12
Rio de Janeiro | 2013 Tomás González A luz difícil Tradução Joana Angélica d’Avila Melo 5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 3 25/6/2013 15:30:30

A luz dificil - Trecho

Embed Size (px)

DESCRIPTION

De autor ainda inédito e pouco conhecido no Brasil, chega às livrarias uma das grandes obras latino-americanas dos últimos tempos: A luz difícil, de Tomás González. Arrebatador e emocionante, o livro relata o sofrimento de um homem a poucas horas do destino de seu filho mais velho, comovendo a todos com o poder das coisas que sabem calar-se.

Citation preview

Page 1: A luz dificil - Trecho

Rio de Janeiro | 2013

Tomás González

A luz difícil

Tradução

Joana Angélica d’Avila Melo

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 3 25/6/2013 15:30:30

Page 2: A luz dificil - Trecho

Um

Naquela noite, passei muito tempo acordado. Ao meu lado, Sara

também não dormia. Eu olhava seus ombros morenos, seu dorso

ainda esbelto aos cinquenta e nove anos, e encontrava consolo em

sua beleza. Volta e meia nos dávamos as mãos. No apartamento

ninguém dormia, ninguém falava; de vez em quando, alguém tossia

ou ia urinar e voltava a se deitar. Nossos amigos Debrah e James

tinham vindo nos fazer companhia e se acomodaram num colchão

na sala. Venus, a namorada de Jacobo, se deitara no quarto dele.

Meus filhos Jacobo e Pablo tinham saído dois dias antes, numa van

da Rent-a-Car, rumo a Chicago, de onde tomaram um avião para

Portland. Em algum momento me pareceu ouvir o débil ruído da

guitarra de Arturo, o terceiro dos meus filhos, em seu quarto. Na rua

soavam os gritos noturnos do Lower East Side, as garrafas quebradas

de sempre. Às três da manhã, ou algo assim, passaram, cavernosas,

duas ou três motocicletas dos Hell’s Angels, cuja sede ficava a duas

quadras do nosso apartamento. Dormi quase quatro horas seguidas,

sem sonhar, até que às sete me despertou a fisgada de angústia no

ventre pela morte do meu filho Jacobo, que havíamos programado

para as sete da noite, hora de Portland, dez da noite em Nova York.

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 9 25/6/2013 15:30:30

Page 3: A luz dificil - Trecho

Dois

Beijei Sara, me levantei, fiz café. Sem me dar conta, comecei a olhar

a pintura na qual estava trabalhando. Era cedo demais para telefonar

aos rapazes, que tinham ficado num motel perto do aeroporto de

Portland para passar a noite. O tema da minha pintura era a espuma

formada pela hélice do ferry quando, ao deixar o molhe, acelera o

motor na água verde da qual borbulha. A cor esmeralda da água me

saíra pálida, superficial, pensei, como pastilha vitrificada de menta.

Eu ainda não conseguira que, sem que se visse, sem torná-la evi-

dente, se sentisse a profundidade abissal, a morte. A espuma apa-

recia bela, incompreensível, caótica, separada e inseparável da água.

A espuma estava bem.

Na época desse trabalho, iniciado já fazia um ano — no verão

de 1998 —, eu passava dias inteiros no ferry, indo e vindo entre

Manhattan e Staten Island, repetidamente, às vezes tomando cerveja,

sempre olhando a água. Até fiquei amigo de alguns dos músicos

ambulantes das barcas, e de um certo Louis Larrota (Luis Bancarrota,

eu lhe dizia para sacaneá-lo, embora ele não entendesse a brinca-

deira, pois não falava espanhol nem italiano), o único engraxate que

restava no ferry. Agora mesmo ouço-o apregoar Shine! Shine!, pelos

corredores da barca. Esse engraxate tinha cada vez menos clientes,

pois a maioria das pessoas havia começado a usar tênis. Quando se

apagava o entardecer, que havia ardido atrás dos guindastes de Nova

Jersey e estava cruzado de gaivotas, eu retornava ao apartamento.

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 10 25/6/2013 15:30:30

Page 4: A luz dificil - Trecho

A luz difícil 11

Casei-me com Sara quando nós dois tínhamos vinte e seis

anos. Vivemos juntos cinquenta, até que ela morreu do coração,

há somente dois. Não conheci outras mulheres: todas foram ela.

É difícil de explicar e de entender, pois as mulheres que desejei e

não eram ela, as que nunca tive, tanto quanto as muito poucas com

quem cheguei a me deitar — sem que Sara soubesse, claro, pois

teria sido o fim —, foram ela. Aquelas infidelidades só aconteceram

durante nossos primeiros dois anos juntos, quando a relação, que

ainda sofria de vazios e mal-entendidos sérios, ainda não se firmara.

Depois, minha fidelidade se fez total e sem esforços.

Também houve infidelidades da parte dela, creio, mas as que

aconteceram, se é que aconteceram, só se dariam muitos anos depois.

Uma tarde, já em Nova York, eu a vi numa cafeteria, de mãos dadas

com uma colega de trabalho. Perguntei a respeito, naquela noite,

e ela nem negou nem confirmou; disse somente que as relações

entre mulheres sempre iriam ser um mistério para os homens.

O que não me deixou tranquilo, pois há maneiras e maneiras de

ficar de mãos dadas com outra pessoa, mas com o tempo fui esque-

cendo aquilo até certo ponto. A segunda vez foi quando ela esteve

na Jamaica com James e Debrah. Por algum motivo, eu não pude ou

não quis ir nessa viagem, e James deixou escapar uma piadinha na

qual se insinuava que Sara havia tido uma aventura com um rapaz

da ilha. Também perguntei a respeito, mas dessa vez ela me disse que

eu estava maluco, como era que isso podia me passar pela cabeça?

No entanto, até hoje algo me diz que a aventura aconteceu. Sara não

era nem um pouco inibida, especialmente se tivesse tomado umas e

outras. Aquilo me doeu por muito tempo, tenha acontecido ou não,

e me produziu grande tristeza, mas também acabei superando.

Ciúme, talvez.

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 11 25/6/2013 15:30:30

Page 5: A luz dificil - Trecho

t o m á s g o n z á l e z12

Fosse como fosse, só a velhice já avançada diminuiu o desejo que

sempre sentimos um pelo outro. Nunca fui capaz de diferenciar

claramente entre amor e desejo, de modo que posso afirmar que a

vida inteira nos tivemos muito amor. E eu sempre me alegrava por

voltar a vê-la, mesmo que a separação tivesse sido apenas de algumas

horas. Quando eu chegava em casa, de volta do ferry, ela também já

havia retornado do hospital onde trabalhava, e conversávamos um

pouco, relaxados na cama; eu lhe contava sobre o que havia visto no

mar, e depois ia ver como estavam Jacobo e os rapazes.

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 12 25/6/2013 15:30:30

Page 6: A luz dificil - Trecho

Três

Havíamos chegado a Nova York em 1986. Em 83, tínhamos saído

de Bogotá para Miami, onde conseguimos ficar três longos anos,

dos quais não me arrependo nem um pouco, pois não foram ruins.

Eu tinha conhecido Miami e as Key Islands numa viagem anterior,

e queria trabalhá-las em minha pintura. Pode-se dizer que fui para

Miami em busca da água e da luz. Nós dois desfrutamos muito do

mar durante aqueles três anos, embora sofrêssemos a estreiteza espi-

ritual da Miami daqueles dias. E, por fim, resolvemos ir com os três

meninos para Nova York.

Em Miami, pintei uma série de paisagens a óleo, estudos da luz

e da água, quinze quadros de dois metros por dois, com os quais

fiz uma exposição em Key West, e que se venderam rápido e rela-

tivamente bem. Alguns eram paisagens abstratas do mar que se vê

da estrada para as Keys; outros, do mar de Miami: de El Farito,*

de Crandon Park e de downtown. Quase recém-chegados, Sara e

os meninos compraram um catamarã todo escangalhado e com ele

navegavam nos fins de semana, sem se afastar muito da costa, quase

tocando a areia, melhor dizendo, mas curtindo como se estivessem

atravessando o Atlântico.

* Nome pelo qual é conhecido o farol de Cape Florida, em Key Biscayne,

Miami. (N. T.)

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 13 25/6/2013 15:30:30

Page 7: A luz dificil - Trecho

t o m á s g o n z á l e z14

Em Miami, completei quarenta e três anos.

Disseram-nos depois, os poucos e bons amigos que lá tivemos,

que a cidade estava mudando muito, que se tornara menos provin-

ciana, que os rednecks, os caipiras, tinham ido embora, que a che-

gada de gente de outros países havia melhorado o ambiente e que

até a nova geração de cubanos era um pouco menos obtusa e asfi-

xiante. Bem podia ser. Mesmo assim, nem Sara nem eu retorna ria.

Tampouco iriam querer voltar os meninos, que depois de dois

anos em Nova York já não eram tão meninos: Jacobo tinha dezoito

e se preparava para estudar medicina na NYU; Pablo, de dezesseis,

estava num colégio secundário alternativo na 23a com a Oitava

Avenida, com garotos de argolas no nariz e nas orelhas, e já exami-

nava folhetos de universidades; Arturo tinha catorze e se empenhara

em matricular-se no La Salle — cuja sede era na 2a com Segunda

Avenida —, pela simples razão de que ficava a meia quadra daquele

que foi nosso apartamento depois do da 101a, e assim lhe restava

mais tempo para dormir. Deitar-se tarde, levantar-se tarde, tocar

guitarra e desenhar sem parar era o que ele gostava de fazer, naquela

época. Enfim. Foi bom enquanto durou, o tempo que passamos na

Flórida, mas também suficiente. Consegui trabalhar bastante; até

mesmo o ambiente cru e inculto que reinava na Miami daqueles

dias me ajudou de certo modo, pois pude mergulhar fundo na

bolha que, afinal de contas, é meu trabalho (ou era meu trabalho,

melhor dizendo, pois há cerca de um ano e meio, passados os setenta

e seis, minha vista começou a ficar muito ruim, parei de pintar e me

de diquei a escrever com a ajuda de uma lupa).

Em Nova York, de início moramos num apartamento muito

pequeno da 101a West, a uma quadra do Central Park. O parque era

a única coisa boa do lugar, que ficava na fronteira com um gueto

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 14 25/6/2013 15:30:30

Page 8: A luz dificil - Trecho

A luz difícil 15

de latinos pobres e onde havia muita bagunça à noite, garrafas que-

bradas, palavrões aos berros em inglês e em espanhol, uma bruma

humana densa que não me deixava dormir, especialmente porque

eu acabava de chegar de Miami — que parecia toda construída ao

lado de campos de golfe —. Pintar, nem pensar. Foram difíceis os

primeiros meses em Nova York, bem difíceis, não para Sara e os

meninos, mas para mim, que precisava tanto de luz, espaço, silêncio

e demais bobagens que a gente inventa nessa idade para complicar

a vida.

Por aqueles dias, eu não queria estar em Miami nem em Bogotá

nem em Medellín nem ali na 101a nem em lugar nenhum. Saía

cedo para caminhar pelo parque durante horas e para me repetir

que precisava ficar esperto, fazer uma cara mais alegre para Sara e os

garotos, que estavam felizes em Nova York, embora se preocupassem

com meu abatimento. Ela, que havia arrumado emprego de conse-

lheira num hospital — na Colômbia, se formara em sociologia —,

percebeu que o bairro onde estávamos era o que me afetava o

ânimo, talvez aquele ambiente de gueto, e sem dúvida a falta de

espaço do apartamento. Na sala, o pé do cavalete quase grudava no

ombro de Arturo, estirado no chão com seu maldito Nintendo; e,

quando estavam em casa, os três rapazes faziam muito barulho, o

qual, somado ao da rua, conseguia que eu desistisse de cavalete e

pintura e saísse para o parque a fim de olhar as árvores.

As árvores do Central Park me agradavam, embora me produ-

zissem saudade das de meu país, das selvas de Urabá, que eu conhecia

tão bem, pois um dos meus irmãos teve uma propriedade por aquelas

bandas e ali morreu. Essas de Nova York eram bonitas, sem dúvida,

olmos ou carvalhos muito antigos, por exemplo, mas quase como de

brinquedo, comparados com as sumaúmas e os cajuaçus de Urabá,

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 15 25/6/2013 15:30:30

Page 9: A luz dificil - Trecho

t o m á s g o n z á l e z16

e me davam um pouco de tristeza. Em resumo, quando eu não estava

no parque era porque havia ido para Coney Island, que ficava mais

ou menos a uma hora de metrô e que descobri muito cedo e me

deslumbrou, como a todo mundo. (Existe uma foto de Freud, des-

lumbrado também, creio, no calçadão). Depois, já no apartamento

da 2a, comecei a série de paisagens marinhas da baía de Nova York,

entre elas as do mar de Brighton Beach e Coney Island.

Uma tarde, Sara chegou do trabalho e me disse:

— Quer ver um apartamento que está para alugar? É lá embaixo,

2a com Segunda Avenida. Grande. Escangalhado. Caro. As janelas dão

para um cemitério belíssimo. Marble Cemetery, chama-se.

Perguntei se o lugar recebia boa luz e ela disse que sim, e fomos

vê-lo com os garotos. Não me pareceu caro demais, para o tamanho,

mas escangalhado, sim. Ou melhor, imundo. Era uma questão de

lavá-lo, pintá-lo e dedetizar as baratas. Janelas grandes, luz exce-

lente. Sala muito espaçosa, onde caberíamos sem problemas, os

meninos com seus apêndices eletrônicos, um sofá, duas poltronas

e meu ateliê.

E ficou ótimo. Dedetizamos as baratas e algumas morreram, mas

a maioria ficou vivendo conosco. A gente acendia a luz à noite e

ali estavam sempre, pequenas, numerosas, velozes, buscando frestas

para se esconder. A limpeza era rigorosa e eu voltava a dedetizá-las

de tempos em tempos, colocava bórax, esmagava-as com o sapato,

e nada: quando acendia a luz, ali estavam todas. Nos apartamentos

velhos, esses insetos são tão inextinguíveis quanto a vida. Para acabar

com eles seria preciso demolir o edifício e colocar gasolina ou napalm

nos escombros... Gosto de plantas e tenho mão boa, de modo que

arrumei samambaias e palmeiras, e o lugar não demorou a adquirir

um aspecto selvático. Numa petshop da Bleecker, compramos por

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 16 25/6/2013 15:30:30

Page 10: A luz dificil - Trecho

A luz difícil 17

duzentos dólares uma fêmea de papagaio, à qual os garotos deram o

nome de Sparky; gritava como louca, pois nunca se deixou domes-

ticar, e voava por todo o apartamento. Anos depois, arrumamos

Cristóbal, o gato, que um dia a assustou, e Sparky escapuliu por uma

das janelas que davam para o cemitério. Ficou uma semana vivendo

e guinchando nas árvores; nunca quis voltar, por mais que a cha-

mássemos das janelas. Até que se foi de vez.

— Para a América do Sul — eu disse aos garotos, a fim de ani-

má-los. — Foi comer chontaduros* no Chocó.

— Chonta quem? — perguntou Arturo, que não conhecia os

frutos dessa palmeira e não perdia oportunidade de brincar, mesmo

em momentos difíceis como aquele.

No apartamento da 2a, minha disposição voltou. Comecei a per-

correr os litorais urbanos e semiurbanos do Brooklyn e de Nova

Jersey, a tirar fotos deles e pintá-los. Pintei uma motocicleta que

encontrei meio submersa numa praia e coberta de algas. Agrada-me

o modo como aquilo que o homem abandona se deteriora e começa

a ser outra vez inumano e belo. Gosto dessa fronteira. Dessa espécie

de mangue. Pintei uma série de oito trabalhos com o tema dos

caranguejos-ferradura, ou horseshoe crabs, que chegam às praias de

Coney Island, morrem, repousam na areia e se transformam em

concha vazia e depois em pó, rápido, ao lado das sandálias havaianas

e dos pedaços de recipientes de plástico que durarão, estes sim,

séculos, antes de também se transformar em pó. O tema dessas pin-

turas, embora eu nunca o tenha dito, era óbvio e grandioso e, em

todo caso, muito pretensioso ou ambicioso, ou seja lá como queiram

* Pupunhas. (N. T.)

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 17 25/6/2013 15:30:30

Page 11: A luz dificil - Trecho

t o m á s g o n z á l e z18

chamar, e tinha a ver com o tenebroso abismo do Tempo. Os caran-

guejos-ferradura não são bonitos, de modo algum, e atravessaram

milhões de anos sem se modificar, como dizem que aconteceu com

as baratas e os crocodilos. Uma vez, li na internet que eles tampouco

são caranguejos. Parecem-se com os crustáceos, mas, na realidade,

estão mais aparentados com as aranhas e os escorpiões. Os fósseis

mais antigos de caranguejos-ferradura datam de aproximadamente

quatrocentos e cinquenta milhões de anos atrás.

As pinturas tinham apenas os toques de luz necessários para que

se conseguisse pressentir a forma do cadáver do pobre caranguejo.

E foram vendidas, sim, mas com enorme dificuldade e por muito

pouco. Muitos anos depois, começariam a mudar de mãos por somas

indecentes de dinheiro. Pendurada no estúdio, ainda conservo uma

— a melhor, para meu gosto —, que se torna cada vez mais impre-

cisa e abissal, à medida que minha vista vai decaindo e que eu vou

também avançando rumo ao pó.

— Um passo à frente no tenebrismo, não? Bem, o próximo será

o quadrinho puramente negro — disse Sara, para me sacanear. —

Estou brincando, estou brincando — acrescentou rapidamente. —

Claro que gostei delas.

Foram quase dois anos de abundância artística; de uma felici-

dade que trazia seu toque de angústia, pois eu encontrava tesouros

por toda parte, como alguém para quem as pedras do caminho de

repente se transformam em joias. Como iria pressentir o que viria?

O infortúnio é sempre como o vento: natural, imprevisível, fácil...

Eu estava pintando melhor do que nunca, e a intensidade do meu

trabalho era tal que às vezes eu me esquecia até de fumar e tomar

café. Pintei a moto coberta de algas, um pouco tenebrista também,

ainda que agora com toques de cor. Em Nova Jersey, encontrei

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 18 25/6/2013 15:30:30

Page 12: A luz dificil - Trecho

A luz difícil 19

um triciclo infantil oxidado num lote vazio junto ao mar, e também

pintei isso, muito grande, mas desta vez com tanta luz que quase

nem deixava ver o triciclo. (Dois anos atrás vi o quadro num museu

de Roma, ao qual me convidaram para alguma homenagem, mas já

fui obrigado a olhá-lo de esguelha, pois a doença havia começado

e o centro da visão era turvo. Gostei do triciclo, quando voltei a

vê-lo depois de tantos anos, mas gostaria de retocar certas partes

que poderiam ter ficado muito melhor.) Também tinha começado

a fotografar a montanha-russa em ruínas de Coney Island — a que

depois foi derrubada —, coberta de botões de flores roxas. Glória-

da-manhã, ou morning glory, chama-se em inglês essa trepadeira.

Eu pretendia pintar uma série de quadros grandes, com detalhes da

estrutura e das flores a partir de ângulos que abalassem as hierar-

quias de tamanhos e perspectivas, e me liberassem do jugo imposto

pela ordem obrigatória de olhar para fora ou para dentro. Era como

se eu buscasse sair de um confinamento e estivesse prestes a alcançar

a luz, para respirar melhor. Preparei as telas para a montanha-russa.

Teria que pintar bonitas as flores, isto sim, não queria que os quadros

provocassem muita discussão na hora de ser vendidos. Afinal, de

alguma coisa eu precisava viver.

É triste que agora eu escreva as brincadeiras que fazia até há

menos de dois anos, quando Sara ainda vivia. “Brincadeiras, em

termos”, comentaria ela neste caso. Justamente então, um táxi no

qual vinha meu filho mais velho foi abalroado pela caminhonete de

um junkie bêbado, na 6a com Primeira Avenida, a menos de quatro

quadras do apartamento, e eu, e Sara e todos, entramos no mais

profundo dos infernos.

5A PROVA - A LUZ DIFICILindd.indd 19 25/6/2013 15:30:30