21
A Luta dos Agricultores Familiares de Seropédica por Condições de Permanência no Campo Palavras-chave: desenvolvimento territorial sustentável; resistência; agricultores familiares; CONSEA; cidadania.

A Luta dos Agricultores Familiares de Seropédica por ... · consequente transferência das responsabilidades do Estado para a sociedade. Os movimentos sociais e os representantes

Embed Size (px)

Citation preview

A Luta dos Agricultores Familiares de Seropédica por Condições de Permanência no Campo

Palavras-chave: desenvolvimento territorial sustentável; resistência; agricultores familiares;

CONSEA; cidadania.

2

Resumo

O objetivo da pesquisa é analisar o processo de luta dos agricultores familiares de Seropédica, organizados no Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) para garantir seu acesso à participação na oferta de alimentos. Acredita-se que seu acesso possa permitir o desenvolvimento territorial sustentável, dado que os agricultores interessados em participar produzem alimentos orgânicos, possibilitando a exploração responsável do solo e a sustentabilidade ambiental. Trata-se de um estudo de caso com observação participante. Após um longo processo de amadurecimento, os integrantes que resistiram às derrotas políticas e indicam ter se tornado sujeitos políticos conscientes ao defenderem seus interesses por meio do coletivo. Cada conquista, mediante deliberação, na guerra de posições ou no jogo político significa, no nosso entender, o resultado da pressão e da luta travada pelos cidadãos-agricultores familiares; não só pelo direito a ter direitos, mas para fazer valer o direito já conquistado, de acesso ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criando condições para sua permanência no campo.

Introdução

Diferentes interesses surgiram no seio da sociedade civil desde a luta pela redemocratização

do Brasil, caracterizado pela "confluência perversa" entre dois projetos políticos: o neoliberal e o

democratizante. (DAGNINO, 2015, p.196). Houve muitas expectativas por parte da sociedade civil,

que ansiava por maior participação nas decisões políticas, mas que acabaram como peça "ativa e

propositiva" em ambos os projetos, segundo a autora. O restabelecimento da democracia formal

criou um ambiente favorável à aposta de que seria possível que o Estado e a sociedade atuassem em

uma ação conjunta para o aprofundamento das concepções democráticas da política no Brasil.

Lamentavelmente, a construção de um ambiente democrático, inspirador de criação de novas

instituições, tem sido atravessada pelo projeto neoliberal que impõe a política do Estado mínimo e a

consequente transferência das responsabilidades do Estado para a sociedade. Os movimentos sociais

e os representantes da sociedade civil nos conselhos gestores, segundo a autora, têm o receio de

acabar servindo ao um projeto que não lhes favorece ao participarem das instâncias decisórias tidas

como um equipamento de aprofundamento democrático. Contudo, Dagnino (op. cit., p. 201)

salienta que, no caso brasileiro, o projeto político democratizante se encontra "[...] amadurecido

desde o período de resistência da ditadura militar, fundado na ampliação da cidadania e na

participação da sociedade civil." Assim, a democracia funciona como um freio ao neoliberalismo.

De fato, os movimentos sociais e das entidades associativas ficaram decepcionados quanto o

Presidente petista assumiu a presidência em 2003. Isto porque não houve o esperado rompimento,

pelas entidades e movimentos sociais mais de esquerda política, com os preceitos neoliberais. Ainda

3

assim, todo o processo de luta, na arena política, das representações populares, possibilitou uma

maturidade política, uma especialização, só possível num ambiente minimamente democrático.

A partir da Constituição de 1988, fruto também da resistência e luta popular, consolidaram-

se instituições públicas que proporcionam a representação da sociedade civil por meio dos atores

sociais que as integravam, possibilitando maior controle social e a descentralização de algumas

políticas públicas setoriais. Para ilustrar algumas dessas instituições, em específico nos territórios

rurais, citam-se aquelas destacadas por Delgado (2010, p. 52-56):

Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) – criado no Governo Itamar Franco, extinto pelo Governo FHC e recriado no Governo Lula – e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), surgido no primeiro Governo FHC e passando a assumir a sigla CONDRAF4 no Governo Lula [...] além disso, que a prática das conferências nacionais, estaduais e municipais foi sendo fortalecida a partir da década de 1990, até chegar a seu auge no Governo Lula, como um instrumento indispensável de aprendizado e de mobilização em torno da construção de agendas de reivindicações da sociedade civil com vistas a influenciar a formulação e a implementação de políticas públicas setoriais (saúde, educação, meio ambiente, cidades, desenvolvimento rural, etc.).

Dada a crescente importância dos atores sociais nos espaços de discussão e decisão de

políticas públicas, o objetivo da pesquisa é analisar o processo de luta dos agricultores familiares de

Seropédica, organizados no Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) para garantir

seu acesso à participação na oferta de alimentos no município. Este é um importante mecanismo de

promoção do Desenvolvimento Territorial Sustentável, pois a renda auferida com a oferta de

alimentos geraria condições para a permanência e vida digna dos cidadãos do campo. Este Conselho

é " uma instância de concertação política e social e, como tal, constitui-se em espaço privilegiado de

articulação entre governo e sociedade civil com o objetivo de propor diretrizes para as ações na área

da segurança alimentar e nutricional." (BRASIL, 2016).

Trata-se de um estudo de caso onde ocorreu a observação participante (SERVA; JAIME

JÚNIOR, 1995) de um dos autores no período de junho de 2014 até abril de 2016, com o devido

registro dos fatos em caderno de campo. Para o aporte teórico, usa-se a técnica de pesquisa

bibliográfica, por meio da consulta tanto ao acervo impresso quanto eletrônico (VERGARA, 1998,

p.45). O texto está dividido em seis seções, contando com esta introdução. Na segunda seção

discute-se o conceito e o papel da sociedade civil e da política segundo Gramsci. Na seção três será

analisada a relação entre Estado e Sociedade Civil a partir de Habermas e Gramsci. Na seção

quatro aborda-se a proposta da Gestão Social enquanto um método de ação de política pública. A

4 Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário.

4

quinta seção destinou-se a apresentar e analisar os fatos ocorridos decorrentes da participação dos

atores sociais no CONSEA do município de Seropédica. Na seção seis são apresentadas as

conclusões.

Gramsci e a Autonomia da Sociedade Civil

Inspirado nas reflexões teóricas de Marx, Engels e Lênin, Gramsci desenvolveu novas

determinações no campo da teoria política, como um crítico desta. Tinha por pressuposto que, tal

como as teorias desses clássicos, a teoria política deveria ser diacronicamente analisada e

permanentemente renovada. As investigações dos "intelectuais", para Gramsci (1999, p.221-222) ,

deveriam levar em conta "a vida do conjunto, a única que é força social", criando um “bloco

histórico." Nesse ponto, a proposta de Gramsci se aproxima da teoria crítica frankfurtiana, na

medida em que, Max Horkheimer, ao criar o termo, propunha uma teoria reflexiva. Nas palavras de

Tenório (2000, p.37): "a teoria crítica investiga as interconexões recíprocas dos fenômenos sociais e

observa-os numa relação direta com as leis históricas do momento na sociedade estudada; ela tem a

sociedade como objeto de estudo."

Segundo Coutinho (1999, p.91), a concepção gramsciana de política, no sentido "amplo"

seria "toda forma de práxis que supera a mera percepção passiva ou a manipulação de dados

imediatos [...] e se orienta conscientemente para a totalidade das relações subjetivas e objetivas. [...]

política em Gramsci é sinônimo de catarse." Catarse é um conceito comum entre o autor e Lukács,

de acordo com Carli (2013, p.25), embora para Lukács haja práxis política mesmo nas sociedades

mais primitivas, enquanto Gramsci se valha do Estado de Classes de Marx para explicar a

articulação entre os aparelhos do Estado (sociedade política) e os "aparelhos privados de

hegemonia" (sociedade civil). Ao realizar catarse, a classe se supera, deixando de ser um conjunto

de homo economicus para se tornar sujeito político consciente em nome da vontade coletiva,

passando do particularismo para a consciência universal, conforme inspiração hegeliana.

Os escritos de Gramsci (2007, p.21) contribuem para a teorização tanto daquilo que ele

mesmo chama de "grande política", na medida em que esta "compreende as questões ligadas à

fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas

estruturas orgânicas econômico-sociais"; quanto para a "pequena política" compreenderia "as

questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em

decorrência de lutas pela predominância entre diversas frações de uma mesma classe política", no

período de "guerra de posições."

5

Com sua "teoria ampliada de Estado", Gramsci distingue duas esferas essenciais no interior

da superestrutura, dividindo-a entre sociedade política e sociedade civil. Sua concepção de

sociedade civil foi desenvolvida a partir de Hegel5 (1997, p.148-217), para quem, a sociedade civil

significava, no entendimento de Gramsci "(2007, p.225) "a hegemonia política e cultural de um

grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado." Gramsci absorve de Hegel o

que necessita para a sua própria e importante definição de sociedade civil, destacando a antítese

entre esta e o Estado.

O conceito de sociedade civil, na teoria política de Gramsci, possui um avanço em relação à

teoria marxista clássica, que entendiam o Estado burguês como coercitivo, por meio de seus dos

aparelhos repressores, com o intuito de garantir a divisão de classes e os interesses da classe

dominante. No Manifesto, Marx e Engels (1997), afirmaram: "Em sentido próprio, o poder político

é o poder organizado de uma classe para a opressão de uma outra." Gramsci, por sua vez, em uma

de suas Cartas, demonstra acreditar que pode haver equilíbrio de forças:

Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como Sociedade política (ou até como aparato coercitivo para enquadrar a massa popular, segundo o tipo de produção e a economia de um momento dado) e não como um equilíbrio da Sociedade política com a Sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercida através das organizações chamadas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas etc.) (GRAMSCI, 2011, p. 264).

Enquanto os clássicos dedicaram sua atenção à sociedade política, explicitando o modo

como este usa a burocracia e a força como aparelhos repressivos, Gramsci, a partir do momento em

que "amplia" o Estado, presta grande contribuição ao indicar o processo pelo qual a Sociedade civil

poderia intervir numa determinada base econômica e sociabilidade, transformando-a. A sociedade

política (o Estado) seria completamente absorvida pelos organismos sociais quando se alcançasse

uma sociedade comunista (regulada6), assim como a economia para Marx. A capacidade de luta, ou

seja, o poder das classes subalternas dependeria da estrutura da sociedade civil.

A hegemonia em Gramsci "recebe agora uma base material própria, um espaço autônomo e

específico de manifestação." Assim como Marx entendia que só haveria produto excedente se

houvesse mais-valia, "em Gramsci, não há hegemonia, ou direção política ideológica, sem o

5 Segundo Bobbio, o conceito de sociedade civil de Hegel. Inclui não apenas a esfera das relações econômicas e a

formação das classes, mas também a administração da justiça e o ordenamento administrativo e corporativo [...] a sociedade civil constitui um momento intermediário entre a família e o Estado, e, portanto não inclui [...] todas as relações e instituições pré-estatais, inclusive a família [...] a sociedade civil de Hegel é a esfera das relações econômicas. BOBBIO, N. O conceito de sociedade civil. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1982. 6 Gramsci chamava a sociedade comunista de regulada para escapar da censura no cárcere.

6

conjunto de organizações materiais que compõe a sociedade civil enquanto esfera específica do ser

social" (COUTINHO, 1999, p.128).

Habermas (2011, p.100) salienta que a sociedade civil de hoje não representa a sociedade

burguesa, como defendiam os marxistas. "O termo 'sociedade civil' não inclui mais a economia

constituída através do direito privado e dirigida através do trabalho, do capital e dos mercados de

bens, como acontecia na época de Marx e do marxismo. Segundo o autor, "seu núcleo institucional

é formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram

as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida."

Observa-se que tanto para Gramsci, como para Habermas, há a necessidade de uma sociedade civil

robusta e organizada, como precondição para que haja uma relação justa e equilibrada com o

Estado. Numa sociedade civil "primitiva e gelatinosa"7, do tipo "oriental", não é possível haver tal

relação.

Coutinho (1999, p. 135) usa o conceito gramsciano de "Guerra de posições" para ratificar

que a conquista do poder de Estado, nas sociedades complexas do capitalismo crescente, deve ser

precedida por uma longa batalha pela hegemonia e pelo consenso no interior e através da sociedade

civil, isto é, no interior do próprio Estado em seu sentido amplo. Assim, a pequena política indica

ser um poderoso caminho para a grande política. De fato Coutinho (1979, p.37), defendendo uma

articulação entre a democracia direta e a representativa e, ou seja, entre "os organismos populares

de democracia direta e os mecanismos tradicionais de representação indireta", ainda que transitória,

já apontava o surgimento de "sujeitos coletivos políticos", de representação direta, mesmo no seio

de regimes dominados pela burguesia, como caminho para a transformação social.

Cidadania e a Relação Estado-Sociedade em Gramsci e Habermas

Habermas (1990, p.100-02) discute o conflito dialético entre "liberalismo e democracia

radical"; que gira em torno, segundo ele, de "como igualdade e liberdade, unidade e multiplicidade,

ou o direito da maioria e o direito da minoria podem ser conciliados." No eixo central da discussão,

segundo o autor, encontra-se a dialética que diferencia e transforma o homem no cidadão (burguês)

e o processo normativo de praticar cidadania. O conceito de cidadania sofreu muitas mutações

desde que surgiu da Grécia antiga até o mundo moderno. Hoje se tornou quase sinônimo de garantia

dos direitos civis individuais inspiradas em John Locke que atenderiam apenas aos homens

proprietários burgueses de acordo com Marx. A esse respeito Coutinho (2000, p.57) observa: "foi

7 Gramsci, 2007, p.262.

7

precisamente a natureza individual e privada desses direitos civis modernos que induziu Marx [...] a

caracterizá-los como meios de consolidação da sociedade burguesa, da sociedade capitalista."

Portanto, tais diretos civis não seriam suficientes para garantir a verdadeira cidadania, a "cidadania

plena", mediante a "emancipação humana", levando a Marx ([196-?], p.28-52) considerar a

emancipação política apenas como progresso, mas não suficiente à emancipação

humana: "Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não

seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como derradeira etapa de

emancipação humana dentro do contexto do mundo atual." Ele segue, "a emancipação política é a

redução do homem, de um lado membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e,

de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral." Este Estado de Marx, conforme salienta Carli (op.

cit., p.46) "É uma mediação alienada entre o indivíduo singular, que se retém em sua vida privada,

e o cidadão universal, que se reconhece como membro do gênero humano." A verdadeira

emancipação, a humana, que não depende da mediação do Estado, ocorreria para Marx: Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado sua "forces propres" como forças sociais e quando, portanto, já não se separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana. (MARX, [196-?], p.52).

Foi a mesma percepção de que a cidadania servia aos propósitos da sociedade burguesa que

fez Theodor Marshall chamar a atenção para o fato de que o "cavalheiro" ou o "civilizado" como

sugere o autor, assim transformado a partir do "efeito que seu trabalho produz", ia aos poucos

"desenvolvendo um respeito cortês pelos outros, levando-o a aceitar "os deveres públicos e privados

de um cidadão." Marshall, o Alfred, aceitava, segue Theodor, "como certo e adequado um raio

amplo de desigualdade quantitativa ou econômica, mas condenava a diferenciação ou desigualdade

qualitativa entre o homem que era 'por ocupação, ao menos, um cavalheiro'8, e o indivíduo que não

o fosse." Theodor Marshall entendia que a proposta do economista Alfred Marshall "significa uma

reivindicação para serem (os membros das classes trabalhadoras)9, admitidos como membros

completos da sociedade, isto é, como cidadãos." (T. MARSHALL, 1967, p. 59-61). Esta proposta

podia ser qualificada e verificada na sociedade de seu tempo, e ainda hoje, uma "desigualdade

social legitimada na cidadania."

Contudo, enquanto Marx não via na capacidade da política e da sociedade civil um potencial

revolucionário rumo à emancipação humana, já se pode observar que Gramsci pôs nelas toda a

8 Observação do autor. 9 Observação nossa.

8

responsabilidade. Se democracia é, como aponta Coutinho (2000, p.50) "sinônimo de soberania

popular", seria possível afirmar, na linguagem gramsciana, que nos encontramos numa fase de

guerra de posições, buscando a hegemonia, equivalente à soberania, num processo de luta

permanente pelo fortalecimento pela cidadania. Coutinho (2000, p.61) enfatiza que as conquistas da

democracia, até aquele momento alcançadas, foram resultado especialmente das lutas dos

trabalhadores. Tais conquistas simbolizam a "afirmação efetiva da soberania popular - o que

implica, como condição mínima, o direito universal ao voto e à organização (em suma, o direito à

participação)." A democracia, para esse autor é "a mais exitosa tentativa até hoje inventada de

superar a alienação na esfera política", enquanto "concebida como a construção coletiva do espaço

público, como a plena participação consciente de todos na gestação e no controle da esfera política",

passagem evidentemente de inspiração rousseauniana. A cidadania é, para Coutinho (op. cit.), o

conceito que melhor expressa esse tipo de democracia. Assim, Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado.

Habermas (1995) oferece uma terceira via de modelo de democracia, entrelaçando as

democracias: liberal e republicana. Ele analisou a democracia a partir da clássica dicotomia norte-

americana, especialmente no que concerne à participação cidadã na esfera política. Ele inicia

definindo os dois modelos: Segundo a concepção liberal o processo democrático cumpre a tarefa de programar o Estado no interesse da sociedade, entendendo-se o Estado como o aparato de administração pública e a sociedade como o sistema, estruturado em termos de uma economia de mercado, de relações entre pessoas privadas e do seu trabalho social. A política (no sentido da formação política da vontade dos cidadãos) tem a função de agregar e impor os interesses sociais privados perante um aparato estatal especializado no emprego administrativo do poder político para garantir fins coletivos. Segundo a concepção republicana a política não se esgota nessa função de mediação. Ela é um elemento constitutivo do processo de formação da sociedade como um todo. A política é entendida como uma forma de reflexão de um complexo de vida ético (no sentido de Hegel). Ela constitui o meio em que os membros de comunidades solidárias, de caráter mais ou menos natural, se dão conta de uma dependência recíproca, e, com vontade e consciência, levam adiante essas relações de reconhecimento recíproco em que se encontram, transformando-as em uma associação de portadores de direitos livres e iguais. (Ibid., p.39-40).

Para o autor (op. cit., p.40), a república acrescenta uma terceira fonte de interação social,

além da máquina administrativa do Estado e do Mercado, a solidariedade, orientada para o bem

comum, com formação horizontal da vontade política, "orientada para o entendimento e para um

consenso alcançado argumentativamente" pelos cidadãos. E para a prática da solidariedade se faz

9

necessária "uma base da sociedade civil autônoma, independente tanto da administração pública

como do intercâmbio privado, que protegeria a comunicação política da absorção pelo aparato

estatal ou da assimilação à estrutura de mercado" no espaço público. Assim, "na concepção

republicana o espaço público e político e a sociedade civil com sua infraestrutura assumem um

significado estratégico. Eles têm a função de garantir a força integradora e a autonomia da prática

de entendimento entre cidadãos." O entendimento a partir do diálogo, da deliberação, na perspectiva

republicana.

Assim, Habermas propõe um entrelaçamento da política republicana (dialógica) como a

política liberal (instrumental) realizando o que chama de política deliberativa, "quando as

correspondentes formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas." O autor,

portanto, apoia seu modelo "nas condições de comunicação e (nos)10 procedimentos que outorgam à

formação institucionalizada da opinião e da vontade política sua força legitimadora."

Habermas (1987, p.124 apud TENÓRIO, 2000, p. 72) propõe uma análise da

sociedade fundada no agir comunicativo. A ação comunicativa, para ele se refere "à interação

de ao menos dois sujeitos capazes de linguagem e de ação que [...] entabulam uma relação

interpessoal. Os atores buscam entender-se sobre uma situação de ação para poderem assim

coordenar de comum acordo seus planos de ação e com eles suas ações." Tenório, após analisar as

obras de Habermas, conclui que:

Uma ação comunicativa é uma ação social dialógica, sob a qual os planos de ação dos diferentes atores sociais são coordenados através de atos de fala, nos quais as pessoas que falam pretendem: a) ser inteligíveis; b) que haja verdade naquilo de dizem; c) e que suas ações sejam justas segundo o contexto normativo vigente. Na ação comunicativa, a verdade só existe se todos os participantes da ação social admitem sua validade, isto é, verdade é a promessa de consenso racional, ou a verdade não é uma relação entre o indivíduo e sua percepção de mundo, mas um acordo alcançado por meio da discussão crítica. (TENÓRIO, 2000, p.77).

Comparando o seu modelo de democracia proposto, a Deliberativa, com os dois

supracitados, por meio da análise do "processo de formação democrática da opinião e da vontade

comum", Habermas (1995, p.44-6) formula a Teoria do discurso, tomando para si partes de ambos, e

integra-os "no conceito de um procedimento ideal de deliberação e de tomada de decisões. Na sua

concepção de democracia, "a razão prática se afastaria dos direitos universais do homem" ou "da

eticidade concreta de uma determinada comunidade" e se fundamentaria nas "normas do discurso e

de formas de argumentação que retiram seu conteúdo normativo do fundamento da validade da ação

orientada para o entendimento." Sobre a possibilidade de pôr em prática o poder comunicativo da

10 Observação nossa.

10

sociedade civil, em sua obra Direito e Democracia Habermas afirma que a "formação democrática

da opinião e da vontade" é capaz de modificar a composição do poder administrativo ao longo do

tempo. Assim, "a opinião pública, transformada em poder comunicativo segundo procedimentos

democráticos não pode "dominar" por si mesma o uso do poder administrativo; mas pode, de certa

forma, direcioná-lo." (HABERMAS, 2011, p.23).

Certamente a robustez que Gramsci espera da sociedade civil carece de uma maior

especialização quanto ao saber agir político. Habermas salienta que o fato de o cidadão ser muitas

vezes leigo às questões políticas e sua forma simples de expressar tais questões pode ser tomada

"como um pretexto para enfraquecer a autonomia da esfera pública, uma vez que as iniciativas da

sociedade civil não conseguem fornecer um saber especializado suficiente para regular as questões

discutidas publicamente" (Ibid., 2011, p.107).

Rocha (2007, 126), tratando das possibilidades analíticas do conceito de sociedade civil, a

partir das obras de Gramsci e Habermas, chegou à conclusão de que ambos buscavam, com

procedimentos distintos, ampliar "as possibilidades do campo da política, com alterações

substanciais nas relações entre Estado e sociedade." Em Gramsci, para o alcance consenso pelas

classes que incorpore e reflita seus interesses "exige cada vez mais que seus portadores possuam

estrutura e legalidade próprias para, assim, assumirem sua função de construção de relações sociais

de hegemonia." Já Habermas "detalha a forma como, nos contextos democráticos, os procedimentos

legais e políticos institucionalizados – a positivação do direito – vêm assegurando que os processos

espontâneos de formação de opinião sejam gradualmente considerados nas instâncias decisórias do

sistema político."

Não obstante o destaque que Habermas e Gramsci destinaram à sociedade civil no campo

político, Rocha (op. cit.) observou as diferentes direções analíticas em relação ao "delineamento da

anatomia desta esfera, na constituição de seus atores e nas suas estratégias de ação política." A

autora salienta que, na concepção habermasiana, a sociedade civil, aproxima-se

[da] esfera das associações voluntárias, do espaço público dotado de autonomia e auto-organização em relação ao Estado e ao mercado, de solidariedade social, do discurso. Os atores e instituições que a compõe não configuram partidos ou outras formas de organização política, visto que "não estão organizados tendo em vista a conquista do poder. (Ibid., p. 127).

Assim "a sociedade civil é apontada como um setor relevante na construção da esfera

pública democrática, na medida em que está ancorada no mundo da vida, (n)o cidadão comum",

orientando para um agir dialógico. Esta linha de pensamento não converge com a de Gramsci, na

medida em que para o autor, como visto em seção anterior, a vinculação entre sociedade civil e

11

processo democrático se dá como "resultado da passagem, a partir do desenvolvimento da luta de

classes, [...] de figuração dos interesses de um grupo social para uma consciência política que se

coloca como capaz de projetar interesses universais."

Gestão Social da Política de Desenvolvimento Territorial Rural: por uma Gestão Pública

Dialógica

De acordo com a teoria crítica frankfurtiana, o homem precisa ser entendido em seu meio

social e por meio dele. Ele é resultado de suas relações sociais com outros homens, em seu meio e

segundo as organizações internas. Ser camponês ou agricultor familiar, além de identificar uma

categoria de classe social, deve ser entendido como o indivíduo inserido nas das relações sociais e

históricas. Perspectiva esta que está em consonância com a proposta de embeddedness de Mark

Granovetter (2007). O autor chamou atenção para o equívoco em isolar "os atores do seu contexto

social mais imediato" ao buscar explicar imersão da ação econômica nas estruturas das relações

sociais.

A identidade humana no território é definida pelas suas relações em sociedade, seu modo de

vida, pelos seus conhecimentos tradicionais e pelo seu saber e modo de fazer. Portanto, de sua

identidade depende a conservação do território que o identifica, bem como do bem-estar individual

depende o da coletividade. Sendo o território um espaço, uma dimensão da sociedade que ali habita,

é possível investigar tanto o aspecto político como as relações de poder nele envolvidas

(HAESBAERT, 2010, p. 166). Tal compreensão possibilita maior sucesso de políticas públicas que

pretendam o desenvolvimento sustentável dos territórios rurais. Conforme afirma Jean (2010,

p.51):

[...] a intensificação da sensibilidade ambiental com a emergência de uma outra noção comumente admitida, o desenvolvimento sustentável, faz com que o desenvolvimento deixe de ser necessariamente identificado como progresso, com a progressão da humanidade rumo à conquista de melhores condições de vida, com a ampliação da experiência democrática e com o pleno desenvolvimento de culturas.

Além da óbvia provisão de alimentos saudáveis, o modo de vida camponês garantiria a

existência de vida na Terra, pois historicamente tende a conviver em harmonia com o meio

ambiente. Conforme salienta Maluf (2002, apud CAZELLA et al., 2009, p.47), deve-se levar em

conta "os modos de vida das famílias em sua integridade", incorporando "a provisão, por parte

desses agricultores, de bens públicos relacionados com o meio ambiente, a segurança alimentar e o

patrimônio cultural", para compreender a multifuncionalidade da agricultura (MFA). Essas funções

12

não se subordinam à lógica da eficiência econômica, ao cálculo financeiro do custo-benefício. Fica

evidente a necessidade de se pensar novos métodos de desenvolvimento do rural brasileiro, que

além de valorizar os pequenos e médios empreendimentos agroalimentares, seja implementado por

meio de decisões coletivas em espaços democráticos de decisão por meio de políticas públicas.

Resta claro que as políticas públicas ancoradas no território devem lançar mão de uma

governança participativa, que, segundo Cançado et al. (2013, p.24), "visa fomentar em seu potencial

o desenvolvimento local de forma sustentável e referencial, dependendo para isso da criação de

espaços propositivos e dialógicos na tomada de decisões" para o exercício da cidadania e para a

prática da Gestão Social. Como salienta Tenório (2008, p.14), "o cidadão é o sujeito privilegiado de

vocalização daquilo que interessa à Sociedade nas demandas ao Estado e daquilo que interessa ao

trabalhador na interação com o capital." O cidadão, enquanto parte e representante de seu coletivo,

deve se envolver no processo político, da gestação da política pública ao seu controle social. Nos

territórios, atores-cidadãos em coletividade devem constituir a arena política, defendendo os

interesses da totalidade.

O conceito de Gestão Social, desenvolvido sob o comando de Tenório, tem sua base na

Escola de Frankfurt, em especial nas obras de Jürgen Habermas, quem, segundo Tenório (2008,

p.14-20) buscou "por meio de seu conceito de racionalidade comunicativa, estabelecer elementos

conceituais democratizadores das relações sociais na sociedade contemporânea" e "desenvolver

uma teoria que, diferente da teoria tradicional, positivista, denunciada por Horkheimer, permita uma

práxis social voltada para um conhecimento reflexivo e uma práxis política que questione as

estruturas sócio-político-econômicas existentes." Absorvendo das tipologias habermasiana das

ações estratégica e comunicativa, e contrapondo-as, Tenório desenvolve os conceitos de Gestão

Social e Gestão Estratégica. "Assim, a expressão ação estratégica - ação racional voltada para o

êxito, será antitética à ação comunicativa - ação racional voltada para o entendimento."

(TENÓRIO, op. cit., p.23).

A Gestão Social refletida por Tenório absorve o conceito de política deliberativa de

Habermas e dele deriva a cidadania deliberativa, na qual, para Tenório (op. cit., p.107-08)

"esboça-se a imagem de uma sociedade descentralizada e que se caracteriza por um espaço público

que serve para apresentar, identificar e solucionar problemas sociais." A cidadania deliberativa visa

tratar as questões subnacionais de forma compartilhada com a sociedade civil "por meio de um

procedimento político argumentativo no qual a cidadania delibera, decide, com os outros poderes,

os interesses da comunidade." Para garantir a legitimidade das ações políticas, os processos de

discussão e decisão na esfera pública, devem ser orientados, segundo Tenório (op. cit., p. 161),

pelos seguintes princípios: inclusão, pluralismo, igualdade participativa, autonomia e bem comum.

13

Adotando a cidadania deliberativa, o Estado se mostraria aberto à participação ativa da

comunidade por meio das associações representativas dos cidadãos. Somente a população local

compreende em profundidade suas necessidades e pode definir seus verdadeiros interesses. A partir

daí é possível estabelecer uma relação simbiótica entre os interesses da comunidade local e os da

totalidade representada pelo Estado, para além das fronteiras do território, proporcionando as

externalidades positivas já salientadas. Além disso, o empoderamento político da comunidade local

os capacita a reagir diante das pressões exercidas pela especulação imobiliária, pelo capital, pelo

agronegócio e pelo "culto ao silvestre."11

Condições de Permanência no Campo: o caso da Resistência dos Agricultores Familiares de

Seropédica

A situação da agricultura familiar em Seropédica, frente ao crescimento econômico da

região, é demasiadamente frágil e requer uma atenção especial da administração pública local e os

diversos atores envolvidos nos processo de resgate e fortalecimento da atividade. Trata-se de um

município localizado na região do Grande Rio, muito próxima da capital, e que vem apresentando

significativas transformações socioeconômicas, culturais e ambientais. A proximidade com a cidade

de Itaguaí, que abriga o Porto de mesmo nome, bem como a construção da rodovia BR-493, mais

conhecida como Arco Metropolitano, são fatores que têm atraído a instalação de condomínios

logísticos, indústrias e mineradoras para Seropédica.

Com todas essas transformações, a agricultura familiar, que no passado era considerada

uma das principais atividades da região, e acompanhando as transformações por que tem passado o

campo brasileiro sob a pressão da industrialização, especulação imobiliária e do agronegócio, está

sendo relegada ao segundo plano nas agendas políticas locais. Este fato pode estar acelerando o

processo de êxodo rural na cidade. Os dados dos Censos Demográficos de 2000 e 2010, do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatísticas e do Censo feito pelo próprio município de Seropédica, em

2007, corroboram essa tendência. A população rural do município era de 20,5% da população total

em 2000, decresce por toda a década, até alcançar 18,5% em 2007 e 17,8% em 2010.

Como enfrentamento das adversidades, o CONSEA da cidade foi criado pelos atores sociais,

tanto da sociedade civil quanto pela Secretaria de Assistência Social de Seropédica, para discutir,

11 Ver Martinez Alier, J. Correntes do ecologismo. In: ____. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2012. p. 21-39.

14

entre outras, as questões relativas à produção de alimentos locais e o acesso às políticas públicas,

especialmente ao PNAE. O CONSEA, composto por quatro entidades do poder público local e oito

da sociedade civil, tem atuado desde o ano de 2013, com debates que incluem questões como a

desnutrição e a obesidade de crianças do município, casos de insegurança alimentar em alguns

bairros e, o assunto mais recorrente e polêmico nesse fórum de discussão: a inclusão dos

agricultores familiares locais no PNAE. É emblemática que a iniciativa de criação do Conselho no

município tenha, como representação do poder público, a Secretaria de Assistência Social. Afinal,

possibilitar meios de acesso aos agricultores familiares ao programa lhes garantiria mais do que

uma fonte digna de trabalho e renda, mas a possibilidade manutenção de seu modo de vida, de sua

identidade no território. Além disso, o seu modo de fazer, dado que os agricultores envolvidos

ofertam alimentos orgânicos, possibilitaria a exploração sustentável do território.

A primeira iniciativa do CONSEA foi criar uma comissão formada agricultores locais e

nutricionistas da Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de Seropédica, no sentido de ajustar o

cardápio da merenda escolar. Os principais agricultores interessados em ofertar são aqueles da rede

de agricultores orgânicos do município. Os alimentos orgânicos, por lei, agregam um valor de até

trinta por cento acima do valor do produto convencional.

Desde 2009, os municípios devem adquirir pelo menos trinta por cento da alimentação

escolar oriunda da agricultura familiar no âmbito do PNAE, conforme prevê o artigo 14 da Lei nº

11.947 desse ano12. O município de Seropédica, em 2014, conseguiu atingir os 30% previstos pela

lei, embora por meio de uma cooperativa situada em Araruama, cidade distante 180 km de

Seropédica. Tal cooperativa, por seu turno, negociava com produtores de outras localidades, não

incluindo os agricultores locais.

Embora a lei não obrigue que a compra seja feita especificamente de produtores locais, isso

não significa que os agricultores familiares locais não possam ser incluídos. O PNAE é uma

ferramenta capaz de possibilitar uma vida digna e a permanência do cidadão do campo. Faz-se

necessário, para isso, estreitar as distâncias entre o agricultor e o PNAE.

Diante das pressões exercidas pelo CONSEA, a proposta apresentada pela gestão do

município de Seropédica consistiu em articular negociações entre a cooperativa que já fornecia os

alimentos, – já que a mesma possui o DAP-Jurídico13, que é um dos documentos necessários para

12Art. 14. Do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas. 13 DAP é o Documento de Aptidão ao PRONAF (Programa Nacional da Agricultura Familiar) que pode ocorrer no formato jurídico, no caso de uma cooperativa, ou individual.

15

entrar no processo de aquisição de produtos para a alimentação escolar – e os agricultores do

município.

Por outro lado, alguns produtores mostraram desinteresse em “negociar” como cooperativa,

visto que já possuem o DAP na modalidade individual e que poderiam fornecer diretamente à

secretaria de educação, tornando desnecessária a intermediação da cooperativa que venceu a

chamada pública. Segundo um dos produtores presente na reunião do CONSEA que ocorreu no mês

de outubro de 2014, uma das maiores falhas no processo de aquisição de alimentos é a pouca

divulgação das chamadas públicas para os agricultores que dispõem dos documentos necessários

para a comercialização (DAP). Logo, o agricultor não tem acesso às informações e prazos para a

chamada pública, pois as informações são divulgadas somente no Diário Oficial do município. O

mesmo acrescenta ainda que, pela lei do PNAE, não há a necessidade do produtor em participar do

processo licitatório para o fornecimento da alimentação escolar advinda da agricultura familiar. O

mesmo conclui a sua fala expondo que a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão

Rural (Emater)-Rio deveria ser o principal órgão articulador deste processo.

Para o estabelecimento da institucionalização de inclusão dos agricultores no PNAE, foi

criada uma comissão entre os atores envolvidos – agricultores interessados e Emater-Rio apoiando-

os na elaboração do projeto – que buscará discutir a consolidação da dinâmica organizacional nessa

proposta de participação cidadã. Para a presidente do CONSEA, a sugestão dada pela secretaria de

Meio Ambiente e Agronegócio “conseguiu fazer com que eles cumprissem a lei e realmente olhar o

agricultor local”, ao se propor a compra dos produtos dos agricultores de Seropédica pela da

cooperativa que vinha fornecendo os alimentos. Em dezembro de 2014, na última reunião do

CONSEA do ano, houve uma tentativa do subsecretário de meio ambiente e agronegócio de

aproximar os agricultores interessados no fornecimento, com a presença do representante da

cooperativa do município de Araruama que havia vencido a chamada pública no ano, para que eles

comprassem dos agricultores locais e, consequentemente, fornecessem para as escolas do

município. Embora essa tenha sido uma alternativa apresentada pela Secretaria de Meio Ambiente e

Agronegócio (SEMAMA) de Seropédica, para inclusão dos agricultores locais no processo, os

mesmos não aceitaram essa aproximação, tendo em vista a percepção de que pela lei que rege o

PNAE, a venda pode ser realizada diretamente com a secretaria de educação no ato da chamada

pública, dispensando a intermediação dessa cooperativa vencedora, que seria, na visão dos

agricultores, mera “atravessadora” dos produtos para o seu devido fim. Essa adesão, na visão dos

agricultores, iria desvalorizar o produto fornecido, quando comparada ao fornecimento direto.

De acordo com a interpretação crítica observada na ação dos agricultores, ao fim do de

2014, mesmo com todas essas tentativas de articulação realizadas durante o ano, não foi possível a

16

inclusão dos agricultores no PNAE segundo suas condições: fornecer diretamente para a

alimentação escolar sem a intermediação da cooperativa vencedora da chamada pública.

No início do ano de 2015 houve retomada das ações dos conselhos acerca do processo de

inclusão dos agricultores locais individualmente. Houve como ponto de partida a tentativa de reunir

uma comissão formada por agricultores e a recém eleita presidente do CONSEA do município, com

o prefeito. O objetivo da reunião era cobrar maior transparência no processo de aquisição da

alimentação escolar. Essa tentativa foi frustrada pela indisponibilidade de tempo por parte do

prefeito em receber a comissão.

Na reunião do CONSEA, do dia 28 de abril de 2015, houve a presença do representante da

Secretaria de Educação, Cultura e Esporte, responsável pela chamada pública do PNAE, também

resultado da pressão exercida pelos membros do Conselho. Quando questionado pelos agricultores

sobre a falta de divulgação, o mesmo afirmou que obrigatoriedade da divulgação da chamada

pública deve ser dar por meio do Diário Oficial do município, um meio de comunicação que tem se

mostrado, de acordo com próprios agricultores familiares, ineficiente enquanto acesso a informação

diante da dificuldade de acesso à internet. Com isso, o mesmo se dispôs a receber os agricultores

interessados para maiores esclarecimentos e ainda informou que o edital estaria disponível em,

aproximadamente, quinze dias a partir da data da reunião. Na fala dos agricultores participantes das

reuniões trata-se de “uma chamada oculta, [pois]14 eles não divulgam, fazem uma papelada interna

lá, dizem que divulgou... ficamos procurando saber que dia que ia ser a reunião, onde era, como era,

aí fomos descobrir tudo em cima da hora."

Com o apoio técnico da representante da Emater-Rio, três agricultores interessados em

participar do processo se propuseram a se reunir em alguns encontros para a leitura do edital e para

a elaboração do projeto de fornecimento. Para tanto, elaboraram o projeto onde forneceriam

quinzenalmente, e individualmente, cerca de 6.800 kg dos produtos abóbora e banana-prata, para

quatro escolas rede municipal, totalizando um montante de R$ 19.999,81 pelo fornecimento,

conforme valores analisados no documento. Valor esse que melhoraria significativamente a

reprodução socioeconômica (CAZELLA; BONNAL; MALUF, 2009) das três famílias envolvidas,

segundo a opinião dos agricultores entrevistados.

Com a aprovação do projeto, os três agricultores iniciaram o plantio em junho das duas

culturas para o fornecimento começar em agosto conforme havia sido indicado no projeto. Mas, a

assinatura do contrato não ocorreu de imediato. Os responsáveis pela compra dos produtos no

município só convocaram os agricultores para assinarem o contrato no final de setembro. Com toda

14 Observação nossa.

17

essa espera e com diversas tentativas de contato dos produtores com a prefeitura para o

fornecimento sem uma perspectiva de assinatura, os agricultores tiveram que vender grande parte da

produção por outros meios, para que não houvesse mais prejuízo e desperdício dos alimentos

perecíveis.

Outro problema observado no momento da assinatura do contrato na segunda quinzena de

setembro foi que a funcionária responsável pela assinatura do contrato da prefeitura, solicitou aos

agricultores que o assinassem com data retroativa a julho, o que seria preocupante dado o atraso e

pelo fato de que muito da produção já havia sido destinada a outro comércio.

Como são 18.000 refeições oferecidas diariamente na rede que é composta por 45 escolas, a

logística torna-se complexa, conforme expõe a presidente do conselho. Contudo, tratava-se da

inclusão de três agricultores que forneceriam para quatro escolas, o que seria de fácil organização,

e, mais ainda, uma “experiência piloto” que seria o ponto de partida para que outros agricultores

com o interesse em participar da chamada pública nos anos seguintes. Segundo a extensionista da

Emater-Rio, “como não deu certo, os agricultores terão que começar da estaca zero em 2016."

A representante do Conselho de Alimentação Escolar do município (CAE), presente nas

reuniões, salientou que o mesmo é um conselho muito ativo e presente no controle e fiscalização em

todo processo de aquisição e distribuição dos alimentos para as escolas. Há todo um planejamento

e agendamento de visitas nas escolas por parte do CAE. Sobre a aquisição dos alimentos escolares,

segundo a representante, estes vêm de uma empresa privada que faz a entrega. Informou que no

CAE a discussão sobre a compra vinda da agricultura familiar é algo bastante presente, citando o

caso da compra de 30% por meio da cooperativa de Araruama no ano de 2014, ressaltando como

uma primeira experiência exitosa. A mesma explicitou também que em 2014 os agricultores locais

não quiseram vender os seus produtos para a cooperativa de Araruama, pois a consideravam como

“atravessadores” no processo.

Sobre a inclusão de agricultores de Seropédica na chamada pública de 2015, a representante

informou que o problema teria ocorrido pela falta de interesse por parte dos agricultores, pois,

depois de terem o projeto aprovado na chamada pública os agricultores não teriam procurado a

prefeitura para saber dos procedimentos e assinar o contrato. Informação bem diferente da

informada pelos agricultores. A mesma considera ainda, em sua fala, que acredita que Seropédica

não tem como atingir o percentual de 30% de produtos da agricultura familiar somente com os

agricultores locais, pois produção vinda do município seria insuficiente para o fornecimento de

alimento para 45 escolas. Inclusive foi questionado por ela até que ponto a agricultura familiar é

presente no município.

18

Por conta da não concretização da compra dos produtores familiares de Seropédica por meio

da chamada pública, segundo a representante, o município no ano de 2015 não atingiu o mínimo de

30% estabelecido pelo PNAE, responsabilizando, assim, os agricultores. No entanto, o que se

percebeu foi um descaso por parte da prefeitura nesta articulação. Com o insucesso desse processo

de inclusão, a prefeitura está adquirindo 100% da alimentação escolar através de uma empresa que

não compra necessariamente da agricultura familiar. A entrevistada salienta ainda que a prefeitura

terá que justificar em relatório a não compra do mínimo de 30% da agricultura familiar em virtude

do ocorrido.

No início do ano de 2016, houve uma chamada pública, mas, novamente, sem uma ampla

divulgação entre os agricultores, fato que levou os agricultores individuais a não participarem da

chamada pública para o ano. Essa informação foi apresentada na reunião do CONSEA realizada no

mês de março de 2016.

Toda a dificuldade e falta de estímulo relatada acima levou a uma queda drástica na

participação dos agricultores no conselho. Para eles, o processo ficou desacreditado, embora a

atuação do CONSEA tenha sido constante e incessante na articulação das discussões entre a

sociedade cível e o poder público, devidamente assessorado pelas entidades de extensão e pesquisa

que participam das reuniões, como a Emater local.

Outra questão recorrente também nas reuniões é a legalização do CONSEA. O conselho

existe “de fato”, mas não “de direito”, pois até então não existe uma lei de criação do mesmo no

município. A questão da criação da lei de criação do CONSEA nas reuniões girava em torno de qual

o meio mais viável para a sua efetivação: se via prefeito ou via câmara dos vereadores. Houve

várias tentativas, sem êxito, de marcar uma reunião com o prefeito da cidade, para expor a

necessidade da legalização do conselho que já existia e era atuante, mas que necessitava de amparo

legal.

A solução encontrada foi procurar o presidente da Câmara dos Vereadores para expor o

problema. Assim, com muita disponibilidade em contribuir com a questão apresentada, o referido

vereador participou de algumas reuniões do conselho em 2015 e, ao final do ano, apresentou o

projeto de criação do CONSEA na Câmara que o aprovou, com seis votos a dois. Faltava somente a

sanção do prefeito. No início de 2016 o prefeito vetou o referido projeto, alegando que a Câmara

não deveria “interferir nas decisões do poder executivo." Mas a Câmara derrubou o veto do prefeito

na primeira semana de março de 2016. Mais uma vitória resultante da participação e da pressão

exercida pelos membros do CONSEA. Contudo, até o momento o Conselho não foi legalizado.

O CONSEA, ainda assim, continua persistindo. Na reunião ordinária de abril de 2016, o

CONSEA de Seropédica contou com a presença de três representantes do CONSEA estadual, as

19

quais esclareceram várias questões sobre a criação do mesmo, assim como a possibilidade do

município aderir, futuramente, ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

(SISAN)15, assim como acerca dos “entraves” enfrentados pelos agricultores no processo de sua

inclusão no PNAE do município.

Conclusões

As experiências políticas recentes têm mostrado esforços do governo federal no intuito de

fortalecer a governança da sociedade civil no território, para a promoção do desenvolvimento do

campo, e das populações mais economicamente fragilizadas que nele habita. A ampliação da

governança exige dos atores locais uma maior participação política em espaços públicos de consulta

e deliberação, como vem ocorrendo no CONSEA de Seropédica. É justamente pela pressão popular

exercida pela sociedade civil atuante, no sentido de incluir os agricultores nas políticas públicas

como no PNAE, assim como pela própria legalização do conselho, que as ações comunicativas

entre os atores envolvidos ocorrem com maior profundidade.

A administração pública, mais especificamente o poder executivo local, não indica se

aproximar dos princípios fundamentais da cidadania deliberativa que norteiam a Gestão Social aqui

refletida: inclusão, pluralismo, igualdade participativa, autonomia e bem comum. Assim, os

agricultores familiares de Seropédica, enquanto parte interessada do PNAE, deveriam, na

representação coletiva refletida no CONSEA, ser incluídos nos espaços de discussão sobre a forma

como o município ofertará a alimentação escolar. Num espaço plural de discussão, o poder público,

as empresas, os agricultores familiares e demais membros da sociedade deveriam ter voz e poder

equiparados, para tomarem decisões que atendam, de forma equilibrada, o interesse

consensualmente concertado. O bem comum se refletiria no fato de que, podendo ofertar alimentos

escolares orgânicos aos municípios de Seropédica, os cidadãos do município seriam beneficiados

por um alimento mais saudável e um ambiente rural conservado.

No caso de Seropédica, percebeu-se um grave descompasso entre os interesses do poder

público e da sociedade civil organizada por grupos de agricultores locais. Cada um desses

princípios significa um desafio e sua conquista exige uma maturidade política, dialógica e reflexiva,

que só pode ocorrer num ambiente da democracia deliberativa, a qual a sociedade está aprendendo a

construir.

15 O SISAN é um sistema nacional ligado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

20

Ainda assim, os agricultores familiares têm aprendido a jogar com as regras do jogo, o que

vem possibilitando, a conquista de seus interesses, em coletividade, por meio do agir comunicativo

e na esfera pública, como propõe Habermas. Passo a passo, conforme a guerra de posições de

Gramsci, os agricultores familiares vêm avançando na luta pela garantia não só dos seus direitos,

mas o direito de ter acesso a eles, para possibilitar sua permanência no campo.

Referências bibliográficas

BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Apresentação. Disponível em: <http://www4.planalto. gov.br/consea /acesso-a-informacao /institucional /apresentacao >. Acesso em: 02 mai. 2016. CANÇADO, A. C.; SAUSEN, J. O.; VILLELA, L. E. Gestão social versus gestão estratégica. In: Fernando Guilherme Tenório. (Orgs.). Gestão social e gestão estratégica: experiências em

desenvolvimento territorial. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, v. 2, p. 15-86. CARLI, R. A política em György Lukács. São Paulo: Cortez, 2013. CAZELLA, A.; BONNAL, P.; MALUF, R. S. (Orgs.). Agricultura familiar: multifuncionalidade

e desenvolvimento territorial no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. COUTINHO, C. N. A democracia como valor universal. Encontros com a Civilização Brasileira, v.9, p. 33-47, 1979. _______________. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. _______________. Notas sobre cidadania e modernidade. In:____. Contra a corrente: ensaio

sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000, p. 49-69. DAGNINO, E. Confluência perversa, deslocamentos de sentido, crise discursiva In: GRINMSON, A. La Cultura em las Crisis Lationamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 1 ed., 2004. Disponível em:. http://bibliotecavirtual. clacso.org.ar/ar/libros/grupos/ grim_ crisis/11Confluencia.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2015, p. 195-216. DELGADO, N. G. O papel do rural no desenvolvimento nacional: da modernização conservadora dos anos 1970 ao Governo Lula. In: ____ (Coord.). Brasil rural em debate: coletânea de artigos. Brasília: CONDRAF/MDA, 2010, p. 28-78. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de

Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ________. Cadernos do cárcere: Maquiavel - notas sobre o Estado e a política. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. ________. Cartas do cárcere: Antologia. Sevilha: Estaleiro Editora, 2011.

21

GRANOVETTER, M. Ação econômica e estrutura Social: o problema da imersão. RAE

Eletrônica, v.6, n.1, Não paginado, 2007 HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011. ____________. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, Revista de Cultura e

Política, n. 36, 1995. ____________. Soberania popular como procedimento. Novos Estudos Cebrap, n. 26, p. 100-113, 1990. HAESBAERT, R. Região numa “constelação de conceitos”: espaço, território e região. In: __. Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 157-179. HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997. JEAN, B. Do desenvolvimento regional ao desenvolvimento territorial sustentável: rumo a um desenvolvimento dos territórios rurais. In: VIEIRA, P. F. et. al. Desenvolvimento territorial

sustentável: subsídios para uma política de fomento. Florianópolis: APED, 2010. p. 49-76. MARSHAL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MARTINEZ ALIER, J. Correntes do ecologismo. In: ______. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2012. p. 21-39. MARX, K. A questão judaica. São Paulo: Moraes, [196-?]. ________; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. 2. ed. Lisboa: Avante, 1997. ROCHA, S. D. da. “Imagens e contra-imagens do estado”: considerações sobre a sociedade

civil em Gramsci e Habermas, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. SERVA, M; JAIME JÚNIOR, P. Observação participante e pesquisa em administração: uma postura antropológica. Revista em Administração de Empresa, v. 35, n. 1, p. 64-79, 1995. TENÓRIO, F. G. Flexibilização organizacional: mito ou realidade? Rio de Janeiro: FGV, 2000. ____________ . Um espectro ronda o terceiro setor, o espectro do Mercado: ensaios de gestão

social. 3. ed. Ijuí: UNIJUÍ, 2008.