvoresdegrossostroncos egalhos entreverados sobummanancial denuvens cinzentas epançudas, serão amaisperenerecordaçãodesteverãoflorentino.MaisduradouroecomoventetalvezqueasmaravilhasarquitetônicaseplásticasdoRenascimento,oharmoniosomurmúrioda terza rimadantescaouos selvagens ritornellos(emseucasosemprecompatíveiscomainteligêncialuciferina)daprosadeMaquiavel.

Estoucertoqueafotografiaretrataumfaladormachiguenga.Eaúnicacoisasobreaqualnãoguardoamenordúvida.Ohomemqueperora,anteaqueleauditórioextasiado,quempoderiasersenãoaquelepersonagemencarregadodeatiçarancestralmenteacuriosidade,afantasia,amemória,oapetitedesonhoedementiradopovomachiguenga?

Como conseguiu Gabriele Malfatti estar presente a essa sessão e que lhe permitissem tirarfotografias?Talvezarazãodosegredoquecercavaosfaladoresnaépocacontemporânea—oforasteiro

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mudadoemmachiguenga—jánãoexistissequandooitalianovisitouaregião.Ou,talvez,nestesúltimosanos,asituaçãonoAltoUrubambaevoluiutãorapidamentequeosfaladoresnãocumpremmaisafunçãosecular,perderamautenticidadeesetransformaram,comoascerimôniascomoayahuascaeascurasdoschamanesdeoutrastribos,emumapantomimaorganizadaparaturistas.

Masduvidoquesejaassim.Avidamudounaquelaregião,sim,masnãoemdireçãoaoincrementodo turismo. Surgiram primeiro os poços de petróleo, aqueles acampamentos para os quais foramcontratadoscomopeõesmuitoscampas,yaminahuas,pirosetambém,certamente,machiguengas.Depois,ouaomesmotempo,otráficodedrogascomeçouaseestenderpelaAmazônia,comoumapestebíblica,sua rede de plantação de coca, laboratórios e aeroportos clandestinos e, conseqüência lógica,sobrevieram as periódicas matanças, os acertos de contas entre bandos rivais de colombianos eperuanos,aqueimadeplantações,asexpediçõesdecaçaebuscadapolícia.E,finalmente—ou,talveztambémaomesmotempo—,oterrorismoeaaçãoantiterrorismo.OsdestacamentosrevolucionáriosdoSenderoLuminoso,reprimidoscomrigornosAndes,desceramparaaselvaetambémoperamporessaregião da Amazônia que é, por isso mesmo, periodicamente invadida pelo Exército e se diz que,inclusive,bombardeadapelaAeronáutica.

Que efeito causou tudo isto sobre o povo machiguenga? Acelerou seu desmembramento oudissolução?Existemaindaospovoadosquecomeçaramacongregá-loshácincoouseisanos?Aquelasaldeias, é claro, terão acabado expostas ao irresistível mecanismo perturbador dessa civilizaçãocontraditória, representadapelosbonssaláriosdaShelledaPetroPeru,osbaúscheiosdedólaresdotráficodacocaeosriscosdeseveremenvolvidosnacarnificinadaguerradetraficantes,guerrilheiros,policiais e soldados, sem entender uma palavra do que está em jogo. Como quando os invadiram osexércitosincas,osexploradores,conquistadoresemissionáriosespanhóis,oscaucheirosemadeireirosrepublicanos, os buscadores de ouro e os imigrantes das montanhas do século XIX. Para osmachiguengas,ahistórianãoavançanemretrocede:gira,serepete.Mas,emboraosestragoscausadosàcomunidadetenhamsidomuitograndesporcausadetudoisto,oprováveléqueumaboapartedeles,faceaos transtornos dos últimos anos, tenha optado para sobreviver pela imagem tradicional: a diáspora.Começarumavezmaisaandar,comonomaispersistentedeseusmitos.

Andaentreeles,comessepassinhocurto,depalmípedequeassentadeumaveztodaaplantadopé,típico dos homens das tribos amazônicas, meu ex-amigo, o ex-judeu, ex-branco e ex-ocidental SaúlZuratas?DecidiqueofaladordafotografiadeMalfattisejaele.Pois,objetivamente,nãotenhomaneiradesabê-lo.Verdadequeafiguradepédenotanacaraumasombramaisintensa—noladodireito,ondeeletinhaosinal—,quepoderiaserachaveparaidentificá-lo.Mas,aessadistância,aimpressãopodeser enganadora, e se tratar demera sombra do sol (a cara está de lado e de tal modo que a luz docrepúsculo,caindodoladooposto,sombreiatodooladodireitodehomens,árvoresenuvens).Talvezapista mais segura seja a forma da silhueta. Ainda que esteja distante, não há dúvida: essa não é a

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arquiteturatípicadeumíndiodaselva,homememgeralbaixo,depernascurtaseovaladaselargotórax.Quemestáfalandotemumcorpoalongadoejurariaqueumapele—estánudacinturaparacimamuitomaisclaraqueadosqueoescutam.Masoscabelosdelemostram,éverdade,ocorte singular, comocapuz medieval, de um machiguenga. Decidi, também, que esse vulto que há no ombro esquerdo dofaladordafotografiasejaumpapagaio.Nãoseriaacoisamaisnaturaldomundoqueumfaladorpercorraasflorestascomumpapagaiodetotem,companheiroousacristão?

Depois de dar muitas voltas e combiná-las umas com as outras, as peças do quebra-cabeçacombinam.Delineiamumahistóriamaisoumenoscoerente,comacondiçãodeselimitarnoepisódioemsimesmoenãoseperguntarpeloqueFreiLuísdeLeónchamava"oprincípiopróprioeescondidodascoisas".

DesdeaquelaprimeiraviagemaQuillabamba,àcasadochacareiroparentedesuamãe,Mascaritaentrou em contato com ummundo que o intrigou e o seduziu. O que deve ter sido, no princípio, ummovimentodecuriosidadeintelectualedesimpatiapeloshábitosdevidaeacondiçãomachiguenga,foi,com o tempo, à medida que os conhecia melhor, aprendia o idioma deles, estudava sua história ecomeçava a compartilhar de sua existência por períodos cada vez mais longos, tornando-se umaconversão, no sentido cultural e também religioso do termo, uma identificação com seus costumes etradiçõesnasquais—pormotivosquepossointuirmasnãoentendercompletamenteSaúlencontrouumsustento espiritual, umestímulo, uma justificaçãodevida, umcompromisso, quenão tivera nas outrastribosdeperuanos—judeus,cristãos,marxistas,etc.—entreasquaistinhavivido.

A transformação deve ter sido muito lenta, alguma coisa que foi se operando de maneirainconsciente, naqueles anos dedicados a estudarEtnologia emSanMarcos.Que se desencantasse dosestudos,quevissenaatitudecientíficadoetnólogoumaameaçaàquelaculturaprimitivaearcaica(ele,então, já não teria concordado com estes qualificativos), uma intromissão nela da destruidoramodernidade,umaformadeadulteração,éumacoisaquepossocompreender.Aidéiadoequilíbrioentreo homem e a terra, a consciência do estupro domeio ambiente pela cultura industrial e a tecnologiamoderna,areavaliaçãodasabedoriadoprimitivo,obrigadoarespeitarseuhabitatsobpenadeextinção,éumacoisaquenaquelesanos,seaindanãoeraumamodaintelectual,jácomeçavaadeitarraízesportodaparte,inclusivenoPeru.Mascaritadevetervividotudoistocomumaintensidadeparticular,aovercomseusprópriosolhosasgrandesdevastaçõesqueos civilizadosperpetravamna selvae amaneiracomo,emcompensação,osmachiguengasconviviamharmoniosamentecomomundonatural.

Ofatodecisivoparaograndepassofoi,semdúvida,amortedeDomSalomón,aúnicapessoaaqueSaúlestavaligadoeaquesentiaobrigaçãodeprestarcontasdesuavida.Éprovável,pelamaneiracomomudoudecondutanosegundoouterceiroanodeUniversidade,quehouvessedecididocomantecedência,que,umavezmortoopai,abandonariatudoesemudariaparaoAltoUrubamba.Atéaquelemomentonãohá nada de extraordinário em sua história.Nos anos sessenta e setenta—anos da rebelião estudantil

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contraamoraldoconsumo—muitosjovensdeclassemédiaabandonaramLima,estimuladosporumamisturadedesejodeaventuraedesgostodavidacapitalina,eforamparaaserraouparaaselva,aviverem condições às vezes muito precárias. Um dos programas de "La Torre de Babel"— infelizmenteprejudicadoemgrandepartepelascrônicasanomaliasdacâmeradeAlejandroPérez—foidedicadoprecisamenteaumgrupoderapazeslimenhosqueemigraramparaCusco,ondesobreviviamrealizandopitorescastarefas.Que,comoeles,MascaritadecidisserenunciaraumfuturoburguêseiràAmazônia,àaventura—oregressoaoelementar,àsfontes—,nãotemporquechamarmuitoaatenção.

MasSaúlnão foicomoeles.Ele foiapagandoos rastrosdesuapartidaesuas intenções, fazendocreraosqueoconheciamquepartiaparaIsrael.Queoutracoisapodiaquererdizertodaaquelacoartadadojudeuquefazumaaliasenãoque,aodeixarLima,SaúlZuratastinhadecididojá,irreversivelmente,mudar de pele, de nome, de costumes, de tradição, de deus, de tudo o que havia sido até então? ÉevidentequesaiudeLimacomaintençãodenãovoltaredeseroutroparasemprejamais.

***

Aindaquecomcertoesforço,atéaquiconsigoacompanhá-lo.Achoquesuaidentificaçãocomapequenacomunidade errante e marginal da Amazônia teve alguma coisa que ver—muito que ver—, comoconjecturava seu pai, com o fato de que fosse judeu,membro de outra comunidade também errante emarginalaolongodesuahistória,páriaentreassociedadesdomundo,nasquais,comoosmachiguengasno Peru, viveu inserida mas não misturada nem nunca aceita de todo. E certamente também naquelasolidariedade influiu, como costumava eu brincar com ele, aquele enorme sinal, que fazia dele ummarginal entre os marginais, um homem cujo destino estaria, sempre, acossado por um estigma defealdade.Possochegaraaceitarqueentreosadoradoresdoespíritodaárvoreedotrovão,osritualistasdo tabaco e o cozimento de ayahuasca, Mascarita se sentisse mais aceito — dissolvido em um sercoletivo—queentreosjudeusouoscristãosdeseupaís.Deumamaneiramuitopessoalesutil,indoaoAltoUrubambaparanascerdenovo,Saúlfezsuaalia.

Ondeencontroumadificuldadeintransponívelparasegui-lo—umadificuldadequemeafligeemefrustra—énoestádioseguinte:atransformaçãodoconversoemfalador.É,naturalmente,ofatoquemaismecomoveem todaessahistóriadeSaúl,oque fazcomquepensenelacontinuamente,queaate e adesatemilvezes,eoquememotivouaescrevê-la,paraverseassimmelivrodeseuacossamento.

Porque converter-se em um falador era acrescentar o impossível ao que era só inverossímil.Retrocedernotempo,dacalçaedagravataàtangaeàtatuagem,docastelhanoàcrepitaçãoaglutinantedomachiguenga, da razão àmagia e da religiãomonoteísta ou o agnosticismo ocidental ao animismopagão,édifícildeengolirmasaindapossível,comcertoesforçodeimaginação.Ooutro,entretanto,põediantedemimumatrevaque,quantomaistentoperfurarmaisseadensa.

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Porque falar como fala um falador é haver chegado a sentir e viver omais íntimo dessa cultura,havercaladoemsuasentranhas,chegadoaotutanodesuahistóriaesuamitologia,somatizadoseustabus,imagens, apetites e terrores ancestrais. É ser, da maneira mais essencial possível, um machiguengaradical, mais um da antiqüíssima estirpe que, já naquela época em que esta Florença onde escrevoproduzia sua efervescência entulhada de idéias, imagens, edifícios, crimes e intrigas, percorria asflorestasdomeupaíslevandoetrazendoosfatos,asmentiras,asfabulações,osmexericoseaspiadasquefazemdessepovodeseresdispersosumacomunidadeemantémvivoentreelesosentimentodeestarjuntos,deconstituiralgofraternoecompacto.QuemeuamigoSaúlZuratasrenunciasseasertudooqueera e teria podido chegar a ser, para, há mais de vinte anos, andar pelas selvas da Amazônia,prolongando,contratudoetodos—e,sobretudo,contraasprópriasnoçõesdemodernidadeeprogresso—atradiçãodessainvisívellinhagemdecontadoresambulantesdehistórias,éumacoisaque,detempoemtempo,mevoltaàmemóriae,comoaquelediaemqueosoube,naescuridãosemestrelasdopovoadodeNuevaLuz,disparameucoraçãocommaisforçaqueotenhamfeitonuncaomedoeoamor.

Escureceumashátambémestrelas,aindaquenãotãolúcidascomoasdaselva,nanoitedeFlorença.Pressintoqueaqualquermomentoacabaráatinta(aslojasdacidadeondepoderiaencontrarnovacargaparaminhacanetaestãotambémemchiusuraestivale,naturalmente).OcaloréintoleráveleoquartodaPensãoAlejandrafervilhademosquitosquezumbemeesvoaçamàvoltademinhacabeça.Poderiatomarumaduchaesairparadarumavolta,embuscadedistração.ÉpossívelquenoLungarnohajaumpoucode brisa, e, se o percorro, o espetáculo dos molhes, pontes e palácios iluminados, sempre belo,desembocaemoutroespetáculo,mais truculento,odoCascine,dediabeatíficopasseiodesenhorasecrianças,e,aestashoras,antrodeputas,pederastasevendedoresdedrogas.Poderiairmisturar-mecomosjovensébriosdemúsicaemaconhadaPiazzadelSantoSpiritoouàPiazzadellaSignoriaque,aestashoras,éumamulticoloridaCortedosMilagresondeseimprovisamsimultaneamentequatro,cincoeàsvezes dez espetáculos: conjuntos de maraqueiros e tumbadores caribenhos, equilibristas turcos,engolidores de fogo marroquinos, uma tuna espanhola, mímicos franceses, jazzmen norte-americanos,adivinhadorasciganas,guitarristasalemães,flautistashúngaros.Àsvezeséagradávelperderuminstantenessamultidãovariadaejuvenil.Masestanoite,fosseparaondefosse,seriaemvão.SeiquenaspontesdepedrasocressobreoArno,sobasárvoresprostibularesdoCascineousobosmúsculosdafontedeNetunoeobronzecagadodepombasdoPerseudeCellini,ondequerquemerefugietentandoaplacarocalor,osmosquitos,aexaltaçãodomeuespírito,continuareiouvindo,próximo,sempausas,crepitante,imemorial,essefaladormachiguenga.

Florença,julhode1985

Londres,13demaiode1987

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Reconhecimento

Como todos os que tenho escrito, este romance deve muito à ajuda, voluntária ou involuntária, dediversasinstituiçõesepessoas.QueromencionaroInstitutoLingüísticodeVerão,aMissãoDominicanadoUrubambaeoCIPA(CentrodeInvestigaçãoePromoçãoAmazônica)eagradecer-lhesahospitalidadequemebrindaramnaselva;aVicentedeSzyszloeaLuisRomán,tãobonscompanheirosdeviagempelaAmazônia; e ao Padre Joaquín Barriales, O.P., recopilador e tradutor de muitas canções e mitosmachiguengasqueaparecememmeulivro.

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SobreoAutor

MARIO VARGAS LLOSA nasceu em Arequipa, Peru, em 1936. Fez os primeiros estudos emCochabamba,Bolívia,eossecundáriosemLimaePiura.Licenciou-seemLetrasnaUniversidadedeSãoMarcosdeLimaedoutorou-sepeladeMadri.ResidiudurantealgunsanosemPariseposteriormenteemLondres e Barcelona. Embora tenha estreado em 1952 um drama em Piura e publicado um livro decontos,OsChefes (Los Jefes), que obteve o prêmioLeopoldoAlias, sua carreira ganhou notoriedadecom a publicação do romanceBatismo deFogo (LaCiudady los Perros, 1963), que obteve o prêmioBibliotecaBrevede1962,oPrêmiodeCríticade1963efoiquaseimediatamentetraduzidoparacercade20 idiomas.Em1966apareceu seu segundo romance,ACasaVerde (LaCasaVerde), que tambémobteveoPrêmiodaCríticaem1966eoPrêmioInternacionaldeLiteraturaRómuloGallegosem1967.PosteriormentepublicouanarrativaOsFilhotes(LosCachorros),ediçãodefinitivajuntocomOsChefes(Los Jefes) em1980, o romanceConversanaCatedral (Conversación en laCatedral, 1969), o ensaioGarcíaMárquez:HistóriadeumDeicídio(GarcíaMárquez:HistoriadeunDeicidio,1971),oromancePantaleão e asVisitadoras (Pantaleón y lasVisitadoras, 1973), o ensaioAOrgia Perpétua (LaOrgiaPerpetua:Flauberty"MadameBovary",1975),oromanceTiaJúliaeoEscrivinhador(LaTiaJuliayelEscribidor, 1977), as peças teatrais A Senhorita de Tácna (La Senorita de Tacna, 1981), Kathie e oHipopótamo(KathieyelHipopótamo,1983)eAChunga(LaChunga,1986)eosromancesAGuerradoFimdoMundo (LaGuerradelFindelMundo,1981),HistóriadeMayta (HistoriadeMaytá, 1980) eQuemMatouPalominoMolero?(QuiénMatoaPalominoMolero?,1986).Reuniuseustextosensaísticosdoperíodo1962-1982novolumeContraVentoeMaré(ContraVientoyMarea,1983).

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Notas

[1]Cushma,túnicalongaetosca,usadapelosíndiosdaAmazôniaperuana.(N.doT.)[2]Uta,doquéchua,Peru,enfermidadequeprovocaúlcerasfaciais,comumnosvalesdoMaranhão(leishmaniasisamericana).(N.doT.)

[3] "Mareada" de ayahuasca, demarcar, embriagar-se com ayahuasca, ou ayahuasa, planta narcótica que os índios daAmazônia peruanapõememinfusãoparaseembriagar.(N.doT.)

[4]Trompetero,pássaroparecidocomopardal,debelocanto.(N.doT.)[5]Yacumama(Eunectesmurinus),cobraanfíbiaquevivenosriosdaAmazônia.(N.doT.)[6]Floripôndio, estramônio do Peru, da família das solanáceas, tem propriedades tóxicas e medicinais, folhas grandes e flores alvas ouazuladas.(N.doT.)

[7]La vorágine, romance do colombiano José Eustasio Rivera (1889-1928), edição Francisco Alves (A voragem), tradução dê ReinaldoGuarany(N.doT.)

[8]Mazamorramorada,papaàbasedefarinhadebatata-doce,farinhademilhoediversasfrutassecasefrescas;amazamorraéfeita,emgeral,comosrestosdebiscoitosoubiscoitosenvelhecidos.(N.doT.)

[9]Convosotrosyconzelas,mençãoaomododefalardosmadrilenhos,distante,formalecheiodezèsnapronúncia.(N.doT.)[10]Grog,bebidaàbasederumquente.(N.doT.)[11]Aliá,significa,emhebreu,subir;fazerumaaliaéviajarparaIsrael,emcaráterdefinitivo;radicar-seemIsrael.(N.doT.)[12]Carachupa,oumuca,peruanismo:tatu.(N.doT.)[13]Yaravíesarequipeños,deyaraví(doquéchua,cantardoceemelancólico,deorigemindígena(Peru,Equador,Bolívia);edeArequipa,noPeru.(N.doT.)