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A Máquina de Morar de Jacques Tati

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A rnaquina de morar de Jacques Tati:a casa positivista

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Em 1957, cern anos ap6s a morte de Auguste Comte, Tati conclui 0

filme Mon one/e, legando-nos uma das criticas mais inteligentes - e

divertidas -, dentre tantas que haviam sido realizadas, sobre a forma

de pensar, projetar e habitar a casa propugnada pela ortodoxia moder-

na. Nesse filme, como seguramente todos se recordarao, contrapoern-

-se duas formas de viver: a do tio - monsieur Hulot (Tati)-, numa velha

casa mal-ajambrada no centro de Paris, e a da familia Arpel - forn;rcii,da

pelo monsieur Arpel, proprietario da fabrica de plasticos Plasta, per suamulher, irma de Hulot, e por urn unico filho que adora 0 tio/,-, numa

casa com urn pequeno jardim, em urn bairro nobre afastado. 0 enre-

do, aparentemente simples, consiste em contrapor esses dois estilos

de vida, atraves do olhar desse menino que adora passear com 0 tio,

e das desesperadas tentativas dos Arpel de integrar seu filho e Hulot avida modema.

Tati, urn artista perfeccionista e minucioso, foi tam bern nesta ocasiao

- como em Playtime (1967), outra analise aguda da cidade modema -

nao apenas ator e diretor, mas tam bern cen6grafo, junto a Jacques

Lagrange, tendo side responsavel pela concepcao e pela construcao

completa da casa dos Arpel nos estudios da Victorine, em Nice (em

Playtime, Tati projeta e constr6i urn dos fragmentos de cidade moder-

na mais celebrados do cinema). Tal esforco nao e, em absoluto, gra-

tuito: a comparacao entre os estilos de vida do casal Arpel e do mon-

sieur Hulot nao se da atraves dos dialoqos e das opinioes expressas

pelos protagonistas - afinal, Tati vern do cinema mudo, e confia pouco,

ou nada, em palavras -, mas at raves de suas acoes e dos elementos

fisicos que os rodeiam. Nesse filme, a arquitetura e 0 urbanismo, assim

como os ruidos, naturais ou artificiais, sao, em grande medida, induto-

res dos comportamentos, causa e/ou consequencia univocamente

ligadas aos mesmos. Por isso, todo ele pode ser interpretado como

uma licao critica de arquitetura, na qual se enfrentam dois modos de

pensa-la que sao tam bern mod os de vive-la, De fato, como veremos

adiante, 0 enredo reproduz, com grande fidelidade, 0 embate entre

duas correntes de pensamento cuja influencia foi decisiva no seculo xx.

De urn lado, a persistencia e a extensao a esfera da vida privada do

paradigma positivista, da fe no progresso e na ordem como instru-

mentos de salvacao postos a disposicao do homem pelo desenvolvi-

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mento tecnico e cientffico: a identiflcacaoda filosofia com a ciencia,

sendo esta entendida como 0 auge do pensamento. De outro, a

impugnaC;ao do positivismo que, primeiro Husserl e Bergson, e depois

Heidegger e Merleau-Ponty levam a cabo, na intencao de estabelecer

um novo subjetivismo, ou vitalismo, que permita impor um limite a olen-

cia, desmascarando 0 carater ideol6gico do positivismo e de seus tee-

nccraticos desdobramentos socials.r

Nao e por acaso que este entrentamento ira repercutir simultaneamenteno filme e na acao de algun~/arquitetos contra os dogmas modernos no

seio rnesmo de suas instituic;oes. 0 decrno Congresso Internacional de

Arquitetura Moderna, realizado ern Dubrovnik, em 1956, dedicado aos

"Problernas do habitat hurnano", marcou a crise definitiva desta instituiC;ao

rnoderna, atraves da contestacao radical dos seus rnestres por parte dos

rnembros mais jovens - Bakerna, Van Eyck, Smithson etc. -, agrupados

em uma orqanlzacao paralela, 0Team 10. 0 alvo do ataque desses arqui-

tetos nao era outro, senao esse reducionismo positivista que pairava e se

derrarnava indiscriminadamente sobre a arquitetura moderna.

A maior liberdade de Tati perrnitlu-lhe urna clariv'dencia e uma intensi-

dade satfrica que, a partir do pr6prio marco norrnativo e institucional

fabricado pela modernidade, acabarao fatalmente condenadas a ser

testemunhais, precedentes de transtormacoes que apenas posterior-

mente tornar-se-ao realidade.

Por isso, preferimos visitar as casas projetadas pelo grande arquiteto que

chegou a ser Tati, buscando encontrar nelas 0 quanto ha de n6s rnes-

mos, reconhecendo-nos como herdeiros daquela rnodernidade atraves

de seus t6picos, ainda se acreditamos have-los superado. Somos preci-

samente os arquitetos os que mais dificuldades encontrarnos, ainda hole,

para identificar esses t6picos, pois estes, sem duvida, formam,}:i.""t;oluna

vertebral de nosso treinamento, de nossa formacao academica,

Lernbremo-nos que talvez um dos maiores exitos de'Comte ede seus

seguidores tenha side 0 positivismo academico frances, as Escolas

Politecnicas, em cujos currfculos ainda persiste - deformado, mas essen-,.;

cialmente intacto - 0 ideal positivista. Pensemos, portanto, que ternos

side treinados cegamente em seus metodos, que vemos atraves de seus

olhos, e que ainda e necessario, em muitos lugares, fazer uma enorrne

ginastica para aprender a ver com outros olhos, para aprender a esque-

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cer. E pensemos tambem - se, de fato, desejamos ter uma perspectiva

do que isso supoe - que, dentre todas as correntes do pensamento

influentes, em maior ou menor medida, no seculo xx - de Nietzsche a

Heidegger, de James a Deleuze -, 0 positivismo, como delirio da razao

que e, nao foi apenas 0 indutor direto dos epis6dios mais atrozes do

seculo - Hiroshima, Auschwitz -, mas tambern a ideologia mais supera-

da, a (mica que teria side devorada pelo mesmo deus Cronos com c1que

pretendia nos dar Unidade e Ordem. .I,

Comte e seus ac61itos sao hoje hist6ria, e e posslvel que somente na

certeza de que nossas posicoes sejam distintas, sem que tenhamos

nadado contra a corrente que inaugurou 0 positivismo, possamos

agora proceder a uma valoracao suficientemente equanime de seu

legado. Contudo, Auguste Comte e sua doutrina nao sao fen6menos

isolados. Se 0 seu objetivo e uma descricao cientffica da sociedade -

"0 carater fundamental da filosofia positivista e a consideracao de que

todos os fen6menos estao submetidos a leis naturais invariaveis, cuja leis naturals

preclsao e reducao a menor quantidade possivel e 0 objetivo de nos- invariaveis

sos esforcos" -, tal objetivo encontrara em Charles Darwin, e em suateoria da evolucao, um modele especlalmente interessante, na medida

em que se trata de um modele que supoe a aplicacao da abstracao

cientifica das ciencias exatas as ciencias biol6gicas, a esse ambito da

vida em que 0 positivismo pretende se inserir.

Igualmente Herbert Spencer, tarnbem coetaneo, tera contribufdo decisi-

vamente para a consolidacao do ideal positivista. Seu "evolucionismo"

tera dado 0passo que porrnitira ligar as cisncias biol6gicas as humanas,

ao explicar 0 desenvolvimento da cultura como 0 de um ser vivo sub-

metido a um cicio vital - infancia, juventude, maturidade ... - em nada

diferente do cicio orqanico do mundo natural. 0 conhecimento e a cul-

tura do homem estao imersos no mundo natural e, assim sendo, podem

ser tratados cientificamente. No pensamento positivista, entao, a floso-

fia seria, antes de tudo, auxiliar ao trabalho cientifico, e teria direito a

existencia apenas enquanto justificasse e interpretasse a ciencia, a ver-

dadeira e madura forma de conhecimento que 0 homem alcancou em

sua evolucao, uma evolucao que principia no mundo puramente animal,

nos primatas. 0 objetivo do pensamento positivista e intensificar esta

evolucao, conduzindo 0homem a uma sociedade perfeita, sem conflitos,

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ordern e

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leis naturais

invariaveis

organizada pela ciencla, e trasladar a transcendencla da religiao a

lmanencia da vida. Por isso a teo ria positivista acabara por constituir uma

"religiao da humanidade", uma religiao dedicada a fazer, do mundo, 0

ordem e progresso imperio da ordem e do progresso.

Assim, Comte escrevera seu Catecismo Positivista, nomeando-se

Sumo Pontifice, 0 que a principio pode parecer absurdo, mas, em defi-

nitivo, simboliza a culmlnancia do pftnsamento positivista, e explica seu

"arater dogmatico e holistico, sua: necessidade de se apresentar como

unlca filosofia possive!._G

o positivismo e tambem a origem da sociologia. 0 homem e a socie-

dade, entendidos como fenornenos naturais, "submetidos a leis invaria-

veis", passam, entao, a ser objeto do conhecimento cientifico. 0 individuo

e tomado como uma abstracao, como a peca de uma engrenagem sujei-

ta a observacao e a experlmentacao, como um dado estatistico, objetiva-.

vel, que se dilui em comportamentos previsiveis: "...os movimentos da

sociedade, inclusive os do espirito humano, podem ser realmente previs-

tos, em certa medida, para cada epoca determinada, sob cadaaspecto

essencial, inclusive aqueles que parecem a primeira vista desordenados."

Nao obstante, estes enunciados cientfficos permanecerao em Comte

nesse nivel, no nivel dos enunciados, como um apelo para que 0 pensa-

mento positivista desdobre-se, ao mesmo tempo, numa ciencia - a socio-

logia - e numa religiao, sem, porem, um desenvolvimento pormenorizado,

o qual e confiado aos processos sociais por vir. Nisto, e em tantas outras

coisas, pode se verificar, sem duvida, a grande similitude e a profunda

influencia que esta doutrina tem sobre 0 arquiteto moderno, incapaz, em

grande medida, de dotar de conteudos concretos aquele apelo, a indus-

triallzacao e a maquina, e incapaz tambem de se ver como um cientista.

Ao contrario, a sua gestualidade seria a de um pontifice que anUf"1<;:,ia,3se

advento iminente de uma transtormacao que Ihe houvesse sido revelada.Este e 0 mundo que Tati observa e de quem faz uma'carlcatura, essa

vida felizmente inserida na ordem e no progresso cientifico encarnada

pelos Arpel, a emulacao de uma impossivel vida harmonica dedicada a, ,.

plena insercao dos individuos na engrenagem maquinica da sociedade,

essa par6dia do individuo que e 0 sujeito estatistico do positivismo.

Quem habita esta casa? Qual e 0 sujeito que a ativa e possui com a

maxima intensidade? A casa positivista nao e habitada por um unlco

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personagem central, mas por uma famllia modele - os Arpel -, um a familia modele

casal, para sermos exatos, de uma estrita moralidade calvinista, que

interpreta 0 progresso material ao mesmo tempo como uma conse-

quencia direta de sua moralidade e como um destino - 0 da felicidade

material - que culrnmara, num futuro ja pr6ximo, tal como promete 0

programa positivista, e ao que se sacrifica, em parte, 0 presente. 0 que

e slqnltlcativo e 0 fato de que esta familia carece de traces part,iulares:

a diterenca, como forma de slqnitlcacao, foi abolida, rrteqrarjdo agorauma totalidade social gigante. Para alcancar este futuro de.procresso, e

necessario subsumir 0 individuo - em Comte, 0 fundador da sociologia,

o individual e algo abstrato - na Unidade de tudo e de todos, e neces-

sario renunciar a pensar diante do que existe, eliminar a faculdade cri-

tica, e entregar-se as pautas impostas pela incustrializacao e pelo positi-

vismo, esta ideologia que supera a filosofia, esta filosofia unca e definitiva

para um novo mundo. Este sujeito nao e outro, senao 0 homem-tipo

corbusiano, a familia-estatistica, esse constructo mental que permitiu

aos arquitetos ortodoxos objetivar 0 comportamento social e quantnlca-lo

naquela experiencia quase delirante que foi 0 Existezminimun.

Diante dessa familia orqanica, imersa em uma sociedade unidirecional,

monsieur Hulot - 0 t io.>, habitante de um fantastico labirinto fenome-

nol6gico e indiferente a toda ideia de progresso, atua como um para-

sita, desvelando, com sua solitaria presence, a grotesca coditicacao

social, desconstruindo-a, no estrito sentido da palavra.

Monsieur Hulot vive no presente: cada instante, cada situacao sao por

ele percebidos como uma oxperiencia autonorna e com sentido em. si

mesma. Hulot reproduz literalmente a epoje husserliana, 0 modo com

que 0 sujeito fenornenico se estabelece frente ao mundo e aos seus

objetos, com as mesmas intensidade e lnocencia de um menino - dai

o carinho de seu sobmho, As acoes dos Arpel, ao contrario, tern seu

fundamento e sentido distantes delas, apontam para um progressivo

aperfeicoamento 16gicono tempo, estao imersas no tempo teleol6gico 0 tempo

do positivismo, 0 qual reproduz, secularizado, 0 tempo finalista da fe teleol6gico

crista (e isto 0 aproxima tambern do materialismo hist6rico).

Um tempo que se projeta para a frente, amnesico, e que implica, sem

duvida, uma valoracao bem distinta do passado e do futuro: 0 primeiro

nao sera outra coisa, que nao 0 recontar da dor acumulada; tudo 0 que

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a familia modelo dele provem tera um valor inferiorao que promete 0futuro, e somente sera

valorizado por representar 0 estorco de estaqios inferiores da sociedade

em sua jornada linearate 0 progresso. Os monumentos hist6ricos aleato-

riamente dispersos na nova Paris do Plano Voisin mostram bem esta res-

trita relacao com a mem6ria, com 0 tempo geneal6gico. E tambem 0

tempo do evolucionismo organico de Spencer, 0 tempo darwiniano que

tanto se identifica com 0 positivismo de Comte, 0 que permitra assimilar,

de forma sintetica, a sociedade eiCl:natureza dentro de identicas leis der

crescimento e desenvolvimento ..As duas correntes da ortodoxia moder-na, 0 funcionalismo e 0 orqanlclsmo, nao serao outra coisa, senao dois

lados de uma mesma moeda, assim descrita por Comte: "A humanidade,

em geral, marcha atraves de uma sene de etapas que a vao aperteicoan-

do em seu ser e em sua obra, de forma semelhante a como 0 ~dividuo

evolui, passando por uma sucessao de estados e de idades em sua

existencia biol6gica. 0 progresso social e

necessario e irresistivel como uma lei fisica."

o espaco da modernidade incorporara essa

mesma proiecao para a frente, esse esqueci-

mento < quase completo do passado, e ten-

dera a se constituir igualmente por leis uni-

versais - tal como propugna 0 catecismo

positivista -, por normas que depositam no

futuro pr6ximo sua crlstalizacao.

o plano, a plani l icacao, e a sua obietivacao

como tecnica de controle do crescimento -

o urbanismo -, serao manitestacoes culmi-

nantes deste tempo teleol6gico, perfeito, ou,

se preferirmos, "radiante". 0 trabalho sobre

a planta se reproduz como um autorn'ZJrfismo

a-escalar, da casa a cidade, explicitando 0

trabalho, a tecnica pr6piia'' ''do arquiteto, tao

"necessaria e irresistivel como uma lei fisica".

o espaco da casa, 0 ar e sua mem6ria, pot, '..

assim dizer, apenas existem; foram completa-

mente eliminados para proceder a uma quan-

tflcacao normativa, a obietivacao biol6gica da

o tempo

teleol6gico

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familia-tipo mediante 0 plano, 0 trabalho sobre a planta. A nova categoria

dominante e, para 0 arquiteto positivista, "0metro quadrado", e a sua oti-

mizacao atraves do transbordamento das tecnicas de otimizagao da pro-

ducao industrial, propugnadas por Frederick W . Taylor em seu Principles

of Scientific Management (1911), ao ambito da privacidade. A casa, como

objeto de estudo do positivismo, experrnentara, em seu interior, a disse-

cacao taylorista, a decomposicao de todos os movimentos errf unidades

minimas, estudadas e cronometradas para reorganizar as (tarefas em

esquemas avessos a lnterferencias, perfeitamente coordenados.

Os trabalhos de Alexander Klein sobre a habitacao minima, os ClAM

dedicados ao Existezminimun, com suas comparacoes de plantas e

superficies, sao 0 triunfo desta reducao cientificista do espaco.

o esquema metodol6gico de Klein e um compendio perfeito do projeto

positivista da casa. Quatro fatores - dados estatisticos, principios cien-

tificos, aspectos tecnicos e construtivos - conformam um processo de

tomada de decisoes em uma cadeia arborescente, que culmina na

construcao em serie. A habitacao, para Klein, transformou-se em um

problema da industria, que, como tal, deve ser estudado com 0 mesmoespirito que se aplica a qualquer processo industrial: Contribuk;oes cien-

titicas ao problema da habitar;ao, Ensaio de um metodo grafico para a

avaliar;ao de plantas de habitar;oes de pequeno porte, A casa unifami-

liar. Tipo com onenteceo sul, todos estes titulos sao expressoes elo-

quentes de sua producao te6rica, da translacao da figura do arquiteto

tradicional a do engenheiro industrial que pretende impulsionar.

Fixemos nossa atencao na cozinha projetada por Margarette Schutte-

-Lihotzky para Ernst May em Frankfurt, nessa cozinha que tanto se asse-

melha a oficina de um carpinteiro ou de um torneiro, com sua bancada e

suas ferramentas. Vejamo-Ia nos fotograrnas do curta demonstrativo em

que ela rnesma aparece preparando um prato, mostrando a eficiencia dos

movimentos ali permitidos. Vejamos, agora, corno a senhora Arpel mos-

tra a casa as suas vizinhas, com que orgulho explica quao "funcional" e a

sua orpanizacao: "e muito pratico, tudo se comunica (...) os c6modos sao

muito bem orientados, todos dao para 0 jardim". Ou como se envaidece

por sua higienica cozinha pseudo-robotizada. Comparemos seu ambien-

te com a informalidade e a intensidade sensorial do mercado e das ban-

cas nas quais um menino se esbalda na ausencia dos pais, gragas a con-

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visibilidade

descendencia do tio. Observemos como Tati sublinha a falta de higiene

dos vendedores ou do varredor, que nunca corneca efetivamente a varrer,

ante a obsessiva higieoe de madame Arpel, limpando e perseguindo com

seu espanador tudo 0 quanto esta a mao, ate obter um ambiente hospi-

talar no qual praticamente nao ha particulas em suspensao no ar.

o espaco quedou quantificado, transformado em um produto da dis-

secacao do movimento, da georlfl'~tria e da rnatematica, O~espac;oape-

nas existe como tal: sera entendido como a res extensa de Descartes,na qual se encena a exposlcao de uma familia igualitaria, eficiente, sau-

davel e trabalhadora. Nada encontraremos al da intensidade intimista

do tortuoso labirinto topolooico da casa fenomenoloplca de monsieur

Hulot, nem da obscura cerim6nia da perpetuacao da linhagem da casa

existencial. A casa positivista sera a casa da exposlcao nao apenas de

uns frente a outros, mas tambern da familia, como unidade, ao exterior.

Seu ar ja nao sera 0 denso ar sensorial fenornenoloqlco, mas um ar

medicinal, higienico, correspondente a um espaco cuja deslnteccao e

propiciada pela transparencla, pela lnsolacao, pela limpeza. 0 espaco

positivista e um espaco sem densidade, um espaco sem memoria,

lancado ao futuro em direcao contraria ao passado.

Tudo 0 que se refere ao espaco deriva do moralismo: sua transparen-

cia e repressiva, vinculada diretamente a diafaneidade e a visibilidade

publicas do Panoptico de Jeremias Bentham. Nao ha, na casa, lugar,

nem nicho, para 0 desvio, para 0 isolamento, para 0 gozo. 0 espaco

fluido da modernidade positivista aparece associado a vigilancia, com-

pletamente submisso a uma finalidade edificante, e, portanto, como

um espaco que busca 0 seu sentido num futuro otimista.

Em sintese, no espaco moderno, 0 que e privado encontra-se expos-

to, 0 que e domestico, anulado, e 0 que e intimo, castigadcr,,'E'essa

visibilidade convertida em vigilancia - insuportavel para..o sujeito nietzs-. .chiano da casa-patio, e frontal mente combatida pelo ser existencial

que se refugia detras das paredes de sua cabana -,0 que Tati expres-

sara, com aomiravel sarcasmo, por meio das "janelas" do quarto do

casal Arpel. De cima, dominando todo 0 entorno, a cidade de seus

iguais, 0 casal representa uma antropornorfizacao da casa positivista,

revelando a sua profunda fundamentacao na vigilancia da ordem e da

unidade. Esta casa e, sim, uma maquma de vigiar.

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Por isso nao e dificil compreender que, se a casa positivista possui algum

espaco privilegiado, este e, sem duvida, aquele que representa a familia

como um todo orqanico: 0 salao, 0 lugar em que se realiza 0 sujeito posi-

tivista, no qual culmina seu ideal espacial de visibilidade e transparencia

Transformado em peca principal, na expressao simb61icadesse modo de

viver, 0 salao crescera ate ocupar duplos ou triplos pe-dlreitos, em torno i

dos quais gravita a casa, como uma versao domestica do Pan6ptico. '0 salao panoptlcoo espaco interior privilegiado, porem, necessariamente encontrara seu

duplo no exterior: 0 terrace ou 0 jardim serao concebidos a sua ima-

gem e semelhanca, e apenas um fino e permeavel pano de vidro os

separara, No exterior, ao "ar livre", nos terraces corbusianos, no jardim

dos Arpel, natureza e higiene, sauce e progresso triunfam. A natureza,

a ideia de natureza, tera sido tambem transformada pela visao cientifi-

cista e, emulando as concepcoes medicas entao vigentes, participara

da casa e da cidade desde que seja capaz de promover a saude, 0 eixo heliotermico

eixo helioterrnico polariza a casa positivista, e se estende pelos bairros

- lembremo-nos de Hilberseimer -, orientando a orqanizacao das cida-des -Iembremo-nos da Ville Radieuse, esse pesadelo da razao, no qual

todas as construcoes de uma cidade para tres mthoes de habitantes

sao orientadas em direcao ao sol.

A natureza servira tao somente aos esportes, a sauce a a higiene, e,

para tanto, resultara plana, reduzida a "superficie verde": res extensa + superffcie verde

eixo heliotermico.

Fixemo-nos agora no jardim dos Arpel - com

seu peixe-fonte e sua cruel coditicacao de usos

e movimentos -, nesse salao estendido ao ar

livre, sempre deslumbrante, plenamente ex-

posto ao sol. E comparemo-Io aos terrenos dos

arrabaldes por onde monsieur Hulot circula,

divertindo ao seu sobri-nho, a esses descampa-

dos que sao verdadeiras areas de impunidade,

onde se produzem as formas mais intensas de

socializacao. Tati mostra, assim, as impicacoes

da reducao pseudocientifica da ideia de nature-

za na cidade moderna, os Iimites de uma visao

utilitarista do espaco publico.

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o salao pan6ptico

eixo heliotermico

superffcie verde

/ -/

~. .' .-.-.: .~~

6

Qual e a materialidade que corresponde a esta soma de res extensa e

eixo heliotermico, na qual se cristaliza espacialmente 0 tempo teleolo-

gico positivista? Na casa positivista, obviamente, nao cabem os mate-

riais naturais, aqueles mesmos troncos e pedrE)s obtidos ao se abrir a

clareira no bosque, e com os quais, ao menos idealmente, constroi-se

o refugio existencial. Toda memoria tem uma qualidade inferior: assim

como estao proibidas as lembrapcas dos antepassados, esta proibido

qualquer rnobiliarlo que evoque alquma memoria - observemos os inte-

riores das casas positivas rnals ortodoxas divulgadas pelos meios de

comunicacao -, esta proibida a construcao com materiais que nao pos-

suam, em si mesmos, uma condlcao moderna.

materiais Todas as tecnlcas industriais sao bem-vindas. A parede nao sera nunca

industriais mais esse conglomerado rnacico e inerte com 0 que os antigos defen-

diam-se da temperatura externa: suas propriedades fisicas derivarao

de leis e normas, para cada uma das quais um material industrializado

colabora, constituindo uma parede completa, com multipias camadas,

que, em suas melhores formulacoes, a imagem da linha de producao,

cheqara a ser montada a seco. A dissecacao taylorista penetra, assim,

num dos elementos compositivos mais ligados a tradicao, No interior,

porem, tal complexidade torna-se desnecessaria.

Trata-se, aqui, de dar vida a um espaco cartesiano e hiqienico, que se

baseia na visibilidade, e foge de qualquer conotacao com a insalubri-

dade e a memoria. Assim, da mesma forma que, no exterior, 0 espaco

publico transformou-se num material continuo indiferenciado, sem pro-

o branco priedades - 0 "verde" =, no interior este material passa a ser 0 "branco",

um material moderno, visivel e integrador, homogeneizador ao extremo,

eficiente tanto sob 0 ponto de vista hiqienico, quanto como elemento

rarefaciente do espaco,

Parece inutil ressaltar 0enorme prestigio do vidro: a casa positivista sera,,,,f'"

de todas quantas encontremos, aquela que mais ernpreqa 0vidro. Tudo

o que representa 0vidro, desde seus processos de fabrlcacao e monta-

gem, ate sua transparencia, contriburao para fazer dele um material prl,

vilegiado. Observemos que 0vidro, na ortodoxia moderna, e sempre um

material produzido industrialmente, em serie, com 0maximo grau de per-

feicao em suas propriedades rnetricas - superficie, corte etc. + transpa-

rente ate 0 ponto da invisibilidade, e capaz de permitir a passagem da

transparente

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radiacao solar. Em poucos momentos terao coincidido de forma tao feliz,

como neste, a ascensao dos valores ideol6gicos - a visibilidade positi-

vista - e 0 surgimento de uma tecnologia e de urn material. Ainda que se

possa matizar extensivamente esta idealizagao do vidro (pois este reflete

as superficies ate a opacidade, suas propriedades frente ao sol sao Iimi-

tadas, sua perfelcao e relativa, ele e fragil, e, alem do mais, trata-se, orl-

ginalmente, de uma rocha natural geralmente translucida), nada disso ira

desmanchar 0 encanto e 0 prestigio desta conhmcao de transpsrencla e

superficies brancas hospitalares que caracteriza a materialidade positi-

vista e da forma ao seu af8.de obter uma luminosidade ofuscante e sau-

davei, puro efeitoda visibilidade.

A exioicao da visibilidade da familia induz a sua inteqracao a uma engre-

nagem coletiva superior. A visibil idade do salao sera reproduzida na da

casa e esta, no conjunto delas, onde a casa positivista encontrara seu

destino mais natural: sera esta casa, dentre as aqui resenhadas, a unica

que "voluntariamente" aceite constituir-se em uma coletividade. A familia

mira-se como a celula de urn organismo social superior, e, para isso,

serve-se do falansterio como uma referencia em que se conjuga 0 positi-vismo ao socialismo ut6pico (Comte nao apenas fundou a sociologia; foi,

antes, discipulo de Saint-Simon). Entenda-se bern: e a casa positivista a

unlca que encontra 0 seu apogeu no conjunto habitacional; sao os arqui-

tetos modernos os unioos que encontram a legitimagao de suas ideias de

habitacao em sua capacidade de dar forma ao conjunto habitacional.

Ao serem a casa positivista e 0 conjunto habitacional animados pelo

imperativo moral segundo 0 qual 0 coletivo seria urn valor superior, 0

fim ultimo da habitacao sera modelar e solucionar 0 espaco publico,

sera conformar a cidade. Este e, definitivamente, 0 projeto que se ins-

trui, de cujo otimismo social participa profundamente 0 positivismo:

construir a cidade, construir 0 espaco publico atraves da haoltacao.

o conjunto habitacional propiciara, ainda, fechando 0 circulo, a sintese

entre 0 orqanico e 0 maquinico, 0 evolucionismo e a incustrializacao, e

sera, ao mesmo tempo, expressao culminante da metatora orpanica da

sociedade - a celula e 0 organismo -, e produto de uma industrializagao

que produz em sene objetos-tipo para familias-tipo. As leis mutaves da

natureza reproduzem-se na sociedade, e sao os cientistas e os arquitetos

modernos, que trabalham a sua imagem e semehanca, os que possuem

; -

Carta de Atenas

conjunto

habitaclonal

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) conjunto

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os conhecimentos essenciais para aperfeicoar esse esquema. A cidade

dos Arpel, a cidade do positivismo, e construfda com base no modelo de

aperfeicoamento cientffico que Taylor criou para a industria, a dissecacao

do tempo e do espaco em unidades mfnimas, aut6nomas, otimizadas.

As sequencias de Mon oncle isolam os momentos da vida dos Arpel

em grandes unidades sem conexao, Os pianos dedicados a clrculacao

eficiente do autom6vel, ao trabalho sistematico na fabrica, a vida fami-

liar na casa, assim como a lonqa sequencia da festa no jardim, cada um

com seus rufdos especfficos, sao unidades aut6nomas nao apenas doCarta de Atenas ponto de vista cinematoqrsfico, mas tambern na vida dos Arpel:

somente monsieur Hulot as atravessa sem solucao de continuidade,

mesclando-as e as confundindo.

Estas longas sequencias isoladas reproduzem a cidade moderna, sao

urna materie'izacao direta da Carta de Atenas, 0 grande livro sobre a cida-

de positivista escrito durante 0ClAM realizado naquele transatlantico que

viajava de Marselha a Atenas no ana de 1933. Nele, a habitacao, 0 lazer,

Q trabalho e a circulacao sao consagrados corno categorias capazes de

organizar 0 conhecirnento da Cidade Grande. Cada urna delas deve se

separar no tempo e no espaco, otimizando-se, assim, a produtividade

geral da sociedade industrial. Com estas unidades mfnimas a mao, 0

sumo pontffice, Le Corbusier, cnara uma cadeia orqanica final: as pecas

previamente seccionadas adotarao uma organi-

zacao antropom6rfica na Ville Radieuse. Nela, 0

resultado da fe cientffica aparece como a resti-

tuicao do corpo do indivfduo ao grande corpo

social em que reinam a unidade e a ordem, um

corpo limpo e seudavel exposto ao eixo hejoter-

mico. 0 maqufnico, a dissecacao cientffica serve,

assim, a criacao de uma sociedade orQaAica,per-

feitamente ordenada, que demonstra, no esplen-

dor de sua perfeicao, a neces~i'dade de uma dou-

trina cientff ica da cidade: 0 urbanismo. Tecnica _

de planejamento desse corpo orqanco, forma g~.alcancar a plenitude da sociedade, 0 urbanismo

estende, da casa operaria a cidade inteira, a aten-

cao ao metro quadrado e a planta, sem modificar

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minimamente sua tecnica de projeto. A cidade dos Arpel sera, portanto,

uma grande rnaquna planejada, uma utopia social que somente em

Brasilia tera se materializado com a pureza desejada pelos modernos.

Em Brasfia, sera de novo a planta a nos revelar a simbologia que da ori-

gem a cidade: 0 grandioso sonho humano - voar - torna-se realidade

qracas a ciencia! assim como 0 sonho da cidade perfeita, que se ~ate-

rializa gragas a ciencia do urbanismo. Uma dupla metatora, maqufM'icae

organica, 0 avao e a ave, abre suas asas em pleno Planalto Central;'cons-

truindo 0 que, sem duvida, e um grande e - por que nao? - m6nstruoso

sonho da razao,

Vemos reproduzidos, aqui, na escala da cidade, os mecanismos de pro-

jeto da casa. 0 documento-mestre sera de novo a planta, sua otirnizacao

mediante a cissecacao de momentos em equilfbrio - 0 zoning - e a sua

restituicao final, crqaruca e higienica. Inversamente, podemos entender 0

projeto da casa como uma translacao da cidade: tambern 0 projeto da

casa positivista resolve-se atraves do zoning, de um microzoning consa-

grado ao sol, em que as pecas sao decompostas para serem novamen-

te ordenadas em uma engrenagem rnecanlca e orqanca com eficiencla

maxima, a famosa "maquna de morar". Essemicrozoning e, sem sombra

de duvida, 0 elemento que permanece implfcito e oculto em muitas das

propostas pretensamente contraries a ortodoxia moderna. E : precisa-

mente este esquema funcional,que se reproduz no publico e no privado,

o cerne da modernidade que Tati soube evidenciar, mostrando-o como

um verdadeiro mecanismo de retroalrnentacao do sistema maqufnico.

Porern, 0 maquinismo da casa positivista tem tamborn um carater sim-

bolico, Reyner Banham, em Teoria e projeto na era da maquina (1960),

descreveu, com precisao, os limites dos arquitetos e urbanistas moder-

nos ante as realizacoes tecnicas da industrializagao: "...produziram uma

arquitetura da era mecanica apenas na medida em que construfram

seus monumentos em uma era rnecanlca e expressaram uma atitude

frente a maquina, na medida em que se podia encontrar em solo

frances, e discutir polftica francesa, mas sempre falando em ingles."

o arquiteto e sempre um turista fascinado ante um maquinismo cuja

rnecanlca desconhece, um turista que se encanta com a beleza do tran-

satlantico no qual decide viajar para pontificar sobre a cidade, mas e

incapaz de mostrar a mesma sensibil idade diante da memoria historioa

microzoning

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microzoninq

da cidade, ainda que distraidamente visite a Corseqa e Atenas, en~

quanto elabora a sua cidade ideal. Este turista nao tera as maos trernu-

las quando propuser a destruicao do passado em favor da logica maqut-

nica social: "Nao se pode admitir que, em prol de um culto mesquinho

do passado, sejam ignoradas as regras da justica social", escrevera

na Carta de Atenas. Esta insensibilidade, produto dos valores

positivistas, certamente rnarcara 0 jRicio do fim da cidade moderna, er

servira a crftica sistematica que o~tras formas de pensar e de habitar

aqui estudadas trarao a tona na segunda metade do seculo xx.

Da mesma forma que 0 apelo/de Comte a uma vida positivista carecia

de um programa especffico, que se confiava a um posterior desenvol-

vimento, 0 maquinismo moderno carece de qualquer reflexao sobre a

rnecanica do conforto. Tambem sua cultura material esta ligada a uma

visao mais estetica, do que pratica, do conforto, baseada na ldeali-

zacao das tecnicas e dos materiais industriais. Expressa, quanto mais,

o prazer de viver em uma epoca em que foram compreendidas, final-

mente, as tarefas da maqulnzacao, e aspira a realize-las no interior da

casa. A casa dos Arpel expressa bem este anelo e suas llmitacoes, evi-

denciando, atraves das falhas slsternaticas de seus automatism os - na

cozinha, no portae de entrada, no jardim, no portae da garagem ... -, a

ineflclencla tecnica esuas consequencias, Uma delas sera, sem duvi-

da, a flxacao maxima das atividades imposta por essa mecanizacao, de

modo que nem tanto os objetos visfveis, 0 mobiliario, mas sobretudo as

precariamente desenvolvidas instalacoes eletricas da casa, obriqerao a

uma rotina de alguma forma escravizadora, submetida aos designios do

o arquiteto arquiteto, tornando 0 habitante incapaz de reconstruir a experiencla

do espaco atraves de procedimentos e vinculos personalizados.

o que deixa de estar presente na casa positivista e toda a culturaraate-

rial desenvolvida na construcao do eu: qualquer vislumbre de individua-lizacao do espaco e substituido pela presence autoritarla's fantasrnaqo-

rica desse outro que dirige invisivelmente as pautas da conduta privada,

o arquiteto moderno. Quem nao tera percebido, ao assistir Mon one/e,

essa perturbadora presence, continua e latente, que voluntariamente

tiraniza os Arpel, ate anular qualquer hlpotose de iniciativa? Entremos no

quarto do menino, incapaz de personalizar esse espaco em que tudo ja

foi previsto por outro, e assim entenderemos ate que ponto a mecani-

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zacao - ao menos a imperfeita - e um lastro para a apropriacao do

espaco, Comparemo-Io com Hulot, em sua casa, distraindo-se ao fazer

o vidro refletir 0 sol em determinada dlrecao para estimular os passari-

nhos a cantar, e oucamos, de outro lado, os rufdos de todo 0 maquina-

rio da casa positivista. Nao e a sua idela de conforto puramente exter-

na? Nao ha, na higienizagao do ambiente, um esquecimento profundo

do conjunto de estfmulos sensoriais - odores, sons, elementos tateiqt:'

que compoe qualquer ideia plausfvel de ambiente?A sonoridade metalica e irritante da casa dos Arpel - que, nao aclden-

talmente, reproduz a da faorica - e, assim, expressao de uma mecani-

zacao a um so tempo imperfeita e mitificada, que se expande por toda a

casa, tornando cada vez mais diffcil 0 prazer, 0 descanso, a intimidade.

Lembremo-nos de como Tati filma 0 momenta de maior relaxamento na

casa dos Arpel. A televisao, 0 grande totem do mobfierio moderno,

polariza a posicao dos Arpel em suas poltronas-estrutura, sentados justo

no limiar da porta, continuamente levantando-se, nem dentro, nem fora,

mas de costas para 0 exterior, numa posicao inverossfmil e ridfcula,

angustiantemente inc6moda. Esta cena cotidiana da vida dedicada

afe

positivista e uma rnetatora completa das Imltacoes que apontamos na

casa positivista, nas formas de pensa-Ia e de habita-la,

Talvez, porem, as dificuldades que ainda hoje a arquitetura encontra

para superar esta casa, para aprender a esquecer as suas grandes limi-

tacoes, nao residam apenas na influencia do positivismo vigente nos

processos de formacao do arquiteto, mas em sua profunda capacida-

de de penetracao na rnecanica produtiva, at raves das normas que nos norm as

deixou como heranca. Talvezseja esta a principal ferramenta para a per- modernas

sistencia de alguns modos de pensar e de projetar a habitacao nos

quais ninquem mais ere, mas de acordo com os quais todos estao con-

denados a agir. Apenas quem confia no fato de que tanto a sociedade,

quanto a natureza sao regidas por leis identicas pode trabalhar, com 0

afinco dos modernos, na producao deste legado de normas cristaliza-

das. Assim como os arquitetos do Team 10 experimentaram dificulda-

des para superar a ortodoxia moderna no interior da propria moderni-

dade, os arquitetos de hoje ainda permanecem, em muitos lugares e

pafses, presos a essa jaula herdada. A tarefa de quem deseja modificar

sua forma de pensar e de projetar a habitacao e tambem a tarefa de

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normas

modernas

escapar ao marco nao apenas epistemol6gico, mas tarnbern normativo,

da modernidade. Por ora, contentaremo-nos com um objetivo mais mo-

desto: escapar a uma valoracao simplista e negativa desta tantastica, e

tambem unidirecional, concepcao de arquitetura e, atraves desta visita

a casa dos Arpel, olhar sem rancor a experiencla moderna.

E 6bvio que a nossa visita a casa dos Arpel e enviesada e parcial, e que

se poderia fazer uma analise bem!distinta da casa positivista, explican-

do a situacao hist6rica, a explosao demoqrafica associada a industria-lizagao, 0 carater proqressista de tantas experienclas, 0 beneficio aqualidade de vida obtido atraves daquelas mesmas requlacoes e leis, 0

sentido de reslstencla da modernidade frente as tendencias mais bru-

tais do capitalismo selvagem ...Tudo isto e ineqave', mas apenas nos

obriga a adotar a postura do historiador tradicional e, sobretudo, nao

nos comove. 0 que nos comove, e emociona, eo cuidado com 0 deta-

Ihe que Tati dispensou a construcao desta casa, e do bairro completo

de uma cidade de neg6cios em Playtime. Comove 0 fato, puro e sim-

ples, de que aquela fantastica iluminagao chamada modernismo nao se

converteu em hist6ria abstrata, mas em nossa pr6pria tradlcao, no

lugar em que nossas vidas tern se desenrolado. Comove que esta cida-

de, baseada em principios cuja mera rnencao repele nosso entendi-

mento, tenha sido um marco em nossas vidas. Somente assim, a par-

tir do entendimento daquilo contra 0 que nos formamos, "nadando

contra a corrente", e de sua conversao em uma diffcil tradicao viva,

somente assim podemos entender e compartilhar esse amor, esse cui-

dado dispensado por Tati. Provavelmente nos identificaremos nao com

monsieur Hulot, nem com os Arpel, mas com 0 que representa 0 filho,

entre as duas cidades que Ihe sao alheias, pulando de uma para outra,

e nao apenas fisicamente. E ele 0 protagonista, 0 personagem que

explica a ambfgua posicao de Tati frente ao mundo .que nos foi dado.

E atraves de sua mente que podemos entender enos identificar com a

beleza das melhores proposlcces positivistas, sem concordar com nem

um s6 que seja de seus argumentos. Quem nao tera sentido a beleza

das obras mais radicais de Le Corbusier? Quem nao desejaria, nem

que fosse por uma temporada, viver em uma destas fantastlcas rnaqui-

nas de morar? Quem nao valorizaria a casa dos Arpel como uma das

grandes obras da arquitetura de nosso seculo, com sua horrfvel fonte,

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sua cozinha de hospital, suas janelas-olhos dalinianas, seu cacto

catastroficamente mutilado por monsieur Hulot? Quem, finalmente,

permaneceria impassivel ante 0 desdobramento de ilusao e beleza, de

fe no progresso, de uma cidade como Brasilia, capital de um pais que

ainda hoje ostenta, escrito em sua bandeira, 0 lema que foi 0 leit motiv

do credo positivista: "Ordem e Progresso"? Como 0 menino Arpel,

sabemos que estamos condenados a esta fascinacao exercida pelo t

mundo de onde viemos, que nos fez como somos, que nos forneceuas normas com e contra as quais viver, isto a que sempre se denomi-

nou "tradicao".

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