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A luta pelos direitos humanos: esboço de uma crítica

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A luta pelos direitos humanos: Esboço de uma crítica

Wagner Francesco1

Vivemos hoje em um mundo firmemente mantido sob as rédeas do capital, numa era de promessas não cumpridas e esperanças amargamente frustradas, que até o momento só se sustentam por uma teimosa esperança.

(István Mészáros)

Resumo

Este artigo tem caráter introdutório no assunto dos direitos humanos. A

discussão irá ser travada a partir do contato com as leis da Constituição

Brasileira de 1988, com a Declaração dos Direitos Humanos que foi adotada

em 1948, mas também irá analisar as denúncias das transgressões dos direitos

humanos no livro do profeta Amós, bem como dialogar com críticos da atual

estrutura do capital montada que, sui generis, viola os direitos. Será possível

uma luta pelos direitos humanos que seja honesta dentro do sistema do

capital?

Uma introdução

O capital, hoje na figura do capitalismo, viola todo e qualquer direito

humano, pois, como escreveu Mészáros, o sistema surgiu na história como

Uma poderosa – na verdade até o presente, de longe a mais

poderosa – estrutura “totalizadora” de controle à qual tudo o mais,

inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua (do

sistema) “viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não consiga se

adaptar. (MÉSZÁROS, 2002, p. 96)

Portanto, ao que parece, os direitos humanos estão vinculados às

adaptações. Nem todos têm direitos, mas os que se adaptam. Ou todos têm

direitos, mas só os que se adaptam conseguem/podem – ou podem porque

1 Marxista e estudante de teologia. www.wagnerfrancesco.blogspot.com E-mail: [email protected]

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conseguem – usufruir. Diante disto surge uma imensa batalha, de classes

como dizia Marx, de um lado uns que só usufruem dos direitos e, do outro, os

que são impostos somente “a benção” de executar os deveres. Assim, nada

mais apropriado neste momento do artigo do que a história do Machado de

Assis, no romance Quincas Borba, quando, em sua descrição sobre o

humanismo o personagem principal do livro conta:

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas

apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire

forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há

batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as

batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem

de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a

conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os

despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações,

recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas.

Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-

se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é

aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma

pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido,

ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

Convém a nós definirmos o que vem a ser os Direitos Humanos.

Os direitos não são apenas direitos, mas, como está escrito na

Declaração dos Direitos Humanos, são direitos fundamentais.

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos

os membros da família humana e de seus direitos iguais e

inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no

mundo (...)2 (grifo meu)

Fundamentais para o quê? A própria frase da Declaração explica, pois,

lá está escrito que “é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no

mundo”, isto é, sem que cada ser humano possa desfrutar dos seus direitos, a

liberdade, a justiça e a paz no mundo estarão ameaçadas. Logo, direitos

humanos são os direitos que segundo a Constituição do nosso país, no artigo

2 http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm

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sexto3 são, segundo o artigo 5º da Constituição4 e artigo 1º da Declaração dos

Direitos Humanos5, inalienáveis. Estas coisas são leis; e leis foram feitas para

serem cumpridas (?).

1. Leis e direitos humanos

De onde vêm as leis? A Bíblia narra a entrega de leis para Moisés e,

segundo a crença, leis dadas por Deus.

E deu a Moisés (quando acabou de falar com ele no monte Sinai) as

duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de

Deus. (Êxodo 31:18)

É comum, de fato, muitos tratarem as leis como algo divino, exterior à

sociedade e, por esta razão, intocável. Isto é chamado de - o que no marxismo

é atribuído a esta relação “misteriosa” com a mercadoria - fetichismo.

À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente.

Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de

sutileza metafísica e manhas teológicas. (MARX, 1996, p. 197)

Se a mercadoria tem as suas sutilezas, para nós, que estamos falando

de Leis, não pode haver pensamento diferente.

A mercadoria, para Marx , não nasce de um “não-lugar”, ex-nihilo, mas

reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho

como características objetivas dos próprios produtos de trabalho,

como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso,

também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total

como uma relação social existente fora deles, entre objetos. (Idem, p.

198)

Assim também as leis, cheias de sutilezas metafísicas, aparecem ao ser

humano como que caídas do céu, escritas pelo dedo de Deus e irrevogáveis.

Mas, assim como nas palavras de Marx acima citadas, as leis também são

3 São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados 4 Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...) 5 Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

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“próprios produtos de trabalho”. Trabalho de quem? Dos seres humanos! Já

bem escreveu o filósofo francês, Jean-Paul Sartre que “o ser humano é o ser

pelo qual o nada vem ao mundo” (SARTRE, 2008, p. 67), logo, as leis são

humanas feitas para os humanos...

1.1 As leis e as transgressões

Para Montesquieu

As leis, em seu significado mais extenso, são as relações necessárias

que derivam da natureza das coisas. (MONTESQUIEU, 2000, p. 11)

Logo, de acordo com as palavras do filósofo francês, as leis derivam das

coisas, naturalmente, por necessidade. Faz parte da organização das coisas,

naturalmente – para não perder a “sutileza metafísica” (Marx) da coisa -, e é

essencial para a manutenção da existência. As leis, sendo assim, derivam de

necessidades. Quais necessidades? Necessidades fundamentais. Quais

necessidades fundamentais? As que a Declaração dos Direitos Humanos, no

preâmbulo, chamam de fundamentais “para a paz do mundo”.

Sobre o fato das leis serem construções humanas, Montesquieu

confirma nas palavras que se seguem:

As leis são as relações que se encontram entre ela (razão primitiva) e

os diferentes seres, e as relações destes diferentes seres entre si.

(IDEM)

Não convém a nós neste artigo, por falta de espaço e por questão de

propósito, discutir as leis em Montesquieu e nem nos aprofundarmos nos

termos e conceitos usados por ele, mas o trecho supracitado chama a atenção

pelas palavras “as leis são as relações”; sim, de fato, as relações entre os

diferentes entre si (Montesquieu) e, principalmente, entre os iguais (artigo 5º da

Constituição e 1º da Declaração dos Direitos Humanos). Se os seres humanos

são diferentes entre si, eles são iguais perante a Lei, e iguais perante a Lei,

pois, segundo Rousseau, fora feito um “pacto social”. Como já vem sendo dito

até aqui, as leis nascem necessariamente das relações entre os seres e

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nascem com o intuito de preservação. Assim, para corroborar isto, o Rousseau

escreve:

Suponho que os seres humanos tenham chegado ao ponto em que

os obstáculos que prejudicam a sua conversão o estado de natureza

prevalecem por sua resistência sobre as forças que cada indivíduo

pode empregar para se manter nesse estado. Então, esse estado

primitivo não pode mais subsistir e o gênero humano pereceria se

não mudasse sua maneira de ser.(...) eles não têm outro meio para

se conservar senão o de formar por agregação uma soma de forças

capaz de prevalecer sobre a resistência, de mobilizá-las com uma só

motivação e de fazê-las operar conjuntamente. (ROUSSEAU, 2011,

p. 65)

Ora, pois então, se as leis nascem naturalmente/necessariamente das

relações entre os seres, quão grandes crimes são a violação de tais leis? O

que Rousseau parece temer é o “estado primitivo”, de barbárie, que faria “o

gênero humano perecer se não mudasse sua maneira de ser”, i.é, se não

abandonassem seus desejos estritamente pessoais e não fizessem um pacto

de união de interesses. Segue dizendo o Rousseau sobre a catástrofe do

rompimento do pacto social:

As cláusulas desse contrato são tão determinadas pela natureza do

ato, que a menor modificação as tornaria inúteis e sem efeito, de

sorte que, embora nunca tenham sido formalmente enunciadas, elas

são em toda parte as mesmas, em toda parte tacitamente admitidas e

reconhecidas. Até que, sendo o pacto social violado, todos voltam a

seus primeiros direitos e tomam a sua liberdade natural, perdendo a

liberdade pactuada pela qual renunciaram àqueles. (IDEM)

O que é a Constituição? O que é a Declaração dos Direitos Humanos?

São leis, e, por esta razão, tudo o que foi dito até aqui sobre as leis, à

Constituição e à Declaração se aplicam. E se são leis corremos sérios riscos

quando são violadas.

Talvez – certamente, na verdade – por isto é que vivemos num terrível

caos. Há a violação das leis e dos Direitos Humanos. Há porque tais violações

são inerentes – não são exceções, mas regras – ao sistema explorador. Há

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violações dos direitos humanos porque existe gente com fome, porque existem

pessoas sem atendimento médico, porque pessoas sendo discriminadas – seja

pela cor ou pela opção sexual – existem pessoas sem casa, sem educação etc.

Estes requisitos básicos para uma vida digna são negadas a milhares de

pessoas, pessoas que, segundo as leis, são iguais às demais e têm os

mesmos direitos.

1.2 Avisos sobre o perigo: o profeta Amós, sua crítica e a crítica moderna.

Em todo o tempo sempre apareceram pessoas que, inconformadas com

a realidade, criticavam as estruturas políticas do seu tempo. Mészáros, no livro

“O desafio e o fardo do tempo histórico” dedica o livro à três pessoas: Antônio

Gramsci, Attila József e Che Guevara. E escreve dizendo

Este livro é dedicado à memória de três grandes seres humanos do

século XX(...). Pois, contra todas as probabilidades, desafiando

inexoravelmente as trágicas consequências que se tinha de sofrer,

eles enfrentaram os permanentes desafios de uma época dilacerada

pela sucessão de crises extremas e carregaram o fardo de seu tempo

histórico aos últimos limites. (...) Todos os três percebiam claramente

que somente a mais radical transformação societária, capaz de

instituir uma verdadeira mudança de época, poderia oferecer uma

saída da perigosa sucessão de crises que caracterizou o século XX

como um todo. (MÉSZÁROS, 2007, p. 19)

De fato três grandes nomes, de lugares tão distintos: um italiano,

um húngaro e um argentino/cubano. Ambos do século XX. E tantos outros que

antecederam a eles e que lutaram tanto e com todas as forças pela paz e

igualdade no mundo – e cito, para fazer justiça, ao grande V. Lênin. Entretanto,

antes destes, muito antes destes, existiu um Israelita, natural de Tecoa, cidade

Israelense da Província de Belém, localizada à 12 km ao sudeste de Belém na

Cisjordânia.

Não iremos tratar exegeticamente do livro de Amós, nem fazer nenhuma

análise histórica aprofundada do livro, mas ler as críticas do profeta ao sistema

de seu tempo que destrói os direitos das pessoas.

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O livro de Amós começa desta forma

Palavras de Amós (...), palavras das quais ele teve a visão, contra

Israel, nos dias de Ozias, rei de Judá. (AMÓS. 1:1).

O profeta aparece para fazer uma crítica contra um povo, Israel, e contra

o rei que governa este povo, Ozias. Ozias, segundo o livro de II Crônicas 26:1-

7, tornou-se rei aos 16 anos e até era querido por Deus, tendo até vencido

batalhas. Mas Amós aparece para criticar a forma como este Rei vem

conduzindo o povo e como o povo vem se comportando. Há, claramente nas

palavras do profeta, uma macabra destruição dos direitos do povo de Israel.

Nas palavras de Amós, Deus manda enviar uma mensagem, a de que

Ele vai trazer juízo, por causa de Sua Justiça, porque, dentre outras coisas,

“perseguiu com a espada seu irmão e abafou a misericórdia” (Amós, 1: 11), e,

no capítulo 2:6-8 a seguinte denúncia:

Venderam o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias;

porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a cabeça dos

indigentes e desviam os recursos dos humildes, depois que o filho e o

pai vão à mesma moça (...) por causa das roupas penhoradas que

extorquiam perto de cada altar e do vinho confiscado que bebem na

casa de Deus. (AMÓS 2:6-8)

Eis então, a partir destas palavras do profeta, uma lista de transgressões

dos direitos humanos por parte de Israel:

• Vender o justo por dinheiro. A pessoa como mercadoria.

• Violência física contra os fracos. Dominação.

• Desvio dos recursos dos pobres para financiar o luxo da

monarquia. O que podemos chamar hoje de desvio de verba

pública pra os bolsos privados.

• Exploração sexual das mulheres.

• Extorsão do pobre.

E num dos avisos, ao meu ver, mais contundentes do profeta Amós

encontra-se no capítulo 8:4-6 abaixo transcrito

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Escutai, vós que vos encarniçais contra o pobre, para aniquilar os

humildes da terra, vós que dizeis: quando é que passará a lua nova,

para podermos vender os grãos, e o sábado, para abrirmos os sacos

de trigo, diminuindo a efá, aumentando o siclo, alterando balanças

misteriosas, comprando o indigente a dinheiro e um pobre por um par

de sandálias? Venderemos até o farelo do trigo! (AMÓS 8: 4-6)

Nestas palavras de Amós, que são dirigidas para os mercadores, fica a

denúncia de que as pessoas estão sendo meros meios para se obter riqueza. E

isto faz parecer com a frase escrita pelo Karl Marx & Engels em “O manifesto

comunista” que profetizam:

A burguesia rasgou o véu de emoção e de sentimentalidade das

relações familiares e reduziu-as a mera relação monetária. (MARX &

ENGELS, 2001,p. 28)

Unir o Amós e o Marx não se configura como anacronismo, mas surge para

revelar que, nestes dois, os direitos humanos são violados por dinheiro. O

direito de ter seus direitos é comprado com dinheiro.

Há uma frase muito falada que diz “farinha pouca, meu pirão primeiro”, isto

é, primeiro os meus direitos; e eu tenho como adquirir meu pirão primeiro.

Estaremos, assim, então, caminhando para a barbárie? Fica a pergunta...

2. A luta pelos direitos humanos: uma crítica

“(...) Os direitos humanos não nos obrigarão a abençoar as ‘alegrias’

do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente. Não há

Estado (dito) democrático que não esteja totalmente comprometido

nesta fabricação da miséria humana”. (G. Deleuze).

Um dos mais aclamados filósofos da atualidade, o marxista esloveno Slavoj

Žižek escreve um livro chamado “A visão em paralaxe”. Paralaxe é, na

astronomia, a diferença na posição aparente de um objeto visto por

observadores em locais distintos. Há, por acaso, algum problema com a

caridade, com a filantropia, com a bondade etc.? Não, não há! Mas vamos

partir da paralaxe para levantarmos algumas suspeitas.

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Tem crescido, dia após dia, os movimentos iniciados pela internet. Mais e

mais pessoas estão indo às ruas protestar, a questão da violação dos direitos

humanos aparece na mídia e há um chamado quase que uníssono para que as

pessoas participem da vida social e este chamado tem sido atendido com

bastante veemência por parte da massa social.

Algo que aparece para dar a imagem de uma pessoa humana e bondosa é

o ato de fazer caridade. A filantropia é um ato extremamente valorizado nos

dias atuais. Não é por acaso que vemos aparecer sempre na mídia os rostos

dos bons filantropos, dos milionários que investem seus milhões em ONG’s das

mais variadas correntes ideológicas. Lutar pelos Direitos Humanos faz parte da

lista das prioridades dos filantropos. Mas vamos ver este problema mais de

perto.

Escreve assim Oscar Wilde

A maioria dos homens arruínam suas vidas por força de um altruísmo

doentio e extremado - são forçados, deveras, a arruiná-las. Acham-se

cercados dos horrores da pobreza, dos horrores da fealdade, dos

horrores da fome. É inevitável que se sintam fortemente tocados por

tudo isso. As emoções do homem são despertadas mais rapidamente

que sua inteligência; e, como ressaltei há algum tempo em um ensaio

sobre a função da crítica, é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor

do que com a ideia. (WILDE, 2007, p. 3)

Para o escritor irlandês, diante de tanta miséria e tanto horror que

constitui a realidade social, é inevitável que os seres humanos não se sintam

chocados com estas coisas. É inevitável que ao passar pelas ruas e vermos

tantas pessoas dormindo nas calçadas, com fome e frio, o nosso coração não

bata diferente. Mas Wilde vai na raiz do problema quando acusa que, no ser

humano “as emoções são despertadas mais rapidamente que a inteligência”. O

que isto quer dizer? Quer dizer que o impulso para fazer algo é bem mais forte

do que a necessidade de pensar algumas coisas antes de agir. E claro que

pode-se argumentar que agimos com pressa pois “a fome não espera”, mas

este argumento não é de todo sincero a priori. E o Wilde concordaria com ele

pois ele próprio faz uma diferenciação muito importante que é entre “a dor” e a

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“ideia”. Nossos atos tendem a tocar na dor, até alivia a dor, mas mantém o que

causa a dor intocável. Então, sendo assim, nossos atos não passam de ações

momentâneas, que só permitem ao outro alguns segundos de luz... Mas, diz o

Oscar Wilde que as pessoas

(...) buscam solucionar o problema da pobreza, por exemplo,

mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma teoria mais avançada,

entretendo o pobre. Mas isto não é uma solução: é um agravamento

da dificuldade. (WILDE, 2007, p. 3)

Segundo as palavras acima, a caridade, a filantropia e o movimento de

luta pelos direitos humanos pode, como escreveu o Slavoj, não passar de uma

“falsa participação” (ZIZEK, 2007, p.5) ou, se for uma verdadeira participação,

gerar o que ele chama de “paradoxo da vitimização”. O paradoxo da

vitimização consiste em manter de pé a relação dominador e dominado, pois

escreve Žižek que o outro a proteger não pode jamais deixar de ser a vítima e

que, por isto

Manipulamos a nossa fraqueza como estratagema para ganhar mais

poder precisamente da mesma forma que hoje, no nosso mundo

politicamente correto, temos de nos legitimar como sendo uma vítima

potencial ou real do poder para que a nossa voz ganhe autoridade.

Esta posição não é assertiva, mas, sim, dominadora (Žižek, 2007, p.

21).

Um exemplo claro disto, por exemplo, é a campanha Criança Esperança

da Rede Globo que, com o discurso de piedade, consegue aparecer como

“mãe de todos” e, com isto, ganhar audiência – e audiência é poder. E as

igrejas não ficam de fora deste sistema de “atos bondosos”. Basta ver as

campanhas evangelistas, os sopões nos bairros pobres, os mutirões pela paz

etc., mas que sempre vêm seguido do “aceite a Jesus – isto é, entre para a

nossa igreja. Você é um pecador desgraçado e estamos lhe ajudando – olha

como somos bons, estamos lhe dando sopa – a ganhar uma nova vida.

Sobre este processo de usar a caridade, e a filantropia que hoje em dia é

coisa que dá muito dinheiro, continua Žižek escrevendo que

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O capitalista-modelo atual é alguém que, após implacavelmente gerar

lucro, generosamente o compartilha, fazendo grandes doações a

igrejas, a vítimas de abuso étnico ou sexual, etc., posando de

humanitário. (Žižek, 2005, p. 177)

E voltando para o perigo de agir imediatamente, obedecendo ao

chamado midiático e modista da “luta pelos direitos” é que, novamente citando

o Slavoj Žižek

A primeira tarefa da atualidade é precisamente (contrariando a 11ª

tese de Marx) não sucumbir à tentação de agir, de intervir

diretamente e mudar as coisas - que inevitavelmente termina num

beco sem saída de debilitante impossibilidade. (Idem, p. 176)

Por quais direitos estamos lutando? Pelo direito de mantermos a relação

dominador X dominado? Estamos lutando contra um moinho de vento?

Seguiremos para esta questão, mas não sem antes ler novamente, a título de

introdução para o que virá, as palavras do Oscar Wilde que diz

(As pessoas) buscam solucionar o problema da pobreza, por

exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma teoria mais

avançada, entretendo o pobre. Mas isto não é uma solução: é um

agravamento da dificuldade. A meta adequada é esforçar-se por

reconstruir a sociedade em bases tais que nela seja impossível à

pobreza. (WILDE, 2007, p. 3)

(In)conclusão: A construção de uma nova ordem

O grande problema desta tentativa de humanizar o sistema do capital,

de dar-lhe um rosto brando e suave é que, na construção deste sistema, os

atos que tratam de modificar as contradições atacam os sintomas e não as

causas. Se para o profeta Amós o grande mal do povo de Israel foi

desobedecer a Deus, para ele a única correção é voltar-se para Deus. Se para

o economista político, de viés marxista, o grande mal é o sistema desumano do

capital, a única correção é derrubar a estrutura por completo e trazer à tona um

novo modo de viver em sociedade.

Mészáros chamou a atenção para o fato de que

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A guerra contra à pobreza, tantas vezes anunciada com zelo

reformista, especialmente no século XX, é sempre uma guerra

perdida, dada a estrutura causal do sistema do capital – os

imperativos estruturais de exploração que produzem a pobreza.

(MÉSZÁROS, 2002, p. 39)

Como dado desta realidade, continuamos escutando o filósofo húngaro

que relata que

Após meio de um século de promessas de eliminação – ou ao menos

uma redução sensível – da desigualdade por meio da “taxação

progressiva” e outras medidas e, portanto, de assegurar as condições

do desenvolvimento socialmente viável em todo o mundo, verificou-se

que a realidade é caracterizada por uma desigualdade sempre

crescente(...). Um relatório recente do Congresso dos EUA admitiu

que a renda de 1% mais rico da população americana agora excede a

dos 40% mais pobres. (MÉSZÁROS, 2007, p.186)

Logo, um sistema que prega o acúmulo de riquezas só pode, no

máximo, confundir – se de má-fé ou não – assistência social com mudança

social. Uma coisa é o mais rico do mundo doar as migalhas que caem da sua

mesa para ajudar ao pobre, a outra é dar ao pobre o que lhe é de direito:

autonomia e espaço para exercer a sua humanidade.

Mészáros ainda escreve que

Em nossas sociedades, as determinações estruturalmente

estabelecidas e salvaguardadas de desigualdade material são em

grande medida reforçadas pela cultura da desigualdade dominante,

por meio da qual os indivíduos internalizam sua “posição social”,

resignando-se mais ou menos consensualmente à sua condição de

subordinação àqueles que tomam as decisões sobre sua atividade

vital. (MÉSZÁROS, 2007, P. 191)

E Slavoj Žižek complementa

Se hoje respondemos a um chamado direto para agir, essa ação não

é desempenhada num espaço vazio – é um ato dentro das

coordenadas ideológicas hegemônicas: aqueles que “realmente

querem fazer algo para ajudar as pessoas se envolvem (sem dúvida

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honrosamente) em iniciativas como Médicos sem fronteiras,

Greenpeace, campanhas feministas e antirracistas, que são todas

não apenas toleradas mas até mesmo apoiadas pela mídia (...) – elas

são toleradas e apoiadas desde que não se aproximem demais de

um certo limite. (Žižek, 2005,p. 177)

A necessidade de uma ruptura com o sistema dar-se porque “o capital

tem condições de conceder ganhos que podem ser assimilados pelo conjunto

do sistema” (Mészáros, 2002, p. 95), logo, os ganhos concedidos são sempre

os ganhos que impeçam que as ações humanas de reparo ou mudança dentro

do sistema “não se aproximem demais de um certo limite”. Qual limite? O limite

econômico e as estruturas de poder. Da mesma forma a luta pelos direitos

humanos encontra-se presa nesta redoma, pois, podemos ajudar o pobre,

podemos participar dos movimentos contra a homofobia, propaganda contra o

racismo deve passar na televisão... mas tudo com muito cuidado, pois

transformações radicais são perigosas e há muita coisa em jogo –

principalmente econômica e ideológica.

Que concordância há entre as luzes e as trevas? Não é bom colocar

remendo velho em roupa nova. Amós fez a crítica que hoje podemos,

infelizmente, também fazer:

Pisais o pobre e dele exigis tributo (...)sei serem muitas as vossas

transgressões e graves os vossos pecados; afligis o justo, tomais

suborno e rejeitais os necessitados na porta. (AMÓS, 5:11-12)

Há um chamado para escutar o clamor daquele que tem tido os seus

direitos violados, mas há, no versículo 24 o chamado para a existência da

sociedade que Oscar Wilde falou, uma sociedade onde seja impossível a

existência da pobreza; esta escrito : “antes, corra o juízo como as águas; e a

justiça, como ribeiro perene.”

Vivemos numa época de crise histórica sem precedentes que afeta

todas as formas do sistema do capital, e não apenas o capitalismo.

Portanto, é compreensível que somente uma alternativa socialista

radical ao modo de controle metabólico social tenha condições de

oferecer uma solução viável para as contradições que surgem à

nossa frente. (MÉSZÁROS, 2002, p. 21)

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Abstract

This article has an introductory aspect concerning Human Rights. The discussion will

be held based on the Brazilian 1988´s Constitution, as well as on the 1948´s Human

Right´s Declaration, but it will also analyse the reports on human rights transgressions

mentioned in the book of prophet Amos, and also interact with the critics of the current

capital structure that, usually, violate the rights. Is it possible a fight for human rights to

be honest inside the capital system?

Referências

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: Rumo a teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002. 1102p. ________. O desafio e o Fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007. 394p ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997. 304p KARL, Marx. O Capital – Volume I. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. 496p ________ & Engels. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2001. 131 SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. 781p MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 850p ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. 200p WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007. 96p ZIZEK, Slavoj. Os direitos humanos e o nosso descontentamento. Mangualde (Portugual): Edições Pedago, 2007. 44p ________. Às portas da Revolução: escritos de Lenin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005. 350p